quarta-feira, 30 de novembro de 2005

Veja o Episódio 5 do novo folhetim BD


Uma BD inédita da autoria de João Palla e Carmo.
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Uma homenagem a Victor Palla em seis episódios.
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Veja e leia em baixo o quinto episódio.

Episódio 5

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terça-feira, 29 de novembro de 2005

Veja o Episódio 4 do novo folhetim BD


Uma BD inédita da autoria de João Palla e Carmo.
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Uma homenagem a Victor Palla em seis episódios.
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Veja e leia em baixo o quarto episódio.

Episódio 4

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segunda-feira, 28 de novembro de 2005

Veja o Episódio 3 do novo folhetim BD

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Uma BD inédita da autoria de João Palla e Carmo.
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Uma homenagem a Victor Palla em seis episódios.
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Veja e leia em baixo o terceiro episódio.

Episódio 3

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Faz hoje dez anos

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Universidade de Utreque, às 12.45 h.

domingo, 27 de novembro de 2005

Veja o Episódio 2 do novo folhetim BD


Uma BD inédita da autoria de João Palla e Carmo.
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Uma homenagem a Victor Palla em seis episódios.
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Veja e leia em baixo o segundo episódio.

Episódio 2

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sábado, 26 de novembro de 2005

Veja o Episódio 1 do novo folhetim BD


Uma BD inédita da autoria de João Palla e Carmo.
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Uma homenagem a Victor Palla em seis episódios.
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Veja e leia em baixo o primeiro episódio.

Episódio 1

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Vem aí um novo folhetim em BD


Uma BD inédita da autoria de João Palla e Carmo
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Uma aventura em seis episódios em torno da ecléctica arquitectura dos anos cinquenta.
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Uma homenagem a Victor Palla.

sexta-feira, 25 de novembro de 2005

Heimat

Cruzo-me com uma fila de carros parados, enquanto subo de táxi a Conde Redondo. Uma sucessão de rostos tristes, severos, irremediavelmente imobilizados.

A generosidade das marés

Sempre que os média aproveitam o dia internacional de qualquer coisa para uma súbita inundação temática (que ficará sob silêncio o resto do ano), cria-se, quase necessariamente, uma monstruosidade.
O rosto terrível desse monstro anunciado ficará a pairar na expiação colectiva durante alguns dias e, uma semana depois, há-de diluir-se no mais sigiloso, indiferente e, às vezes, voluntário esquecimento.
Nada que admire a ingenuidade reinante. Até porque é essa a regra com que nos inventamos, ficcionalmente, no tempo: marés invisíveis, ondas perfeitas, oceanos cruéis.

Secreta defesa

Interessante, no mínimo, o modo defensivo como o governo sente necessidade de responder a um artigo de opinião (neste caso de José Pacheco Pereira - Público de ontem, sem links).
No termo do comunicado, o ministro dos negócios estrangeiros, Freitas do Amaral, remata de modo algo metafísico:
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"(...) o problema não consiste apenas - nem sequer principalmente - na oposição França/Inglaterra, nem é um problema PAC/cheque britânico. É uma questão muito mais funda, mais vasta e mais complexa. A seu tempo isso poderá ser pormenorizadamente explicado e debatido."

Folhetim

O Trevo de Abel – (último) Episódio 42
Terceira Parte: O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
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A escada rolante da estação de Baixa-Chiado é imensa, branca e bela. Sai-se à superfície como se se tivesse saído de uma visão luminosa do inferno de Dante. Segue-se a Brasileira, a estátua do poeta, o Camões em obras e depois a mais autêntica via de Lisboa, a Rua do Alecrim. Por ela, o destino da cidade se une ao Tejo, o que geralmente é coisa ofuscada, diluída, que se encontra velada pela suave roupagem das colinas da cidade. Enquanto desce a rua, Abel relembra, por secretos augúrios da memória, a cor avermelhada dos céus da noite. A aurora boreal do longínquo dia em que nasceu, como lho contara a avó Maria Alba, e os outros dois céus inauditos que o fizeram ser, por sortilégio, primeiro Caim e agora Abel.
Febril, nervoso e quase já esquecido da súbita reminiscência, Abel quedou-se subitamente imóvel, por instantes, nesse momento preciso em que acabava de descer o plano inclinado e luminoso Rua do Alecrim. E agora? Pela frente, apenas o Tejo e nada mais. Nada mais me resta. Tudo o mais é desaire e esquecimento, talvez assombro. Abel sentiu então uma desmedida vontade de juntar o seu destino às águas do Tejo e nelas desaparecer, cruzando o seu caminho com as tentações de Lisboa, de Santo António e dos seus fados de vaticínio irreal. Mas os passos venceram a contenda e Abel voltou a andar. Como um autómato, desceu a rua com leveza até quase se abeirar do Cais do Sodré. Povoado por sinais contrários, mergulhado em desejo e terror, Abel tanto se sentia acossado como herói. Por segundos, voltou a encarar o panorama, os vultos a silhueta de bronze do Duque da Terceira e, para além do rico empedrado da praça, o próprio rio, as suas margens, a maresia, a incerta névoa fluvial.
Abel terá percebido nesses segundos o que o poeta quereria dizer, ao contemplar dali, sem passado nem futuro, toda esta urbe esfumada num autêntico desejo absurdo de sofrer. Confrontado com tais sombras e bulícios interiores, Abel contornou os quiosques dos jornais, passou pela agência de viagens, atravessou a avenida e acercou-se da estação. Que fazer? Abel encolheu os ombros e, sem medir rumo e leme, acabou por se sentar na última das esplanadas ribeirinhas onde o destino, sempre ínvio, ainda permite que se visione o que resta da antiga e nostálgica Doca de Abrigo.
Daqui já partiram os vapores ditos lisbonenses e, na minúscula doca, recolhiam-se, em tempos que já lá vão, embarcações de pesca de mastro branco e altíssimo, ateadas por cordas, correntes de metal e deslumbradas memórias. De todo esse espectáculo, Abel apenas descortinou, ao longe, sobre o pontão, um par de namorados que continua a abraçar-se sob a ligeira neblina que envolve, ao longe, a Lisnave, os braços dos guindastes, o arcaboiço metálico e escuro das ancestrais naves de sonho. Depois, chegou a imperial bem tirada e, ao mesmo tempo, aportava na gare marítima um cacilheiro carregado de pneus cor-de-laranja que mais pareciam globos armilares do antigo império. E foi nesse momento, após um último olhar para a outra margem, que Abel sentiu uma desmesurada necessidade de falar, de contar, de se expor fosse a quem fosse.
Na mesa ao lado, estava já sentado o desconhecido senhor Zorba, entretido que estava com o seu silêncio e com a textura negra da Guiness. A conversa iniciar-se-ia pouco depois e foi então que Abel sentenciou a sua primeira frase. A tal frase. Disse Abel: “Não tenha medo, mas o que está à sua frente é um homem que já viveu várias vidas e que agora se transforma em luz”. Zorba intrigou-se, mas ouviu; percorreu com Abel o percurso da 24 de Julho até às Janelas Verdes. Aí apareceu Isabel, depois a Júlia e a Dona Joana já em Santos-o-Velho. O resto é conhecido, pois o grupo foi-se alargando e, com ele, a própria história; surgiu o senhor Gouveia na D. Carlos e, perto da Rua Nova de S. Bento, todos os restantes: o senhor deputado, o senhor professor de comunicação - o mais sisudo e calado - Lopamudra de Vidarbha, Chico e Sara de Belém e o sr. Brihadratha. O sapateiro Palmeirim, como todos se lembram, só se juntaria ao grupo na Rua da Boavista, perto do Conde Barão.

- E agora aqui estamos, já o sol nasceu e a noite passou. Desde o meio da tarde de ontem que venho contando toda esta longa história, e confesso que me sinto agora mais aliviado, menos misterioso. Ainda ontem, a esta hora, estava a entrar no fatídico duche e cantava, cantava, miraculosamente cantava. Era como se a voz de Adão me tivesse de novo visitado. Eis-me, portanto, aqui, entregue a vós, sem mais nada para dizer. Eu que sou Adão, Caim e Abel, ao mesmo tempo. E agora? Gritou Isabel, gritou Zorba, gritou Lopamudra de Vidarbha. Não tenham medo, o que está à vossa frente é um homem que se transforma em luz. A frase, a tal frase. E o senhor Gouveia apontou com fúria para baixo e disse: Venham, venham por aqui, vamos para os baixos do Jardim de S. Pedro de Alcântara; lá... sempre estamos mais recatados, escondidos. E depois... logo se vê, haveremos de decidir o que fazer. E o grupo desceu pela Rua de S. Pedro, entrou no jardim e aí viu nascer a manhã.
E o sol levantou-se dos lados do Castelo, da Graça, de S. José e nós os treze, entre canteiros, passeando pelos bustos de Ulisses, Vénus e Minerva, evocando a idade de ouro, a bonança do vazio e a terrível aflição do momento. Até que, por volta das onze da manhã apareceram helicópteros, viaturas, buzinas, sirenes, comandos; o cerco era total. Em cima, o jardim foi praticamente fechado e Abel, diante de tal aparato, recuou até ao tronco do imenso limoeiro, sobre o abismo, encostado a nada, ao fim. Os doze ficaram um pouco mais atrás, encostados à cerca de metal, aflitos, brancos de rosto, impávidos, esperando a voz, o alento, o sinal decisivo de Abel. E o nosso homem gritou, gritou, gritou muito alto para que o ouvissem - Tenho uma granada comigo e estas doze pessoas são minhas reféns. Tudo o que quero é... esperar aqui neste sítio, até ao pôr-do-sol. Depois disso entrego-me, desde que me deixem contar tudo o que tenho a dizer. - Ao crepúsculo? Mas o homem está maluco. O que vamos fazer, comissário? Tenham calma, não vêem que ele tem reféns e está armado? Nada de avançar, para já, com os comandos. Vamos esperar até ao pôr-do-sol, vigilantes, até porque esta espera pode não agoirar nada de bom. À volta, por toda a Lisboa, uma multidão imensa rodeou o local e ouve quem gritasse em coro: canta, canta, canta Adão! Mas o silêncio de Abel manteve-se. Perdurou.
Passaram algumas horas e os doze mantinham-se aquietos, hirtos, dominados por uma qualquer grandeza sem nome. Por cima, as hostes amotinavam-se, iam-se agitando a pouco e pouco e, apoiados às grades, Luísa, Leonor, Arlete, Dona Olga, o médico, Porfírio, algumas russas de Porto Brandão e gente e mais gente sem fim contradiziam-se nas implorações, impropérios e lisonjas. Um caudal de gritos, alaridos, brados e ecos ressoando entre as fileiras da polícia e o cheiro a limão que envolvia a aparente calma de Abel. Nos telhados e sótãos dos prédios vizinhos, sobre estruturas improvisadas, as televisões transmitiam já em directo todo o folclore, a espera, o semblante enigmático e longínquo de Abel. A tarde ia caindo, lenta, preguiçosa e, com ela, aumentava a expectativa, o temor, o tremor, a grande questão afinal: porquê o crepúsculo? Perto do pôr-do-sol, o comissário falou com o ministro e tudo foi decidido acerca da manobra. Os comandos avançariam por baixo e igualmente pelo ar, de helicóptero, tentando assim salvar os reféns e, ao mesmo tempo, não dando oportunidade a Abel para deflagrar a granada ou qualquer outro explosivo. A multidão estava ao rubro, a excitação polvilhara a capital, o jardim começava a escurecer.
E foi quando Abel ouviu ao longe o ruído dos helicópteros e o vasculhar das sebes no acesso ao jardim que, sem mais, correu subitamente para o meio dos doze e disse: abram um círculo à minha volta, protejam-me. A cidade estava em suspenso, parecia calada; as sombras dos helicópteros a percorrerem telhados, uivos de cão ao longe; as cordas lançadas às grades, os comandos escalando por baixo do Jardim de S. Pedro de Alcântara. Quase ao mesmo tempo, a polícia de choque interveio à bastonada para evitar a histeria colectiva que se formara. Um atrito, uma espessa nuvem de gestos, sonidos de violoncelo, corpos por terra, uivos de cão ao longe e Abel entre os doze, de braços abertos, rindo muito alto, unindo os pés e lembrando-se como nunca de Alonso, o pirotécnico, o nómada fogueteiro de Trujillo.
De repente, mal caiu o sol, Abel ficou com a pele toda macerada, em tons lilases, depois parecia vermelha, mais do que corada, quase em fogo. Passados alguns segundos, já os comandos saltavam as grades e os helicópteros apareciam sobre a Rua de S. Pedro, de súbito, sem que nada o fizesse esperar, Abel ficou incandescente como uma pira de lenho a arder e o seu corpo, agora longilíneo, afunilava-se como se o tronco, os membros e a cabeça se tornassem, de repente, numa vara muito alta em cor e em forma de fogo. E mais se parecendo com um gigante fio-de-prumo de brasas virado para as nuvens, Abel subiu pelos céus de Lisboa como se fosse o pau, o simples pau de um magnífico foguete e, ao atingir a calote ainda azulada da esfera pelos últimos raios de sol; ao atingir a curvatura celeste reflectida nas águas avermelhadas do grande Tejo; ao atingir de par a par o arco perfeito da atmosfera das Tágides, este foguete que fora Adão, Caim e Abel transformou-se num colossal fogo de artifício que fez regressar Lisboa à lembrança da sua última aurora boreal. E Zorba, espantado, quase destruído, sentiu uma estranha irritação nesse seu sinal paterno em forma de serpente com duas cabeças. O pasmo era total e, por cima, expandia-se o clamor, a beleza da frágua vermelha; seguiram-se explosões e mais explosões na indolência dos ares, dos eflúvios de lume, luz e brilho que se expandiam em forma de trevo de três fogos. Foi assim durante mais de meia hora.
Foi assim, em Lisboa, num dia de fortunas e luminárias.

