terça-feira, 31 de julho de 2007

A falha revelada

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A morte de Bergman não me levará para o encapelado mar do depoimento, esse panegírico emudecido ao sabor de repetidos topoi que se presta a encenar uma emoção (tantas vezes tosca, googlada e feita à pressa a pensar nos "Blogues de Papel" do Público).
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Resta-me, pois, um episódio cómico que me faz rir de tempos a tempos. Acontece que vi em Julho de 1983, na cidade de Leeuwarden, capital da Frísia (norte da Holanda), o filme Fanny and Alexander. Trata-se de uma obra com duração apreciável (mais de três horas, 188 minutos precisamente). Talvez por mestrias de indução narrativa e provavelmente, também, por algum cansaço, a verdade é que saí da sala de cinema ao intervalo... convencidíssimo de que o filme terminara. Uma falha por revelar e que acabou por tornar-se em objecto de paródia por parte de amigos meus ao longo dos anos. Ainda bem que a vida tem coisas destas. Obrigado Bergman!

segunda-feira, 30 de julho de 2007

A vestal e o sol

Olhei para a esfera, enquanto ainda se movia, e reparei que a lua se ia escondendo no momento em que o sol emergia como um vulcão aéreo e leve. A imobilidade invadiu subitamente o pátio e deu-me a ver os raios do clímax egípcio - em árabe, ash-shams - a pairar entre os últimos ramos da ameixoeria e o sorriso que a vinda de Freddy Adu para o Glorioso me inspira. Segue-se um debate inspirado sobre a natureza do ar condicionado e o silêncio contagioso do cão - o velho Ulisses - que não abandona por nada deste mundo a placa de mármore da cozinha. O verão pode ser não apenas chá gelado servido em púcaros de linho por uma vestal incógnita. Eu estava a falar de esferas, não era?

domingo, 29 de julho de 2007

A carga dos novos ofícios

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O "não fazer nada", tão apregoado na estação idiota, corresponde a um fluxo de rotinas insaciadas e banhadas pelo horribilis. Por trás do descanso, fervilha uma espécie de ostensão suicidária. Uma correria vazia. Há algo de bárbaro nas 'deslocalizações' temporárias e planificadas dos indígenas dos nossos dias. É como se reatássemos o mundo selvagem que terá assistido à lenta transição do nomadismo para o espírito sedentário: um ofício em que os animais de carga e a carga mental transportada se confundem. Entra em cena o meu mês, Agosto, e sinto medo de me fazer à estrada. De mudar de cenário. De pensar no mar. De ouvir propostas.

Os grandes pavores

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Não quero comparar o facto com o enredo de A Falha, mas a verdade é que hoje recebo no pátio (da minha prodigiosa ameixoeira) perto de duas dezenas de ex-alunos que comigo formaram, ao longo de quase um ano (dois cursos de 14 semanas), uma comunidade online. Não me tendo quase (fisicamente) dado com eles, o mais curioso é que as relações de proximidade entretanto criadas são imensas. Coisa que desmente o que, nas suas belíssimas crónicas sobre Santa Cecília, Bénard da Costa discorre acerca da internet (esses "apavorantes subterrâneos").

Pilhas

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Entro subitamente de férias, como se fosse possível descobrir um modo de não fazer nada. Bem sei que tal idiotice não existe e é por isso que a pilha de romances por ler já me olha (entre outros, os últimos Updike, McEwan e Don Delillo) com aquele desdém irónico que a imobilidade das capas não consegue disfarçar.

sábado, 28 de julho de 2007

Simão

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Cresci com uma outra ideia de equipa. Nos anos sessenta, quer o Benfica quer o Lusitano de Évora (mes deux amours) tinham equipas estáveis e fixas que sabiam resistir ao vertiginoso nomadismo dos defesos. Muitas vezes, a palavra utilizada para significar "equipa" era a palavra "linha" - li outro dia um postal que escrevi ao meu pai, em 1967, onde se repetia essa palavra - e das nossas "linhas" esperávamos, ano após ano, os mesmos rostos míticos, as mesmas vitórias e os mesmos propósitos de glória. Enfim, esse horizonte estável corresponde, hoje em dia, a uma ideia que se projecta, no máximo, em ciclos de três anos. Simão duplicou essa meta no Benfica e tenho a certeza de que continuará a ser um símbolo das muitas tardes e noites com que a equipa se refez de tempos (excepcionalmente) difíceis. E a esquecer. Por isso, o Miniscente dedica uma caña gelada ao ex-jogador do Glorioso e espera ainda revê-lo no Olimpo da Luz.

Escavações Contemporâneas - 43


LC
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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(António Quadros - António M. Ferro, Org.)
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O Mito Verdade ou Alienação*
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"(…) o mito é uma história exemplar e simbólica que, pelos actos dos seus protagonistas e pelo sentido do seu enredo, testemunha de uma antiquíssima experiência humana, mais profunda, de certo modo, do que a imagem cientifica, moderna e oficial das culturas; é a arca ou o arcano de uma indizível e longa revelação ôntica; é a codificada suma das intuições e de iluminações, de poemas e de filosofemas espontâneos ou aprendidos na vasta gama que vai das formas de cultura e aculturação à inspiração pessoal do transmissor ou do rapsodo; e é o que traz ao presente os segredos antigos e restantes de velhas civilizações e culturas, modificados embora por um percurso semântico difícil de seguir, de capitular e de sistematizar, mas que nem por isso deixa de ser ou deve deixar de ser para nós uma verdadeira «carta de prego», lançada remotamente ao mar do tempo por viajantes desconhecidos, nossos irmãos. José Marinho, um dos poucos filósofos que, depôs de Oliveira Martins, Sampaio Bruno e Aarão de Lacerda, meditou entre nós a essência do mito, escreveu pertinentemente que «todo o poeta verdadeiro, todo o artista autêntico é filómito, e é-o necessariamente. Não há arte sem imagem, e se a imagem meramente virtual não se insere no mundo próprio dos mitos, a imagem simbólica insere-se sempre no mundo mítico».
E isto porque o mito corresponde a uma experiência originária que o poeta não pode encontrar no círculo limitado da sua visão pessoal ou da sua existência social."
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*Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista.
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)

sexta-feira, 27 de julho de 2007

Escavações Contemporâneas - 42


LC
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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: Paulo Tunhas)
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Köhlin e nós*
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Os recentes acontecimentos na Silésia Oriental espantaram todo o mundo. Von Breuklin declarou-se «chocado e surpreendido». Aparentemente, bastaria às autoridades levantarem um dedo e nenhum dos trágicos eventos teria visto a luz do dia. Mas é verdade que os piores sentimentos, nacionais e trans-nacionais, germinavam há já bastante tempo por aquelas paragens. Mary Woodsworth, no Listener, tinha chamado a atenção para o facto num artigo preclaro datado de Maio passado: «Sente-se a crispação nas faces e a pesada herança de tradições seculares. As refeições nas casas dos mineiros são totalmente ocupadas na discussão do futuro. As perspectivas apresentam-se geralmente sombrias. Os mais velhos, como se tudo por eles tivesse sido previsto, limitam-se a grunhir qualquer coisa enquanto enfiam a cara no prato cheio de schnakplötz, a especialidade da região. As mulheres não falam, apenas sorriem, como que a pedir desculpa. É de recear o pior».
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E o pior aconteceu. Os noventa tanques blindados passearam-se pelas artérias da cidade impunemente. As escolas fecharam. Contam os jornais que as ruas subitamente se tomaram desertas. Ellen Schnakplötz, enfermeira no hospital principal, ainda hoje um belo edifício, diz que não faz ideia, desde há duas semanas, onde o pai e o irmão se encontram. O mesmo poderiam dizer, sem dúvida, centenas de outras mulheres da região. Com o seu metro e 89 centímetros, Ellen Schnakplötz, apesar de tudo, parece calma. Ri-se mesmo muitas vezes, e o seu riso transmite algum conforto ao pequeno quarto onde vive desde há dois anos. Por causa do actual estado das coisas, não há água na casa. Ellen não se queixa. Graceja com toda a situação. «Os nossos avós passaram por pior e sobreviveram», foi a coisa mais próxima de um queixume que ouvi daquela boca.
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O principal inspirador destas movimentações é o hoje internacionalmente esquecido Richard de Coudray-Spekov, um aristocrata que, entre 1913 e 1917, data do seu precoce falecimento, escreveu uma série de artigos fogosos e veementes no ainda hoje existente Köhliner Zeit. O último acabava justamente com este pungente apelo: «Será possível que, passados tantos anos, a nossa própria identidade nos permaneça desconhecida? Será possível que o sangue dos nossos pais e as lágrimas das nossas mães corram pelos belos rios da nossa terra em vão, sem que quem neles mergulhe ou beba das suas cristalinas águas sinta um arrepio ancestral que tinja a sua alma com as cores do amor? Será possível que tudo permaneça envolto num denso manto de esquecimento? Não! A vida não merece a pena ser vivida assim, e eu não acredito que no peito dos meus generosos concidadãos os apelos ancestrais não hajam sobrevivido. Unamo-nos então como que juntos num mesmo corpo; que cada um faça da mão do seu vizinho a sua própria mão e do coração de todas as outras famílias o seu próprio coração. E não confundamos, sobretudo, a tibieza e o perdão!»
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Apesar do incidental comentário de Chamberlain quando, em 1938, no caminho para Munique, passou por Köhlin — «Köhlin does not exist!» —, Köhlin existe. E as palavras de Richard de Coudray-Spekov renasceram para os seus habitantes, 73 anos passados sobre o seu trágico e misterioso fim. A história da humanidade está cheia desses pensamentos que se escondem e revelam ciclicamente, perturbadores e íntimos às memórias colectivas. Por isso não é de estranhar que Ferdinand-Auguste L’Échineur possa comentar o caso nestes termos: «Os grandes catalizadores implodem. Não basta convencer, não basta gerir, é preciso também justificar. Sem esta terceira vertente não há discurso político eficaz. Os poderes que julgavam que a Köhlin bastava o seu schnakplötz enganaram-se tragicamente. A memória pode mais que o parco salário da razão e as úberes terras da identidade prometem a paixão».
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E agora? Agora há as histórias das pessoas simples, do homem comum que tanto convém lembrar sem pretender preteri-lo em benefício de fantasias quiméricas de individualidades dúbias cheias de falsos problemas e permanentemente alimentadas por reflexões pretensamente morais que, de resto, não seguem. A história de Köhlin é um hino ao homem comum, lutando contra as adversidades e reconquistando a sua identidade. Ao homem comum que é capaz de esquecer o seu prato de schnakplötz e elevar-se para os céus, oferecendo a camisa ao seu irmão, mesmo que este já tenha três vestidas. Não esqueçam Köhlin. No desmoronar dos grandes catalizadores, é de lá que nos pode vir algum consolo. E a cerveja é excelente, de facto.
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*O Primeiro de Janeiro, 8 de Julho de 1990
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)

