domingo, 30 de setembro de 2007

Pré-publicações - 56

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Pedro Marta Santos, Guia Terapêutico do cinema – Como curar insónias, fobias, depressões e desastres amorosos, Guerra e Paz, Lisboa, 2007 (Setembro).
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Pré-publicação:
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“No início de Matador de Pedro Almodovar, o protagonista (Nacho Martí­nez), um antigo toureiro, masturba-se em frente à televisão enquanto vê slasher films (filmes cujo objectivo é mostrar sangue e morte). Para Quentin Tarantino, um grande fã de Matador e um dos poucos cineastas que sabe transformar os slasher movies e os exploitation films em entretenimento auto-paródico, «Edi­son e os irmãos Lumière inventaram a câmara para filmar violência» .
Desde o seu início que o cinema tem um fraquinho pelos endiabrados e os iconoclastas. Tod Browning e James Whale gostavam de meter medo, Buñuel apreciava chocar e o Código Hays, o mecanismo auto-censório da indústria de cinema norte-americana, não impediu Elia Kazan ou Otto Pre­minger de abordarem temas proibidos como o racismo (Pinky), o estupro (Baby Doll) ou a droga (O Homem do Braço de Ouro). O Homem é violento, mas o Código, que vigorou entre 1934 e 1969 (!), não permitia «a obsce­nidade e a blasfémia» (sic). Samuel Fuller, um ex-jornalista de crime, que serviu na infantaria durante a Segunda Guerra Mundial, sabia que a vida era frequentemente obscena e blasfema, e os seus filmes libertam a fúria dessa percepção: se a dor, o sexo e a violência são tão indissociáveis da condição humana, porque não haveria de o ser do cinema?
É o nosso próprio corpo que dita essa relação ancestral entre dor, sexo e violência. A epinefrina (conhecida pelo nome mais carinhoso de adrenalina) e a norepinefrina são hormonas libertadas pelo corpo durante experiências dolorosas ou muito stressantes, podendo causar uma sensação de prazer. As endorfinas, que são uma espécie de opiáceos biológicos, produzem-se na glândula pituitária e no hipotálamo, servindo tanto de analgésico como de estimulador de bem-estar – talvez venha daqui a expressão «farmácia ambulante».
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Cotovia, Gradiva, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

Pré-publicações - 55

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Steven Landsburg, Mais sexo é mais seguro - A sabedoria irreverente da economia, Guerra e Paz, Lisboa, 2007 (Setembro).
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Pré-Publicação:
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"É verdade: a SIDA é o castigo da natureza para a nossa tolerância relativamente ao comportamento sexual desregrado e socialmente irresponsável. A epidemia é o preço a pagar pelas nossas atitudes permissivas face à monogamia, à castidade e a outras manifestações de conservadorismo sexual extremo.
Já terão lido muitas outras páginas acerca do pecado da promiscuidade.
Deixem que vos fale agora sobre o pecado da auto-repressão. Vejamos o caso de Martin, um jovem encantador e geralmente prudente, com um passado sexual limitado, e que tem estado a namoriscar docemente com Joan, uma colega do trabalho. À medida que se aproximava a festa do escritório, na semana passada, tanto Joan como Martin alimentavam silenciosa e separadamente a perspectiva de que talvez pudessem acabar por ir juntos para casa. Desafortunadamente, o Destino, através dos seus colaboradores nos Centros para o Controlo de Doença, interveio. Na manhã do dia da festa, aconteceu a Martin reparar num daqueles panfletos espalhados no metropolitano, patrocinados pelos CCD, apregoando as virtudes da abstinência. Castigado e purificado, decidiu ficar em casa. Na ausência de Martin, Joan foi fisgada por Maxwell, igualmente encantador, mas consideravelmente menos prudente – e Joan foi infectada com SIDA.
No momento em que o cauteloso Martin se retira do jogo de acasalamento, torna mais fácil para o ousado Maxwell atacar a desgraçada Joan. Logo, se aqueles panfletos no metropolitano são mais eficazes contra Martin do que contra Maxwell, então, são uma ameaça para a segurança de Joan. E isto é ainda mais verdade quando estes panfletos se substituem aos anúncios da Calvin Klein, que poderiam ter colocado Martin num estado de espírito mais benéfico do ponto de vista social."
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sábado, 29 de setembro de 2007

Volta ao Mundo - 6

Acabo de receber mais uma crónica da volta ao mundo que a Clara e o Miguel estão a dar durante um ano. Lembro que tudo se iniciou no início de Setembro e que os dois viajantes já passaram, entretanto, por Madrid, Havana, Galapagos e, como se pode ver, pelo Equador. Boas leituras!
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"La Mitad Del Mundo
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Tinha acabado de chegar. Foi tirando com calma tudo o que guardara no saco. Um chapéu de abas largas, um guarda-chuva, um casaco comprido, um lenço, outro lenço e outro e outro. E sentou-se, como se esperasse. Passaram uns minutos. Com uma suavidade desenquadrada da paisagem vestiu o casaco, o chapéu, espalhou os lenços pelo corpo, abriu o guarda-chuva. E começou a dançar.

Pousei o café e olhei com mais atenção. Movimentos surdos diluíam-se no chão. Como os seus olhos. Não dançava para ninguém, apenas para si.
Vivo numa das cidades mais altas do mundo. Mas não tenho medo de cair. Uma vez por mês subo a Cotopaxi para não me esquecer. Deste ar que respiro, deste azul tão fundo, de que vivo na metade do mundo.
Não sei se cantava.
E foi de repente. Olhou para mim:
- Estranhas-me?
Nada. As palavras adormeciam-me na garganta.
- Não tenhas medo de mim. Só não quero ser ausente de sombra.
Disse-me.
Ausente… de sombra. Ausente… de sombra. Sabia, mas não reparara. Ao meio-dia Quito transforma-se na cidade dos homens sem sombra.
Menos a Isabela. Uma menina de quinze anos que se aumenta, que inventa pedaços de corpo apenas porque nunca quer guardar todo o sol dentro de si.

(Antes de começar esta viagem tinha uma certeza: queria escrever histórias do mundo. Sem necessidades descritivas ou de relato diário de experiência pessoal. Apenas contar uma história de alguém com outra perspectiva do que pensamos conhecer, que não fosse possível ler num guia, na Internet ou num livro de viagens. E é tão simples, não tenho que as procurar. Basta-me olhar e querer ver. O que me atraiu em Quito não foi ser Património Mundial da Humanidade, ou ser uma cidade rodeada de vulcões castanhos e azuis e brancos, ou ter um centro histórico tão bem conservado, tão colonial, tão esmagador, com tão pouco oxigénio. Foi saber o que pensa alguém que vive sem sombra)."

