segunda-feira, 30 de agosto de 2004

A vague being

A luz não se olha, não se encara, nem se usurpa. Vê-se. Tal como se olha para os deuses, tal como se encara o ser e tal como se usurpa a beleza. Ver é próprio da luz, olhar é próprio das gramáticas.
Em rota

Quem me dera ser árvore. Quem me dera andar à volta da árvore sendo árvore. Quem me dera, sendo árvore, estar dentro e de fora da árvore ao mesmo tempo. Incessantemente.

sábado, 28 de agosto de 2004

Obrigado (act.)

Para além dos agradecimentos individualizados próprios da atmosfera, não posso deixar de agradecer à blogosfera os multifacetados e sinceros parabéns que me foram endereçados (espero que não me esqueça de nenhum!) pelo atento e determinado MacGuffin, pela encantada Charlotte, pelo Absurdo Ponto, pelo Mundo Imaginado, pelas conterrâneas Crónicas do Deserto, pela generosa Eugénia, pela amiga lunar e levemente erótica, pelo Carlos que me ensinou a dizer Simba, pelo Farol luminoso das Artes, pelo belo amigo do Índico, pelo Guarda Factos, pelo Zé Aquilino (we are all passengers), pelo Mil mais Uma, pelo Melga, pelo Predatado, pelo Blete, Pelo Daedalus, pela Pecola engenhosa, pelo Púrpura Secreta, Pelo Conversas na Travessa, pelo amigo Avatar (vivóbenfika), pelo Santos Passos e ainda pelo enigmático Luceverstenebrae. A todos muito obrigado.

sexta-feira, 27 de agosto de 2004

Já venho, mas...

SEGUIR-SE-Á O MEU IMENSO OBRIGADO A TANTOS VOTOS DE ANIVERSÁRIO. MAS, PARA JÁ, ATENÇÃO À MUDANÇA DE MAIL:

luis.carmelo@sapo.pt

sábado, 21 de agosto de 2004

Pausa

Na próxima Quarta-feira, dia 25 de Agosto, faço cinquenta anos. Deixo as Ficcionalidades de prata nos 50. Mas, depois, continuarei. A vida, essa, também continua. Até já.
Ficcionalidades de prata - 50


(Domingo de manhã em Arcueil, Robert Doisneau, 1945)

Esta é a história do mundo. Foi tudo tão rápido. Nascer e pressentir o imenso calor, crescer e não acreditar no inverosímil; estremecer, remediar, confiar, descrer, repensar, alentar, partir e morrer. O amor terá aparecido como o imenso hiato que percorre ou prenuncia, em silêncio, as vias, os túneis e os jardins das várias histórias comuns. Até que um dia nos encontrámos no grande largo de Arcueil, entre a sombra que acompanha o arqueado da calçada e a luz do sol que aparece impiedosa, imprevisível, mas apolínea. E o que dizemos da dor? Dizemo-la como dizemos a água: transparente, abundante e envolvente. Seja como for, estamos juntos, estamos vivos, a guerra acabou e outra há-de começar. Por enquanto, há tempo para demorar e para saborear. Toda a vida está aqui, nesta genealogia sigilosa e nos frutos que dela incidentalmente se apearam. A fotografia faz parte desta magna intriga. É com ela que o tempo estala e ilude demorar-se e saborear-se para sempre. Não era isso que esperávamos dos deuses?
Ficcionalidades de prata – 49


(Woods Interior, Edward Steichen, 1898)

A fotografia age como uma super nova. Retém a matéria num mínimo de massa, encolhe o campo que serviu de curso à luz e adensa o que terá sido o quadro visual que esteve, por uma única vez, face à objectiva. Contudo, diante deste quase enigma da reprodutibilidade, existem outras realidades que a fotografia parece sempre transportar consigo: vectores que nos apontam para coisas (sítios, direcções, rostos), analogias que nos sugerem mundos reconhecíveis (aquela árvore, aquele bosque, aquele riacho) e memórias involuntárias que acompanham a impressão desde a sua origem (fotogenia, aura, estranhamento semelhante ao que descobrimos quando ouvimos a nossa voz num gravador). Para além desses atributos, há ainda um último que resiste à fixidez intangível da fotografia. Trata-se de uma espécie de caixa de silêncio que a acompanha ao longo do tempo e que se torna perceptível quando se escreve, não para explicar ou legendar a fotografia, mas para com ela e a partir dela emergir. Dialogar com a caixa de silêncio de uma fotografia é traduzi-la em várias frentes e encontrar, entre o ensaio e a poética literária, um caminho múltiplo que é, afinal, também, o da super nova fotográfica.
Ficcionalidades de prata – 48


(Ide Collar, Paul Outerbridge, 1922)

O objecto dissociado do seu acontecer prático remete-nos para o que fomos aprendendo secularmente a significar por poética. Nesta medida, o objecto diz sempre outras coisas que não ele mesmo, mas traz, igualmente, na sua presença, algo de adquirido e de acolhido que desmistifica o carácter habitual de coisa que, no dia a dia, lhe é atribuído. Quer isto dizer que o objecto aponta sobretudo para si próprio e faz disso o ponto de honra do seu instituir-se. Esta descoisificação, esta desnudez súbita, este pôr-se em causa quase consumado avassala a significação mais rotineira e denotativa e acaba por colocar o objecto numa perspectiva que supera a narração (as suas implicações funcionais no tempo) e a descrição (as suas interacções previsíveis no espaço). É esta a enseada que se abre para a poética. Paul Outerbridge tomou o pulso a este propósito nobre e fez aparecer na imagem dois factos que se desconheceriam, não fosse a cadeia de analogias que nos permite coisificar e descoisificar ao mesmo tempo. E é nessa vertigem em movimento e em catadupa que a poética invade a enseada de onde olhamos e de onde transfiguramos o olhar que emanamos.
Ficcionalidades de prata – 47


(Car Trip at 80 kilometers an hour, Jacques-Henri Lartigue,1913)

O culto da velocidade nasceu para que, um dia, se pudesse atingir a ilusão da instantaneidade. Se a fotografia condensa o espaço real e o coloca num mesmo alçado a condescender, ponto por ponto, com a superfície lisa da imagem, já o tempo implica linhas de fuga imaginárias que se subsumem e que, portanto, entram em ruptura com o vórtice temporal do quotidiano. A deformação é uma das metáforas mais utilizadas para significar esta ruptura, este corte, este desejo fáustico. Marcel L´Herbier utilizou-a no seu film d´art, L´Inhumaine, de forma exuberante. O futurismo remou sempre nesse mesmo sentido de extravase das formas para além seus limites ópticos aparentes. Mas o importante era atingir um grau em que o ponto de partida e o ponto de chegada fossem um só. O fundamental era atingir um grau em que o imediatismo do gesto se redimisse plenamente, apenas por atingir o fim último proposto, sem ter que experimentar a iniciação que a travessia, a viagem e a passagem pressupõem. Hoje sabemos que os mundos hiper-reais, baseados nos fluxos tecnológicos da rede, nos fornecem esses condimentos. Esperar (pelo paraíso, pela sociedade perfeita, por Godot ou por Penélope) deixou de ser um modo de significarmos a vida. Em vez dessa postura de miragem e, amiúde, de intolerância, o agora-aqui aparece cada vez mais como um novo patamar de compreensão, facto de que esta fotografia de Lartigue é ingénuo pressentimento.