quinta-feira, 26 de julho de 2007

Episódios e Meteoros - 41

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Uma proposta irrecusável
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(crónica publicada desde hoje no Expresso Online)
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Há uma década, o Carlos Pinto Coelho convidou-me a ir ao Acontece para fazer uma “proposta”. No então programa do Canal 2 da RTP, a rubrica pretendia dar voz a algo de singular, interessante ou até inadvertido. Várias foram as pessoas que, na altura, aproveitaram o palco para propor leituras de Joseph Conrad e Wislawa Szymborska, audições de Lionel Cecil e Leo Slezak, ou visitas ao Guggenheim que abrira as suas portas, em Bilbao, a 19 Outubro de 1997. Outros ainda, porventura menos eruditos, terão sugerido viagens a Taiwan ou à indiana Noida.
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Mas eu, indeciso e sem aquele beau dire e beau faire que é natural em Vasco Graça Moura, aproveitei os meus sessenta segundos para propor aos tele-espectadores que faltassem ao trabalho durante um dia. Apenas isso: preguiçar, dar uma volta, ficar em casa, experimentar um banco do jardim, auscultar coretos e vultos, espreitar montras, decotes, olhares, nuvens altas, quiosques ou cafés imobilizados pelo tempo. Apenas isso: reinventar em 24 horas aquilo que jamais se faria num dia normal de trabalho. Fosse qual fosse o trabalho.
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Parece que nos corredores de S.Bento a coisa foi motivo de chiste. Aliás – soube-o mais tarde através da equipa do Acontece –, Guterres achou graça ao figurão e até mandou um assessor dizer que aquilo não era coisa a repetir. Humor governamental, claro. Na altura, ainda em poderosíssimo estado de graça.
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A verdade é que a minha ideia nada teve que ver com a Intersindical, nem com o processo de doutoramento – porventura ainda em gestação – de Carvalho da Silva. Não, a ideia era bem mais heterodoxa e, para os lados da Infante Santo, Fernando Namora tê-la-ia compreendido com toda a fidelidade se ainda fosse vivo nos idos de noventa. É que o seu romance, Rio Triste, publicado em 1982, espelhava a mesma proposta que, quinze anos mais tarde, me viria a passar pela cabeça.
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O livro narra a história de um homem normalíssimo que, num belo dia, não regressa a casa como sempre ao fim da tarde. Esgotada toda a trama de cariz policial, é no desfecho que a verosimilhança acaba subitamente por ocupar a expectativa do leitor. Ao fim e ao cabo, como se me tivesse visto e ouvido no Acontece, o homem decidira, ao contrário da sua rotina de anos e anos, faltar um dia ao emprego. Sem razão nenhuma, a não ser a de uma sadia contingência de natureza impulsiva e espontânea. Um acidente no Tejo, que aconteceu nesse dia como podia ter acontecido noutro dia qualquer, fez o resto: a morte do artista.
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Eis como um simples proposta, aparentemente “irrecusável” (ao jeito de Coppola), encontrou os seus públicos-alvo no passado. Melhor: na ficção. Só gostava de saber se houve alguém, na realidade, que também tenha seguido as pisadas dessa minha proposta televisiva e perversa.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Coisas da casa

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O trabalho acumulado neste final de Julho foi imenso. Peço, pois, desculpa aos muitos amigos que felicitaram o Miniscente no dia do seu quarto aniversário (a 15/7) por não os ter referido, um a um, em post adequado. Creio, no entanto, que a autenticidade se sobrepõe, neste caso, à 'gentileza do link' (bem sei que, há meia década, em plena infância blogosférica, a linearidade deste tipo de exigências era outra). O Miniscente vai abrandar o ritmo até ao fim de Agosto. Curiosamente, depois de me ter quase esquecido da existência do Sitemeter - não ia lá desde finais de Abril -, verifiquei hoje que o blogue está a braços com uma enorme diminuição de visitantes. Não sei se piorei, é o mais certo, ou se a coisa reflecte um sintoma mais geral.
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Contudo, e tal como escrevia há dez dias, o trabalho a bordo de um blogue, se bem que movido pela compulsão e por hábitos de permanente e actualizada inscrição, é sempre um trabalho que deverá concordar com o prazer. Com uma bitola mínima povoada pelo lúdico, pela liberdade de edição, pela manobra pouco calculista, pelo assombro da espontaneidade, pelo dislate irreparável, pela ostensão desnecessária, pela exposição pura e simples. Sem medos. E se o Miniscente se iniciou a pensar em tudo menos nas audiências, também acabará, um dia, a pensar em tudo menos nas audiências. Embora, não sejamos hipócritas, elas sejam importantes.

Pré-publicações - 47

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Maria João Cantista (Org.), Desenvolvimentos da fenomenologia na contemporaneidade, Campo das Letras, Porto, 2007 (Julho).
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Pré-publicação:
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"Inclui a presente publicação uma série de estudos, todos eles virados para uma dilucidação, quer da subjectividade, quer da racionalidade, à luz de um quadro de repensamento e consequente correcção crítica destas mesmas noções na pós-modernidade filosófica.
É a subjectividade transcendental, é a constituição do sentido do fenómeno, é a redução na acepção husserliana do termo, que se oferecem a um repensamento, a partir das próprias exigências de radicalidade do mestre de Friburgo.
No caso de Hannah Arendt, é a racionalidade prática que exige a reabilitação do sentido fundamental, já que, na modernidade, a razão se mostrou “incapaz de pensar o que andava a fazer”. O juízo como reflexão reconciliadora do pensamento e da acção torna-se a questão modal em ordem ao que realmente importa: uma reflexão sobre o acontecimento. Por caminhos distintos, é este o propósito dos estudos aqui incluídos de Maria José Cantista e de Pilar Pereila Martos, intitulados O juízo em Hannah Arendt: superação do paradoxo do pensar e do querer e
El papel del juicio en la rehabilitación de la racionalidad práctica, respectivamente.
Por sua vez, Bruno Pinheiro, com o escrito intitulado Sobre o mundo da quotidianeidade em Alfred Schutz, põe em relevo a importância da fenomenologia, quando aplicada ao mundo social. O fenómeno do trabalho na obra de Alfred Schutz reveste-se de uma fecundidade e criatividade pouco conhecidas do leitor português e que, na presente obra, é objecto de uma penetrante reflexão. Neste sentido, a relação do eu com o outro, bem como o fenómeno da intersubjectividade ganham um novo perfil, dilucidado pelo autor, que nos brinda com uma cuidada análise dos problemas relacionados com a acção humana, com o mundo da quotidianeidade.
A versão hermenêutica, quer da subjectividade, quer da racionalidade, são objecto de pesquisa no artigo Do sentido hermenêutico-fenomenológico de historicidade de Stella Azevedo. Em síntese, a Autora pretende prolongar o contributo da fenomenologia ao século XXI, mostrando o sentido de historicidade implícito na noção husserliana de fenómeno, através de uma interlocução com a hermenêutica, quer a nível textual-interpretativo, quer a nível metódico conceptual. Por sua vez, João Martins, no estudo intitulado Subjectividade e Racionalidade em Claude Romano, descreve o papel do fenómeno como “événement” no pensamento do autor francês, extraindo das suas características as consequências para uma metamorfose pós-husserliana e pós-heideggeriana da fenomenologia. Uma vez mais, são as suas noções nucleares que ganham uma nova perspectivação: sujeito, experiência, mundo, temporalidade, enfim, fenómeno.
Maria Manuela Martins dedica um interessante estudo intitulado A morte enquanto ‘excedente’ (Ausstand): leitura de alguns parágrafos de “Sein und Zeit” à dilucidação de um dos temas fulcrais da obra de Heidegger, pondo em relevo a infl uência de Agostinho de Hipona na génese deste pensamento, “pelo menos na época de Marburgo e de Friburgo”. A influência aristotélica é também chamada à atenção, designadamente no que respeita à noção de Cuidado, noção nuclear na dilucidação hermenêutica levada a cabo pela Autora. Por último, apresenta esta publicação um artigo intitulado Santo Agostinho no pensamento de J.-L. Marion: uma leitura de “Dieu sans l’être”, também da autoria de Maria Manuela Martins. Estamos perante um texto que se situa no limiar da filosofia e da teologia, com o objectivo principal de assinalar as possíveis afi nidades, mas também as diferenciações específicas da noção de Deus em J.-L. Marion e Agostinho de Hipona. Para aceder ao sentido de “Deus sem o Ser”, na obra de J.-L. Marion, teve a autora de proceder a uma descrição geral do pensamento do filósofo francês, enquadrando a obra específica a que dedicou o seu trabalho no todo em que se insere. Com efeito, J.-L. Marion propõe um sentido de fenómeno como doação, no âmbito de uma redução que põe em suspenso, não apenas as categorias da metafísica onto-teo-lógica da tradição filosófica ocidental, mas também a própria noção heideggeriana de fenómeno como “estanticidade” (étantité). O sentido inerente à realidade de “Deus sem Ser” inscreve-se na óptica de Deus como ágape, que proíbe toda e qualquer entificação de deus, ou mesmo um acesso cognitivo ao Ser, a partir das categorias representacionistas da metafísica tradicional. No intento de diferenciar ambas as vias de acessibilidade ao tema fulcral da metafísica, procede-se a uma explicitação do ídolo e do ícone, como dois “olhares” distintos de um mesmo “fenómeno”, visado em acepções contrapolares. Para Maria Manuela Martins, “a razão de procurar(mos) ver simultaneamente as raízes e as sintonias entre o que diz Marion e Santo Agostinho… prende-se com a própria especulação agostiniana que será avant la lettre bem mais fenomenológica e sugestiva para a interpretação de J.-L. Marion”.
O presente livro é mais uma publicação no âmbito do projecto de investigação Subjectividade e Racionalidade: elementos para uma hermenêutica da fenomenologia, subsidiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia e levado a cabo pelo Gabinete de Filosofia Moderna e Contemporânea. Será mais um tomo integrado na Colecção Filosofia, em edição da Campo das Letras."
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(Prefácio de Maria José Cantista)
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Cotovia, Gradiva, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

terça-feira, 24 de julho de 2007

Histórias familiares

Há um princípio para o trabalho de escrita que apenas recorre à memória: aquilo que se evoca não pode confundir-se com o mundo no qual se evoca. Já a ficção confronta este princípio com N mundos onde o modo de evocar (e de significar) pode, de facto, variar. Como uma dança que sai das paredes do salão de baile.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Uma história familiar