Episódios e Meteoros - 50

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A medalha de Sócrates
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(crónica publicada desde ontem no Expresso Online)
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Falar de uma máquina do tempo foi sempre falar de fantasmas. Mas convenhamos: mesmo entre fantasmas, há fantasmas e fantasmas. Por exemplo, o lado fantasmático do popular Back to the Future de Robert Zemeckis nada tem que ver com a imaginação suscitada por Orlando de Virginia Woolf, nem com a ("impossível") imagem de uma derrota eleitoral para Marques Mendes ou para Luís Filipe Menezes. Cada uma destas fantasias corresponde a um patamar bem diferente, embora exista nelas algo comum, justamente porque uma máquina do tempo é sempre um artifício que serve para exorcizar as fragilidades da vida.
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As várias histórias do paraíso, a Atlântida visionada por Platão no Crítias, terra de lagos e de crateras cheias de vinho, ou a actualizada metáfora do "Middle-West" (Sócrates teve decerto em vista algo mais enigmático do que o Iowa ou o Nebraska) são também cenários de diversas máquinas do tempo onde o sonho (ou, por vezes, o lapso) supera a simples ordem do vivido.
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Uma máquina do tempo articula, como todas as máquinas bem oleadas, dois termos. Neste caso, em vez de hardware e software, temos os rituais biográficos e os rituais do dia-a-dia. O modo como a máquina os coloca em harmonia depende essencialmente do combustível, isto é, das narrativas que dão - ou que vão dando - sentido à nossa vida.
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Em tempo de imagens, as novas narrativas vivem sobretudo de fluxos (ficcionais) de informação que têm intensidade e duração diferentes. Por exemplo, a imagem da gripe das aves, a imagem dos McCann, a imagem do murro de Scolari ou a épica de Mourinho são mais persistentes do que as imagens caducas de Aquilino no Panteão, do surfista desaparecido em Espinho ou até da imagem da guerra ao Irão promovida pelo Ministro dos Negócios Estangeiros francês.
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Todo este insaciado combustível (de trânsito televisivo ou cibernáutico) alimenta essencialmente o hardware. Ou seja: dá-nos a pista de dança, enquadra-nos num espaço de sentido, numa lógica. Mas depois, claro, existe o espaço da congeminação individual: o chamado tempo das expectativas que nem sempre se adequa a esta voragem de imagens. É aqui que o software de cada um pode alterar tudo, até porque é feito de conjecturas (aceleradas e) cruzadas que tentam seriar a informação e domar, a seu bel-prazer, a própria máquina do tempo. Nem sempre com sucesso, é certo. Mas muitas vezes com um sorriso parcialmente vencedor. E irónico.
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A "falha", ou o lapso - sei do que falo -, constituem amiúde formas exultantes de ironia. Sócrates, na passada semana, face a face com Bush, levou consigo esta preciosa medalha. Para mais, sem ter minimamente dado por isso.

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Pré-publicações - 54

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William Blake, Cantigas da Inocência e da Experiência, tradução e introdução desta edição: Manuel Portela; Antígona, Lisboa, 2007 (Setembro).
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Pré-publicação (extracto do prefácio de Manuel Portela):
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William Blake (1757­‑1827), gravador, pintor e poeta, nasceu e morreu em Londres. Oriundo de uma família dissidente de pequenos comerciantes, as suas inclinações místicas e artísticas manifestaram­‑se desde tenra idade. Teve ainda na infância as primeiras visões de anjos. Aos dez anos, ingressou na Escola de Desenho de Henry Pars. Durante cinco anos aprendeu a técnica do desenho, mas acabaria por não seguir para a Academia de Pintura e Escultura de St. Martin’s Lane, uma das principais escolas de arte de Londres. Em 1772 foi admitido como aprendiz do gravador James Basire, trabalhando na sua oficina durante sete anos. Foi aí que começou a adquirir a mestria nas técnicas da gravura, que veio a ser o seu meio artístico predilecto. Em 1779, último ano do contrato de aprendiz, ingressou na Escola da Royal Academy (fundada em 1769), cujo currículo abrangia as disciplinas de pintura, anatomia, perspectiva e arquitectura. O contacto com o mundo artístico londrino intensificou­‑se nestes anos, tendo exposto por três vezes pinturas e desenhos na Royal Academy, mas acabaria por se dedicar sobretudo à gravura. Fez a sua primeira gravura comercial em 1780, tendo realizado ao longo da vida cerca de 580 ilustrações e gravuras para vários editores, destinadas a obras de índole diversa – livros de orações, livros de poemas, livros para crianças, narrativas de viagens, estampas artísticas, etc. –, ou por encomenda de clientes particulares. Da sua obra como ilustrador, destacam­‑se as ilustrações para os poemas L’Allegro, Il Penseroso e Paradise Regained, de John Milton, realizadas entre 1816 e 1820; os desenhos e aguarelas para o Livro de Job, realizados em1821; e o conjunto de desenhos, aguarelas e gravuras (nunca concluídos) para A Divina Comédia, de Dante, realizados entre 1824 e 1827.
O interesse na gravura reflecte­‑se numa preferência por linhas, contornos e superfícies definidas, que caracterizam também os desenhos e pinturas. A obra pictórica revela a influência da arte clássica e da arte gótica, cujas formas Blake conhecera, em certos casos, por intermédio de gravuras. Os primeiros poemas salientam­‑se pelo uso de formas métricas e estróficas regulares, às vezes de sabor arcaico. No que diz respeito à imaginação literária, são evidentes as influências das leituras da Bíblia, da literatura renascentista inglesa, das obras do poeta John Milton e da literatura mística de Jakob Böhme e Emanuel Swendenborg. Por volta de 1788 experimentou integrar textos e imagens na mesma chapa, combinando a tecnologia da impressão com a tecnologia da pintura. Desenvolve progressivamente uma técnica que vai culminar no livro impresso iluminado , forma que continuará a usar até ao fim da vida. Esta técnica resultou num dos primeiros exemplos de arte intermédia reproduzível, isto é, uma arte que é simultaneamente poética, pictórica e mecânica. Deste modo, a disposição eidética e visionária de Blake incluía a tecnologia de mediação gráfica: o acto de imaginar a imagem era igualmente o acto de tentar reproduzir, através de uma técnica mecânica, as imagens verbalizadas ou desenhadas. Esta técnica permitia­‑lhe o controle directo sobre todas as fases de produção, desde a escolha do papel até à publicação e distribuição.
Todos os livros iluminados de William Blake foram gravados, impressos, coloridos e publicados pelo autor. A aplicação da cor terá sido feita, por vezes, em colaboração com Catherine Blake. Mesmo quando a tira­-­gem impressa era de vários exemplares, o facto de cada página ser colo­rida individualmente significa que cada cópia era, de certo modo, uma edição. A variação na aplicação das cores e, em certos livros, na ordem relativa das gravuras, de exemplar para exemplar, acentua a singularidade de cada cópia­‑edição, ainda que parte das variações decorram do modo manual desta forma de trabalho e não de uma intenção de produzir variações. Em geral, a variação cromática é tanto maior quanto maior é a distância temporal entre exemplares ou grupos de exemplares, o que reflecte a evolução na execução técnica e na concepção do livro impresso iluminado. A comparação de exemplares produzidos no ano da primeira impressão com exemplares produzidos alguns anos depois, ou já nos últimos anos de vida, comprova o uso de diferentes paletas de cor ­– para alterar texturas, graus de transparência e opacidade e atmosferas gerais –, e também a omissão ou o adição de elementos ao desenho gravado original. Por outras palavras, é materialmente visível a intenção de releitura de muitas páginas dos seus próprios originais, que assim parecem incorporar a passagem do tempo na sua forma. Esta releitura autoral cria novos eixos de sentido na relação entre a matéria pictórica e a matéria linguística das gravuras, pelo que não é indiferente para o acto de interpretação da página iluminada o exemplar a partir do qual se lê.
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O Tigre
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Tigre, Tigre, brilho ardente,
Lá nas florestas da noite;
Que olho, que mão traçaria
Tua feroz simetria?
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Em que infernos, em que céus
Arde o fogo dos teus olhos?
Que fole o pôde soprar?
Que mão tal fogo agarrar?