sexta-feira, 20 de agosto de 2004

Ficcionalidades de prata – 46


(Avenue du Bois de Boulogne, Paris, Jacques-Henri Lartigue,1911)

O movimento é aquilo que resulta do efeito criado pelas relações postas em jogo. De um momento para o outro, o espaço parece absorvido ou mesmo ocupado, porque, para além do que surge relacionado, as próprias relações estabelecidas acabam por se impor como um dado autónomo, não controlável e rigorosamente independente. O universo que na fotografia de Lartigue é posto em relação - o hábito, a mulher, o corpo, a destreza, a sinuosidade, a flexão, a trela, os cães, os carros, as sombras, a frescura do bosque - sugere um pathos que entreabre a paixão genuína, desassombrada e lúbrica ao limiar do efeito que a coloca, involuntariamente, em movimento, em interacção, ou em conotação indefinida. Mas uma relação, entre muitas outras, perdura diante deste cintilar já entreaberto: a textura do corpo que se antecipa a qualquer resultado, o cetim que balbucia emancipando-se ao rigor do plano, a voluptuosidade que segreda distinguindo-se do resto do universo. E é por isso que a mulher em movimento absorve o espaço que a fotografia irradia para fora de si; é por isso que o gáudio extravasa a esquadria e a nitidez da impressão; e é por isso que a protagonista desta saga menor quase abdica à mercê do desejo puro que instiga e propaga.
Ficcionalidades de prata – 45


(Untitled, Paul Strand, 1915)

Eis o que diz o plátano neste solilóquio em que já não há margens, nem símbolos, nem rumores irrevogáveis. Eis o que se passa, o que às vezes hesita, ou o que realmente oscila, quando o plátano diz, confiado ao tempo, qual o andamento em que flui o ritmo da manhã. Eis, em suma, talvez como revelação, o nome dos mundos que se criam, à medida que o plátano diz a história deste mundo minúsculo, estreito, liliputiano. Eis ainda quem afirma o plátano, quem o diz, quem o pronuncia, quem provavelmente o desconhece: um vulto evasivo, um volume negro, um ponto de capa e espada, sob a forma de marcha, a desbravar, a subverter e a recriar a densidade quase imperceptível do solilóquio matinal. Eis, por fim, o brilho murado, o intramuros desbravado e o suspiro enclaustrado que imortaliza o que jamais se disse, o que nunca se afirmou e o que ninguém pronunciou. Subsiste, no entanto, a forma do passeio: quadrados justapostos, astros repetidos, termos avaliados. Calculados, ponderados. Ou o caos como forma pura e imprevista de sobrevivência.
Ficcionalidades de prata – 44


(Staircase, Mexico,Tina Modotti, 1925)

Depois da redenção o que sobeja é apenas a forma. A configuração que se subsume à matéria. O resíduo que escapa à substância. Após a contenda final em torno das crenças e dos mundos cumpridos, nada resiste ao lento labor imaginado nas áleas do paraíso: projectar limites e áreas para que se reimprimam ou dissipem, circuitar o aparato para depurar a extensão em que se aventura, podar a estrutura para que o de dentro e o de fora ilimitadamente se libertem e se cruzem. Tudo isto sem esquecer que é preciso arear a superfície, turvar a claridade, limar os compassos, contrastar as frases, desofuscar as sombras, apurar os tons, contrastar as faces, polir a transparência e reimaginar a sequência. Neste recitativo sem partitura própria, voz que sobe também desce e voz que desce também sobe. Existe no patamar uma junção quase invisível que traduz o zelo desta contradança do espírito: onde dantes ancoravam sonhos, fermentavam idealidades e lustravam verdades, ressurge hoje a beleza denegando a finalidade, a expectativa e a intimidade do próprio zelo. Forma sem formato, encaixe despojado, desenho múltiplo da redenção quotidiana.

quinta-feira, 19 de agosto de 2004

Ficcionalidades de prata – 43


(Wall Street, Paul Strand,1915)

O que faz uma fotografia? Além da sombra e da luz, traça um propósito, uma orientação, uma espécie de casa das casas, multifacetada, múltipla, aberta em leque, desfigurada, como se fosse, ao mesmo tempo, um mero receptáculo das silhuetas que vêm ao ser e um entreposto das existências que as usurpam e que delas provêm. Uma fotografia faz frente à letra, ao programa, ao enigma resolvido, à conjura controlada, ou ao labirinto binário que se esgota na divindade e no rebanho de mortais. Uma fotografia faz o seu caminho apagando-o, removendo o que parece limitá-la, divergindo na invisibilidade das silhuetas que perseguem sombras esguias e compridas, matinais. Paul Strand entendeu como poucos a natureza desta cascata de imagens que, numa única e episódica, como se fosse apenas vestígio, se realiza, se cumpre e se coisifica. Ao contrário do milagre, a fotografia muda permanentemente de estado. Quando a olhamos, quando a requeremos e quando a interpelamos: propósito aberto, tecido disseminado, rio inacabado pelo curso das margens que o acendem.
Ficcionalidades de prata – 42


(Spring Song - Solange Gauthier, Yousuf Karsh, 1938)

Com um braço tacteia o horizonte, com o outro hasteia a árvore e com a tentação do corpo relata a excessiva omissão, a elipse, o coração da dança. Resvala sobre o ovo de pedra, sobre as nuvens subterrâneas, sobre o magma de seda. Há-de um dia reencontrar-se sob a forma de oceano fulgurante, reflectida no destino da via láctea. E há-de aparecer com os cabelos envolvidos por ondas que deles se desprendem e enovelam até à folhagem, ao fundo, onde, de novo, ressurgirá de braços abertos como se dançasse. Imagem sobre imagem, breve, içando a transparência do corpo até ao veio das estrelas. Assim a vejo e revejo a cotejar os ofícios da dança, com gestos demorados a confessarem a tremenda falta que o corpo sente da terra e que a terra sente do corpo: saudade, exclusão, omissão, elipse, o perpétuo coração da dança. Por enquanto, é apenas figura, ilação da luz, lume cristalizado, brancura. O horizonte como logro, a árvore como devaneio, a tentação como pura lisonja do corpo.
Ficcionalidades de prata – 41


(Untitled, E. J. Bellocq, c. 1912)