quinta-feira, 24 de novembro de 2005

Da nossa poesia mais actual

A poesia portuguesa dos últimos anos, em vez de exceder-se para tentar referenciar o mundo (ao constituir-se como diamante das 'grandes narrativas' tradicionais), passou antes a tentar encontrar formas de sentido mínimas: estilhaços recortados do dia a dia com um realismo próprio dos primeiros tempos do cinematógrafo, onde o fundamental foi, ao mesmo tempo, perceber e fazer agigantar os actos minúsculos do quotidiano que subitamente se libertavam da hipecodificação secular do olhar. Essa épica original do cinematógrafo corresponde, nos nossos dias (e no caso da poesia), a um perfil quase subterrâneo, fugaz e apenas iluminado pelo sigilo. Um recato que passa despercebido no fluxo ininterrupto de imagens globais, mas que, às vezes, o sinaliza de modo abismado e mesmo grandioso.

Folhetim

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Termina amanhã a publicação do folhetim O Trevo de Abel, baseado no meu romance homónimo de 2001.

Folhetim

O Trevo de Abel - Episódio 41
Terceira Parte: O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
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Passei uma noite péssima. Leonor, felizmente, decidiu tomar comprimidos para dormir e não deu por nada. De manhã, levantei-me mais tarde do que o normal e fui lentamente, a sós, para o duche como que a imaginar saídas possíveis para isto tudo. Só me vinha à ideia o mordomo catalão, uma qualquer fuga aparatosa e sempre, sempre... o diabo do Porfírio. O cerco à minha volta apertava-se. Pensei em fazer a mala, telefonar para Barcelona, desaparecer.
Subitamente, sem razão nenhuma para tal, enchi o peito e vi-me a cantar muito alto, sob os auspícios da água quente do duche: “Leonor Luísa Amor/ Pelo vosso coração/ Canta a minha dor/As rosas desta visão”. Maravilha! Quase rejubilei. Vinda do nada, talvez do gravitas da alma, era outra vez a voz de Adão, potente e bela, ressurgida como que por milagre. Que maravilha! Era como se as cordas vocais tivessem sabiamente regressado ao seu paraíso primeiro e inicial. E... porquê agora?
Entretanto, no rés-do-chão, Leonor abriu lentamente a porta e subiu alguns degraus. Não foi preciso mais para ficar apavorada diante daquela voz televisiva, clara e nítida, que conhecia como ninguém. Parou ainda no cimo das escadas e, já trémula de palavra e espírito, ainda teve forças para gritar - Abel, estás em casa? Sem resposta, Leonor desceu a escadaria rapidamente, em pânico, veloz, com a boca presa, os olhos muito abertos, a respiração quase em suspenso, parada, irada. Abel, nu em flor, apercebendo-se do tremendo descuido, do repentino dom, do indomável susto, desceu até ao hall do primeiro andar e ainda gritou - Querida, estou aqui, o que é, o que se passa? Nessa altura, já Leonor tinha batido com a porta e fugido, fugido.
Sem tempo sequer para pensar, vesti-me num ápice e - continua Abel - segui pela esquina de cima. Passei pelo ‘Ano Zero’, a loja de cerâmica da vizinhança, e meti-me depois no táxi, uns metros mais à frente. Contei o dinheiro, acelerei, evitei a praça e, em poucos minutos, dei comigo em plena estrada de Pero Pinheiro. Atravessei então bermas de eucaliptos, nuvens baixas e carregadas e soube, por fim, que era este o termo da minha fase de Belas. Agora, já não podia voltar para trás. Depois do cantor, o chulo e agora o pacóvio, o pateta alegre! Ri-me de tanto fantasma, de tanta história insuportável, de mim mesmo, juro. Acelerei e voltei a cantar muito alto, alto, alto... e senti, a dada altura, que estava a ensandecer ou a tresloucar-me. Segui pela CREL, cigarro atrás de cigarro, lento, concentrado. Até que decidi o que fazer. Eureca.
Leonor correu até à praça, entrou no Centro de saúde e pediu para falar com o médico. O médico? Mas... o senhor doutor agora está muito ocupado, é quase hora de almoço, é uma hora muito má! Por favor, diga-lhe que é a Leonor, é muito urgente. É coisa de vida ou de morte, a sério... é isso mesmo, de vida ou morte. O médico entretanto apareceu com a bata branca a envolver-lhe o espanto, a ousadia do momento, a dúvida. Mas o que é que se passa, Leonor? Senhor doutor, ontem o senhor, afinal, tinha toda a razão. O morto-vivo está mesmo na minha casa! Ouvi-o a cantar muito alto e garanto que era ele, sem engano, sem hipótese alguma de me enganar. É que eu segui, durante anos e anos, o programa dele e conheço-lhe a voz, juro sr. Doutor, conheço-lhe a voz como conheço as minhas mãos. Mas não é apenas isso. É também o corpo... primeiro era aquela articulação do cotovelo, o osso, a forma do braço, depois as coxas ao andar, o pescoço, mas não só. Sabe, é que ele, já lho tinha dito uma vez, foi meu namorado, há muitos, muitos anos! Leonor fala, balbucia, hesita, parece tremer. Veja lá Leonor, está tão nervosa! Mas há mais, repare sr. Doutor, aquelas costuras atrás das orelhas devem ter sido plásticas que ele fez... para ocultar a identidade ou coisa do género e nunca por causa de qualquer acidente que tenha sofrido. Sempre desconfiei disso porque, pelo menos umas duas vezes, ele me trocou as estradas e até os sítios onde tudo se terá passado. Ó sr. Doutor, desculpe-me, deixe-me falar, eu sei que não estou nada bem, mas há uma última coisa que quero dizer. Aquele nome não existe no Arquivo, ou antes, deverá corresponder a alguém que já… morreu. Em vez de ir à escola, hoje de manhã, fui aos Arquivos Centrais e confirmei isso. É verdade, sr. Doutor, tem toda a razão, eu devia ter desafiado o homem cara à cara... mas reconheço que fiquei apavorada, tive medo; não estava à espera de ouvir aquela voz de defunto a cantar. Parecia uma coincidência do diabo, vou ao arquivo, falto à escola e reencontro um morto! Foi demais para mim e foi por isso que tive que vir até aqui a correr, desculpe sr. Doutor...
O médico agarrou então no pulso de Leonor e disse com voz muito decidida - Venha, vamos daí, vamos lá à sua casa, depressa. Subiram os dois pela Cândido Reis, entraram no hall, depois na cozinha; examinaram a sala, os quartos, passaram pelas águas-furtadas e ninguém, nada, vazio total. No entanto, o ar de casa subitamente abandonada falava por si: marcas de duche deixado a meio, roupa no chão, flocos e notas espalhados na bancada da cozinha, o armário aberto com peças de roupa a menos. Não mexa, não mexa em nada, vê-se mesmo que o tipo fugiu a correr; aqui há realmente marosca e da grossa! Dê cá o telefone, dê cá. Eu falo, eu falo, esteja quieta e tome mas é este comprimido, vá lá. Está? Está? É da polícia? olhe, venha num instante à Cândido dos Reis, 68, sim, sim, aqui em Belas. É melhor virem com toda a velocidade, porque a história parece apontar para coisa perigosa. Muito obrigado, até já. Em pouco tempo, duas viaturas da PSP estacionaram em frente à casa cor de cereja e, na hora que se seguiu, Leonor depôs o que pôde, o que sabia e do que, já há algum tempo, desconfiava.
Minutos depois, Dona Olga, espreitando de frente e no fundo dos olhos do médico, desabafava: Mas isto... é o verdadeiro diabo entre nós! Punha e voltava a pôr as mãos à volta da cabeça, suava e repetia, repetia - O perigo que a nossa Leonorzinha deve ter passado! - É verdade, é verdade. Seja como for, ela está agora ali na Casa de saúde a compor-se com uns calmantes e eu vou lá passar outra vez daqui a um bocado. Aproveitei para vir aqui à esplanada, porque vi, através dos vidros, que estava sozinha... posso tratá-la por tu? Só entre nós, claro. Claro. Então, diz-me... a tua mulher continua com as febres? E o médico, mexendo o café, abrindo os dedos cheios de alianças, a sorrir com ar adolescente e malandro, circunspecto... a fazer-se à resposta com alguma avidez demorada, lenta - Está mas é com febres de malta! Não, era tudo treta minha. Sabe, fiz com que ela, ontem, não saísse de casa; há lá umas pinturas a fazer e isso dava-me mais tempo para ir buscar uma ou outra tangerinazinha ao seu quintal, já está a perceber? - Seu madraço, seu brejeiro, como te atreves! Vou-me já calar, Olga, porque estou a ver a tua irmã do outro lado da Praça. - Pois é, e vem para cá, já deve ter sabido tudo acerca da Leonorzinha. - Mas antes de me calar, queria dizer-te ainda isto: eu agora não quero outra coisa senão os gomos sumarentos das tangerinas, entendes? E Olga, efusiva, exultante, a ranger entre dentes - Seu madraço, seu castigador, se não fosse ali a minha mana, dava-te com a mala nesse sítio. Quem te vê e quem te viu! Cuidado, olha que em Belas sabe-se tudo, tudo, e onde é que andará aquele bandido do Abel?
O que ouvi no noticiário a meio da tarde fez-me, de imediato, abandonar o carro numa colina isolada a norte de Alverca. De seguida, contornei a colina, segui a pé pela parte debaixo da auto-estrada a rebentar de trânsito e, depois, sem qualquer norte, sem direcção ou rumo, corri entre estradas velhas, atalhos, barracas, prédios de quinze andares no meio da lama; acampamentos de ciganos, quiosques, armazéns clandestinos, gráficas; oficinas de recauchutagem de pneus, casas saloias, tascas cheias de ferroviários, viadutos e alguns passeios esventrados. Na feira do relógio, comprei um casaco e novos óculos escuros. Deambulei pela Avenida do Brasil, pelos lagos do Campo Grande e só me vinha à mente os olhos de Sara, os gestos de Leonor; Luísa a saltar as grandes ondas de Porto Covo. Advinham-me imagens coloridas das ruas de Banguecoque, da tromba de água do Índico, das casas brancas de Djibouti; via diante de mim as meninas de Porto Brandão, os aplausos sem fim do ‘Tostões e Biliões’, a minha desconhecida filha, ou os olhos ávidos da Dona Olga; revia o Porfírio gigante e cheio de tatuagens, o Maremagnum catalão, o mordomo; enfim, tudo aquilo era eu, perdido de sentidos, na Estrela ou no Jardim do Paço do Lumiar a contemplar um céu avermelhado e sem qualquer explicação. Senti-me tonto, fraco, frágil e sem forças. Sentei-me num dos bancos de jardim do Campo Grande e pensei - Já chega! Já chega. Chega de fugas, de fingimentos, de duplos. Chega de desventuras. Serei assim tão anormal? Não será possível contar toda esta minha história a alguém e ser ouvido? Poderei alguma vez vir a ser perdoado? Mas perdoado pelo quê?
A todo o momento, a polícia pode cercar-me, levar-me, ou interrogar-me. Antes isso. Estou aqui no Campo Grande, a sós, livre de querer e de ser, mas, seja como for, à vossa disposição, de todos. Pensei. E pela cabeça passava-me tudo, tudo: era o funeral da Estrela, os cartazes ostentando o meu rosto de Adão hilariante, o antigo fadista dos seguros, a Arlete a dançar à noite nos jardins de Belém; as belas putas do Pireu, o aeroporto de Dubai, as águas-furtadas de Barcelona e Sara e eu num sonho de Verão, em Cascais. Foi então que, sem medo de nada, de rigorosamente nada, me meti no metro. Fosse o que fosse. Circulei, estação após estação, até ao Marquês de Pombal e daí até à Baixa-Chiado. Talvez a secreta notoriedade do nome do Chiado, boémio de gema, homem de perdição, me tivesse atraído. Mas a quê?