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E que braço, & que arte,
Pôde o coração talhar­‑te?
E quando a bater se pôs,
Que pés terríveis? Que mãos?
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Que martelo? E que malha?
E teu cér’bro em que fornalha?
Que bigorna, ou forças tais
Agarram garras fatais?
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Quando as estrelas raiaram
E o céu de pranto inundaram:
Sorriu ele ao ver­‑te inteiro?
Quem te fez, fez o Cordeiro?
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Tigre, Tigre, brilho ardente,
Lá nas florestas da noite:
Que olho, que mão traçaria
Tua feroz simetria?
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Cotovia, Gradiva, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Cerveja e literatura - 19

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No início do romance de Steinbeck, Um dia diferente (original: Sweet Thursday, 1954), Doc regressa ao "Laboratório Biológico do Oeste", após a guerra, e constata que o encarregado, Old Jingleballicks, nunca de facto chegou a tomar conta das instalações nos últimos dois anos. Depois de cair em si, sai de casa e é a cerveja que acaba por transformar-se em meta imediata. Digerir o inadiável. Afinal, a Doc, "todas as cervejas agradam":
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"Doc deixou-se cair na sua velha cadeira absolutamente aniquilado. Amaldiçoou Old Jingleballicks, saboreando o veneno das suas palavras, e, em seguida, levantando-se automàticamente, encaminhou-se pela rua imersa em silêncio para a loja de Li-Chong, a fim de comprar cerveja.
Só que ao ver por trás do balcão um homem bem vestido, mexicano pela aparência, ocorreu a Doc que Li-Chong tivesse partido.
- Cerveja – disse Doc. – Duas garrafas.
- Pronto – respondeu o lojista.
- O Mack está por cá?
- Sim, senhor.
- Diz-lhe que quero vê-lo.
- Digo-lhe que quer vê-lo quem?
- Diz-lhe que o Doc voltou.
- Sim, senhor Doc – respondeu o homem.
- Esta cerveja agrada-lhe?
- Todas as cervejas me agradam – respondeu Doc."
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(John Steinbeck, Uma dia diferente, tradução: João Belchior Viegas; Livraria Bertrand, Lisboa, S/d, p.13)

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Pré-publicações - 53

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Rubem Fonseca, A Grande Arte, Campo das Letras, Porto, 2007 (Setembro)
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Pré-publicação:
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"Não era uma ferramenta como as outras. Era feita de material de qualidade superior e o aprendizado do seu ofício muito mais longo e difícil.
Para não falar no uso que dela fazia seu portador. Ele conhecia todas as técnicas do utensílio, era capaz de executar as manobras mais difíceis – a in-quartata, a passata sotto – com inigualável habilidade, mas usava-o para escrever a letra P, apenas isso, escrever a letra P no rosto de algumas mulheres.
A mulher estava deitada ao seu lado falando banalidades. Ele olhou à sua volta. As paredes eram pintadas de verde, como certos hospitais. Havia um toca-discos, coberto por uma capa empoeirada de acrílico, ao lado de uma televisão portátil. Uma lata de talco ordinário estava sobre a cama e ele tocou-a com o pé descalço.
Não adiantava imaginar por que fazia aquilo. Era uma perda de tempo especular por que determinadas coisas dão prazer. O P não tinha ressonâncias literárias, nem ele se considerava um psicótico puritano querendo esconjurar a congénita corrupção feminina.
O facto de as mulheres serem prostitutas não tinha qualquer influência em sua resolução. Apenas não queria correr riscos, por isso escolhia indivíduos que a sociedade considerava descartáveis. Mas, ao olhar o rosto da mulher curvada sobre seu corpo nu, admitiu que talvez estivesse mentindo para si mesmo. Era mesmo uma mulher inexpressiva, não faria realmente falta. O prazer que podia propiciar era mínimo, fácil de achar, de imaginar.
A mulher passou a língua no seu peito, detendo-se no mamilo. Sentindo o ingurgitamento no baixo-ventre, afastou-a e levantou-se, postando-se em pé ao lado da cama. A mulher ajoelhou-se à sua frente, dúctil, funcional.
Ele agarrou-a pelo pescoço e jogou-a de costas ao chão, acrescentando à força das mãos o peso de seu corpo. A mulher abriu a boca, tentando respirar, emitiu um grunhido roufenho, os olhos arregalados fixados no rosto dele, os braços levantados, os dedos trémulos, procurando um apoio que a salvasse de afundar e sucumbir na escuridão que rapidamente a engolfava.
Tudo durou poucos segundos.
Dentro da bainha de couro estava o objecto brilhante, que ele segurou, colocando-se en garde, os músculos do corpo tensos – uma recreação que se permitiu, naquele momento de euforia e volúpia. Mas logo mudou a empunhadura do instrumento e sentou-se ao lado da mulher no chão. Cuidadosamente traçou no rosto dela a letra P, que no alfabeto dos antigos semitas significa “boca”.
Apanhou suas roupas sobre uma cadeira e vestiu-se alerta, expedito, apesar de sua mente não ter parado de imaginar e lembrar. Quando terminou inspeccionou o quarto e o banheiro. Verificou pelo visor da porta que o corredor estava vazio. Ao sair limpou com um lenço o botão da campainha fazendo-a soar, a única falha, todavia irrelevante, em seu cauteloso procedimento.
Não haveria impressões digitais, testemunhas, quaisquer indícios que o identificassem. Apenas sua caligrafia.
Não tomei conhecimento dos factos de maneira ordenada. Os Cadernos de anotações de Lima Prado chegaram-me às mãos muito antes das minhas conversas com Míriam, que me ajudaram a entender as relações de Zakkai, o Nariz de Ferro, com Camilo Fuentes. Para reconstituir o que se passou no apartamento de Roberto Mitry, além de minhas deduções e induções, baseei-me nas informações de Monteiro (o nome verdadeiro não era esse), o vendedor de armamento bélico."
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Cotovia, Gradiva, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