Numa história comum não interessa o que está à mostra. A mais profunda partilha está nos lugares onde a sombra é mais impenetrável, mais densa, quase opaca. É a partir daí, desse orbitar incorpóreo, que a cena se expõe à luz e ganha o sentido da prece, da súplica, para além da claridade que lhe é própria. E é vê-la, sem título e sem nome, como heroína da candura e, sobretudo, como alegoria da felicidade fortuita: perna trocada, as tiras como divisa de paixão, os braços lascivos, o rosto oblongo, o cálice secreto e, um pouco atrás, a mesa a diferir e a espalhar o centro da miragem onde, afinal, se cruza a geneologia e o fruto actual, a postura, a afectação, o móbil contido do sorriso. Numa história comum, o que não está à mostra também está à vista e empresta à encenação a liquidez, o ritmo de exposição e o pulso de que se alimenta. Não há limite entre o que se expõe e aquilo que parece permanecer nublado, espesso, resguardado. Na parede do fundo, suspendem-se as imagens e nelas o que interessa ainda orbita, ainda circula, ainda espreita de longe para todos os nomes da felicidade fortuita. A aura que se prolonga.

quarta-feira, 18 de agosto de 2004

Ficcionalidades de prata – 40


(Backstage at the Folies-Bergere, Brassai, 1933)

O que vê, quando vê durante a noite, não passa de uma assombração na paisagem que a torna igual ao fundo onde, há muito, foi recortada. Por trás do palco, esse assombro espantado consigo mesmo tem o nome de nudez. Uma máscara a flagelar e a iluminar a densidade do sangue que forma a face e paralisa o gesto. E por isso o parecer implanta o ser e dá aos espelhos da alma a mesma aragem nocturna que se perde na magia das grutas. Olha em frente, quando entra em palco, e já não vê ninguém. Nada do que vislumbra consegue encarnar a comoção da sua própria obscuridade. Confunde-se com o fundo e chama a si o ar que respira como se fosse, todo ele, a noite. A noite de sempre, espalhada pelos membros, pelo peito e pela inaudita evidência da nudez. A entrega é o assombro do actor e, no seu repouso, cruzam-se, ao mesmo tempo, o inferno, o céu e o limbo. O gelo, a carne e a gruta. Quando vê, já há muito recortou a luz à face e a sombra ao corpo.
Ficcionalidades de prata – 39


(Canyon: Broadway and Exch. Place, Berenice Abbott, ca. 1935-39)

Na idade dos metais, a fé uniu-se à altitude, à altura e à elevação. Era uma real amálgama de gritos e um ilimitado bradar antes da guerra. E o terrível eco percorria penhascos, precipícios, promontórios e abismos. Uma vertigem que brotava do milagre da forja e do fogo. A mão do guerreiro tocava na lua cheia e fazia oscilar a magnitude das forças que suportavam as colunas do céu, uma a uma. Ei-las agora, aqui, noutra galáxia, a povoarem a mesma graça, o mesmo culto e o mesmo feitiço. O aço escala de novo até ao imponderável limite da respiração. E na sombra que lhe enche a carne, desenha-se o corpo exemplar, a entoação ancestral, a melopeia do apogeu. É nas extremidades que os nomes se abeiram da obstinação. Letras e números por nomes, luas e topografias por nomes, caminhos e memórias recentes por nomes. Uma fotografia que capte este corpo grandioso traz sempre consigo um eco antepassado de guerra. E um nome apenas flutuante. Nómada.
Ficcionalidades de prata – 38

(Conversation Near the Statue, Manuel Alvarez Bravo,1933)

A polifonia é o talento que diz todos os frutos da árvore, ao mesmo tempo. E os frutos, por mais luminosos que sejam, podem ser silhueta, esquina, música, céu, edifício, palavra, escultura ou até a simples palma da mão que se abre no meio de uma praça para crer que o futuro é uma nascente sem fim. Há raras fotografias que são polifónicas, mas essas, devido a um engenho de proporções, sabem imprimir os seus frutos como se fossem vozes que germinam a partir dos objectos mais irrealizáveis. Há uma desconhecida seiva que atravessa as topografias emudecidas de Alvarez Bravo. Talvez advenha da disposição, do ordenamento, ou do modo subtil como o vazio do alicerce se submete à simultaneidade profética. Futuro realizável através de corpos e causas irrealizáveis. Um paradoxo feliz que aparece espelhado naquele diálogo de quatro de homens, ante o espantoso e surpreendente vazio do espaço. Preenchê-lo é uma arte da mais pura polifonia.
Ficcionalidades de prata - 37


(Parlourmaid at a window in Kensington, Bill Brandt, ca. 1936)

A tenacidade faz o gesto. E por assim ser, arrasta consigo o invisível vagar das trepadeiras, a demora da terra e o próprio sentido que se desprende da iniquidade da espera. Seja como for, é tão enigmático este convívio entre o corpo que avança em direcção aos vidros e o inexplicável volume do tempo que o suspende. Inesperado pacto que deve o seu brilho ao atrito e ao esforço que parece querer interromper a viçosa assimetria das formas. E as janelas assistem impávidas ao prolongado sortilégio com que o mundo se divide em habilidade e quietude. A pouco e pouco, o gesto avança, as cortinas repousam e as madeiras entreabrem-se diante do fio de prumo ludibriado pela força das heras. Fonte de vida. Nada sei do rosto que preside a tal expiação. Mas sei que da sua penumbra brotam os mais antigos combates da natureza. Foi preciso livrar o ser, o quadro e o campo a este ínfimo instante para o relembrar. Cada um de nós é o abismado rosto da mulher de Kensington.
Férias - 2

Obrigado. Há palavras que, às vezes, sabem bem. Um abraço do Atlântico frio para esse Índico próximo e generoso (já agora, sempre pensei continuar a série, após uns breves dias de férias).
Férias

E agora, uns dias de férias. Quase 40 ficcionalidades de prata já foi obra neste Agosto ingrato. Em frente, o mar de Monte Gordo e uma ventania diabólica.

segunda-feira, 16 de agosto de 2004

Ficcionalidades de prata - 36


(Newsies at Skeeter Branch, St. Louis, Lewis Hine, 1910)

Há itinerários onde a experiência significa apenas aperto e premência. Ouve-se o disparo, a luz ascende ao diáfano das formas e o que ocorria defronte da objectiva logo congela e solidifica: são meros vendedores de jornais a calcorrear cometas, cobradores da felicidade remota, adoradores da premência. Olhamo-los e revemos o modo como se apressam, como recolhem os gestos no seu desconhecido leque de privações, carências ou falhas. Nesta mudez dorida, existe o inevitável impulso de ludibriar a arte do fumo, de querer posar o corpo ou depor o olhar, entediando-o. Neste mutismo quase melindrado, os meninos já são homens. De um momento para o outro. É uma façanha colossal, mas, ao mesmo tempo, é um istmo tão breve e frágil quanto exímio. No reverso deste espectáculo frio, os jornais ainda sobrevivem em nome do anonimato dos mortais. São simples letras em órbita que contracenam com a avidez, com o esquecimento e com o escárnio dos inocentes.
Ficcionalidades de prata - 35


(The Ring Toss, Clarence H.White, 1899)