quarta-feira, 23 de novembro de 2005

Realeza cultural - 3

O estado filantropo, razoavelmente remediado e sempre pronto a insinuar-se perante o magistério do que se designa por "cultura", torna-se amiúde num corpo narcísico que evoca e actualiza certas formas arcaicas de auto-sacralização. Noutros tempos, era através do universo das indulgências que os superiores representantes do ‘Altíssimo’ na terra se encarregavam de mediar o perdão do mal, para além, é evidente, de edificarem templos e acomodações luxuosas (os museus e o mercado das ‘indústrias da dignificação contemporânea’ estavam ainda para vir).

Realeza cultural - 2

É evidente que Marshall McLuhan estava a brincar quando afirmou: “A publicidade é a maior forma de arte do século XX”.

Realeza cultural - 1

Através de interessadas e inalienáveis subvenções ao mercado da cultura, grande parte dos representantes do altar do estado simula uma espécie de dignidade salvífica e tenta, ao mesmo tempo, publicitar a sua alegada e humilde generosidade perante um público sequioso de mediações tutelares algo perdidas.

Delírios da Ota - 2

Pois é: o meu amigo MacGuffin já tinha associado "Otário" a partidário da Ota. Mas eu vou um pouco mais longe e baptizo todos aqueles que imaginaram, durante décadas, o sumptuoso conceito. Baptizo-os, naturalmente, com o nome generalista de "Idiotas". A língua portuguesa tem sempre segredos bem guardados para as ocasiões.
O Trevo de Abel - Episódio 40
Terceira Parte: O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
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Afinal o médico, obsequioso e afável, sempre acabou por regressar à tertúlia. É quase meio-dia e meia e Dona Olga, arranjadíssima com o seu vison habitual, sentou-se agora mesmo à mesa do Café Parque. Então a sua esposa hoje não vem? Sabe, está engripada, nada de importante. Olhe que pena que eu tenho! Estimo as melhoras. Muito obrigado, muito obrigado. Então e o jornal, hoje, não o traz? Veja lá, como fiz as palavras cruzadas no intervalo da manhã, acabei por deitá-lo fora. A propósito, li ao de leve a notícia do morto-vivo e a senhora... ouviu falar? Sim, sim, ontem na televisão, o chefe da polícia, ou lá o que era o senhor, falou muito bem. Mas sabe uma coisa, senhor doutor, estas coisas arrepiam-me. Deixam-me com um medo enorme. O que eu acho, o médico a puxar as mangas do casaco e chegando-se à frente, o que eu acho, sabe, é que meio mundo é louco. A gente ainda disfarça, porque temos cá a nossa educação, as nossas coisinhas, mas este mundo anda fora de si, acredite que é verdade. Ó senhor doutor, não me diga uma coisa dessas!
E quando o médico, taciturno e melancólico, disse o que disse com palavras a rolar de lentidão e algum ardor, desencadeando aquele movimento desencontrado de íris, sobrancelhas e pupilas, logo Dona Olga sentiu uma íntima esperança de que alguma coisa, um dia, pudesse ainda vir a acontecer. Mas... senhor doutor, agora só aqui entre nós, acha mesmo que eu e o senhor doutor, por exemplo, somos... maluquinhos que disfarçamos que não somos? Não é isso Dona Olga, não é nada isso, o médico a rir-se bastante alto e retirando de uma assentada os cotovelos de cima da mesa, - olhe lá Dona Olga, nós estamos bem, damo-nos bem e até nem temos motivos de queixa, mas fora aqui dos nossos hábitos e da nossa rotina, digo-lhe mesmo, esse mundo tornou-se numa coisa diabólica. Pois é, Dona Olga de olhos abertos a repetir, pois é, pois é. E hoje o raio da mulher da fruta nunca mais me aparece aqui! Se quiser, sr. Doutor, tenho tangerinas muito boas no meu quintal. Está bem, está bem. Depende de como as coisas se encaminhem em minha casa...está a ver... tenho que receitar umas pomadas, uns tratamentos à minha mulher e, depois, se ela estiver melhor, passo ainda pelo Centro de Saúde e, lá mais para ao fim da tarde, posso ir lá então colher umas tangerinazinhas. Dona Olga sentiu um calafrio, ao longo da coluna vertebral, dos quadris, das orelhas e tremeu como varas verdes, entre os artelhos e as finas rugas da testa, completamente pálida e sedenta de mão de homem. Há tanto ano! Dona Olga estava perdida, corada e afónica, no momento em que eu e a Leonor nos sentámos.
Então, senhora professora, como vão indo as suas aulinhas? Ah, senhor doutor, os meninos, hoje em dia, são todos uns malcriados. Olhe, olhe, estávamos agora mesmo aqui a falar nisso. Dona Olga, já a sorrir, bem rosada e perfumada de olhar, dizendo que sim com a cabeça. Pois é, pois é, naturalmente é preciso ter uma grande paciência; e como eu estimo, por isso mesmo, aqui a nossa Leonorzinha! Eu, sisudo, caladinho, já a mexer o meu chá de limão e a pensar nos templos do interior da Tailândia. E com os taxistas em Lisboa é o mesmo, continua Dona Olga. Andam sempre a correr, parecem uns malucos, como o sr. Doutor dizia, há pouco, meio mundo anda louco, mas louco mesmo a sério! Excepção feita aqui ao senhor Abel, claro está. E o médico levanta o sobrolho, olha-me de baixo para cima e pergunta com ar agoirento e aziago, então mas o meu amigo não teve um acidente, uma vez? Eu? Ah sim, e eu a tentar fixar de lado os olhos no rosto Leonor. Teria ela falado ali das minhas costuras atrás das orelhas, mas que gente esta! O raio do médico, se calhar, ainda está mas é remoído com aquela história do "festo". Eu? Acidente, Eu? Sim, sim, aqui a Leonor contou que passou muito mal, há uns anos, e que até teve que fazer umas plásticas. Ah, sim, sim, isso foi ali na auto-estrada, entre... Saragoça e Barcelona. Sabe, coisa de jovem, estava nos meus vinte e tal anos. Acontece a todos. Dona Olga repetiu, sim, sim acontece a todos, mas coitado, que coisa! E isso custou-lhe muito? Ó Dona Olga, nem imagine! E o médico com o sobrolho levantado, com cara de coronel frustrado, a querer tramar-me com outra pergunta ainda pior que esta.
E então onde é que se fez operar, em que hospital? Olhe, sr, Doutor nem eu já me lembro bem, foi há tanto tempo! Então não foi em Saragoça? Avançou Leonor, ingénua, adjuvando a doméstica intriga do médico. Sim, sim, claro, foi aí mesmo; é, foi em Saragoça, fica em Aragão, conhecem? Ai, conheço tão mal a Espanha, disse e suspirou Dona Olga na direcção do empregado que era, todo ele, uma bandeja arqueada de cafés, garrafas e uns brindes do dia. São caixinhas de marmelada que trago para os senhores, porque hoje é o vigésimo quinto aniversário da casa! Foi nessa altura que chegou a irmã da Dona Olga. Sentou-se, trocou a perna e disse logo na direcção do médico: Olhe, sr. Doutor, o jardineiro disse-me que a mulher da fruta está com papeira e que, portanto, não pode vir hoje. Papeira? Papeira, naquela idade? Há com cada uma! Olha que esta! Isto hoje mesmo é dia de coisas do Entroncamento! Só faltava mesmo é que o morto-vivo estivesse para aí escondido numas águas-furtadas de Belas. O quê? Águas-furtadas, o quê? Disse Leonor. Bom, bom, isso é maneira de dizer. Sabe, durante a guerra, os espiões escondiam-se, ou nos sótãos, ou nas caves. Dona Lola, com o seu ar vidrado, pedrado, ilimitadamente seco de voragens: Ai era? Era mesmo assim? É como lhe digo. E eu, a acabar o chá de limão, e o nervoso miudinho a subir-me pelas canelas até aos joelhos e daí à barriga, ao peito, entrando-me pela cabeça que parece já oca, sem conteúdos, vazia. Subitamente vazia.
Mas o senhor Abel, hoje, está muito pálido, continuou o médico. E de imediato Leonor ergueu a cabeça e virou-se para mim, aparentemente preocupada: Estás-te a sentir bem? E, sem mais, se pôs a contar que eu tinha tido dores no peito, outro dia, quando acabava de almoçar, trá la lá, trá la lá, trá la lá, sempre a falar, não é capaz de se calar e não há nada que lhe ocupe a cabeça que não lhe povoe logo, a correr, os lábios, os gestos, a fala, o raio que a parta. Salvo seja. Não, não, sinto-me mesmo bem, fino. E acho que está quase na minha hora; é que hoje o meu turno começa à uma hora da tarde, porque o senhor Domingos foi ao curandeiro. Então... o que é que o homem tem? Perguntou Dona Olga para a mesa. Ficou tudo a olhar para o vago, uns para os outros, ou para ninguém que fosse; fez-se silêncio, demora, delonga. A atrapalhação com nome próprio. E foi a irmã que acabou por tomar a palavra, com ar secreto, balbuciante, como se chamasse um gato do outro lado da rua. Chega-se à frente, toca com os túrgidos na mesa e avança em máximo sigilo: Ó mana, parece que tem um mal no sítio... dos homens. Dona Olga tapou a boca com a mão carregada de anéis, enquanto eu sorria e Leonor olhava para o chão. Quando me levantei, o médico ainda disparou para o ar: Ó senhor Abel tenha cuidado no serviço que isto hoje parece que está tudo assombrado. Dona Olga riu muito alto, a julgar que era piada. De costas para o médico, sem ligar à desdita, virei-me para Leonor, já atónita, e limitei-me a repetir - Às 6 h, querida, está bem? Então, até logo. Leonor despediu-se de mim com um sorriso leve, improvisado, talvez mesmo distante. E porquê?
Ao chegar ao táxi, abri o rádio e, nas notícias, falava-se já em exumação. Era isso que eu temia. O que iriam eles encontrar? A questão tinha saltado fronteiras e a polícia tinha agora já em seu poder um depoimento do mágico Muhammad Mubarak, para além de andar no encalce de fontes mais consistentes. Entretanto, desse ou não desse, a polícia ia distribuir por todo o país o rosto de Ulisses Caim dos Santos Trigo, meliante, assassino e perigoso elemento que, porventura, poderia ainda estar vivo e a monte, constituindo, portanto, uma verdadeira ameaça para a paz pública. No final das notícias, o chefe Madeira, entrevistado, repetia: a exumação de ambos os corpos é uma medida normal, quando há indícios de crime, ou quando se regista uma ausência de indícios e provas necessários à investigação de um crime.
A polícia começa agora a tratar o que era uma simples anedota num caso realmente sério. Nesse dia, viajei até Campolide. Esperei, ao longo de toda a tarde, a uns bons trinta metros da casa de Porfírio. Observei, tomei notas, esperei. Perto das 6 da tarde revi o gigante; ia um pouco coxo e mais enfatuado do que o normal; entrou rapidamente em casa sem me dar tempo fosse para o que fosse. Fiquei indeciso sobre o que fazer, nervoso, escondido atrás dos meus óculos escuros, com algum medo à mistura. Foi nessa altura que olhei para o relógio e dei comigo a gritar: Mas já são 6 horas e eu esqueci-me de ir buscar a Leonor! Corri para Belas e entrei em casa com os bofes na boca. Que tinha tido um serviço para Lisboa, que não tinha podido parar para telefonar. Mas que já não saía hoje, etc. etc.
Leonor olhou então para mim com um aparente desdém, sorriu depois e disse com voz serena, tranquila - Não há problema nenhum com isso! Percebi logo que devia ter sido uma coisa dessas. Pareces tão nervoso nos últimos dias! Eu sosseguei, mas logo estremeci quando Leonor me disse que a Luísa viria amanhã jantar cá a casa. Ah é? E porquê? Para retribuir? Mas o jantar que ela ia dar... ainda não aconteceu, pois não? Não, mas, no outro dia, foi ela quem me pagou o jantar. Mas o que é que tu tens? Fazes com cada pergunta mais estranha e absurda! Parece que não te conheço! Qual é agora o problema de convidar a Luísa, uma minha amiga, a vir cá comer a casa!? Começo a não gostar nada do ambiente que tu andas aqui a criar, sabes eu...