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Parece que estou a vê-lo, aventuroso, a viajar de bicicleta entre Évora e o Redondo, corre o ano de 1918 e o armistício que há-de pôr fim à Primeira Grande Guerra Mundial ainda está para vir. Ei-lo de bicicleta por terras de S. Miguel de Machede e pelas infinitas curvas da Valeta; vai célere, leva consigo alguma bagagem e sobretudo um turbilhão de memórias difícil de conter e de contar. No fim de contas, antes mesmo de chegar são e salvo ao seu destino, já foi rezada missa por sua alma e, apenas por sensatez, é que não terá levado a cabo o sonho de fazer uma grande surpresa e… aparecer, sem mais, perante todos os seus, quando estes já o consideravam a viver noutro mundo.
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A aventura havia começado meses antes, no próprio cais de embarque dessa Lisboa ainda a cheirar a Odes pessoanas e ao fado castiço dos Boqueirões. Por ordens superiores, afastara-se durante algum tempo da azáfama e da lide dos dois grandes navios que estavam a levantar âncora – já de vapores ao rubro e escadas quase içadas – para ir cambiar dinheiro português. De regresso, cumprida a rápida missão, logo verificou que apenas o barco reservado à cavalaria ainda permanecia encostado ao cais; o outro – que seria o seu – deslocara-se entretanto na direcção da barra para evitar uma iminente revolta a bordo. Seguir-se-ia a viagem no barco errado, embora, segundo ditam as crónicas, a mesma tivesse sido calma e bem mais rápida do que o previsto.
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No porto de Brest, descontraído e ao sabor do vento, é ele quem acaba por receber no quebra-mar o barco que transporta o contingente português com destino à fatídica região da Flandres. As altas patentes já o davam, a essa hora, como desertor, mas também como actor de possível sumiço. Afinal, compreendidos os factos, tudo se compõe e ele acaba por cumprir, como previsto, no árduo corrupio das transmissões, um serviço vital para aquela longa faixa que vai do sul de Lille, ocupada pelos alemães, a Laventie e à Boulogne marítima. É nesse teatro de guerra que os gases entram subitamente em acção, lesando-o de forma algo irremediável.
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Na galeria dos feridos, por artes de sortilégio, o destino troca o número das macas e ele acaba por seguir, na sua mudez mais involuntária, para o hospital dos ingleses. É muito bem recuperado nesse território da dor, onde o 'não dito' supera tudo aquilo que se poderia augurar, ou tão-só dizer. E é apenas quando recupera a lucidez da voz que, finalmente esclarecido o sentido do acaso, ele acaba por regressar aos cuidados, aliás escassos, do exército luso. Durante este tempo todo, em Portugal, é dado como desaparecido, mas agora, com a preciosa ajuda de um general, consegue finalmente obter a justa autorização de regresso a casa.
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Anda pela Paris de Gance e Delluc, galanteia uma loura no consulado português, desce no Sud Express até à terra que Buñuel ainda não trocou pela Gália e reentra, por fim, no país pobre e sidonista que é o seu. Em Lisboa, decide fazer um telegrama para o Redondo a anunciar que está de volta; ou seja: da morte imaginária para a vida, e de vez. Parte do Terreiro de Cesário para a Évora florbeliana e daí, numa bicicleta que desconheço a origem, atinge, entre poeiras, a sua vila natal, o Redondo. O feitiço de pródigo andarilho levá-lo-á, não muito tempo depois, para Vila-Viçosa. E é aí que começa parte de uma outra história que é, hoje em dia, também a minha.
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Diga-se que este foi – e é – um dos mil enleios aventurosos do único avô que não cheguei a conhecer em vida, de seu nome José Carmelo, primo, entre outros, do tenor e também viajante Tomás Aquino Carmelo Alcaide que, três anos mais tarde, também poria fim à vida militar para abraçar uma singular carreira no mundo da ópera.

domingo, 22 de julho de 2007

Pré-publicações - 46

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Maria de Fátima Sousa e Silva, Ensaios sobre Aristófanes, Livros Cotovia, Lisboa, 2007 (Julho).
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Pré-publicação:
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"Aristófanes foi, sem dúvida, um dos nomes mais sonantes da época gloriosa da comédia grega antiga – o séc. V a.C. ateniense. Dotado de qualidades de excelência, e de uma acuidade atenta sobre o mundo que o cercava, tornou-se um testemunho precioso de uma Atenas que somava, dia a dia, as suas maiores conquistas: a estruturação de um modelo democrático de vida social, a supremacia de uma cidade que se desejava cabeça de um império, o seu estabelecimento como sede de um espírito novo, onde intelectuais e artistas encontravam terreno propício ao engenho e à criação. Não sem que, por trás do brilho do sucesso, as nuvens negras do declínio se fossem adensando, à medida que a guerra e a corrupção se infiltravam, como vírus destruidores, num sonho de progresso que a muitos animara.
Mais do que testemunho de uma experiência histórica, Aristófanes foi também o homem de teatro completo; alguém que começou na senda de uma tradição que vinha de há muito, seguindo modelos de antecessores que pisaram, galardoados pelo aplauso da cidade, a cena de Dioniso. Com o tempo – curto para tanto talento e determinação – , o poeta emancipou-se; enveredou então por uma linha de crescente independência artística e por um projecto de reforma e valorização da comédia. À criação, foi acrescentando a teorização, fazendo do teatro um estímulo permanente à reflexão e à prática.
Como todos os que sabem pôr a vitalidade criativa que possuem ao serviço de uma causa e, por ela, correr riscos, o poeta de Egina recebeu, do público a que se dirigia, aplausos e apupos – de ambos é feita a contingência humana. Acolhido com simpatia, como uma novidade promissora, sofreu com Nuvens, a peça da reforma e da ousadia, a decepção de um terceiro prémio. Nada de mais penoso para o jovem Aristófanes, quando dava o passo – na sua opinião decisivo – em direcção à maturidade artística. Da recusa do público, sempre recordada com amargura, Aristófanes tirou, porém, uma lição construtiva: a de que um auditório se educa pouco a pouco, se vicia, com passos curtos, na qualidade, para desabrochar, por obra dos verdadeiros génios, na excelência de um juízo crítico esclarecido. Aplicada a fórmula, a partir de agora com mais prudência, o caminho que se seguiu, na festa teatral, foi de sucesso, coroado com o prémio estrondoso de Rãs, na plenitude da idade e da profissão.
Sobreveio a decadência, em consonância com a derrocada de uma Atenas que, também ela, depois de anos de ascendente e de pujança, vivia a crise sofrida do pós-guerra. Ao desencanto e cepticismo que a derrota foi instalando, postos em causa os alicerces em que assentou o brilho do século que terminava, correspondeu, no mundo do teatro, igual declínio. Sem resistências, a tragédia cedia, após a morte das suas duas últimas glórias, Sófocles e Eurípides. E a comédia, se resistia ainda, refugiava-se na mudança, de que Aristófanes continua a ser, para nós modernos, o testemunho fidedigno. Mas apesar do esforço, o poeta sentiu que os tempos eram outros, que esmorecia a energia do passado, e rendeu-se, com um lamento tristonho, a outros gostos que agora campeavam."
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Cotovia, Gradiva, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

sábado, 21 de julho de 2007

Estilo Império (act.)

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Há dias em que apetece dissolver tudo o que já foi, como acontece àquelas aspirinas que desaparecem na água em menos de dez segundos. Bem sei que, ao longo dos anos, nos vamos transformando em novas pessoas. É verdade. Lembro-me, há quarenta anos, de passar as férias grandes na Praia da Rocha (o meu pai, à noite, estacionava o carro junto à fortaleza com desmedida facilidade). Lembro-me, há trinta anos, de concluir o meu primeiro ano lectivo como professor e de ter tentado, pela primeira e última vez, a bizarra arte do campismo. Lembro-me, há vinte anos, de andar a escrever o meu terceiro romance na Palmstraat sob imensa compulsão estival, lusitana e casamenteira. Lembro-me, há dez anos, de ter passado um Agosto ateniense com tal guião que teria dado um grande romance, se eu tivesse um décimo do génio de Lawrence Durrell. Lembro-me, hoje de manhã, de ter colocado na máquina de fazer sumos a Praia da Rocha de 1967, a tenda de campismo comprada em Badajoz em 1977, as folhas escritas na Brother em 1987 (do que viria a ser o No Princípio era Veneza) e ainda as varandas noctívagas que, em 1997, acenaram aos deuses gregos de Vouliagmeni. Resultado: uma aspirina dissolvida. Em pó. Dando ao presente - a este momento concreto - o estatuto de império. Como se apenas hoje existisse. Como se aquilo que mais me apetecesse fosse o que afinal acontece. Agora e aqui. Tão-só isso. Como eu percebo o Duchamp!
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P.S. - A versão original e completa deste texto será publicada no próximo dia 26, no Expresso Online. Após 40 crónicas de "Blogues e Meteoros", a série passará agora a designar-se "Episódios e Meteoros". Entretanto, pode ler aqui a última crónica da anterior série, publicada na passada quinta-feira, acerca do blogue do escritor Carlos Vaz.