Muitas vezes a pintura partiu do corpo que não era o seu. Neste caso, Clarence H. White seguiu as pisadas de uma pintura de William M. Chase. E viu-se a comemorar o círculo quase fechado da penúltima passagem de século, num geniceu provincial do Ohio. O espaço é liso, luzidio, quase alaranjado e evoca uma emulsão deliberada, modelada, espessa. É sobre o repouso desse piso irreal que as meninas levam a cabo o seu rito intemporal. A iniciação traz a lume a própria chama e o que na sua desmedida devoração não passa de sigilo, recato e resguardo. Sob o abismo desafiado, o que desabrocha é a pureza do vestido, a harmonia dos folhos e a maciez da cintura rendada. Mas também o tesouro fechado do tempo que já absolve o desejo e a aventura, por ora com forma de anel ou de haste. E o demais é deslumbre, ímpeto ilusório e uma diagonal cheia de artifício. Seja como for, ao fundo, lá muito ao fundo, consigo ouvir o tilintar vocal das meninas a ressoar, a ressoar, ao mesmo tempo, e a disputar o excessivo júbilo contido.
Ficcionalidades de prata - 34


(Georgia O'Keeffe, Alfred Stieglitz ,1921)

O eclipse é a metáfora do rosto: de qualquer lado que se aviste, não é difícil entender a ocultação da cena. E o falso embuste reside no emaranhado com que o visível se enleia ao que permanece suspenso. A contiguidade abre sempre caminho àquilo que não se vê, mas cuja presença é tão forte e nítida como da casa o é o quintal, a rua, os passeios ou toda a cidade. Neste retrato, há milhares de outros retratos a envolverem a florescente crispação de membros, tendões, veios, músculos, filamentos, ossos e órgãos. Nada nele é imediato ou está dito. Este retrato é, por isso mesmo, o próprio eclipse em flor, ou a travessia da pele por vincos, dobras e pregas. Nele vemos o corpo sem alicerces e o rosto sem lugar prévio, como se estivesse disposto em coroa e desenhado sem finalidade. A própria Georgia O'Keeffe o disse em vida, nove anos após esta fotografia: "I see no reason for painting anything that can be put into any other form as well". E o eclipse diz a mesma história que é a de todos os eclipses e rostos que acenam em mil direcções, mas di-lo por acontecer apenas ali, daquela forma, naquela luz e com aquele olhar ausente e tão excessivamente presente.
Ficcionalidades de prata - 33


(Etang de Corot, Ville-d'Avray, Eugène Atget, ca. 1900-1910)

Nem sempre a descrição é alma gémea da observação. Pode fixar-se o campo, pode rasgar-se um perímetro, pode delinear-se a face que se contempla, mas nem sempre isso conduz à ideia do espaço observado ou à súmula ideal do que se vê. Muitas vezes, a agilidade e a elasticidade do que se apresenta aos nossos olhos parece sobrepor-se à representação e, por isso mesmo, a atenção deixa de se opor à observação do mesmo modo que o inventário deixa de se opor à descrição. O exercício surge assim subitamente a nu como se não existissem regras a manipular os lances e as texturas que dão ao barco de Eugène Atget a natureza de objecto admirado. Essa manobra quase impossível, essa passagem pelo estreito que coloca frente a frente a imaginação e a plasticidade, esse pas de deux que bruscamente dissolve modos fixos de ver é, com toda a certeza, obra de génio. Devemos apreciá-la. Ramo a ramo, folha a folha, linha a linha.
Ficcionalidades de prata - 32


(Large Sleeve, Sunny Harnett, New York, Irving Penn, 1951)

E quando a fotografia ainda não era uma simples paragem do fluxo global e continuado de imagens, mas já dava mostras, há muito, das ciladas que se tramavam dentro do seu próprio castelo: eis então que surge o rosto a divergir da massa que o faz vir ao ser; eis então que surge o fundo a deslizar atrás dos lábios, esse único plano em jogo; eis que surge o alcance filigrânico dos contrastes a definirem limites entre o que corporifica a imagem e o corpo real que na imagem se esvai; eis que as linhas de fuga da narrativa ousam empurrar a fotografia na direcção das diferentes periferias onde ela mesma respira e brilha; eis que o olhar se torna em contínuo boomerang, errando na ausência de centros e perseguindo a faca sem lâmina que ameaça cortar o cristalino e a íris; eis ainda o modo como o modelo se lapida naquele sangue imensamente branco que diz o inefável ou o puro nada em vez de coisa; eis, por fim, que fica apenas à mostra o grande engenho da cilada, não o que sempre honrou a fotografia com um passado infinito, mas aquele que jura que as constelações jamais envelhecem. A fotografia é uma fingidora.

domingo, 15 de agosto de 2004

Ficcionalidades de prata – 31


(Street Scene, London, Bill Brandt, 1936)

Move-se na sombra como quem não distingue o ceptro do relâmpago. Aproxima-se dos que paulatinamente passam por si, para que a sua cegueira saiba distinguir o palpável do quimérico. Negoceia sem armas na mão, já que o volume de gigante lhe vale dotes de tempestade. E, depois, uma nuvem balbucia no olhar de quem lhe faz frente, é sempre assim. A certa altura, a fixidez é tal que as pestanas quase congelam e as pálpebras renascem do medo como se se estriassem em forma de cúpula. Tocam sinos ao longe, parece, enquanto os poros se eriçam e a memória faz eco do alarde interminável. Mais do que um terrível susto, ou do que um puro assombro, é o peso do outro. O outro. O túnel, o metropolitano, as galerias funestas, ou o imenso vale escuro sem qualquer saída. O olhar diante do olhar. O corpo apagado, desfeito, liquefeito na sombra. Entre a infinita submissão ao ceptro e o medo de um céu mitológico pejado de relâmpagos.
Ficcionalidades de prata - 30


(Edgar Allan Poe, Lowell, Massachusetts, autor desconhecido, 1849)

O olhar íngreme e calmo, ao mesmo tempo, é um dom dos pioneiros. Nada os descreve, porque tudo parece cercá-los. Imaginamo-los por isso em rotação, como se do movimento imaginado um ou outro rosto pusesse a nu todo o desafio. Mas em vão. A roleta é menos impiedosa do que o mistério. Fica apenas o registo das paixões desocultadas: Poe, amante dos hiatos sem fim onde o visível e o invisível andam de mãos dadas e ameaçam inquietar pelo contraste, pelo drama arrepiante, pelo jocoso dos percursos entre morte e vida, entre ressurreição e suspiro pueril. Poe, amante de um pathos defensivo face à ideia então emergente de progresso, defensor de um pranto saudoso, de um personalismo visionário e de uma irremediável insatisfação que Schlegel, no feminino, baptizou por sehnsucht. Poe, amante da enigmática simbiose de olhares que parecem prefigurar, aqui e ali, uma prodigiosa intuição do tropo fotográfico. Poe, amante dos terrenos abruptos, da limpidez das ruas conspurcadas e da intemporalidade dos cisnes. Tudo e nada. ambos pertencem a esse olhar de amante compulsivo. Amante sem objecto, ou amante à procura do lado mais bizarro do objecto que se ama. Íngreme, calmo, quase a respirar.
Ficcionalidades de prata - 29


(C. Felton como seu chapéu e casaco, John A.Whipple, ca. 1850)