terça-feira, 22 de novembro de 2005

O delírio da Ota

A campanha de marketing do governo tem acentuado o facto de o estado ir apenas investir um quinhão muito pequeno no projecto. Começa agora a ver-se que não é verdade. Para já, parece que, nos próximos doze anos, os frequentadores da Portela terão que pagar uma taxa de 7 a 8 Euros por voo. Dá vontade de tudo fazer para passar a voar apenas a partir de Madrid, Badajoz, Faro, Sevilha, seja de onde for.

Presidenciais

Há figuras assim: exilam o olhar dos outros. Não são propriamente Acácios; mas são as efígies que os Acácios adulam e de que necessitam para respirar e sobreviver (ver mais no Idade Média).

Folhetim

O Trevo de Abel - Episódio 39
Terceira Parte: O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
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Bom, e para terminar o telejornal com algum suspense - a pivot ri-se com ar atormentado - deixamos aos senhores telespectadores uma história verdadeiramente admirável. Este senhor que vêem nas nossas imagens é o egípcio Muhammad Mubarak, mágico e prestidigitador, que, após alguns espectáculos no Cairo, deu uma entrevista ao Sunday Egipt onde disse que, em pleno planeta Terra, existia um homem que já tinha morrido uma vez e que, apesar disso, ainda vivia. Mas o mais interessante, segundo Mubarak, não confundir com o presidente do Egipto, é que o homem em causa é um português de gema. A locutora, em voz que dizem ser off, simula depois um sorriso de grande autenticidade e ternura e adianta - Não bastasse já isso, a verdade é que todos nós o conhecemos de nome, ou seja, tratar-se-ia de José Adão Ulisses Ferreira, imagine-se! Diz quem ouviu Mubarak que a história lhe teria sido contada, no passado Verão, durante um espectáculo seu, dado algures na Etiópia. O nome que o morto-vivo adquirira, na sua segunda vida, era qualquer coisa como Ulisses Caim dos Santos Trigo. Enfim, senhores telespectadores, não podíamos ter acabado de melhor forma este nosso telejornal. Continue connosco e tenha um óptimo serão, sempre na nossa companhia. Boa noite.
- O quê, ouviste aquilo pá? Aquele era o gajo que a gente capturou na Gago Coutinho - disse o chefe Madeira. - Já viste, ó Macedo, aquele nome diz-me qualquer coisa, não era o tipo das russas ali de Porto Brandão? - disse o senhorio da casa da Rua das Flores. - Chega aqui filho, ouve lá, esse tipo que te tramou a vida não era um tal Caim dos Santos Trigo? - disse a mãe de Porfírio, trémula, no hall da pequena casa de Campolide. - Inventam com cada coisa! Ainda ontem estivemos aqui à noite a falar dele, não é engraçado? - disse Leonor. Abel, por sua vez, levantou-se, limpou os lábios com a ajuda do enorme guardanapo branco e, ainda a mastigar, nervoso, levantou-se da mesa, correu, correu e foi dizendo que tinha pressa, que já vinha; - Deixa-me só lavar os dentes, é só um bocadinho. Disse. Abel chega entretanto à casa de banho, abre as luzes laterais do espelho, encosta-se ao mármore da bacia e encara o próprio rosto, face na face, imagem trocada e truncada pelos seus nomes sem nome, olhos nos olhos diante do espelho. E agora? O que vale é que o raio do Preste não conheceu a minha terceira vida, haja pois sossego! E Abel, naquela posição de confronto consigo mesmo a falar sozinho, a segredar, a temer talvez o pior. Mas por que não me sei eu calar, porquê? E se o Porfírio acaba por falar? Mas, também... que pode ele provar? Eu, a todos os títulos, estou morto, não é? Não é assim? Abel de olhos vermelhos em monólogo assustador, perdendo o controlo, a questionar, a questionar-se: estarei vivo? E o que é que me aconteceu, durante este tempo todo? Porquê eu? Abel passa com as mãos pela testa, parece gemer, abre e fecha os olhos, volta a monologar, a questionar, a mão agora sobre o peito... até que, por trás, sem mais, em silêncio perfeito de esfinge, surge Leonor.
- Que é que estás a fazer, querido? Não te sentes bem? O que é que se passa? O coração a galope, acelerado e eu branco, pasmado, virando-me para trás. - Querida, eu estou aqui... com umas dores estranhas no peito, sabes? - Mas vê lá se queres que eu chame o doutor, com essas dores nesse sítio não se brinca. Foi agora enquanto comias, foi? Mas... por que não me contas tu o que sentes? Se te doía o peito, devias-me logo ter avisado! Parece até que... andas estranho nos últimos tempos! Estás com suores frios, é? Eu vou chamar o doutor, está bem? Sempre é melhor. - Não, não faças isso, não vale a pena, isto já está melhor, juro. Olha, põe lá aqui a mão, vês? Vês que não estou com nenhuma arritmia? Vês? Só ia lavar os dentes, não te impressiones, se calhar comi depressa demais, não achas? - Vê lá, querido, estás tão estranho! Não queres hoje descansar? Deixa o táxi por uns dois dias, vá lá! Se quiseres eu também meto atestado e não vou à escola. - Não, isso nunca. Garanto que já estou bem, deixa-me lavar os dentes e depois saímos juntos. Vou levar-te à escola e vou para a praça que até é um sítio tranquilo, descansa que já me sinto mesmo bem, está bem? Pronto, se assim o dizes. - Mas sem pressas. - Certo. Combinado.
A meio da tarde, o telefone da praça de táxis chamou Abel à Idanha e o carro seguiu lentamente, com o condutor bastante apreensivo, curva após curva, ao longo da Avenida Veiga e Cunha, entre paredes recheadas de heras e muros claros. Ocorria-lhe a grande tromba de água por que passara a ocidente de Ceilão, ou o rosto magro e quezilento de Preste Nekemte; as mil histórias de mar e os olhos meio demoníacos do etíope que, de repente, passavam a anil baço. Sentava-se depois no chão do convés, acendia a pequena vela que trazia no macaco e contava histórias de um reino onde nasciam mulheres de bigode e homens com cornos em sangue. Em Djibouti, já na estação, perto da bilheteira, chamou-me à parte e disse - Olha, tem cuidado que nesse reino havia muitos como tu. Conheço bem o que são homens com vários cérebros, corações ou almas, sim, almas fora do corpo correcto e corpos trocados da sua alma. Essa gente é convulsiva, perigosa. Tal como César ou Napoleão. Tem cuidado, não corras riscos, isto que eu sei são histórias que vêm dos confins do tempo. Se não ligares a estas palavras, hei-de ainda falar de ti. Sorri e vim de novo ter com Porfírio que estava com o carrinho de bagagem na mão. Esta gente é toda maluca, pensava eu.
O caminho para a Idanha não é longo, mas está cheio de casas surpreendentes, inóspitas, quase coloniais, estampadas por madeiras de cor pastel, azuladas, afastando-se da estrada por quintais cheios de labirintos, fontes secas, arbustos cansados, oliveiras idosas e hortas meio abandonadas pela humidade dos penhascos. Depois, surge a Quinta da Oliveirinha, surgem as trepadeiras debruçadas em frente do chamado Pacato´s bar e surge ainda a grande mansão meio fantasma, meio assombrada, rodeada por sebes densíssimas, pinheiros bravios, tubos retorcidos para escoar as chuvadas nocturnas e, no topo, no cimo quase inacessível da cumeada, duas palmeiras a escalar o céu com os seus dois troncos muito alongados e estreitos, deixando as copas a flutuar entre nuvens, entre esse logro da respiração divina e da nossa ocultação sem nome. Abel entrou finalmente com o táxi na Idanha, depois de ter percorrido, com olhos assustados e muito vermelhos, essas mágicas palmeiras, esses misteriosos caminhos, esses terríveis prenúncios de vales e vistas, talvez mais frondosos dos que envolvem a estação de caminhos-de-ferro de Djibouti.
Preste Nekemte avisara, é verdade, estou ainda a vê-lo dependurado no comboio quase pré-histórico que partia para a Etiópia. Porfírio levantava as suas mãos de gigante e gritava até breve, até breve. E eu a sorrir, a pensar em Lisboa, na Sara, na minha infinita e desejada Stone. Eu, em estado de estupefacção total, a querer-me vingar dos desgraçados dos Coimbras e vendo naquele Preste um mero embarcadiço delirante, embora, devo reconhecer, me tivesse feito estremecer, pensar, delirar. É que parecia querer penetrar dentro do meu mistério insondável e até conhecê-lo, dominá-lo. Foi há milénios, tudo isso. Há milénios. De regresso à Praça 5 de Outubro, Abel cruza-se agora com a bizarra agência funerária da Victor Cordon que, entre paredes esquecidas, a estalar de cal e tinta esbranquiçada, ostenta, mesmo ao meio, a escultura vermelha de uma deusa pagã a desfolhar um trevo de três folhas na mão. Ao fundo, o largo, os fofos de Belas, os TIRs habituais para cima e para baixo, sacudindo os prédios frágeis desta vila que já viveu um dia a sua sonhada e nostálgica belle époque.
No dia seguinte, ‘O jornal da Capital’ fazia capa da história do morto-vivo e dizia: “Desde ontem que o túmulo de Adão Ulisses tem sido visitado por inúmeras pessoas, ligadas à lenda viva do paladino de 'Tostões e Biliões'”. E acrescentava, no interior: “Embora sem confirmação oficial, fontes seguras confirmaram a ‘O Jornal da Capital’ que a polícia judiciária está atenta ao caso e que, para além de ter desencadeado contactos internacionais sobre a estranha ocorrência, também já inspeccionou as campas dos nomes referidos pelo mágico egípcio. Ou seja, não apenas o túmulo da conhecida vedeta, Adão Ulisses, mas também a campa do meliante Ulisses Caim. A curiosa parecença dos nomes, pelo menos através da presença do enfático “Ulisses” em ambos, foi ontem motivo do programa radiofónico ‘Escárnio a bem dizer’ da ‘Emissora Regional de Lisboa’. Enfim, é um tema que promete ainda fazer correr muita tinta, quando, de início, apenas parecia matéria de chacota, ou mote para um fugaz e meteórico primeiro de Abril. De facto, é caso para dizer que o nosso estimado Adão Ulisses, de boa memória, tinha que continuar a fazer-nos rir e também a pensar, mesmo depois de morto “, concluía o porventura inspirado articulista de ‘O Jornal da Capital’.
Abel fechou o jornal, colocou-o sobre o banco e suspirou. Com o olhar parado, quase imóvel, o nosso homem parecia dizer, sem o dizer, que a vida é disfarce, farsa bem contada, dissimulada, que a vida é desdobramento, duplo. Que a vida é caçada de fantasmas, que a vida é a rapidez de disfarce, eficácia de farsa, relato convincente de dissimulação, que a vida é a tentação do duplo, que a vida é uma derrapagaem desabrida entre jogadores e presas.
Em frente, sob a luz do fim da tarde, a Casa de saúde das irmãs hospitaleiras mantinha a sua fixidez habitual. Portadas azuis sobre paredes amarelas, ocres, dóceis. Portadas em formato neo-gótico, talvez de supositório ou de foguetão, quem sabe se de fantasma? Quem me dera ser o Fritz Lang, pensou por fim Abel.