Escavações Contemporâneas - 41


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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: António Quadros* - António M. Ferro, Org.)
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"(…)Importa sublinhar, antes de mais nada, que o mito implica uma fundamental distinção entre o sagrado e o profano.
O mito é uma imitatio dei, «uma imitação das desta divinas», na expressão de Mircea Eliade. Inserido no mundo profano, o homem não tem verdadeira realidade enquanto não consagra os momentos essenciais da sua existência ao mito que os fundamenta e sustenta. Diz ainda Mircea Eliade que «o homem sé se tornou um autêntico homem, conformando-se ao ensinamento dos mitos, quer dizer, imitando os deuses[1]». Há duas histórias: a sagrada e a humana, tal como há dois tempos: o mítico e o profano. Mas a história humana e o tempo profano só adquirem realidade quando subordinados à história sagrada e ao tempo mítico, que lhes conferem carácter de eternidade. Esse carácter de eternidade é precisamente o que o homem religioso procura para transcender a evanescência e a morte. Daí que o mito exija actualizações cíclicas: os ritos.
É indispensável neste ponto distinguir entre «essência do mito» e a sua «estrutura dinâmica e teleonómica», sempre unidas e complementares quando se trata de um verdadeiro mito, isto é, de um mito com raiz no sagrado e no numinoso. Adiantamos que a mitologia marxista ou materialista, exprimindo embora por transferência psicológica, a forma mais exterior do essencial mítico, só se identifica, no entanto, em plenitude, com a sua teleonomia. A sua dialéctica não é mais, efectivamente, do que uma substituição semântica; trata-se de um dinamismo teleonómico, em que as teses e as antíteses correspondem exactamente ao jogo de protecções e de obstáculos que encontra o herói mitológico na sua aventura sagrada, até se atingir, necessariamente, o cenário idílico da vitória dos deuses sobre os titãs, da fundação cosmogónica, da paz sem história, que constitui o «happy end» dos contos de fadas."
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*«Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista.
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[1] Mircea Eliade, «O Sagrado e o Profano (trad. Portuguesa), Lisboa, Livros do Brasil, s.d., p. 85
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Escavações Contemporâneas - 40


LC
O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: Paulo Tunhas)
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"Paz em Cambridge*
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A Portuguese Murder, de Philip Papineau, é um excelente romance para as férias. É verdade que o título pode induzir em erro, já que nenhum dos personagens é português nem a acção decorre em Portugal. Também nenhuma referência é feita ao Professor Agostinho da Silva. Mas explica-se: a rua de Cambridge onde vivem três dos principais personagens do livro chama-se Portugal Place. Ou melhor, explicar-se-ia caso algum crime ocorresse ao longo destas trezentas páginas, o que manifestamente não acontece. Os habitantes deste romance são gente civilizada de várias raças e credos que ocupam o seu tempo falando de Wittgenstein, passeando de bicicleta e bebendo tímidas cervejas em pubs. Mas é um romance moderno. Fica-lhe bem um título inexplicável.

A única excepção a este tom comum das personagens reside nas duas irmãs, Sarah e Margaret: Sarah passa o romance todo a encher os pneus da bicicleta (o livro começa com ela em pleno exercício dessa actividade, por uma tarde fria e chuvosa, em frente à antiga casa de Muhamad Iqbal) e a dedicar-se a monólogos cínicos e obscenos, com o seu quê de delinquente ingenuidade, na veia dos da heroína de Story of My Life; Margaret é a única católica nesta história, e cita pelo menos uma vez em cada duas frases o cardeal Newman, além de se apaixonar por todos os personagens do sexo masculino com uma improvável e mal sucedida obstinação.

Mas são excepções. Como o autor escreve no prefácio, «trata-se de um romance sobre as condições emocionais da busca da verdade na juventude». E, consequentemente, grande parte do livro é ocupada pelas discussões entre David, estudante de Teologia a quem se poderia aplicar a descrição que Conan Doyle deixou de Mycroft, o irmão de Sherlock Holmes: «todos os outros homens são especialistas, mas a sua especialidade é a omnisciência», e Jeremy, o futuro médico, no qual não é difícil reconhecer a figura do autor. Quer seja junto às margens do Cam, quer passeando de bicicleta até Ely, quer ainda em conversa no pub, o comprometimento com as interrogações essenciais nunca os abandona, no que são acompanhados por vários outros personagens, dos quais é justo destacar o memorável Square, o eterno fugitivo da desgraçada Sarah.

O espírito do romance deixa talvez melhor apreender-se através de uma longa citação do penúltimo capítulo, quando Jeremy e David começam a perceber aquilo que o segundo define como «a natureza ilógica do preconceito da verdade»: «Jeremy deitou-se sobre a relva. Não se preocupou em escolher um lugar protegido do sol. No estado em que estava, precisava mesmo de encarar o sol de frente. Isso não o distinguia particularmente de ninguém, pensou, rindo para dentro. À primeira aberta, Jesus Park enchia-se de gente disposta a aproveitar tudo o que não fosse chuva. «É impressionante como à noite é completamente diferente», continuou a pensar. E então ouviu as conversas que vinham do lado do grupo de raparigas italianas que inundavam Cambridge pela altura dos cursos de Verão, e, por uma associação de ideias momentaneamente inexplicável, lembrou-se de Sarah e o seu coração experimentou uma amarga tristeza. «Como é possível que tenha ido para a cama com toda a gente menos comigo, que sou o único que a amo?» Por um momento odiou toda a gente: David, Square, Toby, Alfred e o paquistanês da papelaria da esquina. Mas uma leve brisa acompanhada pelo tinir de campainhas de bicicleta levou imediatamente para longe os seus dúbios pensamentos. Sentiu-se de novo mais fresco e descansado. O céu outra vez encoberto tornou o parque deserto. Foi quando sentiu uma mão pousada no seu ombro, e, para seu grande horror, ao virar-se descobriu que era Margaret, que o andava a tentar converter ao catolicismo por processos pouco ortodoxos. Trazia a Apologia de Newman debaixo do braço. Mal teve tempo para reparar no seu vestido lilás, já ela se lançara sobre ele e, quando a custo recuperou o fôlego, quase afogado no meio do lilás, ouviu a sua voz: «Não são legítimas evasivas, diz a Apologia». Jeremy ainda arranjou forças para pensar em Sarah e no seu impossível amor, enquanto a irmã desta o apertava com todas as suas forças e uma fé extraordinária; mas depois lembrou-se da natureza ilógica do preconceito da verdade e optou por uma conversão oportuna».

A Portuguese Murder não é certamente um grande romance. The Nature of Oblivion e Moral Debts, do mesmo autor, voam mais alto e com mais elegância. Em particular, em qualquer destas obras, os personagens são menos volúveis do que neste seu último livro. Mas talvez que a própria natureza do tema—«as condições emocionais da busca da verdade na juventude» — obrigasse o autor a essa espécie de debilidade que pervaga ao longo destas páginas. E essa debilidade oferece um encanto próprio, parente daquele que David evoca a Sarah: «Wittgenstein costumava vir ouvir música a esta casa. Sempre que passo por aqui tenho a ilusão de recuar no tempo, como por encantamento, e espero um dia poder cruzar-me com ele». O seu encanto é o do espírito do lugar."
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*O Primeiro de Janeiro, 12 de Agosto de 1990

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Beleza

Mas a beleza persistirá, porque aquilo que não se pode dizer é sempre uma constelação maior.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Imagens

Já não sei se hoje sonhei com Gregor Samsa, com as imagens microscópicas de Hans Castorp ou mesmo com Orlando, no momento em que caminhava como um cervo. Prometo não revelar. Fica apenas a promessa de escrever cada vez menos, à medida que o verão - e bem - me for incendiando a memória.

terça-feira, 17 de julho de 2007

O Terrível

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A realidade: um jovem escava na areia e, a certa altura, as paredes de areia cedem. É uma morte bizarra. Os jornais dão hoje conta do terrível acidente que ontem teve lugar na praia de Quarteira.
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A alegoria: Manuel Monteiro afirma que está a mais. Já agora, acrescenta, ele e todos os outros (leia-se: todos os outros políticos). Quer sair do PND, de que é, creio, o único membro. Ou quase. É tudo uma questão de caras; de “caras” que se vão tornando cansativas. É a teoria da asfixia política pura. Escavada pelo próprio. Há tanto tempo. Sem que tenha plena consciência do facto. Um acidente na política nunca chega a ser noticiado. O terrível não faz parte do cânone político do nosso quotidiano. Se fizesse, Monteiro, espécie de fácil cereja sobre o bolo, estaria longe, muito longe de ser o único. Cada vez mais longe.