O díptico reflecte como nada mais a estrutura do cérebro. Mas o que se impõe nesse crivo de circunvalações binárias é sobretudo o trânsito e não tanto o esquematismo da divisão. E o que circula nesse dédalo luminoso são imagens que não apenas desenham a consciência como dão a ver, através dos seu próprio álibi e ardil, o que resta do vasto puzzle que navega e que se processa, a todo o momento, entre a mente e a rede exterior de objectos. Regressando à parábola e deixando o relato de fundo: de um lado, vemos o senhor Felton, um académico romântico de Harvard, e, do outro, o gesto aventuroso e breve que prenuncia o habitual passeio dos justos. Entre fontes de água fresca, ruínas aduladas e ocasos grandiosos antes do regresso aos clássicos, no recato da fogueira de mármore. E toda esta cena diária parece aqui hesitar, na rápida travessia que suscita entre escorço de pose e ostensão fugaz. Lado a lado, de modo intermitente, piscando o relato de fundo e a parábola que o ilumina de forma quase simétrica. Como se a imagem trocasse o lugar pela figura e a figura pelo lugar, sem que sequer o soubéssemos.
Ficcionalidades de prata - 28


(Two Nudes Standing, Félix-Jacques-Antoine Moulin, ca. 1850)

O resplendor da talha, o brilho da luz e o enquadramento obscurecido relatam a mesma frase, a mesma cadência, a mesma sinuosidade. Há, de facto, um desvio no riscado com que a cena escapa à superfície. Daí que o calor dos corpos enlace o olhar que se dirige à fotografia como se aquele praticasse uma incisão e este uma infrutífera devoração. Dir-se-ia que estamos diante de duas estrelas aparentemente próximas e, no entanto, a gravitarem em universos distintos. Terá sido sempre assim com estes dois nus: a escuridão da superfície recorta-se a si própria e delega o vaivém da perspectiva algures na aura que se vai perdendo no exterior do jogo. A este tipo de encenação deverá chamar-se tentação. E é justamente o que permanece naquela concordância doce e distante. Tortuosidade, rodeio, contraste descomedido: são as pernas que se escondem uma na outra, a cabeça amortecida ou delicadamente deitada e os quadris em liquidez rumorejada. Nada mais, a não ser a quase ausência das mãos.
Ficcionalidades de prata – 27


(Nadar; Adrien Tournachon, Arlequim a sorrir, 1855)

Estou a vê-lo a perguntar onde começa o sorriso e acaba o temor que pode atrair o exagero e, às vezes, a ausência de regra, de padrão ou de preceito. Respondia-lhe que não se podia definir a proporção da paródia. A irregularidade da veste, o desacerto da obscuridade e o escrúpulo dos lábios, por exemplo, cativam mais a desordem e o motim do que a simples parada fleumática que coíbe o sorriso de ser riso. E é por isso que o ridículo pode ser um oceano onde o magnetismo se converte subitamente em paixão. Porque os fantasmas se transformam na brancura das suas vestes, dando-nos a sensação de que falam pela nossa voz e de que andam com o nosso corpo. Como se o temor e o sorriso se sentassem à beira-mar para livremente contemplarem a insubmissa desordem das ondas. E é sobre elas que o arlequim voltou a andar como Cristo havia feito noutros mares. E erguia o braço e dizia que o preceito é o mais simples arremesso dos pobres de espírito. E assim foi. Pode crer-se.
Ficcionalidades de prata – 26


(The Town on the Hill, New Almaden, Carleton E. Watkins, 1863)

Talvez o esforço espreite, ano após ano, a medida que o imaginou. Diz-se que é um sacrário de pedra para quem ali abriu os olhos pela primeira vez. O tempo parece paralisar o que dele mesmo se avista, tal é a imobilidade das passagens que serpenteiam a imaginação e o labirinto infinito da montanha. Nascer para ficar, crer para ser. Há neste esforço de fixação um imenso desnível entre o edificado e a retórica da matéria. Pela frente, há sempre um bardo que exclama o seu poema através do acidente, do imprevisto ou do enrugamento milenar. Há forças antiquíssimas que não cabem no traço mais íntimo de um sorriso. E apesar de tudo isso, o corpo sustenta a medida e o cálculo, nem sempre ponderado, com que carrega a história e o indiscutível fascínio pelo seu próprio lugar. O território é esta obstinação, este afinco, esta nítida teima dos deuses menores. Ou maiores?

sábado, 14 de agosto de 2004

Ficcionalidades de prata – 25


(Abstraction, Twin Lakes, Connecticut, Paul Strand, 1916)

Separar o que a lenta metamorfose da alma uniu. Rever as sombras a apascentar as nuvens da matéria, nesse planeta inglório onde se criam faces vizinhas e longínquas que se deparam com a surpresa. Ser arlequim abstracto, riso perdido à volta das mesas sem nexo e imaginar guindastes literalmente brancos sem horizonte onde se apoiassem. E depois rodopiar e pronunciar a palavra que voltasse a unir o que já não pode ser unido. Ouvir a alma a girar como se fosse a esfera celeste em movimento dúbio, mas permanente. Estrelas brilhantes, vozes simultâneas, luzes ovais e uma linha de força carregada e muito direita quase a intrometer-se nesse espectáculo nocturno. De onde viria? Strand chamou-lhe incúria, falta de providência, intenção sem carril, nómada sob sombras desprevenidas a atravessar o coração da estepe. Ou o coração da mesa circular, do planeta inglório, ou do riso que não cessa. A não ser que a fotografia diga o silêncio em vez de dizer apenas o vestígio.
Ficcionalidades de prata - 24


The Road West, Dorothea Lange, 1938

Fora da trajectória há outra vida. Sempre outra. E ao fundo, no local onde todos os destinos se encontrassem, ainda que dispersos e desconhecidos, apareceria um livro em branco sem sinais, sem desígnios, sem inscrições, sem exortações e sem juízos de qualquer espécie. E a viagem, ou antes, as viagens retomar-se-iam como se a estrada fosse só uma e o destino a miragem exacta do ponto de partida. Apesar dessa ilusão de que se embebe o anónimo caminhante, o ângulo da jornada seria raso e o vão recortado pela paisagem teria a medida precursora da vista. Depois de tanta trajectória a percorrer, ver-se-iam ainda órbitas e os passos sem poder acompanhar as linhas tracejadas aparentemente sem fim. Só então, por esconjuro, o viajante retiraria a venda e veria o que nunca se escondeu fora da sua própria trajectória: uma outra vida.
Ficcionalidades de prata - 23


(Blessed Art Thou among Women, Gertrude Käsebier, 1899)