segunda-feira, 21 de novembro de 2005

Coincidências e décadas

Faz agora dez anos (de hoje a oito dias, mais precisamente), fui a Utreque defender uma tese. Quando regressei a Portugal, soube no aeroporto da morte deste senhor a quem, duas décadas antes, tentara tirar nabos da púcara diante de uma câmara televisiva. Fica a imagem para colar a retina à imprecisa rotunda onde, às vezes, fortuitamente, se dilui a memória mais involuntária.

"Eu tinha grandes naus", não era meu caro Assis Pacheco?

Seca sem agravo

Um blogue 'exclusivamente político' tem sempre tendência a encerrar-se a si mesmo numa lancinante correria atrás da agenda que lhe é dada. E é por isso que quase se limita à mimetologia aristotélica, ou seja: a techné cumpre, por um lado, o que a physis é incapaz de realizar, mas, por outro lado, imita-a". Schiller diria que sim, embora sem grande propensão para as imitações. Talvez os blogues 'exclusivamente políticos' devessem beber um pouco da água criadora de Schiller.

Ler grande reportagem "Avatar"

Tudo se passou entre Tete e Chimóio. A situação excede a moral da história. Mas ambas são interessantes e fiéis a um princípio que se procura e persegue. Qual será, não se sabe (há aqui eco de Jorge de Sena). Mas está lá. Inteirinho. A ler.

Fragmentos, narrativas, actualidade

Uma brevíssima reflexão acerca publicação de folhetins aqui nos blogues: uma sequência novelesca de pequenos episódios faz crescer as audiências; uma sequência romanesca de grandes episódios afugenta radicalmente as audiências. Experiência própria. Só aqui para nós: O Trevo de Abel tem já um tempo de vida muito curto: acaba na próxima Sexta-feira. Depois, é claro, voltamos de novo ao convívio em massa (presidenciais, micro-causas, escárnios, empatias, polémicas, romances do século, posts de leitores, as mais curtas histórias do mundo, links, vaidades vitais, invejas, truca-truca, ditos risíveis, bibliotecas de papel, politiquices, ilusionismos, sitemetergate e ainda o estado do Lula).

Folhetim

O Trevo de Abel – Episódio 38
Terceira Parte – O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
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Era muito tarde, era já noite, quando Leonor entrou em casa. Chovia sobre Belas, sobre a serra, sobre as encostas do Telhal e as nuvens seguiam rasteiras em direcção às terras saloias, a Lisboa, ao interior carregado de pinheiros mansos, calcários antigos, vinhas abundantes e trevas. Preparei-me para descer do sótão até ao andar de baixo e a tempestade parecia acentuar-se; o granizo batia com força nas telhas, eram pancadas secas sem fim, medonhas. E Leonor não se calava.
- Mas... foi muito bom ter saído, sabes? A Luísa é uma antiga amiga que eu conheci, quando ia comer à cantina da câmara... porque dava aulas ali ao pé na altura, numa escola da Junqueira. Ela foi casada com o Adão Ulisses, aquele da televisão que já morreu, lembras-te? Era bom homem. Conheceste-o? Sim, imagina. Quando era mais nova, costumava dizer às minhas amigas que eu e ela, a Luísa, éramos como Evas do mesmo Adão. É que, em adolescente, tive uns namoricos de praia com ele. Depois, é evidente, nunca mais o vi; é assim mesmo a vida. Estranhas? Mas foi verdade. Para que saibas. Tem graça, não tem?
As mãos de Leonor acompanham o movimento das palavras até ao peito, parecem taças que recebem de muito longe o líquido precioso da infância. Deixa subitamente de sorrir e está agora em minha frente como se fosse no eléctrico fantasma de antigamente e os nossos pés se tocassem; falavas alto para que o motor fosse apenas música de fundo, ou um coro sumptuoso elevado pelas begónias e mimosas da grande serra; falavas alto e os miúdos perguntavam se eu podia dormir lá em casa e tu, lembro-me bem, quase coravas e dizias que não com a cabeça; as sombras das ramagens e dos sucessivos troncos de plátanos cruzavam-te o rosto como se te tornasses no imenso ecrã do meu primeiro e enternecido cinema. É isso o amor? E agora está aqui em minha frente, voltas a mexer os lábios com a maior das dádivas do mundo - Tem graça, não tem? Continuas com as mãos quase agarradas ao peito, dedos virados para o ar, para a incandescência frágil do que nos ligará; nem tu própria o sabes, nem imaginas, mas, de qualquer maneira, ainda aí estás, efusiva, doando-me a expressão mais profunda e sincera de ti, ao contares-me o teu mundo, abrindo-o sem limites.
- Tem graça, não tem?
Respondo que sim, talvez pudéssemos ir comer fora, é tarde, mas o que ressoa ao longe é o temporal, o granizo, nada a não ser o testemunho obscuro do mundo em movimento. Comemos apenas torradas, o ruído da televisão, os passos cruzados no corredor e o sono; palavras vãs, entretecidas a sós, e o que é a história de um dia por contar, ao serão? Sim, é isso mesmo, a vida toda. Foi melhor não termos saído, parece que já há menos chuva, faz-se tarde, talvez eu esteja excitada dos encontros de hoje e por isso ainda não tenha vontade de ir para a cama, e tu? Eu nem sei, estou calado há tanto tempo e o ecrã da televisão agita-se sobre legendas, cores difusas, um regatear de retratos sem tempo, nem lugar.
- Está bem, está bem, nesse caso vou à cozinha abrir mais uma cerveja. Pela rua estreita há sempre carros que passam, expiações em alvoroço, sinais de vida, companhia. O homem é um ser gregário e por isso gosta de partilhar a chuva que agora acalma, as tempestades, as palavras, o som dos motores e até os gestos. Leonor estica os braços sobre a mesa, encosta a cabeça com a mão e aponta para a televisão - Olha aquele é parecido com o Adão, não é? Aquele, quem, onde? Assusto-me, mas não o digo; olho mas nada pressinto. Sorrio e acrescento qualquer coisa sem sentido - Ah, pois é, mas quem será? Quem é?
Talvez exagere no tom da pergunta, na prosódica, no timbre carregado. Leonor volta a endireitar-se na cadeira e repete pela segunda vez
- Então não vês que é o personagem do filme? É o filho da Laurence que fugiu de casa, não estás a seguir o filme? Mas que filme ando eu a seguir na minha vida, há tanto tempo, há uma imensidão sem nome? O meu filme é este puzzle sem rosto, esta charada sem nexo; talvez seja apenas uma cabala elementar, ou tão-só o abismo de mil palavras cruzadas que entretêm o lazer ou o tempo, parece que estou a ver o médico na esplanada do Café Parque devorando-as sem parar, até ao desfecho, ao termo, ao limite.
Olha para dentro do saco da fruta e para as tetas da saloia anafada e a Dona Olga chega de braço dado com a irmã. Vêm depois os cafés, o carioca e o empregado mexe no bigode, olha para os pombais azulados, tosse. Dona Olga pergunta à Leonor se ainda quer, um dia, ser mãe. A mulher do médico sorri, falta ainda algum tempo para que o marido remate as palavras cruzadas, mas o jornal ocupa meia mesa, será impaciência, será hábito, será o quê afinal? E a irmã da Dona Olga volta à carga, os bebés são a melhor coisa que há na vida, não acha? Não, não, tudo o que é pequenino, as flores, os cãezinhos, até as miniaturas das raposas que tenho lá em minha casa. Risos. Bebo o meu chá de limão, ouço os TIRs cruzando impiedosamente o sossego de Belas, risos, e o empregado tossiu outra vez e reentrou no café. O que acha, senhor Abel?
Parou a chuva, o filme está quase a acabar e eu volto ao frigorífico. Nessa noite, Leonor agarrou-me com muita força no cotovelo do braço esquerdo. Parecia querer aí encontrar uma senha, um indício, uma ternura demorada. Que lindo braço tens tu, silenciou. Lá fora, a chuva ainda mole e leve escorrendo nos vidros; o céu lilás e macio, fazendo lembrar outros episódios mais sombrios. O que acha, senhor Abel? Minha senhora, sabe, a vida é como um jardim onde tudo nasce e cresce! Que poeta me saiu o senhor Abel! Dona Olga acrescenta: está quase sempre caladinho aí com o seu chazinho, mas quando fala diz coisas muito lindas. O médico bate com a mão na mesa; são as palavras cruzadas, deixe-o, é sempre assim, gosta de as fazer, mas aborrece-se com elas! A mulher do médico desculpa, justifica, sorri e volta a olhar de soslaio para Dona Olga. Agora percebo que a Leonorzinha esteja... tão contente e feliz, não é? Ó senhor doutor, então diga lá a palavrinha que não é capaz de descobrir? E ainda por cima só falta essa para acabar tudo? Veja lá. Pode repetir, pode? Ah bom, é o seguinte: ponto alto entre duas ou mais rios mas que não faz parte da rede hidrográfica de nenhum deles. Estranho, diz Dona Olga; Inventam cada coisa, diz a irmã da dita; deixa lá isso, hoje, diz a esposa; eu sou professora, mas desculpem... é que não sei mesmo, diz Leonor. E o senhor Abel não nos diz nada, não?
A meio da noite, Leonor acordou e olhou insistentemente para Abel, enquanto o antigo Caim e Adão dormia do outro lado desse olhar penetrante e demorado; é um olhar anatómico, carinhoso, mas, ao mesmo tempo, surpreso, e até algo admirado. É o olhar dos amados que não distingue ainda a diferença entre a ilusão óptica e a ilusão amorosa, mas, agora, parece o olhar de Leonor querer desvendar física e friamente o que os sentidos lhe dão, na realidade, a ver. A respiração tranquila, as costuras atrás da orelha, o acidente, coitadinho, como terá sido? Mas, de novo, com alguma insistência, a mão de Leonor volta a avançar sob o edredão e mexe ao de leve no cotovelo, no braço de Abel. De onde conheço eu esta carne tão íntima, este vigor, esta forma invisível? Leonor olha para a janela, salpicos de chuva sem direcção, lentos, escorrendo sobre as minúsculas vidraças e Abel quase a despertar, sob o efeito da carícia que lhe tolhe o braço, o antebraço, o estreito cotovelo, essa forma íntima e antiga. E o senhor Abel não nos diz nada, não? Olhe, acho que esse ponto se chama "o festo". Sim, "o festo". O doutor levantou a cabeça, ostentou o brilho da sua cabeleira branca impecavelmente penteada e disse baf baf baf. Dona Olga juntou as mãos e pensou que este era, de facto, o marido perfeito para a Leonorzinha.
E a mulher do médico a dizer que era já hora de irmos embora, pagam os cariocas e os cafés e eu a perguntar, então está certo senhor doutor? O homem olha para dentro do saco da fruta, volta a cabeça para o escorrega do parque infantil e diz que sim. A irmã de Dona Olga está atenta ao relógio, que é ainda cedo, diz melosamente; falta ainda tempo para o almoço... e Leonor a pensar, mas terá o médico ficado sentido? Abel põe a chave do táxi em cima da mesa, despede-se, há sorrisos de infinita afinidade, vou-te buscar à escola às 6, está bem? Leonor ficou com o mesmo olhar anatómico, carinhoso, mas, ao mesmo tempo, surpreso, e até admirado.
Por que é que o Abel se levantou da mesa, de modo tão brusco? Pergunta para si Leonor, quando o médico e a mulher já entraram no carro. Dona Olga repete: aquela senhora é mesmo muito difícil. Ao longo da vida toda, sempre, sempre deu cabo do senhor doutor, sempre; então havia lá agora razão para se irem embora! A irmã de Dona Olga concorda e Abel já está de pé e repete, vou buscar-te à escola às 6, está bem? Leonor fez o tal compasso de espera, olhou com a alma vazia por instantes, mas logo contracenou. Claro, até logo, querido; até logo e não demores. Dona Olga enternecida com o casal e temendo não ver o médico amanhã e depois de amanhã, sabe-se lá até quando.
Nessa noite, já nem sei se foi no fim-de-semana ou depois, acabei por acordar às 4 da manhã e senti a mão de Leonor à volta do meu cotovelo. Olhava-me com uma expressão enredada, enigmática, talvez fosse da minha respiração e eu perguntei:
- Estava a ressonar?
Leonor sorriu, afagou-me a testa e disse que não.
Com a ponta dos lábios muito vermelhos e encorpados.