Pré-publicações - 52

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Clara Pinto Correia, Complementos Indirectos - Um Guia Prático para uma Escrita Feliz em Português, Quasi, Famalicão, 2007 (Setembro).
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Pré-Publicação (da "Introdução"):
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"(...) O português é uma língua maravilhosa. Tem uma riqueza de vocabulário deslumbrante, uma flexibilidade magnífica na articulação das ideias, uma lógica de utilização que raramente deixa margem a dúvidas, e uma beleza de entoação que atravessa sem vacilações todo o espectro linguístico que vai da oralidade analfabeta à erudição académica. Soa bem tanto nas canções como nos discursos, e é atraente para quem o ouve sem saber de que linguajar se trata. Por tudo isto, quem sabe expressar-se bem em português já percorreu meio caminho para ter o mundo na mão.
No entanto, uma grande parte dos portugueses parece desdenhar a sua língua de forma quase acintosa, e o senso comum não se cansa de insistir que esta tendência está a aumentar entre nós. Na Universidade, reparamos, certamente, que os nossos alunos, acabados de chegar do secundário, já com doze anos de aprendizagem de português em cima, escrevem muito mal e se expressam com dificuldade. Poderemos culpar
o Ministério da Educação por este fenómeno? Estaremos perante a consequência perversa de todos os passos desviantes que se foram dando até se chegar ao labirinto exasperante do TLEBS? Não temos a certeza absoluta, mas eu lembro-me de ir à escola e considerar absolutamente excitante aprender os segredos do bom português. Sei também que esta descoberta nunca está completa se não aproveitarmos aquelas idades em que ainda temos muito tempo livre para lermos avidamente tudo o que nos passa ao alcance das mãos – em casa, nas bibliotecas, nas feiras, nas estantes dos amigos, onde quer que a oportunidade de aumentar a nossa base de dados se proporcione. Talvez seja verdade que o ensino e o mundo actuais incentivam pouco os jovens a ler. Essa teria que ser a primeira linha da catástrofe a inverter-se. E, logo a seguir, seria preciso devolver ao estudo do português o carácter de descoberta emocionante que ele tinha quando eu ia à escola.
Seja como for, vivemos confrontados com a realidade de que o domínio do português de grande parte dos portugueses é no mínimo sofrível, e sabemos que essa limitação afecta todas as possibilidades de carreira e felicidade no trabalho de cada pessoa que padece dela. Uma apresentação oral mal feita, um memorando mal escrito, e lá se vai a vaga tão cobiçada para aquele emprego que parecia feito por medida para o candidato chumbado. O estrago, aliás, faz-se sentir antes mesmo da entrada no mercado de trabalho: um exame cheio de erros ortográficos, com verbos mal conjugados e uso estropiado de pronomes, tem incontornavelmente uma nota inferior a outro exame idêntico com o mesmo número de respostas erradas mas de redacção clara e compreensível. A média com que se sai do curso pode estar intimamente afectada pela falta de controlo sobre a língua portuguesa que o estudante manifesta (...)"
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Cotovia, Gradiva, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

Cerveja e literatura - 18

e
E... depois há escritores de que se gosta muito. Mesmo muito. Patrícia Melo faz parte dessa minha escassa galeria. Encontrar cerveja na sua obra não é tarefa do alvor cinematográfico. De facto, o agraciado líquido, não sendo abundante, cruza-se razoavelmente com situações e personagens como se cruzará, no mercado de Belém, a “carne, o perfume, a geladeira, tralha para umbanda, artesanato, peixe roupa, panela, fruta, comida, peça para fogão, planta para arranjar marido”, tudo. Mas antes de qualquer chegada a Belém, a cerveja – aliás uma cerveja bastante acompanhada – acabará por intrometer-se na procura da verdade:
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“Quase não conversamos durante a viagem até Belém. Rôni não estava bem, transpirava muito, chegou a vomitar num saco de plástico.
Não me perguntou nada sobre a morte do meu irmão, e eu fiquei aliviado de não ter que contar que tudo saiu diferente dos meus planos. Minha ideia, enquanto eu ia para a casa de Adailson, debaixo do sol, com a barriga entupida de tucunaré e cerveja e a cabeça zonza de maconha, era inventar uma mentira e me picar.
Achei que ia resolver tudo na conversa. Enrolar.”
e
(Patrícia Melo, Mundo Perdido, Campo das Letras, Porto, 2006/2007, p. 155)