Chegou a hora de pisar o ar ainda vagaroso onde a voz dos monstros e dos fantasmas se confunde com a voz das pitonisas e das fadas. Trata-se sempre de descobrir o mote e, depois, de percorrer a via iniciática ladeando quer o que se vê, quer aquilo que o mote já havia sentenciado. Às vezes, surgem fadas no corredor abraçadas aos pés dos móveis carnudos que imitam patas de javali e ressoam, durante as noites de temporal, com a voz roufenha dos monstros que saem do lago gelado da mansão. Outras vezes, a mãe Agnes e a pequena Peggy vêem os olhos a transfigurar-se e em vez das suas cândidas falas vitorianas aparece-lhes uma voz medonha e aguda que é o sinal da pitonisa voadora a sobrevoar com asas de Delfos a mesma mansão ensombrada. A morte andaria por perto, é verdade, mas, neste dia claro, a mãe Agnes preparou o caminho como se adivinhasse a glória da futura debutante e a pequena Peggy, contraída e retida no seu vulcão de seda pura, parece tão-só iniciar o caminho. O fadário. Mas fá-lo como se o universo estivesse a conspirar, a flagelar ou a tecer a mais perigosa das flores. Baudelaire soube-o como ninguém.
Ficcionalidades de prata - 22


(I wait, Julia Margaret Cameron, 1872)

O indefinido tem a marca da serenidade. Foi por isso que se associou às aves e desafiou as sete aventuras coloridas a que a leveza do ar convidaria. Ficou consternada quando chegou ao cume, ao ponto-ómega, ao limite, já que a ancestral expectativa da luz e dos cometas em círculo pedia muito mais. Não saberia depois o que contar de tanto que vira, mas é certo que o olhar refluíra até àquele ponto incerto onde a certeza e o desapego pactuam de vez. E por isso colocou as asas no parapeito do limbo e afagou os braços cruzados sobre o ardor que a memória entretecia e que a indecisão já ia arrefecendo. E assim ficou à espera. Indefinidamente. À espera dos deuses, à espera de Ulisses, à espera de Godot, à espera do paraíso, à espera talvez apenas da serenidade. Ainda lá está. E eu vejo-a, noite e dia, dia e noite, a coloquiar com as aves acerca da grande dúvida: que dizer e que contar, afinal?

sexta-feira, 13 de agosto de 2004

Ficcionalidades de prata - 21


(Gloria Swanson, Nickolas Muray, 1922)

Podia ser a Judite que Almada Negreiros iria inventar em Nome de Guerra, apenas três anos depois desta fotografia. Mas não é, e em primeiro lugar, porque não se sabe se Gloria Swanson olha para DeMille, para o clã dos Kennedy, ou para a sua Sunset Boulevard onde se imagina que continue ainda a gritar: "Have they forgotten what a star looks like?”. Para Almada, Judite é uma pobre desaparecida, uma vítima da Lisboa dos clubes nocturnos dos anos vinte. Para Muray, esta Gloria é sobretudo cativação, fantasia intemporal ou assombro da carne. Tudo o resto não passa de um leque sevilhano que se abre para cobrir a falsa inocência dos sentidos. O império da pose iniciou-se em Disderi e atingiu aqui o auge que era próprio das estrelas. Apenas isso.
Ficcionalidades de prata - 20


(Vortografía de Ezra Pound, Alvin Langdon Coburn, 1917)

Há escritores que foram sentenciados pela história e talvez absolvidos pelo purismo das formas. Gorki, Pound, Céline e muitos outros pertencem a esse alvoroço moderno. Celebrar a perversão e manipular arquitectura da alma, eis como Coburn pôde traduzir o desfasamento seminal que, um dia, colocou face a face o recato da imaginação e um radical descarte do vivido. Riscar a superfície, consumi-la, afrontar a feição lúgubre e luminosa da memória. É o que fica, mas não o que resta. Um texto pode ser apenas um texto, um templo ou uma praga. Mas uma fotografia é sempre uma fuga, uma remissão de rios em cascata, um derivar de olhares que apenas pode ser contido ou lido por artes de uma arrumação provisória e efémera. E o xadrez, tal como a vortografia, é o jogo dessas leituras erráticas. Jogo de príncipes, de malditos, de idiomas cintilantes. Apesar de tudo.
Ficcionalidades de prata - 19


(A jovem da Leica, Alexandre Rodtchenko, 1934)

Grafar é extraviar as formas que adivinham a imagem. Fotografar é aliviar os contornos que encorpam a passagem da luz. Lugares de evasão, de involuntária convicção, de impossível persuasão. A jovem da Leica sabia que tinha sido grafada e fotografada quase ao mesmo tempo. Só ela e a lente conheciam o embuste de Rodtchenko: embalar a matéria e torná-la em segmentos proféticos com direito a plena confirmação. E agora que já há asas a esbater a longa diagonal do crime, nada mais há a omitir. Até porque a omissão é o próprio ecossistema desta arte, para a qual o rosto perfeito é a volubilidade dos vestígios. Ou a rarefacção do espírito sob a forma de entronização.
Ficcionalidades de prata - 18


(Distorsion nº 40, André Kertész, 1933)

Ambas definem, a seu modo, o ser ou o acontecer da transformação. Mas a verdade é que a anamorfose conduz à perturbação, enquanto a metamorfose conduz à exaltação. A primeira vive do inesperado e faz a larva e a montanha serem adultas sem o serem, a segunda vive do segredo dos ciclos e faz a larva e a montanha serem adultas quando é esperado que o devam ser. A primeira escapa à ordem natural das coisas e os antigos chamavam-lhe segnum, a segunda acompanha a filogenia das coisas e os antigos e modernos chamaram-lhe natura. Distorcer é o verbo entre pares que está em ambas as margens da transformação. Tanto é excrescência quanto é corpo, tanto é pulsão de carne quanto é arco-íris, tanto é volume inesperado quanto é desaparecimento.
Ficcionalidades de prata - 17


(Menina com espelho, Clarence H. White, 1898)

Diz-se dos espelhos que são como os faunos no bosque: entram em nós como os imaginamos, escapam-se de nós quando com eles deliramos e traem-nos em sonhos se diante deles fraquejamos. Naquele dia, a janela abriu-se e o céu que cobria literalmente o bosque inscreveu-se por magia no assento da cadeira e no pequeno espelho que iluminou a face. Uma noite de faunos ao amanhecer faz da fotografia uma mântica para os devaneios. E é por isso que o corpo terá sido tão absorvido pela flauta que alumia, dia e noite, a densidade dos bosques. A face arrebatada, a casa amaldiçoada e a fulgência das sombras desfeita. Eis o que devolve à imagem aquilo que nela se fazia figura. Fauno em fuga, olhos de relance, aparências em lume.
Ficcionalidades de prata - 16


(Mission District, San Francisco, Minor White, 1949)

Que tempo atravessámos nessa mesma lacuna? Recordo a montra, o traçado inquieto da luz, o chamamento, a graça, a imploração quase muda. Havia um forte cheiro a orquídeas no ar e o deslizar dos sapatos, esse atrito ínfimo mas persistente, ficara diluído no fôlego de tão arrojado apelo. Estou lá ainda, junto ao remate do passeio, e atravesso o mesmo momento sem que nada tenha sucedido. Lacuna: a montra, a criança, a luz distendida, as flores da sacada, a suspeita de passos ao longe e a chamada perdida. O brilho adiado. É assim a natureza da encruzilhada, a impossível simultaneidade, a galáxia silenciosa.
Ficcionalidades de prata - 15