Pré-publicações - 45

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Frederico Lourenço (Org.), Ensaios sobre Píndaro, Livros Cotovia, Lisboa, 2007.
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Pré-publicação:
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"Píndaro nasceu em Cinoscéfalas, perto de Tebas, por volta de 518 a.C. Não se sabe ao certo a data da sua morte, mas 438 (ano em que Eurípides apresentou em Atenas a peça Alceste) é geralmente aceite.
Embora tenha composto poesia de variados géneros, o único género de que temos poemas seus completos (e em número muito significativo) é o género dito epinício (palavra composta a partir de nike, vitória). Este conjunto de poemas representa, com os quatro livros de odes de Horácio, o cume da poesia lírica greco-latina. A ode epinícia de Píndaro é uma obra de arte complexa: é arquitectónica e musical na construção; metafórica e transcendente no desenvolvimento elocutório e conceptual. Além destes elementos estritamente poéticos, há também uma dimensão religiosa e uma dimensão histórico-cultural. Píndaro é, ainda, o poeta do Mito. As suas odes epinícias constituem, juntamente com as Metamorfoses de Ovídio, o mais abrangente repositório poético que até nós chegou da mitologia clássica.
Por todas estas razões, ler “a seco” uma ode de Píndaro em português pode ser uma experiência frustrante. Além do que já foi dito, há ainda a carga de polissemia multifacetada das próprias palavras no original grego que se perde na tradução: palavras como Graça (kháris), Tranquilidade (hesukhía), Natureza (phuá), Inveja (phthónos), Saciedade (kóros) ou Excelência (aretá) evocam em grego uma pletora de sentidos, pois cada uma encerra um universo semântico e uma forma própria de olhar o mundo. Perceber como estes conceitos entram numa poesia cuja finalidade é louvar vencedores de provas atléticas não é tarefa linear (nem mesmo para helenistas...). Por outro lado, temos as constantes descontinuidades, os solavancos e as abrupções no registo discursivo, a parada de mitónimos e de referências mitológicas que, com maior ou menor opacidade, são convocadas para o poema, no intuito de dar uma dimensão “extra” à vitória que o atleta acabava de arrebatar.
Tratando-se de poesia com estas características, a existência de um discurso hermenêutico a acompanhar o texto poético afigura-se necessidade absoluta. Ora a consolidação desse discurso hermenêutico em língua portuguesa é o objectivo que este livro pretende alcançar."
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Cotovia, Gradiva, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

Pré-publicações - 44

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Ludwig Tieck, Três Contos Fantásticos, Antígona, Lisboa, 2007 (Julho).
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Pré-Publicação:
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"Eckbert, o Louro
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Algures no Harz, vivia um cavaleiro a quem chamavam simplesmente Eckbert, o Louro. Rondava os 40 anos, não chegava a ter estatura média e o cabelo, muito louro e curto, caía liso, emoldurando-lhe o rosto pálido e encovado. Levava uma vida de grande recato, sem nunca se envolver nas contendas dos vizinhos, e só raramente o viam fora das muralhas do seu pequeno castelo. Como ele, também sua mulher se comprazia na solidão, e um terno amor parecia uni-los; o facto de o céu não ter querido abençoar-lhes a união com descendência era a única coisa que muitas vezes lamentavam.
Eckbert recebia poucas visitas e, mesmo então, em nada mudava o habitual ritmo de vida; a sobriedade era seu apanágio, e a parcimónia tudo parecia reger. Nessas ocasiões, Eckbert mostrava-se alegre e bem-disposto, mas, de novo só, logo deixava transparecer uma certa reserva, uma surda e contida melancolia.
O mais assíduo hóspede do castelo era Philipp Walther, um homem a quem Eckbert se apegara por lhe ter encontrado no modo de pensar afinidades com o seu. Tinha morada na Francónia, mas acontecia passar temporadas de mais de seis meses nas cercanias do castelo de Eckbert. Coleccionava ervas e pedras que, depois, se entretinha a classificar; vivia de uma pequena fortuna e não dependia de ninguém. Eckbert acompanhava-o muitas vezes nos seus passeios solitários e, de ano para ano, foi-se tornando mais íntima a amizade entre ambos.
Há horas em que uma angústia se apodera de nós por insistirmos em ocultar de um amigo um segredo que até então tudo fizemos para esconder; a alma sente um impulso irresistível de se expor inteira, desvelando o que alberga de mais recôndito, no intuito de estreitar ainda mais a amizade. Em tais momentos, as naturezas sensíveis dão-se a conhecer mutuamente, e por vezes acontece uma delas recuar, assustada, perante as revelações da outra.
Era Outono. Numa noite de nevoeiro, Eckbert estava sentado à lareira com o amigo e Bertha, sua mulher. As chamas difundiam uma luz clara pelo aposento e brincavam no tecto; a escuridão parecia penetrar pelas janelas e, lá fora, as árvores sacudiam o frio húmido dos ramos. Como Walther se queixasse de que o aguardava um longo caminho de regresso, Eckbert propôs-lhe que passasse ali a noite, metade dela em amena conversa, dormindo depois num dos aposentos até ao amanhecer. Walther aceitou a oferta, levaram-lhes vinho e a ceia, avivaram a lareira com mais lenha, e a conversa entre os amigos foi-se tornando mais animada e íntima.
Quando os criados levantaram a mesa e se retiraram, Eckbert pegou na mão de Walther e disse-lhe:
– Meu amigo, devíeis ouvir da boca de minha mulher a história da sua infância, que é por de mais estranha."
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Cotovia, Gradiva, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

Pré-publicações - 43

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Bernardo Pinto de Almeida, Força de Imagem (O Surrealismo na Colecção Berardo), Campo das Letras, Porto, 2007 (Julho).
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Pré-publicação:
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"Sob o título Força de Imagem, de que aqui se publica uma primeira parte, a que se seguirá uma segunda, mais específica e necessariamente mais pessoal no plano da interpretação sobre o Surrealismo em Portugal, procurei fazer uma abordagem do fenómeno estético surrealista. A que agora se publica retoma uma abordagem anteriormente disponível nos Cadernos do Museu n.º 2 do Sintra-Museu Berardo de Arte Contemporânea, que se editou para acompanhar uma primeira exposição, ali realizada, do núcleo surrealista desta importante colecção.
Procurando tomar em linha de conta as várias abordagens recentes sobre o tema que vêm mobilizando de Rosalind Krauss ou Donald Kuspit a Hal Foster, entre outros, ao longo da última década, alguns dos mais interessantes discursos da nova crítica de arte sobre uma eventual actualidade do Surrealismo (nomeadamente no que toca à possibilidade de rever alguns conceitos entretanto ultrapassados que se associaram à sua história e fortuna crítica), entendi, neste ensaio breve, pensar globalmente o fenómeno estético introduzido pela teoria e práticas surrealistas.
Tratou-se, então, e antes do mais, de voltar à origem do Movimento Surrealista, a partir dos seus textos fundadores – numa palavra, a André Breton –, para, a partir deles, encetar essa discussão, tendo em conta a importância do Surrealismo no desenvolvimento da arte moderna ao longo do século XX, e procurar contextualizar esse estudo a partir do importante núcleo reunido na colecção Berardo. Esta opção pelo regresso ao texto bretoniano corresponde à convicção profunda, que julgo ser pertinente sustentar, da necessidade de o continuar a ler em interdependência directa com as práticas artísticas dos principais artistas ligados ao Surrealismo.
Num espelhamento mútuo, no qual reside, a meu ver, a chave maior de compreensão do fenómeno surrealista. Mesmo sendo possível – como o pretendeu Krauss sobretudo – querer retirar a Breton esse papel fundador, substituindo-lhe, em medida de importância, autores como Georges Bataille ou mesmo Antonin Artaud, para ancorar hipóteses conceptuais em torno do informe ou da abjecção, não julgo que tal seja esclarecedor quanto ao que foi, histórica e esteticamente, o Surrealismo desde a sua origem."
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Cotovia, Gradiva, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

Viva a polémica!