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Cerveja e literatura - 17

e
O livro de Malcolm Lowry, por que me apaixonei há muitos anos, reúne duas narrativas e tem um título que se propaga como o eco nos grandes espaços inexplorados: Hear Us O Lord From Heaven Thy Dwelling Place & Lunar Caustic. Das 347 páginas da edição que tenho em casa (Penguen Books, 1979), há uma tradução parcial portuguesa (da p. 26 à p. 99) correspondente ao capítulo Through The Panama (Através do Panamá) da primeira das narrativas. No início do meu romance As Saudades do Mundo (Editorial Notícias, 1999), coloquei os meus personagens no mesmo barco (o "Diderot") que Lowry fez sair de Vancouver. Trata-se de uma viagem iniciática, alcoólica e visionária. A certa altura, já com vinte e três dias de viagem, o "Diderot" aporta em Curaçao. E é aí que surge a passagem "deliciosa" que, finalmente, sabe a cerveja (de facto, já chegava de tanto rum!):
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"(...) uma cidade deliciosa, muito limpa, ordenada e holandesa; telhados aguçados, vermelhos, como um conto de fadas holandês nos trópicos. Água verde-azeitona com uma película de óleo. A brisa marinha fede.
Tendo carregado uma caixa de rum, fomos a terra: ruas:
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Amstelstraat: 10 C, Pinto & Vinck.
Koninklijke Nederlandsche.
Stoomboot-Maatschappij N.V.
e
– e:
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e e Hoogspanning
Levensgevaar
Peligro de muerte
Electricidad
Danger
d
Como nos divertimos!
e
- Marinheiros, visitai a nossa terra: Cinelândia: Klipstraat (bom nome?): Entrem! Cerveja Fresquinha! Restaurante La Maria: Emma Straat: Cornelis Dirksweg:
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Leonard B. Smith – Plein: Borrairesstraat: Jupiter – Amsterdam...
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Árvores com sombrinhas achatadas.
Numa rua com os bancos estranhamente fechados por ser domingo, que me fizeram pensar nos Buddenbrooks, refugiámo-nos duma chuvada no Wonder Bar (...)"
e
(Malcolm Lowry, Através do Panamá, tradução: Anna Hatherly; Relógio d’Água, Lisboa, 1991, p. 57)
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Nota: o "Blogger" não aceitou a disposição gráfica do original. Contudo, as alterações (necessariamente introduzidas) são insignificantes.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Cerveja e literatura - 16

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Uma primorosa descrição de Rodrigues Miguéis a evocar a cerveja Gueuze. Quando se bebe uma Gueuze pela primeira vez, há um halo de champagne que se espalha pelo corpo. Pelo corpo todo. Talvez seja por isso que, na Holanda e na Flandres, ela leve quase sempre meia roda de limão na parte de cima do copo. No texto de Miguéis, a Gueuze é equiparada a um “deus insaciável” que joga às cartas com a “retícula vermelha” da sua simpática personagem, a Madame Lambertin:
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“Madame Lambertin era flamenga à vista desarmada, e de maneiras bastante livres, mas com certa tinta bondosa. Devia passar bem dos trinta. Quando sorria, o sorriso enchia-lhe a cara toda. Tinha os olhos verdes e bastante vivos. Da janela do meu quarto passei a vê-la atravessar todos os dias a rua, a caminho da brasserie da esquina, em frente, onde ia aplacar um deus insaciável. Voltava com uma cabazada de garrafas de Gueuze. Chegava a beber (soube-o depois) às dezoito e vinte por dia. Era decerto o que lhe estragava a frescura, ainda apreciável através da retícula vermelha que já lhe bordava as faces.”
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(José Rodrigues Miguéis, Léah e Outras Histórias, Editorial Estampa, Lisboa, 1960)

domingo, 23 de setembro de 2007

Pré-publicações - 51

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JP Simões - André Carrilho, O Vírus da Vida, Sextante Editora, Lisboa, 2007 (Setembro).
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Pré-publicação:
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" (...) Ela vinha no comboio das nove: meia hora antes já ele estava na estação, com um raminho de miosótis meio amassados e um medo terrível de não a conseguir fazer sorrir. Ele julgava-se um dos homens mais confusos do mundo, mais vacilantes. Um desencanto com pernas. E ela parecia afastar-se mais um pouco em cada lua nova, cada vez mais exigente e menos satisfeita: os violinos da separação timbravam-lhe os gestos, cada vez mais ásperos. Houve dias em que a ternura era uma maravilhosa praga de gafanhotos, aos pulos por todo o corpo, a devastar todas as dúvidas que bloqueavam o tango. «We’re going to see the Wizard, the wonderful wizard of Oz», cantavam os dois no duche, e aquela alegria infantil era um milagre para duas pessoas que tinham residência fixa na melancolia. Esses dias passavam como cometas de açúcar. Noutras alturas maior era a queda. Ela não imaginava um futuro para os dois, ele imaginava futuros muito improváveis e impingia-lhe uma data de sonhos em segunda mão. Ele era quase crédulo e de vontade fraca, ela fingia-se forte e capaz de raciocinar sobre os factos, o que é próprio das pessoas fortes. Ele desculpava-se, ela culpava-o de estar sempre a pedir desculpas; ele assumia tudo e mais alguma coisa que o mundo tivesse de mau, para pôr em relevo as suas qualidades; ela sabia que essa era muito velha e dizia-lhe que talvez não tivessem mais nada a conversar. Acabavam por chorar os dois, abandonados sobre a cama desfeita, e das cinzas renascia uma fagulha de ternura que haveria de incendiar tudo outra vez. Resumindo: por mais errado que tudo pudesse estar ele só desejava que assim permanecesse. Ele sabia que não era como nos livros, mas sabia que todos os dias se escrevem livros novos. Amava-a, mas o amor não era a mesma coisa para cada um deles, e ele estava convencido de que o grande problema vinha dele, do facto de ser um homem pouco exuberante e de uma atroz insegurança. Mas ela havia de amá-lo, cada vez mais; em cada despedida, em cada reencontro: ele iria tornar-se perfeito para ela, depressa, já. O Applefeiçoador Integral era infalível: duas injecções de Performa e Charmintosh e zás!
– Fizeste boa viagem? Perguntou ao pegar-lhe na mala, por entre uma multidão de sapatos recém-chegados.
– Mais ou menos, respondeu. Estou cansada. Podemos ir para casa, ou se calhar podíamos ir tomar um café?
– Vamos para onde quiseres, sorriu ele. Estava cheio de saudades tuas. O cabelo fica-te muito bem assim!
– Reparaste?! Que grande progresso, disse ela meio condescendente.
– Estás muito bonita, disse ele. Cada vez mais.
Estendeu-lhe então um pequeníssimo ramo de miosótis e, mal ela esboçou um sorriso, ele abraçou-a e disse-lhe que nunca mais a queria longe dele, que as cotovias lhe contaram o segredo da felicidade, que Vénus e Júpiter lhes abençoaram o amor, que teve um sonho onde ela caía do céu e ele a agarrava em pleno ar para caírem os dois e o chão desaparecia debaixo deles, que o mundo inteiro não vale uma lágrima dela, que ela vale todas as lágrimas do mundo, que deus prometeu pagar a renda do pequeno apartamento na colina com vista para o mar, que a lua prometeu balançar ao som daquela canção que ele lhe escreveu entre dois suspiros, que bastavam duas doses de Applefeiçoador por dia para que fossem felizes para sempre…"
e
Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Cotovia, Gradiva, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