(United States Capitol, John Plumbe, Jr., 1846)

Há alguns anos, dei a volta a este edifício e lembro-me que soprava do norte um vento gelado. Estava perto do estado de choque, quando atingi a biblioteca no lado de trás e apressadamente entrei. Um século e meio antes, Pumble fixava esta fugaz imagem do Capitol. Quase nos encontrávamos. Quase estremecíamos do mesmo modo. E assim seria, se a escala da nossa possível cumplicidade não tivesse convivido através desta máquina de apropriação da distância que é a fotografia. Volto a auscultar os ecos da imagem, com novos olhos, e o que vejo é o engenho, a trama e o nó que, em conjunto, celebram perversamente essa distância. Recorte impiedoso e, ainda assim, tão cobiçado.
Ficcionalidades de prata - 14


(Último suspiro, Henry Peach Robinson, 1858)

No fundo, todos morremos nas fotografias. Ficamos lá, nesse outro estar que nos fotografa letal e brutalmente o enigma do lado de cá. Mesmo que uma imagem perdure anos e anos a fio, fechada num livro qual amor-perfeito, nada há que afaste esse feitiço da evidência do olhar que simultaneamente nos aparta e nos religa. A morte paira nessa corrente de ar sem retorno, até porque não é da morte que se roga esclarecimento, mas tão-só do que nela embate ainda em vida. Nesta deslumbrante tomada de Peach Robinson, a menina entrou nesse bate bate de ondas e batéis desconhecidos ainda vestida a rigor. Como se tivesse passado, ao mesmo tempo, pelos dois lados da mesma fotografia: entre lá e cá, entre cá e lá, mas saboreando sempre a terra de ninguém que se modela entre ambos. Talvez cantando sem descansar, sem folgar, sem jamais esmorecer. Até hoje.
Ficcionalidades de prata - 13


(Auto-retrato como afogado, Hippolyte Bayard, 1840)

O que terá levado Hippolyte Bayard a simular a máscara da morte, sob a forma de um presumido afogamento, neste lancinante auto-retrato? perguntar-se-á. Levado decerto pela ira ofeliana e antecipando-se no tempo aos Pré-Rafaelitas, que pretexto haveria para esta encenação quase fotográfica, nos idos de 1840, sobretudo quando a fotografia ainda era uma clara desconhecida de si própria? Eu creio que, nesta chapa aquática, o que emerge é o prazer de ver e remover o outro lado, seja ele qual for. Onda sobre onda, torrente sobre torrente, luz sobre luz para que se entendesse o simples fluxo, o caudal, a enigmática lógica da apresentação. Como se o enunciador do retrato brincasse com o fogo que o novo brinquedo exalaria pelos poros. Como se o enunciador do retrato agitasse a mágica película que fixaria a luz. Como se o enunciador do retrato pensasse a adivinhação que irradiaria sem fim pelos anos a vir. E conseguiu-o, devolvendo-nos a pergunta sem resposta, a pose sem conjura e a cena sem qualquer mediação para a própria cena. Um ultraje discreto, numa palavra.

quinta-feira, 12 de agosto de 2004

Ficcionalidades de prata - 12


(Mont Blanc, Frères Bisson, 1861)

Nem a cor quase amarelada da impressão consegue trair a acentuada indiferença. O sublime encara o humano como Napoleão um dia encarou parodicamente as pirâmides de Gizé, ou seja, com um misto de irremediável superioridade e de rara arrogância. A estes patinadores anónimos de há século e meio terá sobrado a tentação de explorar, de inscrever o nome, de rasurar a matéria, de apagar a erosão, de atravessar o inatravessável. O Mont Blanc também foi sonhado por Enrico Guazzoni nos tenros alvores do cinema, quando imaginou dominar o sublime através da rodagem, da arquitectura da luz e da dissimulação dos astros na tela. Fê-lo com o mesmo prazer com que hoje descemos em Milão vindos do norte, depois de nos cruzarmos com aqueles cumes medonhos e belos, tratados por tu por Kant como o ânimo que ultrapassa todo o padrão de medida dos sentidos. A indiferença nasce, com efeito, da falta de medida, da ausência de sincronia e sobretudo do afastamento definitivo da paixão. E, contudo, os patinadores deixam-se arrastar pela lisura gelada, pela brancura avassaladora e pela desmedida e veneziana pulsão de morte. É esse, talvez, o filtro secreto do nosso próprio encantamento. Os Frères Bisson sabiam-no bem.
Ficcionalidades de prata - 11


(Camelos numa rua de Bujara, Yuri Eremin, 1928)

No seu tempo, al-Maturidí passeou de camelo entre esta poeira de seda e de peste, mas sempre a interrogar como é que o actos humanos podiam viver por si, apesar da inquestionável potência divina. Não deve ter chegado a grandes conclusões, apesar da vastíssima obra que deixou (como por exemplo o Kitâb al-Tawhíd) e que no Ocidente pouco se leu. Não era um Mu´tazilita ao jeito meio herege e panteísta que, no século IX de Bássora, prefigurou o nosso Espinosa, mas tentou encontrar o seu caminho próprio entre o tradicionalismo Hanifista e o radicalismo dos Falasífa, esses mais interessados em compatibilizar as leituras de Aristóteles com a revelação do “Recitado”, ou seja do Qurân. Al-Maturidí era natural da rival Samarcanda, mas veio amiúde a estas abóbadas de feno, barro e silêncio. Conhecia as rotas cosmopolitas, as pegadas nocturnas, as aguadas da estepe, as constelações errantes, os arcos em onda, a neve sem fim e a brutal transfiguração dos nómadas que viajavam constantemente entre a China e o Mediterrâneo. Sinto saudades imprecisas dos serões que com ele não passei, nem passarei. E é esse tipo de saudade que melhor define a paixão e o excesso que se esmiuçam numa fotografia com esta.
Ficcionalidades de prata -10


(Belgravia, Bill Brandt, 1951)

Lembro-me de ter voado diante daquela janela. Acordava cedo com o sol e rasava asas ao longo do vidro por onde entrava a primeira luz. Vi-a tantas vezes deitada no interior do rio que escorria pelo soalho e, em ambos os lados, naquela invisibilidade feita de águas, havia sempre um corpo a transbordar. Bebia-o, saciava-o repentinamente nas tardes de verão e, depois, voltava a partir na demanda do mesmo mel. Partia, é certo, mas ficava, ao mesmo tempo, por dentro a contemplar o céu e a fachada obscura e esfíngica que transformava o espaço na frugalidade da vista que me era dada ver. Asas de abelha e deleite esboçados na impenetrável âncora do tempo. Lembro como se fosse hoje, ou não fosse essa comparação quase ténue o nome da própria fotogenia.
Ficcionalidades de prata - 9


(Rocha em Rocker Creek, Arizona, William Bell, 1872)