domingo, 20 de novembro de 2005

Tirada pós-moderna

Na semana que acaba de passar, as autoridades francesas afirmaram que tudo tinha regressado à normalidade. Afinal, apenas duzentos carros haviam ardido. Moral da história: há um país na Europa onde a normalidade é medida pelo número de automóveis que os seus cidadãos incendeiam numa só noite.

O mais curto sermão - 45

Caminhavam com fúria, desfalecidos, um misto de ira e de cólera. Quando chegou o crepúsculo, perto já do promontório, o sargento gritou para os recrutas: “Corram todos imediatamente em direcção à falésia”. Só João G. não abriu o pára-quedas. Um bom Franciscano adora sempre pregar aos seus peixes.
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Ponto final.

Folhetim

O Trevo de Abel – Episódio 37
Terceira Parte – O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
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Dei boleia à Leonor. Era a segunda vez que vinha a Lisboa desde que a vida me fez ser Abel. Levei-a ao Campo Santana e, depois de a deixar do lado do Patriarcado, dei a volta ao jardim e estacionei. Do outro lado, a uns cinquenta metros de distância, vi o corpo talvez mais esbelto e alto de Luísa. Vinha com saltos muito altos e uma espécie de vestido azul-escuro com rendas claras ao longo dos ombros. Luísa, a abandonada, a falsa viúva rica. Deu-me vontade de rir ao revê-la, ali, pela primeira vez, ao fim de tanto tempo. Eu tirava e punha os óculos escuros, baixava e subia as palas do carro, agitado que estava com estas coincidências destemperadas. A Luísa. Descia comigo pelas escadas rolantes do Rossio, ouvia-me cantar com voz de tenor nas caves de Linda-a-Velha, voava dentro das ondas como uma sereia. A Luísa. E agora estava ali, sentada mesmo ao lado de Leonor, a antiga filha do solstício. Se as duas soubessem, se imaginassem!
Do outro lado do jardim, frente a frente, esboçavam sorrisos, gestos e uma conversaria de arrazoados sem fim. O amor é como o sabor a ostras, uma impressão desalmada que arrebata qualquer um. De barba mal feita, mão no queixo e riso desenfreado, contido, Abel pôs de novo o carro a trabalhar e desceu à avenida. Que saudades de Lisboa, outra vez! Por que tenho eu a mania de que me possam reconhecer, se no tempo do Caim isso não acontecia? Intuições, meu nitrato de sódio, intuições, dizia-me a Arlete com a sua voz batida, trilhada. A desgraçada veio das brenhas e teve azar. Onde morará hoje? Parece que foi agora que entrei na casa da Bica e ela queria pôr fogo naquilo tudo, chegou a encostar o isqueiro à cortina e depois à toalha junto do fogão. Tive que andar com o cobertor na mão a apagar o perigo. Dizia que eu não lhe ligava, que não lhe passava cartão, que no fundo se sentia apenas uma boa puta de alterne. Tudo isso foi já no tempo do ‘Limões e Biliões’. E como ela tinha razão.
Belos tempos, belos tempos, dizia Abel diante dos semáforos dos Restauradores, do Avenida Palace, da Estação do Rossio. E, de longe, a acenarem com lascívia, aqueles lábios muito vermelhos, encorpados, atiçando murmúrios e sons; gestos depois reunidos em palavras, meio acabadas e articuladas com demorada languidez: Leonor, Luísa, amor, - diria o meu fado. E deste modo o fui cantando pela 24 de Julho, olhos postos no sol e na mais remota lembrança, mergulhado que ia também no saber do acaso e na doutrina dos desacertos, senão mesmo na instrução perdida da felicidade:


Leonor Luísa Amor
Pelo vosso coração
Canta a minha dor
As rosas desta visão

Leonor e Sara Amor
Pela vossa felicidade
Canta este meu ardor
A flor de lis da cidade.


Passei Alcântara e, de repente, decidi seguir ao largo das águas. Vi a foz do rio, Algés, o Bugio, Oeiras, Estoril. Pena é que a minha voz de Adão se tenha quase perdido, depois da primeira operação. Pena é esta ruína que eu sou. E vi Carcavelos, S.Pedro e o azul sempre azul. E vi fados nesta cor de mar, de que foi feita a excitação das minhas vidas e também o furor deste momento de súbita felicidade. Vi coisas que não cabem em quadras e vi vontades audaciosas de ser outro, outra vez e sempre; fosse quem fosse que não eu mesmo, Adão, Caim ou Abel. Por dentro, sentia que morria e vivia sem nexo, mas, nesse bate bate, nesse alarme bizarro, era absorvido pela mesma canção, pela mesma intimidade e pelo desejo. Sabor a ostras, a amazonas perfeitas, a seios de ouro dominando-me o destino. Até que apareceu S.Pedro, Estoril e Cascais. estaciono, paro, procuro uma lista telefónica e descubro por fim o verme do apelido da viúva rica, a Luísa infiel, a Luísa maldita. Afinal, é mesmo ao lado da Praça de touros. Circulo e, de novo, me advém a rebentação, a areia, o céu, a natureza em rocha e o mar fundidos para sempre. É como se na minha frente surgisses e tivesses os lábios sempre vermelhos, encorpados, ateando sussurros, sons e acenos reunidos em palavras articuladas com demorada lascívia; são palavras líquidas, arrastadas até ao meu ouvido que já não ouve e apenas te olha. Mas eu não te vejo o rosto, nem o apelo que me lançarias. Onde estarás? Tão longe. De onde virás? Leonor, Luísa, estou perdido entre vidas vividas, cruzadas e tanta memória trocada, truncada!
Paro o meu táxi estrategicamente e espreito para a grande casa onde mora Luísa. Não estarás, Luísa, eu sei, mas vejo uma empregada a limpar os vidros; vejo cães que ladram atrás dos portões e das grades; vejo sebes densas e a cor rosa clara que faz esquadria às portadas das janelas; vejo antenas, câmaras de segurança, telhas com clarabóia e o alarido do vento do Guincho. Vejo tudo subitamente. É como se conhecesse de cor o leme da felicidade e nunca o tivesse partilhado. Vejo a vida toda, subitamente. Onde estás? Tão longe. De onde virás? Leonor, Luísa, estou perdido e rio-me alto, muito alto. Rio-me de todos os cenários que a vida, hoje mesmo, me deu a ver, a conhecer. Sim, onde estarás? Pergunto eu e a mulher, impassível, continua a limpar os vidros com mãos de ovareira, e as sebes a ondular na brisa e, por cima, a clarabóia a reflectir a antiga luz desse mar tenebroso e belo que me faz lembrar Banguecoque, Djibouti, Colombo, o Pireu. Ó alma incendiada, por que não consigo saciar tanto desejo, sem nome, sem corpo, sem destino? Onde estás? Donde virás, neste final de dia sem qualquer história? Que me acontecerá no termo de mais uma vida? Por que perco eu, afinal, o próprio amor pela vida? Porquê? Por que trevo de quantas folhas?
Estou de novo na marginal e vou pelo Guincho, Cabo da Roca, Colares, Sintra; vou pelas montanhas do início do mundo. São elas que protegeram, há muito, o labor indómito de Ulisses. São elas que me deram pousada e horizonte nesta terceira vida. Para onde irei? Era como se chegasse ao palco, os holofotes já acesos, as bancadas cheias de uma multidão incinerada e eu a correr, a correr; pouco depois, apareço frente às câmaras; pisco os olho às produtoras, belisco o rabo à anotadora, abro a boca, os braços, os olhos e puf puf puf, em directo para o país todo, são vinte horas certinhas; e hoje, amigos, depois das notícias do mundo, o tempo e a música; o ritmo e o movimento; você já sabe que não é apenas espectador, é sim o meu maior e melhor amigo; amigo íntimo, companheiro de jornada, luz desta luz que não é palco, nem fingimento; é vida! Sim, sim, a sua vida é a minha vida. Eu sou a sua vida aí em casa, na sua casa e você está aqui como se a sua vida fosse este show! Eu sou a empatia e a simpatia que é só sua, afinal, aqui e hoje, neste ‘Limões e Biliões’! Hoje, meus amigos, sorteamos quase cem mil contos e dois BMW... da série que você vai, desde já, adivinhar. Depois das onze horas, virá o desporto, a entrevista, o universo VIP e a carolice do Hertzan-BIC para que haja riso, riso, riso. Curva à esquerda, curva à direita, e o carro a subir à vila velha; bons tempos em que o eléctrico funcionava e tu, Leonor, dançavas com os teus lábios nos meus, por cima desta névoa rasteira até ao Palácio da Pena, ao céu. Onde estás, donde virás? Diz-me. Porquê eu?
Diz-me. Silêncio, o doutor avançou até mim e disse-me como se fosse pecado - São dois corações, senhor Adão. Sim, é melhor tirar um, nunca vi nada assim. O homem tinha a bata branca congestionada, manchada de sangue escuro, mas estava branco como o deserto e olhava para mim com cara de terrorista, saqueador de bruxedos ou de impropérios à solta. Eu, José Adão Ulisses Ferreira, sujeito a isto tudo? Ó senhor doutor, desculpe lá, mas por que é que a enfermeira ficou mal disposta? Não, não se pode dizer ao país. Quer perder o emprego, quer? Veja lá. Portugal não pode passar sem si, sabe? Você sabe isso muito bem. Mas porquê esse ar de carniceiro, será que me tornei em tuberculoso sem cura? Terei peste suína ou outra qualquer? Avance-se com a operação. Claro. Claro. Para a faca. Porquê eu?
Fiquei ao longe, muito ao longe, era a anestesia. Maus augúrios, fios lentos desligando-me de vocês os dois, vermelhos, sim muito vermelhos e cheios de batom; esses lábios vermelhos, encorpados, ateando sussurros, sons e acenos reunidos em palavras já sem sentido, articuladas com demorada lascívia. Eram palavras líquidas, arrastadas até ao meu ouvido anestesiado que já não ouvia nem escutava. E depois? Acordei, é cedo, muito cedo ainda. A vida está por um fio. Está? Está? Ninguém responde. Tento telefonar para Barcelona e ninguém atende. Hei-de conseguir, hei-de conseguir. Chego a Sintra e viro na direcção de Belas. Vou aproveitar para descansar. Sinto-me atordoado, a transbordar de memória, de mim. Farto da vida. Segue-se Pero Pinheiro, passo pelo campo de golf, pelo Sabugo e dirijo-me finalmente a casa. Subo as escadas, atravesso a malfadada cozinha e vejo-me a correr, desvairado, até às águas-furtadas. Parece que nunca saí daqui em toda a minha vida. Não, a Leonor hoje regressará da visita à Luísa, não da escola. Não te enganes Abel, Adão, Caim. Não te enganes, vê lá no que te metes. A vida talvez esteja mesmo por um fio. Onde estás? Estás Longe? O que me terá hoje acontecido?
A quem é que tu perguntas isso tudo? Não sei. Deixem-me mas é olhar pelas vidraças das águas-furtadas e sonhar.
Ao menos isso, sonhar.

sábado, 19 de novembro de 2005

A mais curta história de um invento - 44

Sob um tufo de silvas bastante denso, Semião descobriu uma folha de bronze carregada de estranhos e enigmáticos sinais. Acabaria por ser a descoberta mais importante do século. Afinal, havia animais que falavam e escreviam entre si.
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Ponto final.