sábado, 22 de setembro de 2007

Episódios e Meteoros - 49

e
(ler versão completa no Expresso Online)
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Nos cenários da nossa vida política, a maior parte das narrativas que nos entra em casa sofre desta sensaboria. E não é por causa do "cinzentismo", da "falta de causas", do "discurso circular" ou da liturgia da cassete. Não. É muito pior. É porque, ao contrário do que - por exemplo - acontece na publicidade, aquilo que os políticos têm a dizer deixou de ter como alvo o público. O fim a atingir passou a ser outro: a maioria dos políticos fala para cumprir o tempo que geralmente lhes passa ao lado. Falam para legitimar a sua existência. O seu estar ali. Não como num ritual, ou numa performance, mas ao jeito de uma personagem que, à beira da falésia, repete cinco ou seis vezes o seu nome próprio. E escuta o eco para confirmar a praga.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Cerveja e literatura - 15

e
Estive em Cantuária (Canterbury) há oito anos. Na memória, ficou-me a imensa catedral e a espessura da cerveja. Não acrescentei a Chaucer nada do que já conhecesse, mas as bagas do lúpulo, essas, ficaram cá. E, ao ler, pela primeira vez, confesso, o romance – de nome sintomático – Cakes and Ale or The Skeleton in the Cupboard (1930 - tradução portuguesa: Destino de um homem) de Somerset Maugham, lá reapareceram as paisagens de Kent, as suas sebes, olmos e tabernas:
e
"Quando uma taberna tinha um ar simpático, geralmente propunha que parássemos uns cinco minutos para tomar um copo de cerveja, e então conversava com o proprietário sobre colheitas, o preço do carvão e outras coisas do género."
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Mas o relato deste livro saboroso torna-se ainda mais apaixonante, quando o protagonista, no seu diálogo com Roy (sobre Edward Driffield), contempla a paisagem que serve de berço às próprias cervejas artesanais da região:
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"De quando em quando, passávamos diante de vivendas com pequenos jardins na frente, e nos jardins havia malva-rosas e lírios. A pouca distância da estrada avistavam-se granjas, com espaçosos celeiros e fornos para secar lúpulo, e passava-se pelo meio dos campos de lúpulo, com as bagas em maturação pendendo em grinaldas. As tabernas eram acolhedoras e aprazíveis, pouco mais importantes de aspecto do que as vivendas, e na entrada cresciam geralmente madressilvas. Tinham nomes simples e familiares: The Jolly Sailor, The Merry Ploughman, The Crown and Ancor, The Red Lion."
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(Somerset Maugham, Destino de um homem, tradução: M.E. Almeida Lima; Edição Livros do Brasil, Lisboa, 1977, pp. 129/139)

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Pré-publicações - 50

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Don Cheadle e John Prendergast, Basta – Acabar com o Genocídio no Darfur, Bizâncio, Lisboa, 2007 (Setembro)
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Pré-publicação:
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"PREFÁCIO
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EU SOU UM JUDEU que se lembra da época em que o meu povo, na Europa ocupada pela Alemanha, foi condenado ao isolamento, à fome, à humilhação, a um terror indescritível e à morte. Até quase ao fim da guerra, ninguém veio em nosso auxílio.
Sou membro da família humana que se lembra dos oitocentos mil seres humanos que foram massacrados no Ruanda em 1994. Podiam ter sido salvos, mas ninguém foi em seu auxílio. Os líderes do mundo conheciam as intenções dos responsáveis e a vulnerabilidade das vítimas, mas não fizeram nada. Era tudo conhecido e, para vergonha da sociedade civilizada, centenas de milhares de homens, mulheres e crianças foram abandonados e depois chacinados.
Escrevo isto hoje porque no Darfur, Sudão, há famílias a serem deslocadas e mortas à fome, crianças atormentadas e assassinadas aos milhares e mulheres violadas com impunidade. O mundo sabe que os povos não árabes do Darfur estão a morrer aos milhares e contudo, aos olhos das vítimas, o mundo permanece indiferente à sua situação.
Recuso-me a manter o silêncio enquanto os líderes do mundo arranjam desculpas para não proteger o povo do Darfur. Escrevo para dar voz à minha compaixão pelas vítimas e à minha ira contra os líderes receosos, complacentes e relutantes em correr riscos. Lembrem-se: o silêncio ajuda o assassino, nunca as suas vítimas.
Hoje o Darfur é a capital do sofrimento humano. O Darfur merece viver e cidadãos americanos estão a dar-lhe razão para ter esperança. Não ajudar, não incitar os nossos governantes eleitos a intervir e a salvar vidas inocentes, de qualquer maneira possível e necessária, é condenarmo-nos por imoralidade. Deixar de exigir o fim do actual genocídio no Darfur colocar-nos-ia do lado errado da História. E esse pensamento devia ser intolerável para todos nós.
e
Pela nossa humanidade, SALVEM O DARFUR!
e
Professor Elie Wiesel.
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Cotovia, Gradiva, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

Cerveja e literatura - 14

Por vezes, a lucidez é uma questão de espuma. Sem dúvida nenhuma. E quando a intriga flui ao jeito de Ruth Rendell, é óbvio que o simples facto de um personagem “usar a cabeça” se pode transformar numa caixa de surpresas. Embora a cerveja – e não tanto o “sumo de laranja” – a tal ajude. E de que maneira:
e
“Com um copo de cerveja à sua frente e não sumo de laranja, Wexford disse:
- Tu és pior do que o Dr. Watson! E já que falamos nisso, embora eu tenha o maior respeito por Sir Arthur, a vida não é muito parecida com as histórias de Sherlock Holmes e não creio que alguma vez fosse. As pessoas não alimentam vinganças durante anos e anos, nem acham impossível subornar agentes de vendas mais ou menos respeitáveis, pais de família, para assassinarem por sua conta.
- Mas disseste – retorquiu Crocker – que os Scott estavam em casa dos Rushworth.
- Não, não disse. Usa a cabeça!”
e
(Ruth Rendell, Morte nas Ruínas, Publicações Europa-América, Mem Martins, 2006, p. 184/185)