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Recebi do amigo e habitual correspondente na Holanda, Carmo da Rosa, o seguinte texto (que anuncia a tradução de um post de conhecido blogger holandês, publicado mais abaixo):
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"Para festejar os quatro anos do Miniscente e para satisfazer ao mesmo tempo o interesse polémico da minha ‘compagne de route’, Fernanda Valente (manifestado em post de 14 de Julho), envio desta vez em tradução um artigo de um dos melhores blogueiros holandeses. Bastante conhecido nestas lides, apesar de poucos saberem quem é esta figura enigmática que assina - por motivos de segurança - com LAGONDA. Há quem diga que é uma mulher, outros acham esta hipótese pouco provável e a mim faz-me lembrar o fado do embuçado, que nós bem conhecemos… ‘Era El-Rei de Portugal’."
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Argamassa: o islamismo moderado
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Para onde quer que nos viremos somos confrontados com o raio do Islão! Não se fala noutra coisa na rádio e na televisão. Toda a gente faz o melhor que pode para, de forma forçada, demonstrar uma atitude positiva em relação ao Islão, para estabelecer em quase todas as declarações uma (muita rebuscada) ligação de amizade com a Meca. ‘Não se tratava de jovens islamitas’, esclarece o apresentador do telejornal holandês de forma espontânea, quando os enfermeiros das ambulâncias são mais uma vez agredidos em Amesterdão. Ou então é o apresentador do boletim meteorológico que de repente se põe a explicar o decurso da estação das chuvas no Líbano. No Líbano? Porque não em Madagáscar? E mesmo ao ministro holandês da justiça, que na realidade apenas quer explicar como funciona a democracia, escapa-se-lhe entre dentes a palavra ‘sharia’. Pois é! Quando temos a caixa dos pirolitos atulhada destas coisas o lapso freudiano é inevitável.
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‘Bom dia padeiro, no Alcorão não está escrito que o véu é obrigatório para as mulheres, olhe, já agora arranje-me aí duas sêmeas e cinco papos-secos por favor?’.
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Até para os mais ferozes defensores desta religião tornou-se já quase impossível manter a ideia que tudo vai bem com o Islão, que é ‘apenas uma religião’, comparável a tantas outras! Passam-se meses – qual quê? passam-se aaaaaanos! sem que seja necessário defender o Budismo no telejornal. Nunca vi o comportamento de colonos judeus no telejornal explicado a partir da Thorá. Mas um muçulmano mal levanta o dedo mindinho, logo uma armada de jornalistas, de exegetas e de multiculturalistas está pronta para explicar que não há azar; que o levantar do dedo mindinho é normal nos muçulmanos; que se trata de um muçulmano moderado, de maneira nenhuma um terrorista.
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Como vêem as coisas não se tornaram mais descontraídas. Mas parece que já se avista uma esperança no horizonte! O fantástico islamismo moderado, que dentro em breve vai finalmente meter mãos à obra e vai tratar de iluminar a meia dúzia de fundamentalistas enraivecidos que povoam este mundo. Porque quase todos os muçulmanos são nomeadamente moderados, e desejam intensamente um Islão secular, onde haja mais espaço para a liberdade individual e para a emancipação. Pelo menos, parece ser isto o que temos que acreditar. Mais de dois anos após a morte de Theo van Gogh as sociedades ocidentais ainda não ouviram ‘algo’ significativo da parte do Islão moderado. Talvez possamos prudentemente fazer um balanço?
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Um estudo recente afirma que a percentagem de jovens marroquinos que rejeita a sociedade ocidental já chegou aos 50%. Eu lembro-me que ainda não há muito tempo a percentagem era de 15%. E desta forma é dada uma resposta à sacrossanta pergunta que nunca é posta. A pergunta é a seguinte: Quem é que tem mais influência? O Islão moderado sobre o fundamentalista, ou o fundamentalista sobre o moderado?
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Pois bem!
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É absolutamente irrelevante quantos muçulmanos moderados existem, enquanto eles não mexerem uma palha e não abrirem a boca. Porque são os empreendedores fanáticos e motivados que fazem a história; são os indivíduos dispostos a agir que marcam o compasso; são os persistentes que constroem pacientemente o molde onde a moderação vai enrijecer e tomar a sua forma definitiva. Enquanto os moderados não se moverem, e não se atreverem a resistir activamente contra os seus correligionários mais extremistas, estarão sempre na mó de baixo e serão sempre levados a reboque. Esta maioria silenciosa e complacente de muçulmanos é utilizada pelos fanáticos como escudo para se defenderem, ou então como uma enorme arma que vão pôr em marcha quando a altura for propícia.
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Porque o Islão é mesmo assim. Atacar de surpresa a cultura dominante é o único truque do Islão, mas dominam esta faceta com grande perfeição. A doutrina nasceu num país, e já se encontra em mais de 50. Como é isso possível? Porque o Islão marcha sempre em frente, nunca retrocede. São sempre os fundamentalistas que semeiam activamente a influência do Islão, alargando fronteiras e batendo-se por elas, nem que seja durante séculos: nunca os moderados conseguiram com sucesso uma retirada estratégica. O Islão só se retira quando é activamente combatido e derrotado, e para isso, em regra, foi sempre necessário utilizar medidas robustas.
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Assim foi em todo o Médio Oriente, onde a cultura persa foi completamente aniquilada. Assim foi na Indonésia, que nuns escassos 100 anos passou de totalmente budista para totalmente muçulmana. Assim é AGORA no Caxemira, onde já foram mortos milhões de hindus. Assim é agora na fronteira norte do Paquistão, na Tailândia, em África e no Líbano, e também vai ser assim na Europa. E sempre da mesma maneira – uma vanguarda inatingível que não tem medo de sujar as mãos e que em cada dia que passa dá um passo em frente, dispersa entre uma enorme horda silenciosa de simpatizantes que é apenas utilizada como massa de cimento para preencher e cimentar o espaço conquistado. O Islão moderado não é nada mais do que argamassa.
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E porque será que nós julgamos que vamos escapar? Porque é que não damos o corpo ao manifesto? Porque não fazemos uma tentativa para controlar a situação, porquê ficar à espera, na esperança da bóia de salvação que o Islão moderado nos possa atirar? E porque razão ousamos pensar que o Islão moderado é realmente moderado? Julgamos isso por causa desta única frase:
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‘Nós não podemos fazer nada’.
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Esta frase pode ser ouvida em todo o mundo. No sul da Tailândia onde os budistas sobreviventes são ameaçados e assassinados por milícias muçulmanas. E o que é que as autoridades muçulmanas locais nos dizem? É muito aborrecido, mas não podemos fazer nada. Na Indonésia raparigas cristãs são decapitadas por salteadores muçulmanos. E o que é que o governo muçulmano nos diz? Muito chato, mas não podemos fazer nada. O Islão significa nomeadamente amor! No Darfur, a milícia Janjaweed comete actualmente um genocídio expedito contra a população negra. E o que é que dizem os funcionários do Sudão? Sim, temos muita pena, mas não podemos fazer nada. Já o Arafat, com os seus terroristas suicidas, não podia fazer nada. E o Hezbollah, esses então não podem fazer mesmo nada. Nós não pudemos fazer nada: é o eterno pretexto de Allah.
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Atentado nos Estados Unidos? Não podemos fazer nada; o Islão é mera tolerância. Atentados à bomba em Madrid e Londres? Não, não podemos fazer nada; na realidade o Islão é uma religião de bondade! Samir A (tentativa de atentados contra o parlamento holandês e contra uma central nuclear)? Mohammed B (assassínio de Theo van Gogh)? Não podemos fazer nada; são rapazes holandeses como os outros. Parlamentários e jornalistas são seriamente ameaçados? Não podemos fazer nada; ‘jihad’ significa na realidade apenas uma luta interior. O Anti-semitismo e o ódio contra homossexuais que ressurge? Não podemos fazer nada; perante Allah somos todos iguais. Crimes de sangue? Lapidações? Não podemos fazer nada; o Islão é na realidade um paraíso de liberdade para as mulheres! Viva! Fantástico!
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Não podemos fazer nada."
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Lagonda
(tradução do Neerlandês: Carmo da Rosa)

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Lisboa

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Dá que pensar. O partido vencedor não chega aos 30% e tem para festejar, na capital, o povo das excursões que vem do Teixoso, Alandroal, Mirandela e Famalicão. Depois, há um novo partido da engenharia, cujo segundo lugar desmente (razoavelmente) uma qualquer penalização dos ex-responsáveis da CML. O PSD aparece como terceiro partido. Sem comentários. Segue-se o novo partido dos Cotas/Make Love Not War com mais de dez por cento. O PC e o BE têm espaço suficiente para o megafone fracturante (juntos ultrapassam Marques Mendes). Entretanto o PP desaparece e confunde-se com um boomerang táctico que ninguém entende. As praias, ontem, estavam vazias e eu cheguei a lembrar-me - parece que foi agora - de estar no Estádio Municipal de Tomar, corria o ano de 1969 e diziam na "telefonia" que havia eleições (acho que o União local recebia a Académica). O bom povo português devia ler Do Fanatismo de Eric Hoffer, editado entre nós há pouco tempo pela Guerra e Paz. É que, enquanto o paternalismo nacional se preocupa com todos estes sintomas, há uma trepadeira subterrânea que vai crescendo, crescendo, crescendo. Sem que ninguém veja.

domingo, 15 de julho de 2007

HAPPY BIRTHDAY!