A mais curta lenda falhada - 43

Conheceu Eva Duarte em Janeiro de 1944, quando um amigo pintor o convidou a ir a uma festa de apoio às vítimas do terramoto de San Juan. Tudo podia ter acontecido entre eles. Mas Juan Peron antecipou-se com um secreto licor entre mãos e o resto é bem conhecido.
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Ponto final.

Folhetim

O Trevo de Abel – Episódio 36
Terceira Parte – O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
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O Príncipe Real de Lisboa já foi chamado Alto das Cotovias e conheceu perto de si a graça de muitos vendavais e moinhos de vento. O Príncipe Real de Lisboa foi local de lixeira do Bairro Alto, de ruínas sucessivas e de acampamento militar a seguir ao maior dos terramotos. O Príncipe Real de Lisboa foi lugar de forca, de Basílica Patriarcal, de incêndios e voragens. O Príncipe Real de Lisboa foi miragem de construções faraónicas, foi cabouco do erário e, de novo, entulho restaurado. O Príncipe Real de Lisboa foi o ponto alto de muitos esquecimentos e de planos infrutuosos.
Por agora, esquecidos da história mais irremissível e perdida, os cedros de folhagem aberta descansam apoiados nos caramanchões e a noite parece finar-se na timidez ainda lúgubre do dia. E este é o dia em que tudo, quase de certeza, irá acontecer. Abel está cansado da imensa história que vem contando ao grupo que o acompanha, há já horas e horas. Abel senta-se num dos bancos, fecha os olhos, quase dorme. Deixa por momentos este mundo e assim dorme profundamente por instantes, Abel.
À volta, como se apenas tivessem passado segundos durante as últimas horas, o diálogo precipita-se. Inicia-se:

Isabel - O que é que queria Isaías dizer com tudo aquilo?

Dona Joana (extenuada) - Referia-se, quase com toda a certeza, ao encontro que ontem tivemos com ele, junto ao Mercado da Ribeira.

Lopamudra de Vidarbha - Mas o Isaías aparece nesta história como Judas, ou antes como o bom amigo que avisa de perseguição iminente o próprio acossado?

Júlia - Não sei, talvez as duas coisas. Eu sou muito desconfiada.

Altino de Mendonça - E acham mesmo que a Leonor não reconhece no Abel, pelo menos na intimidade, qualquer coisa do antigo namorado? É que, quando eu há pouco disse - “tomai e comei” - era nisso que estava a pensar. Ou seja, a presa reconhece sempre o seu caçador, mesmo depois de morta. Não vos sabe muito melhor um faisão caçado por vós, do que por qualquer outro deputado da nação?

Zorba - Vê-se mesmo que vives noutra galáxia, ó pobre homem de S. Bento. É evidente que há coisas dessas que se sentem. Mas são coisas sem tradução. São apenas manchas muitos distantes da nossa consciência. Eu, na Grécia, há muitos anos, senti isso mesmo. Achei-me subitamente de amores por uma mulher alta e vestida de negro. Dançava com ela dia e noite, transfigurado, e, por isso mesmo, me baptizaram por Zorba. No fundo, essa mulher, retirada a máscara veneziana ao fim da festa das sete noites, era, imaginem, a minha própria irmã, ou seja meia-irmã. É que o meu pai também foi embarcadiço e fadista. Leram os Maias?

Isabel - Ó pai, isso é uma coincidência incrível. Nunca me tinhas contado isso.

Zorba - Pois não, filha. A vida é assim. Uma autêntica caixinha de surpresas.

Senhor Gouveia - Mudando de assunto, aquele mordomo catalão de traços orientais era, ao fim e ao cabo, amigo de longa data do próprio Adão, não era? Sempre me pareceu isso.

Zorba - Sim, sim, mais ou menos. Segundo percebi, logo no início da conversa, ainda no Cais do Sodré, o Adão, enquanto cantor e figura televisiva, tinha um filipino ou coisa do género como seu representante em Barcelona. Mas, de qualquer maneira, ele pagou-lhe sempre e bem; muito, muito dinheiro.

Sara de Belém - E as máfias da Catalunha não passaram por Portugal?

Sapateiro Palmeirim - É evidente que sim, mas isso só aconteceu depois do escândalo da Gago Coutinho. Os Coimbras já nem existem e os negócios com as russas estão hoje na mão de gente nova. São os Cortes Ingleses. São as OPAs dos dias de hoje.

Chico de Belém - E como é a vida de Luísa e da filha, hoje em dia?

Júlia - Penso que vive em Cascais, fez um casamento bom e dedica-se a fazer festas. Contrata criados de papillon, encomenda cozinhados sumptuosos e paga às revistas do social para testemunharem o feito. Fica muito contente com isso e, depois, vai vivendo desses rendimentos fotogénicos. Às vezes, e porque tem certas heranças nostálgicas, organiza encontros com antigas amigas, mas sem convidar os habitués do jet set. Nada melhor do que separar águas para estar sempre bem consigo mesma.

Dona Joana (consumida pelo cansaço) - Então... foi por causa disso que a Leonor recebeu aquela chamada no telemóvel...

Júlia - Exacto.

Dona Joana - Estou a ver, estou a ver.

Senhor Gouveia - Uma coisa é certa: quando ele ressuscitou, deixem-me empregar esta palavra só para ser prático; dizia eu, quando ele ressuscitou a primeira vez, assustou-se muito e desinteressou-se depois quase totalmente pela sua vida anterior. Pelo contrário, quando passou de Caim a Abel, os pavores foram-se dissipando, a pouco e pouco, e, por trás dos apetites domésticos de Belas, surgiu-lhe até um certo interesse pelo passado.

Isabel - Talvez isso seja verdade, mas só em parte. Reparem que ele foi levado a recordar insistentemente o tempo dos seus catorze ou quinze anos, apenas porque reencontrou a Leonor. Acho isso uma coisa espantosa, a sério! Quanto ao resto, só o curso das coisas o poderá ditar, não é?

Sapateiro Palmeirim - Sim, sim, no entanto, se o Isaías andou a espalhar a nova pelos cais de Lisboa e se o Preste João da Etiópia, nos tempos que se seguiram, também espalhou a mesma notícia pelos mares televisivos do planeta, não é, pois, normal que a coisa tenha começado, com algum vagar, a soar também aqui por Lisboa?

Senhor Gouveia - É possível, é possível. Disso não me tinha eu lembrado.

Sapateiro Palmeirim – Claro. Não é assim que se fazem rumores? Penso bem que sim, porque é o mesmo que dizer que, quando alguma folhagem evita o sol de Verão, se esta o toma em cheio, é muito maior a sombra que o amparo sentido. Assim são também os que falam demais e intrigam, pois as suas esperanças tomam sempre praticamente em cheio a realidade das coisas de que falam e intrigam.

Zorba- Ó Isaías, és ainda pior que o deputado. Quando falas, não há palavra que se perceba!

Júlia - Mas... será o Abel, a esta hora, já um acossado?

Dona Joana - Em Francês é “A bout de souffle”, não é?

Sara de Belém (rindo-se) - Mas o Abel não é nenhum actor de cinema! Não confundamos as coisas!

Júlia- Quero eu dizer... não correrá perigo o Abel a esta hora?

Zorba - Não, tenham calma. Deixem o homem contar o resto da história. Não vêem que já abriu os olhos e se espreguiça?

Dona Joana (definitivamente exausta) - Diz-me a idade... que os bons presságios despertam sempre com o sono da manhã.

Isabel - Vamos sair daqui. Este lugar é bonito, por fora, todo ele feito de repuxos e cedros, mas, no fundo, tem uma história medonha: lixo, forca, entulho e incêndios!

Zorba - Ó filha, és mesmo impressionável diante das coisas mais normais deste mundo. Repara que a vida só separou, um dia, o que é normal do que é anormal por necessidades da razão, dos dogmas, dos mundos fechados. Por mais nada. Mas a vida é muito mais do que isso. Acredita.

Júlia - O Abel que o diga. Olha, que já se põe de pé e acorda.

Abel - O quê, o quê, de que falam?

sexta-feira, 18 de novembro de 2005

Risível - 7

Jan van Steen
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A palavra a Montaigne:
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"O lamento e a comiseração são misturados a uma certa estima pela coisa que se lamenta; as coisas de que troçamos, estimamo-las sem valor. Não penso que haja em nós tanta desgraça como vaidade, nem tanta malícia como loucura "
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(Essais, Vol. I., Cap. L, Gallimard, Paris, 1962, pp. 418/9)