O contorno, a rugosidade, o ímpeto, a memória, o vasto e demorado enredo, ou tão-só a intemporalidade desse dia de toada sépia em que a pedra penetrou o ar. Ao longe, terá sobrado a frescura do horizonte, linha diluída pela liquidez que abraçou de vez o fundo profundo e robusto do falo. Assim é a terra: um corpo íntimo, abundante e fértil que sabe ser nauta ou náufrago no sigilo dos ciclos. Pedra navegante.
Ficcionalidades de prata - 8


(Animal Locomotion: Leaping Man , Eadweard Muybridge, 1887)

Sonhar ser máquina. Ao contrário da fixidez fotográfica que mobiliza o olhar para um desencontrado movimento de montagem, Muybridge entendeu o grande ardil, ou o ambicionado logro: colocar no lado de fora da mente uma simulação do próprio filme do cérebro, adequando a retina aos ritmos mais insuspeitos da natureza. E de repente a montagem parecia uma coisa natural. Mas não era. Passava o ano de 1921 e Griffith sorria, enquanto apertava a mão ao jovem Gance, em Nova Iorque, um dia depois da apresentação de J´accuse. Nessa altura já o cinema passara claramente a adolescência e as aventuras de Muybridge eram candidatas ao museu da nova indústria. Onde tudo se fabricava. A matéria-prima, no entanto, continuava a ser a mesma dos inícios, a luz. E com a luz se deu à máquina o poder da súplica e o halo da transpiração. Sonhar ser máquina, ou reaver uma segunda humanidade nos súbitos movimentos com que a sombra e a luz ganhavam corpo. Imagine-se, pois, o abalo e a comoção que hão-de ter povoado a pioneira efabulação de Muybridge!

quarta-feira, 11 de agosto de 2004

Ficcionalidades de prata -7


(Bailarina transportando ovos, Paul Nadar, 1890)

Naquele tempo, o longe ainda queria dizer deslumbramento. O exotismo correspondia então ao que hoje é a ideia de património, mas sem a compressão que o vai tornando entre nós, cada vez mais, num estado absoluto e idiotamente intangível. O exótico romântico era o que perdurava nos outros hemisférios, em parte incerta, no antípoda que atrai e mais perdura na imaginação. E por isso, hoje, sorrimos diante do exótico. Porque temos a febril e leviana sensação de que já explorámos tudo, de que nada parece escapar-nos, de que tudo é miragem vista e revista. Iludida ou compreendida, tanto faz. É por essa mesma razão que o recente fluxo de imagens vindo de Marte se tornou rapidamente num esboço da mais pura banalização. Mas Nadar atravessou outro mundo e fez profissão de fé nesta dança exemplar onde os ovos não são sequer símbolo de fertilidade. Nem precisavam sê-lo.
Ficcionalidades de prata - 6


(Madame Schuller, Hugo Erfurth,1930)

Há sempre mistério, quando se pensa que estamos diante de um mistério. E diga-se a este propósito que o olhar é de tudo o que existe aquilo que melhor traduz a religiosidade, na medida em que ela é sempre a possibilidade de uma voz dizer outras vozes. No olhar, tudo se subsume e nada se figura. No olhar, tudo se desloca e nada se corporifica. No olhar, tudo se alvoroça e nada se aquieta. O olhar é a própia luz, ela mesma sob a forma de uma mensagem de nome diferido. O olhar é o próprio diferimento. Nele, no olhar, há uma voz que diz outra e outra que diz sempre outra. É o puro mise en abîme. Não sei o que olha essa mulher, nem para onde olha. Apenas sei que olha. Grande mistério, grande amor, grande redenção. Chamava-se Madame Schuller e eu olho-a agora sem conseguir deter o olhar que a olha. É isso a alma?
Ficcionalidades de prata -5


(Sin título, Philippe Halsman, 1950)

Não se sabe o que terá acontecido. Mas o brilho dos vidros ilustra o ar embaciado da respiração. Uma espécie de silenciosa contenção para evocar a longa biografia que terá precedido o instante. Há, de facto, um crivo que nos segreda tudo aquilo que é contíguo à cena. Diria mais: existe uma clara expansão em suspenso que liga estas imobilidades ao retábulo vivo que as poria a mover sem parar. E o fascínio reside na terra de ninguém que separa aquilo que continua contido, embaciado e imóvel àquilo que é acto, movente e respiração ofegante. A estrugir, a gemer e a entornar o mundo dentro do seu centro quente e aberto, com os olhos fixos no tecto ou na clarabóia sobre a qual há nuvens e a iminente flor da desejada e perseguida volúpia. Todos viemos de lá. Todos desejamos lá regressar.
Ficcionalidades de prata -4


(Notre-Dame, Anton Stankowski, 1930)

Diz-se que o cinema foi o primeiro mestre da ubiquidade. Esse desígnio passava pela ilusão de estarmos em muitos lados ao mesmo tempo e de vermos de todo o lado quase ao mesmo tempo. Depois veio a propriocepção hipertecnológica e o mesmo desígnio de omnipresença passou a alargar o campo das imagens da mente às topografias globais em tempo real. Mas a fotografia, intrometendo-se entre estas aspirações fáusticas, soube a tempo calcular a vertigem. E por isso deu a ver o justo valor que o pasmo ou o pranto podem ter. Quando se diz pasmo e pranto, diz-se um suspiro, uma comoção ou um qualquer sentimento que nos tivesse percorrido o corpo como se o olhar estalasse antes de sonhar. Eis do que trata esta auspiciosa visão de Stankowski.

terça-feira, 10 de agosto de 2004

Ficcionalidades de prata -3


(Un rincón en la avenida, Pierre Dubreuil, 1911)

No entreacto, nas passagens menos premeditadas ou nas súbitas travessias, há sempre vicissitudes menores que cintilam como se procurassem uma escrita que lhes desse sentido, um deus que lhes desse sopro, um artesão que lhes desse guarida ou uma arte que lhes desse forma. Mas acabam sempre por pairar, enquanto escapam ao olhar e, depois, com o vagar das lavas esquecidas, transformam-se em rios por onde cada um de nós navega sem saber. Vicissitudes menores. Apenas isso. No entreacto.
Ficcionalidades de prata -2


(Les Pavés, Brassaï, 1931-1932)

Há dias em que o brilho é um olhar surpreendido e vindo de longe, inesperado e votado às maresias do recôncavo mais desejado que há na memória. Aconteceu hoje e não tem nome. Deambula pelas margens do espírito e consome a massa de afectos que se sabia há muito à deriva na invisibilidade da palavra. Tudo menos hopeless.

segunda-feira, 9 de agosto de 2004

Ficcionalidades de prata -1


(Estudo de movimento, Rudolf Koppitz, 1926)

Três estrelas e um astro branco quase sem destino. Um corpo é um porto de finalidades. Onde colocá-lo e como descobri-las?
São perguntas que me auscultam enquanto encaro a via láctea, nestas noites de bruma tão imprópria para Agosto. Por ora estou sentado. Mas nada disposto a traçar fins imediatos, a não ser os que recaem na inércia com que olho de novo para o céu parcialmente encoberto. Movimento em jeito de ânfora.