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Volta ao Mundo - 5

A Clara e o Miguel já vão, neste momento, a caminho do Equador. Fica aqui o testemunho da viagem. Mas antes deixaram-me a imagem da cerveja "Fuerte" (ver em baixo). Espero nova crónica em breve. Vai ser assim durante um ano.
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A cerveja Fuerte a que a Clara Piçarra acrescenta uma condicional: "Se lhe acrescentarmos uma boa conversa, torna-se numa das mais literárias."
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Cerveja e literatura - 13

e
É depois da grande zaragata no botequim, “cheio de pescadores” que vinham da banda do Terreiro (capítulo XXV – “Uma Taberna de Baleeiros”), que os quatro homens entram no “aconchegado”. E a cerveja surge aqui apenas como um salpico de mar, um bem menor que parece não se querer bater com o enigmático "Fòkim". A escrita de Nemésio é uma emboscada. Uma bátega de que se não deseja jamais fugir:
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“Antes da debandada geral, Roberto fez sinal ao João da Cezilha e ao Tio Amaro da Mirateca; e, agregando o sr. Silveirinha, entraram no botequim deserto.
- Genebra, Jzezinho!
- Por mim agradeço. Não tomo bebidas brancas, disse o professor.
- Então vinho... cerveja...?
- Oh, sr. Silveirinha... – disse o João da Cezilha, com o branco do olho molhado; –ûa pinga de Fòkim inté faz bem à barriga.
- Agradecido! Não tomo.
- Traga então só três cálices – disse Roberto.
Sentados à mesinha do truque, Roberto repetiu e reforçou naquele ambiente aconchegado as suas razões de calma. De resto, por uma questão de pouco tempo não faziam falta as canoas. O Canal estava em paz podre. Há meses que nem um cachalote esguichava ao largo o borralho branco do céu; deviam andar em bandos na correnteza do Golfo, de queixos presos a polvos entrançados por tentáculos de quilómetros.”
e
(Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal, Círculo de Leitores /JMMD, Lisboa, 1973, p. 254)

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Cerveja e literatura - 12

e
Para grandes males grandes remédios, dir-se-á. Uma boa salsicha deve, no entanto, ser acompanhada por uma Lager que flua bem, minimamente amarga e que tenha um frutado capaz de suavizar o palato. Daí que tanta evocação, ao mesmo tempo, possa parecer excessiva. Mas, enfim, o protagonista de Delbe não terá passado um bom bocado. Desculpa-se:
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“Durmo profundamente. Empaturro-me com as boas Bratwurste mit Kraut que são servidas em toda a parte. E com cerveja e vinho branco! E com a obstler, a aguardente local! A aventura dá sede. E preciso recuperar: mesmo assim, é preciso não esquecer que, no meio desta história, passei um dia inteiro a jejuar. Tenho inúmeras marcas de golpes e esfoladuras e coxeio. Por sorte, o meu punho parece recuperar e poderei guiar para voltar a casa.”
e
(Alain Delbe, Golens, tradução: Carlos Correia Monteiro de Oliveira; Teorema, Lisboa, 2006, pp.269/270)

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Cerveja e literatura - 11

e
Discutir a posição do ganso ou do macaco à luz do Kama Sutra é uma coisa. Pode dar para rir ou para chorar. Mas com canecas de cerveja e um hálito levemente amargo pelo meio, os efeitos, a abordagem, os gestos e as poeiras que se intrometem no olhar ganham outra claridade. E evidência. Não sei se essa evidência é apenas uma forma de humor, ou de descuido sage, mas, é de certeza, uma forma de segredar o que navega entre o pasmo, o brilho insperado e o porto de abrigo folgazão da tanquilidade. Às vezes, pode dar para o torto. É certo. Mas as palavras continuarão a saber a mar, a corpo, a pedra, a terra ou a nuvem. A substâncias da carne. Rudes, mas plenas:
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“Pond voltou do balcão com três canecas de cerveja.
- É engraçado – disse Adam. – Estás a coxear.
- O que é que isso tem de engraçado?
- Bem, é que eu também estou.
- Talvez seja andaço – observou Camel.
- Não sei porquê, mas não creio que os nossos sintomas tenham a mesma causa – disse Pond.
- Eu nem sequer sei qual é a causa dos meus. Só sei que acordei esta manhã com uma dor na perna.
- E tu, por que é que estás a coxear? – perguntou Camel.
- Pond fez uma careta.
- Aquele raio do Kama Sutra – disse ele, no tom de um homem a vangloriar-se pelo seu mal hereditário."
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(David Lodge, O Museu Britânico Ainda Vem Abaixo, tradução: Rita Pires e Ana Maria Chaves; Edições Asa, 2002, pp. 86/87)

Volta ao Mundo - 4

e
"Havana
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O silêncio vence.
Derruba perguntas, curiosidades, com uma força que ultrapassa o hábito. Os olhos baixam-se, quase tocam nos ombros, desviam-se naturalmente de quem os ouve.
Em quatro dias, o Bernardo foi o primeiro a falar. E foi aí que se abriu uma porta para um novo mundo.

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As paredes são de um branco antigo, com a espessura da história. Sentámo-nos na única mesa, no centro da sala. Os três, isolados, como se fôssemos a própria ilha.
E falou. E descobriu. E perguntou.
Um mestrado sem canetas, sem papel, sem internet. Que estudava na Universidade. Sociologia. Que era voluntário. Que estava longe de casa. Que o filho era médico. E motorista. E barbeiro. Não, não queria comer. Só saber. E nós só ouvidos. De olhos a quererem chorar-nos.
E falámos. E descobrimos. E perguntámos.

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Acabáramos de entrar no dilema.
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Pela pequena janela via-se um pedaço de rua. As casas pareciam pintadas de fresco, de um azul puro cheio de sentido; as pessoas cantavam, abraçavam-se; as árvores estavam maiores, mais verdes, a preencherem de sombra os espaços quentes.
Despedimo-nos com um adeus incerto dentro das mãos. A rua estava deserta. E, à medida que evoluímos o passo, o silêncio passou a ser nosso.

d
Iniciar uma viagem, de um ano, por Cuba é como se uma suave violência me abrisse em dois. É tudo muito mais Tudo do que se imagina. Talvez um dia, de longe, muito mais longe, já sem tempo nos dedos, consiga escrever sobre a humanidade deste país. Histórias que, por enquanto, gritam demasiado alto para que se consigam ouvir.
d
Até lá, como me ensinou um amigo cubano:
- Bebamos uns Runs para que se acabem as penas!"
e
Havana, 15 de Setembro de 2007
e