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Faz hoje precisamente quatro anos, ao início da tarde, escrevi o primeiro post do Miniscente.
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Sim: Um nome estranho. Mas eu explico-me, pois lembro-me muito bem da cilada semântica que fundou o nome antes ainda de haver coisa.
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Se a reminiscência apela a uma persistência do passado que escapa ao domínio de quem rememora, o "Miniscente", pensei eu, apelaria a uma densa persistência do presente que escaparia, também, ao domínio de quem pretende actualizar. Era esta a ideia. E a ideia confirmou-se em pleno: num blogue, o presente excede-se sempre a si próprio e põe permanentemente em causa o controlo de quem enuncia. E uma nova palavra apareceu assim, no berço desejadamente violável, da, para muitos, sacrossanta língua portuguesa.
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Deixo por baixo o texto que escrevi propositadamente para este dia, na sua versão integral e final. Nos últimos cinco dias, como os leitores saberão, publiquei-o em cinco pequenas partes.
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O meu blogue, o Miniscente, faz hoje quatro anos. Quando se é ou se aspira a trintão, quatro anos é muito tempo. Dá para fazer balanços de vida e para repensar um ciclo de projectos. Quando se é ou se aspira a quarentão, quatro anos é algum tempo. Dá para alterar o sentido das coisas e repor alguma ordem na casa. Quando o passo é o seguinte, na quinquagésima paragem, os mesmos quatro anos tanto se diluem numa imagem de vórtice, como se confrontam com a duração de uma Primeira Grande Guerra Mundial ou com o longo período de uma edição como a do ainda magnífico Le Rameau d´Or (1911-1915) de James George Frazer. Ou seja, o tempo comporta-se e debate-se, meio sonolento, pairando entre o abismo irremediável e o horizonte por resgatar.
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Mas quando o tema diz respeito a blogues, o tempo cheira subitamente a eternidade. Nada que se compare a um livro que tenha levado o dobro do tempo a escrever, o que já me aconteceu, nem nada que se compare a um desses planos faseados sob a forma de organigrama sem fim. Não, com os blogues a música é outra. De facto, o Miniscente mudou-me a vida, bem mais do que a literatura o havia feito há mais de um quarto de século. Se cada romance e se cada ensaio foram recortando a minha vida em episódios densos com princípio, meio e fim – uma espécie de descendência onírica que me foi carregando a memória –, já o Miniscente se intrometeu e inseminou no curso íntimo da minha vida, passando a calcorrear-lhe os ritmos, a mimar-lhe a respiração e, quando menos se esperaria, até a ditar-lhe as linhas e o tom das urgências diárias.
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Não existe quase nada, hoje em dia, que eu pretenda exprimir ou silenciar que não acabe por reflectir-se, de um modo ou de outro, na gotejante e compulsiva ordem da blogosfera. É como se a minha máscara se tivesse, a pouco e pouco, transformado em rosto, mas sem que a metamorfose fosse clara ou passível de prova. Uma pele renovada pelo zapping. Um blogger tende, na maior parte das vezes, a ser um réu e um jurado ao mesmo tempo, numa espécie de tribunal ausente – ou simulado – de que apenas sobra um veredicto permanente e irrevogável que modela o presente, relegando a jurisprudência, a memória e sobretudo o futuro para um plano completamente secundário.
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Um blogger é um “Já” (a iminência enquanto corpo) que passou a depender do compasso musical onde se insere: mera nota, mera peça e mera inscrição que julga decidir sobre o seu usufruto, isto é sobre a sua liberdade, tal como um escritor – no tempo em que a literatura se sobrepunha socialmente ao circo das imagens móveis – julgava a morosa maturação da sua escrita laboratorial. Não, nos blogues não há oficina, nem laboratório à moda dos velhos canônes, mas apenas e tão-só linha de montagem, desejo e constrangimento. Três termos num único e reluzente esplendor: linha de montagem como fôlego e actualização; desejo como existência, vínculo e afirmação em rede; e, por fim, constrangimento como imposição, glamour e voragem próprias.
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Ao ler-se um texto de natureza confessional, como é este, vai pensar-se que o meu balanço de blogger é negativo. E sê-lo-á em parte. É até difícil imaginar o que eu teria feito, ao longo destes 48 meses, se não me tivesse devotado à actividade que o Miniscente mobiliza. Nem tenho a certeza se o Miniscente corresponde ao perfil de blogue que eu mais teria desejado fazer (o mesmo se aplica a outros blogues mais modestos por mim criados, o Minitempo ou o Minion). Nada é perfeito, já se vê. Grande parte da nossa vida é uma resposta ao curso irregular com que o inaudito nos acena, mas é também a partilha de uma terra de ninguém dominada pelo imponderável. Planear é querer domar o monstro que se esconde nos solavancos mais ínvios do tempo. É por isso que os blogues acabam por ser atractivos: justamente, porque não se arrogam a esse tipo de feitos deístas ou salvadores; daí que vivam às mil maravilhas ao lado de todo o tipo de imprevisto, de espanto, de ordinary life e do mais puro nexo circunstancial.
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No meu caso, o lado positivo da blogosfera passa por este tipo de convivência tão nova quanto incerta. Isto é: saber conviver com a pulsação turbulenta do mundo, numa errância encapelada que quase se apaga no momento em que surge; no reverso do dever (pesado) e das narrativas tradicionais em que o fundamental passou a ser como o olhar que nasce e morre ao mesmo tempo, por simples paixão pelo imediato, pelo instantâneo, ou pelo fiat deslumbrado e sem precedentes com que na rede se passou a perceber – e a iludir – o ‘Outro’. O “fingimento”, tal como foi caracterizado quando a poesia e a literatura ainda eram um Olimpo social, é hoje o alicerce sobre o qual o blogger cava (não digo constrói) a sua palavra fugidia. Entrámos, de vez, na idade do cavador de pérolas. O meu primo e tenor, Tomás Aquino Carmelo Alcaide, teria sorrido com grande desdém. Eu – pelo meu lado – gosto, mas sem a limpidez de outros gostos que já me marcaram a vida. O Vergílio Ferreira teria gozado. Como só ele sabia fazer. Quando não estava a escrever.
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Nestes quatro anos, é óbvio que conheci muita gente interessante. E criei novas cumplicidades. Por outro lado, desleixei o (que na minha Holanda de há vinte anos designava por) “culto dos interiores”, descobri na malha que me escreve um discurso menos analítico, refiz algumas ideias sobre a figura do leitor e do criador de textos e esqueci muita coisa fundamental. Apercebi-me da forma de fluxo com que os variados mainstreams actuam, raramente reagi à barbárie expressiva e houve momentos – não poucos – em que cheguei a cansar-me desta actividade e dos seus previsíveis comentadores. Sim, porque a blogosfera é uma actividade, ainda que, e bem, Al Ries e a sua filha Laura Ries separem cristalinamente as águas: negócio é uma coisa, comunicação é outra.
e
Um dia, tal como começou, o Miniscente há-de acabar. Mas não lhe darei, por ora, o privilégio de acabar em data certa, apolínea e pitagórica. Como é esta. Deixei para trás, neste ciberespaço apetecível, algumas séries de textos que não deslustram e muitas outras que foram concebidas ao nível de uma pastilha elástica conservadora. Em ambos os casos, ponderei sempre a forma e nunca, infelizmente, soube filtrar o que ia enunciando ao sabor das grandes audiências (embora, com o tempo, tivesse deixado de consultar, com regularidade mais ou menos adolescente, o “Sitemeter”). Diga-se, em concordância com o hábito e à luz da inexplicável efígie do seu monge, que, hoje em dia, também visito menos blogues, também desenvolvo muito menos networking e também perdi alguma paciência para actualizar links. Sintomas, dir-se-á. Sintomas, talvez, de mudanças que urgem. Até porque não há blogger que, só por ser blogger, tenha interesse. É por isso que sou alérgico a um
certo corporativismo tribal que abunda na blogosfera. E com o qual, rigorosamente, nada tenho que ver. Nem nunca terei.
e
Sobretudo no último terço desta sua vida de quatro anos, o Miniscente não foi apenas voz como também deu a ouvir e a conhecer outras vozes. Isso aconteceu com as “Mini-entrevistas”, com as “Escavações Contemporâneas” (rubrica que pretende remar contra a amnésia das rotinas em rede) e com as “Pré-publicações” (existe hoje um “Clube” que conta com duas dezenas de editoras portuguesas que colaboram activamente nesta rubrica). Esta predisposição de simultânea expressão e interface de expressões tem moldado o Miniscente de um modo que seria inimaginável em Julho de 2003. Talvez esta nova dimensão (dir-se-á “cultural” – não gosto nada da palavra!) do meu blogue principal constitua uma compensação para o assumido défice de networking, de actualização de links e de visitas a outros blogues dos últimos tempos. Nada melhor do que a consciência deste tipo de (sigilosos) movimentos para ir repondo alguns equilíbrios.
e
Contudo, o trabalho a bordo de um blogue, se bem que movido pela compulsão e por hábitos de permanente e actualizada inscrição, é sempre um trabalho que deverá concordar com o prazer. Com uma bitola mínima povoada pelo lúdico, pela liberdade de edição, pela manobra pouco calculista, pelo assombro da espontaneidade, pelo dislate irreparável, pela ostensão desnecessária, pela exposição pura e simples. Sem medos. Porque, como referi há mais de um ano, na sequência que ficou conhecida por “O Tom dos Blogues” (que vai aparecer, em breve, sob a forma de livro), com mais ou menos simplismo, embora com autenticidade, “os blogues somos nós mesmos”. É este, porventura, no meu caso pessoal, o móbil mais forte da persistência blogosférica: estar sempre prestes a comemorar um imenso nada que, de um momento para o outro, se pode miraculosamente transformar numa espécie de novo Rameau d´Or.

Quarto aniversário do Miniscente - 6

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Sobretudo no último terço desta sua vida de quatro anos, o Miniscente não foi apenas voz como também deu a ouvir e a conhecer outras vozes. Isso aconteceu com as “Mini-entrevistas”, com as “Escavações Contemporâneas” (rubrica que pretende remar contra a amnésia das rotinas em rede) e com as “Pré-publicações” (existe hoje um “Clube” que conta com duas dezenas de editoras portuguesas que colaboram activamente nesta rubrica). Esta predisposição de simultânea expressão e interface de expressões tem moldado o Miniscente de um modo que seria inimaginável em Julho de 2003. Talvez esta nova dimensão (dir-se-á “cultural” – não gosto nada da palavra!) do meu blogue principal constitua uma compensação para o assumido défice de networking, de actualização de links e de visitas a outros blogues dos últimos tempos. Nada melhor do que a consciência deste tipo de (sigilosos) movimentos para ir repondo alguns equilíbrios.
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Contudo, o trabalho a bordo de um blogue, se bem que movido pela compulsão e por hábitos de permanente e actualizada inscrição, é sempre um trabalho que deverá concordar com o prazer. Com uma bitola mínima povoada pelo lúdico, pela liberdade de edição, pela manobra pouco calculista, pelo assombro da espontaneidade, pelo dislate irreparável, pela ostensão desnecessária, pela exposição pura e simples. Sem medos. Porque, como referi há mais de um ano, na sequência que ficou conhecida por “O Tom dos Blogues” (que vai aparecer, em breve, sob a forma de livro), com mais ou menos simplismo, embora com autenticidade, “os blogues somos nós mesmos”. É este, porventura, no meu caso pessoal, o móbil mais forte da persistência blogosférica: estar sempre prestes a comemorar um imenso nada que, de um momento para o outro, se pode miraculosamente transformar numa espécie de novo Rameau d´Or.
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(Este texto foi publicado em cinco partes, entre o dia 11 de Julho e hoje, 15 de Julho, dia do quarto aniversário do Miniscente).

sábado, 14 de julho de 2007

Quarto aniversário do Miniscente - 5

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Nestes quatro anos, é óbvio que conheci muita gente interessante. E criei novas cumplicidades. Por outro lado, desleixei o (que na minha Holanda de há vinte anos designava por) “culto dos interiores”, descobri na malha que me escreve um discurso menos analítico, refiz algumas ideias sobre a figura do leitor e do criador de textos e esqueci muita coisa fundamental. Apercebi-me da forma de fluxo com que os variados mainstreams actuam, raramente reagi à barbárie expressiva e houve momentos – não poucos – em que cheguei a cansar-me desta actividade e dos seus previsíveis comentadores. Sim, porque a blogosfera é uma actividade, ainda que, e bem, Al Ries e a sua filha Laura Ries separem cristalinamente as águas: negócio é uma coisa, comunicação é outra.
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Um dia, tal como começou, o Miniscente há-de acabar. Mas não lhe darei, por ora, o privilégio de acabar em data certa, apolínea e pitagórica. Como é esta. Deixei para trás, neste ciberespaço apetecível, algumas séries de textos que não deslustram e muitas outras que foram concebidas ao nível de uma pastilha elástica conservadora. Em ambos os casos, ponderei sempre a forma e nunca, infelizmente, soube filtrar o que ia enunciando ao sabor das grandes audiências (embora, com o tempo, tivesse deixado de consultar, com regularidade mais ou menos adolescente, o “Sitemeter”). Diga-se, em concordância com o hábito e à luz da inexplicável efígie do seu monge, que, hoje em dia, também visito menos blogues, também desenvolvo muito menos networking e também perdi alguma paciência para actualizar links. Sintomas, dir-se-á. Sintomas, talvez, de mudanças que urgem. Até porque não há blogger que, só por ser blogger, tenha interesse. É por isso que sou alérgico a um certo corporativismo tribal que abunda na blogosfera. E com o qual, rigorosamente, nada tenho que ver. Nem nunca terei.
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(continua)
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Este texto é publicado em cinco partes, entre o dia 11 de Julho e o dia do quarto aniversário do Miniscente (15 de Julho).