Folhetim

O Trevo de Abel - Episódio 35
Terceira Parte: O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
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E ao sair da Cruz dos Remolares, depois de encarar a luz do sol em forma de trevo, tive quase a ideia de ter visto um imenso pavão que, nos antigos banhos públicos, anunciava com voz humana coisas bem estranhas que se estão a passar nesta cidade de Lisboa. Disse-me essa visão que hei-de encontrar, no local dito de S. Paulo, o homem com várias vidas, o qual, parecendo morrer, continua vivo no seu corpo e espírito, viajando por esse mundo fora com o encanto interditado pelos muitos deuses criadores. Mais disse esse pavão de penas agitadas que o sol, no último dia da sua aventurosa vida, há-de desaparecer por minutos e desse eclipse nascerá, em certa cidade do mundo, um outro homem tão estranho como o de Lisboa. E enquanto regresso ao túnel da Rua do Alecrim e me encaminho agora para o Terreiro do Paço, mais ainda sinto que esse dia está para breve.
Durmo enrolado a jornais nas traseiras da gare, sonho e visiono coisas que escapam à ordem natural das coisas, mas não se pense que ando apanhado pelo cavalo ou por chutos de seringa infectada, nada disso. Nunca fui drogado, nem mafioso, nem sem-abrigo rotulado na testa, embora experimentasse tudo na vida. O que vejo e ouço são palavras sem som, são sons sem sentido, são sentidos sem norte. Se tivesse vivido há dois milénios e meio, talvez fosse profeta. Contudo, nesta vida de desnortes, carências e muitas dúvidas, aprendi a recortar retalhos de verdade através das figuras que as nuvens desenham neste estuário milagroso do Tejo. Subitamente, eis-me chegado ao Terreiro do Paço e as arcadas, a abertura do espaço, o arco regenerado e as colunas e colunatas voltadas para o rio definem subitamente um equilíbrio e geometria únicos que apenas, na velha Alexandria, se terá sonhado ou imaginado. Isto é o fogoso corpo iluminado ou iluminista, misturado com a perdição e talvez com a prova de uma beleza desencantada e em suspenso. Só aqui, neste breviário de encontros, poderiam emergir coisas estranhas que Lisboa conhece e que estão prestes a desocultar-se.
Neste locus da ordem e da delicadeza de contornos que é a Praça do Comércio, há uma memória do antigo Terreiro que era avermelhado, cheio de varandas contíguas e desalinhadas, quase flamengo e aberto apenas às marés, ao grande torreão do Paço e ao ímpeto mercantil da lendária Rua Nova. Isaías lembra o velho traçado, o ruído ao fundo da hecatombe, a tragédia precipitada e, diante de tal ondulação irregular da Ribeira das Naus, despontaria já, nesse ímpeto terrível de 1755, a nitidez, a definição e o rigor das formas anunciadas. Depois do estertor, veio o esquadro, a norma aparente e o tempo da magia só já submersa. É essa a história e a causa das coisas estranhas que se anunciam em Lisboa. No centro da actual Praça, D. José I ainda aspira à idealidade de um centro quase perfeito e, para sugerir essa mesma demanda imaginária, o cavalo em bronze que o transporta levanta, com imprevista leveza, uma das suas sete patas.
Ao entrever a fantástica desproporção, neste mundo esculpido pela maior das arrumações e aprumos, Isaías apenas consegue imaginar a ideia de voo, de descolagem, de Ícaro momentâneo que se aprestasse a sobrevoar e absorver o Tejo. É essa a sua visão mais momentânea que, entre a nuvem do comedimento e harmonia, aspira ao delírio e aos mil sortilégios que se possam supor. Mas Isaías sabe também que, desde os acenos em matéria de Ode ou verso popular até ao canto do Café Martinho da Arcada e ao recato do Cais Sul-Sudeste, nada mais paira senão mistérios, vogas marítimas, maresias de uma qualquer agonia luminosa e visionária. Isaías cruza em diagonal esta Praça Maior de Lisboa e não esquece de maneira nenhuma o pavão que, com voz humana, falou em alto e bom som de um tal Adão, Caim e Abel em trânsito por Lisboa; era um pavão que a luz do sol da foz do Tejo transformou em efígie na cabeça caprichosa e sonhadora de Isaías.
É verdade que, para Cesário Verde, os desejos absurdos de sofrer deverão ter tido origem nesta excelência e graça por decantar, talvez algo veneziana, mas também solar e atlântica, e sobretudo cheia de brumas escondidas sob a pele de tanta geometria aparente. Isaías encosta-se aos arcos do norte, junto aos alfarrabistas, e conta pelos dedos. Conta apenas números, esse mote abstracto, ou estrutura da imaginação, ou esquadria anterior a qualquer acto; Isaías repete muitas vezes esta operação: com o polegar conta números, apenas números durante um tempo quase infindável. O Terreiro do Paço, confessa o próprio, é um dos resultados aproximados do insondável compasso dos números. Por trás da geométrica cadência bachiana, o ritmo dos arcos nasce, emerge e parece anunciar uma música silenciosa que, à noite, empresta ao amarelado das luzes um incerto vaguear de sigilos, de silhuetas imersas pela vertigem pessoana; alaridos distantes de paquetes, navios e naus antiquíssimas irrompendo pelas correntes do grande rio das Tágides; desafiando a barra, o oceano, até o universo. É essa a sua senha: entre a morte e a pulsão da aventura quase total, pensa Isaías sem o dizer por palavras.
Para Camões - dizia o fadista e poeta do engenho - o sublime som do seu estilo grandiloco e corrente, ditado ou implorado às Musas do Tejo, mais não era do que um mar espesso de enigmas e segredos que, por natureza, se atravessa no caminho de todas as histórias impossíveis de contar, de narrar, de esclarecer. A própria Praça do Comércio é, ela mesmo, uma história por contar. Lisa e ampla, este espaço de números também por calcular prepara e acarinha a partida das grandes viagens, a invocação dos grandes poemas, a margem de toda a divagação. Porventura, também alimentará os que vêem a sua alma incendiada, o coração repartido, a ousadia abismada. Por trás do equilíbrio do Paço e das geometria modelares, os anjos de Ulisses abrem as asas e conseguem voar até à memória mais antiga do fascínio. Quem verá esses anjos, sob a forma de pavão, fado, ou luminária... a sobrevoar visões, letras, passos, amores encantados; tragédias da natureza, ou tão-só os simples números que Isaías continua ainda a contar com os seus dedos turvos de clochard?
É esse pasmo sem tradução que Isaías sente e que consigo traz na retina carregada, sempre que, por artes de fortuita passagem, lhe advém ao olhar este ancestral Terreiro que hoje é a talvez aparente Praça do Comércio. E por isso repete: disse-me a visão desta alvorada que hei-de encontrar, no local dito de S. Paulo, esse homem de várias vidas, o qual, parecendo estar morto, continua ainda vivo no seu corpo e espírito, cruzando mundos e o mais que a natureza e os deuses criadores desde o princípio interditaram. Isaías acompanha o pôr-do-sol atrás da ponte suspensa e revê, na sua mente de estilhaços puros, as várias bússolas e indícios do pavão visionado. Tudo iria ocorrer, um dia, perto das naves do Mercado da Ribeira. Mas a tempo, espero, hei-de admoestar esse Abel desafortunado. Talvez haja já quem o tenha denunciado pelas muitas pragas que nos chegam do Oriente, do Egipto e até aqui dos Remolares e da Boavista. Hei-de admoestá-lo pelos muitos perigos que decerto correrá, dizia.
Fez-se noite e Isaías retoma agora o seu caminho habitual em direcção às portas neo-góticas que limitam a sul o parque automóvel da EDP, junto à Praça de D. Luís I. No esconso da portada, já aí chegaram, entretanto, o pirata, antigo jogador e corretor; o velho Mateus, ex-presidiário convertido ao budismo; o Nativo, reformado da lotaria; o Lémur, apeado de chulo e, por fim, Silvestre que, nos tempos áureos, fora campeão de natação em Algés. E Isaías repetiu para quem o ouvisse: Que pode um clochard ver diante dos seus olhos, senão a fotografia de algo que já foi, sem lugar nem tempo, mas que se perpetua no inefável desejo de apenas ser? Apenas isso, disse Isaías, mas sem jamais o ter dito através de tais palavras. Chegará depois a sopa dos pobres, a noite, mil luminárias, e Isaías continuará, apesar de tudo, a pensar que, na sua frente, o mundo não é um simples encadear de lugares e de factos, onde tudo se encaixa e se explica. Diante de si, o que luz é a própria matéria, a própria vida em movimento, embora desfocada do seu lado imediato, directo, actual.
O profeta desempregado dos nossos dias é este tipo de clochard que, em diferido, consegue transmitir, talvez a ninguém, recortes e retalhos da verdade que só ele entende, por via das mil figuras desenhadas nas nuvens mais baixas, após o crepúsculo. Isaías ama Lisboa e acima de tudo o Tejo. Adorava tornar-se, ele mesmo, na cor dessa água nocturna. Adorava ser o pavão vislumbrado na alvorada desse dia, magnífico nas suas cores de framboesa e ventura. Adorava poder cantar como o velho Adão, correr como o destemido Caim, contemplar como o reservado Abel. Adorava ser tudo isso, ao mesmo tempo. Talvez devido a esse desejo, sempre vivo e sempre ocultado, Isaías tenha explicado que a vida marginal e noctívaga, à beira desta 24 de Julho, não é senão a sapiência do acaso, a doutrina dos desacertos e a instrução da perdida providência.

quinta-feira, 17 de novembro de 2005

Cavaco Silva e o Abrupto

Estou de acordo com muito do que José Pacheco Pereira tem dito e escrito acerca da pré-campanha presidencial: de um lado, os “tribunícios” habituais e, do outro lado, Soares dissimulando tudo o que passou a ser no pós-11/09. Há ainda o enigma Alegre, cujo horizonte ficcional assenta na figura do ‘guerilheiro injustiçado’ à procura de um discurso e de um posicionamento claros. Por fim, aparece Cavaco, por quem JPP não esconde ilimitado e coerente apoio.
Hoje mesmo, sob o tema “Temas Presidenciais ( 3ª Série) - Uma Campanha Declarativa”, Pacheco Pereira avalia as razões que justificam a actual proeminência de Cavaco. Não concordo com esta ponderação concreta (e digo-o com a consciência de quem não se vai abster, embora com a certeza de que não irei votar em nenhum dos candidatos).
JPP começa por afirmar que Cavaco “parte com patamares de apoio” sem precedentes. Não creio que assim seja. De facto, Cavaco surge nesta pré-campanha tal como Soares e Sampaio surgiram no final dos respectivos primeiros mandatos: sem reais alternativas. Nos três casos, a criação acumulada de comunicação era - e é - mais do que suficiente para conter as máquinas de sinalização publicitária que fazem e enunciam as habituais campanhas. Seguidamente, JPP traduz a disponibilidade do eleitorado para a mensagem de Cavaco Silva em função de um “princípio de necessidade”. É verdade – e é tão óbvio quanto “exemplar” - que a necessidade de estabilidade pressupõe sempre a opção mais plausível (do mesmo modo que, para Kant, a necessidade de comprazimento pressupunha o belo). Ou seja, à falta de alternativas, a necessidade apenas acaba por aplicar o chamado princípio da ‘exclusão de partes’. E é exactamente por causa disso que toda a gente sabe que Cavaco Silva vai vencer as próximas eleições (sendo apenas dúbio quando, se na primeira, se na segunda voltas). No final do seu post, JPP inscreve na análise a dimensão mediática. É aqui que são focadas as consequências da “sobreexposição” e é aqui que ganha corpo a mais frágil de todas as ilações (baseada, creio eu, na recente entrevista à TV-I). O argumento de JPP é o seguinte: a pouca “plasticidade” de Cavaco seria dissuadida pelo facto de o candidato “falar de coisas sérias”. A tensão e a ausência do ‘must’ televisivo das blagues seriam assim superadas pela seriedade, como se esta se contrapusesse, por omissão, a tudo o resto que vai sendo enunciado e declarado na pré-campanha. À moralidade e alguma altivez do argumento (hipercodificando a seriedade, de modo monossémico, no meio de uma amálgama de ruído) corresponderá, por fim, o tom “declarativo”. E é este tom, afinal, que se constitui como substância vital da análise de JPP e que encontraria as suas raízes na capacidade de o “professor” escapar à anedota e à mundanidade, como se, no fundo, emergisse, ele mesmo, de um limbo puro, único e porventura providencial. Devo dizer que é um certo moralismo subliminar que me afasta de Cavaco. E o mais curioso - e surpreendente - é que é este mesmo esteio, impregnado de um silencioso “dever-ser” de imaculada exclusividade, que acaba, curiosamente, por se espraiar na entusiasmada análise de JPP acerca das potencialidades reais do candidato Cavaco Silva.

Agir

Que o ministro aja e seja eficiente. Se o fizer, nem chega a valer a pena dizer a palavra "vergonha", ainda que possa ter toda a razão.

Novas subcutâneas

O Minitempo actualizado: Poe e questões adâmicas literárias.

A mais curta história judicial - 42

O provedor da justiça limpava os óculos. O Juiz Silvestre amaciava a toga. O magistrado mais baixinho dizia que era espiado pelos serviços secretos de todo o mundo. E ali iam os três, confidentes, cada um com um vaso de sardinheiras na mão. Depois dos santos populares, demitiram-se em bloco. E fizeram muito bem.
e
Ponto final.

A mais curta história incidental - 41

O taxista lembrava o antigo nome da ponte e ela nada. O taxista vociferava, letra a letra, “S-a-l-a-z-a-r”. E ela nada. A bandeirada já passava dos dez euros e ela nada. Foi então que ela começou a trautear a abertura da ópera Guilherme Tell de Rossini. E o taxista, enfurecido com tal indiferença, travou de repente. E morreu.
e
Ponto final.