Escavações Contemporâneas - 39


LC
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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: António Quadros - António M. Ferro, Org.)
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O Homem Português (1983*)
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O português quer viver, crescer e de um modo geral ser, mas afeiçoou-se a convicções negativistas, nomeadamente ao nível político e educativo, que o conduzem a um auto-envenenamento mental. É porque não acreditamos em nós próprios, no que somos e valemos, no nosso pensamento e na nossa cultura, que em vez de pensarmos a partir daí a renovação das nossas leis, das nossas instituições ou dos nossos sistemas, constantemente, em sucessivos remendos, nos limitamos a importar, a repetir, a copiar ou a adaptar, ao mesmo tempo que nos autocriticamos sem medida e nos negamos. Disse-o de uma forma lapidar Fernando Pessoa, num pequeno texto que por várias vezes tenho citado: «uma nação que habitualmente pense mal de si mesma acabará por merecer o conceito de si que anteformou. Envenena-se mentalmente.» Daí que, acrescentou, « o primeiro passo para uma regeneração, económica ou outra, de Portugal, é criarmos um estado de espírito de confiança – mais, de certeza, nessa regeneração.» Vivemos hoje um período de menoridade e de adolescência regressiva em que, predominando o intelecto passivo, as pessoas se auto-satisfazem e auto-iludem como os lugares-comuns ideológicos, com os discursos demagógicos e com as ideias convencionais de gerações que, para repudiarem um certo tipo histórico de nacionalismo, perderam a própria identidade e já não sabem quem são ou para que são, os portugueses. (…) devido ao cientismo e ao tecnicismos predominantes que o positivismo nos trouxe, sem o acompanhamento de uma educação do intelecto para o desenvolvimento das faculdades superiores do homem, o nosso ensino público dirige-se à mentalidade pueril, não logrando a elevação do intelecto passivo e adolescente até ao intelecto activo e adulto, o que explica a facilidade com que o estudante cai nas mais quiméricas, utópicas ou demagógicas ideologias, com pouca ou nenhuma capacidade de eleição ou de análise.(…).
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*Conferência proferida em 13 de Dezembro de 1983 subordinada ao tema geral “Que Cultura em Portugal no próximos 25 anos?”
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)

sexta-feira, 13 de julho de 2007

Quarto aniversário do Miniscente - 4

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Ao ler-se um texto de natureza confessional, como é este, vai pensar-se que o meu balanço de blogger é negativo. E sê-lo-á em parte. É até difícil imaginar o que eu teria feito, ao longo destes 48 meses, se não me tivesse devotado à actividade que o Miniscente mobiliza. Nem tenho a certeza se o Miniscente corresponde ao perfil de blogue que eu mais teria desejado fazer (o mesmo se aplica a outros blogues mais modestos por mim criados, o Minitempo ou o Minion). Nada é perfeito, já se vê. Grande parte da nossa vida é uma resposta ao curso irregular com que o inaudito nos acena, mas é também a partilha de uma terra de ninguém dominada pelo imponderável. Planear é querer domar o monstro que se esconde nos solavancos mais ínvios do tempo. É por isso que os blogues acabam por ser atractivos: justamente, porque não se arrogam a esse tipo de feitos deístas ou salvadores; daí que vivam às mil maravilhas ao lado de todo o tipo de imprevisto, de espanto, de ordinary life e do mais puro nexo circunstancial.
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No meu caso, o lado positivo da blogosfera passa por este tipo de convivência tão nova quanto incerta. Isto é: saber conviver com a pulsação turbulenta do mundo, numa errância encapelada que quase se apaga no momento em que surge; no reverso do dever (pesado) e das narrativas tradicionais em que o fundamental passou a ser como o olhar que nasce e morre ao mesmo tempo, por simples paixão pelo imediato, pelo instantâneo, ou pelo fiat deslumbrado e sem precedentes com que na rede se passou a perceber – e a iludir – o ‘Outro’. O “fingimento”, tal como foi caracterizado quando a poesia e a literatura ainda eram um Olimpo social, é hoje o alicerce sobre o qual o blogger cava (não digo constrói) a sua palavra fugidia. Entrámos, de vez, na idade do cavador de pérolas. O meu primo e tenor, Tomás Aquino Carmelo Alcaide, teria sorrido com grande desdém. Eu – pelo meu lado – gosto, mas sem a limpidez de outros gostos que já me marcaram a vida. O Vergílio Ferreira teria gozado. Como só ele sabia fazer. Quando não estava a escrever.
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(continua)
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Este texto é publicado em cinco partes, entre o dia 11 de Julho e o dia do quarto aniversário do Miniscente (15 de Julho).

Escavações Contemporâneas - 38


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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: Paulo Tunhas)
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O que ficará do comunismo? (1990*)
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O que é que vai permanecer do comunismo? Não falo do comunismo enquanto força internacional e doutrina, parece que ainda, na União Soviética. Para saber isso, basta ler as crónicas que o Prof. Adriano Moreira escreve às quartas--feiras no «Público»; só por desatenção ou má-fé se pode ficar sem pelo menos um vislumbre do futuro do mundo depois de tão eruditas e científicas explicações. Mas não é disso que se trata. O que se trata é de saber o que é que vai ser do comunismo enquanto pronto-a-vestir intelectual e afectivo no seguimento do eclipse do sol da terra. O que se trata é de procurar compreender como é que o espírito sopra para que milhares de pessoas em Portugal possam continuar unidas «às realidades inefáveis e desconhecidas de um modo inefável e desconhecido», para falar como o Pseudo-Dionísio.

É quase tão misterioso saber se os comunistas acreditam no comunismo como ter a certeza da fé em Deus nos católicos, embora certamente menos interessante. Em relação aos católicos é, digamos, natural que assim seja. A crença e a descrença devem, em princípio, formar um todo: «temor e tremor» e esperança podem perfeitamente andar de mãos dadas com desesperada coragem. Mesmo que a totalidade dos meus amigos católicos me pareça gente pouco dada a intimidades com «as realidades inefáveis e desconhecidas» e eminentemente dedicada às coisas dizíveis e tangíveis, eu devo sempre reconhecer que há algo que não posso saber. Só Deus sabe os segredos que as pessoas guardam.

Mas o problema com o comunismo é obviamente diferente. Enquanto que é literalmente impossível provar que Deus não existe, as provas do terror comunista são ostensivas até mais não. Eram-no desde há muito, mas negá-las agora exige um exercício de cegueira tão extraordinário que excede até as capacidades de gente excepcionalmente dotada para o efeito, como os comunistas. Claro que se pode ainda—pode-se sempre—recorrer ao argumento da «bondade» da doutrina e culpar a realidade crua e imperfeita dos «desvios» e dessas coisas desagradáveis que aconteceram. Ainda no outro dia um historiador russo, Medvedev, dizia que o capitalismo demorou muito tempo a reconhecer os direitos humanos: seria necessário dar pelo menos igual tempo ao comunismo.

O menos que se pode dizer é que é um disparate puro e simples. Passando generosamente por cima do facto do que é dito em relação ao capitalismo ser apenas uma meia-verdade, é como se alguém, depois de conseguir que a sua cozinheira, finalmente, cozinhasse bem, ou pelo menos decentemente, a substituísse por outra perfeitamente incapaz de fazer sequer uma omeleta e destinada a envenenar a família aos longo dos anos, com o argumento sumamente estúpido de que, quando aprendesse a cozinhar, alimentaria melhor os sobreviventes e os descendentes destes, caso os houvesse.

Como dizia Necker a Turgot, referindo-se a uma situação apesar de tudo menos preocupante: «Não consigo compreender esta fria compaixão intelectual pelas gerações futuras, que deverá endurecer os nossos corações contra os gritos de dez mil infelizes que agora nos rodeiam». A compaixão intelectual continua duvidosa e os números são muitos milhões.

O comunismo enquanto tal já não é susceptível de fé. Ultrapassou, por assim dizer, o seu limite de elasticidade. Mas a fé comunista, perdido o seu objecto primeiro, encontra facilmente um segundo objecto, íntimo e difuso. Os sonhos que se transformam, para certos homens, num ritual que é uma espécie de comércio com o sentido do mundo (o sentido do mundo confundindo-se com a ilusão da sobrevivência), são os últimos a desaparecer— e a matéria, definitivamente, não conta. A fé comunista, perdido o seu objecto primeiro, não vai no essencial mudar. Do Dr. José Magalhães ao pequeno militante professor num qualquer liceu do país, as mesmas coisas, estúpidas e prodigiosas de ortodoxia, irão ser repetidas, por exemplo, sobre a cultura. A litania dos infinitos direitos, o que com justeza se poderia chamar a obrigação aos direitos, a visão conspiratória do mundo que defende os pequenos talentos egotistas e lhes explica a própria nulidade disfarçada de produto de conjuras, perpetuar-se-ão numa linguagem a que alguém perfeitamente deu o nome de «baixo latim de legionários derrotados», espécie de ersatz daquela antiga comunhão com as «realidades inefáveis e desconhecidas», agora tristemente dizíveis e tangíveis. E então isso — essa cadeia de reflexos de um filantrópico e elitista ódio ao mundo, turvo, meio solene, despeitado, raivoso de poder—será, como já quase é, a última matéria restante dos sonhos solares do Dr. Cunhal. Provavelmente será também a mais durável. E ninguém diga que está bem. O baixo latim está em todo o lado.
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*O Primeiro de Janeiro, 29 de Julho de 1990