domingo, 16 de setembro de 2007

Volta ao Mundo - 3

e
"O acesso a net é mesmo muito dificil em Cuba. Lento, caro e longe!
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Já tenho algumas histórias pensadas mas, sinceramente, nao tenho tido um minuto sozinha para as escrever. O ritmo vai acalmar, de certeza, um ano inteiro assim e rebentava com tanta humanidade. Terca-feira partimos para o Equador. Espero daí já conseguir sentar-me sem adormecer!
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Entretanto:
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Conhecer a terra a cavalo é comum por estes lados. O combustível é caro, os carros, sem problemas mecanicos, raríssimos e as estradas... bem, as estradas resumem-se a pequenos esbocos. Mas quando quem te mostra o caminho se chama Carmelo, aí pode tornar-se caso único.
e
- Esta plantacao é de tabaco. Os ¨Puros¨que conhecem nascem aqui.
- Sim, mas Carmelo porquë?
Pausa.
- 90% do tabaco de cada plantacao é para o Estado.
- Pronuncia-se assim: Car-me-lo?
- Todo o resto é para consumo próprio.
- Carmelo?
- Diz.
- Tenho um amigo em Portugal que tem o teu nome.
e
E foi nesse instante que o tempo parou. Nós nao. Nós continuámos, acompanhados pelo espanto.
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Os Antigos tinham um livro que relacionava os nomes com os dias de nascimento. A ele pertenceu Carmelo. Mais ninguém nasceu nesse dia. Até hoje.
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ViÑales - Cuba, 13 de Setembro de 2007
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(Nao estou a inventar, Luís. Mais tarde envio-te a fotografia do Carmelo. Infelizmente, porta USB é algo que este computador desconhece...)
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(a pontuacao ou nao existe neste teclado ou está totalmente trocada
Ñ este símbolo está no lugar do ponto de exclamacao)."

sábado, 15 de setembro de 2007

Episódios e Meteoros - 48

e
A asfixia financeira da função social do estado não é uma imputação irresponsável. Os números e os dados demográficos são, por si, objectivos. Convenhamos. Ninguém, hoje, com menos de 40 anos, tem a certeza de poder vir a ter uma reforma no futuro.
e e
(texto completo na crónica do Expresso Online da passada quinta-feira)

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Cerveja e literatura - 10

e
“O Ollie´s era um sítio escuro e barulhento e desagradou-lhe logo à partida. Músicas country soavam alto numa jukebox a um canto, e o bar estava repleto de uma multidão de homens a beber cerveja – vestidos com camisola de flanela, na maior parte, enfeitados com curiosos bonés de beisebol e usando cintos com fivelas grandes e trabalhadas. Eram agricultores e mecânicos e condutores de camiões, pressupôs Nashe, e as poucas mulheres espalhadas pelo meio deles pareciam clientes habituais – alcoólicas ordinárias que se sentavam nos bancos do bar ao balcão e riam-se tão alto como os homens.”
e
É do “Ollie´s” que há-de sair o cortejo final deste livro de Paul Auster. A derradeira peregrinação, depois do alarido entre cerveja, barulho e olhares pacóvios, constituirá um desenlace, no mínimo, auspicioso. Ou seja: será inesperado e corresponderá ao móbil mais fecundo da narrativa. Nesta altura, apenas Nashe – o herói deambulador – conhece o seu destino e, também, o do romance. É nestes momentos de tudo ou nada que o valor de uma cerveja se torna arrebatador.
e
(Paul Auster, A Música do Acaso, Editorial Presença, tradução: Ana Patrão; Lisboa, 1992, p. 170)

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Cerveja e literatura - 9

e
Embora em Jean Santeuil (escrito por Proust entre 1896 e 1900), a cerveja tenha uma conotação um tanto negativa (é Mme. Laudet* que defende a honra da sua estalagem dizendo « Nous n'avons pas de bière ici. »), já na imensidão da Recherche, ela parece reluzir de outro modo. É na viagem para Balbec - em À sombra das raparigas em flor - que o herói da Recherche, acompanhado da avó, se confronta com a cerveja (embora, já antes, na sequência de um alerta de Francisca sobre uma indisposição, o próprio médico a tivesse prescrito):
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“Já havia muito que eu era sujeito a sufocações (“étouffements”), e o nosso médico, apesar da desaprovação da minha avó, que já me via a morrer alcoólico, aconselhara, além da cafeína, que me era prescrita para ajudar-me a respirar, que tomasse cerveja, champagne ou conhaque quando sentisse aproximar-se uma crise”
e
“Para evitar as sufocações (“étouffements”) que me provocasse a viagem, recomendou o médico que eu tomasse no momento da partida uma boa quantidade de cerveja ou conhaque, a fim de me pôr nesse estado que ele chamava de "euforia", em que o sistema nervoso se torna momentâneamente vulnerável. ”
e
“Expliquei à avó o meu mal-estar, e ela disse-me: "Vai então tomar já a cerveja ou o conhaque, se é que isso te deve assentar bem", com um tal gesto de desespero e de bondade que me lancei nos seus braços e cobri-a de beijos. E se afinal fui beber no bar do comboio, era por estar certo de que, caso não o fizesse, me viria uma sufocação (“étouffement”) muito forte, e isso penalizaria muito mais a minha avó. Quando na primeira estação voltei para o nosso compartimento, disse-lhe que muito me alegrava ir a Balbec…”
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(Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido – 2/ À sombra das raparigas em flor, tradução: Mário Quintana; Edição Livros do Brasil, Lisboa, s/D, pp. resp. 69, 220/221 e 221)
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*Marcel Proust, Jean Santeuil, Bibliothèque de la Pléiade, Paris, 1971, p. 352.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Cerveja e literatura - 8

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“Enquanto ia a atravessar a ponte, recordou-se de novo de como Amesterdão era uma cidade calma e civilizada. Fez um grande desvio para oeste a fim de passar ao longo do Brouwersgracht” (…) “Que lugar tolerante, aberto, adulto: os belos armazéns de tijolo e de madeira trabalhada convertidos em apartamentos de bom gosto, as modestas pontes de Van Gogh, o discreto mobiliário de rua, os holandeses de ar inteligente e interessante nas suas bicicletas, com os filhos de aspecto calmo sentados atrás. Até os comerciantes pareciam professores e os varredores de rua faziam lembrar músicos de jazz.”
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Abre assim o antepenúltimo capítulo de Amesterdão de Ian McEwan. O seu personagem esteve a poucos metros da casa onde eu próprio vivi durante anos e anos na bela cidade. De facto, a minha Palmstraat era uma das perpendiculares ao Canal dos Cervejeiros, o citado "Brouwersgracht" ("Brewers" em Inglês, "Brouwers" em Holandês). Quanto às parecenças e atributos (pontes e pessoas incluídas), deixo-os, como é evidente, ao capricho imaginativo do melhor escritor inglês da actualidade. Mas a cerveja merecia um canal assim. Garanto.
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(Ian McEwan, Amesterdão, Gradiva, Lisboa, 1999, p. 168)

Pré-publicações - 49

e
Manual de Escrita Criativa, Volume II, Publicações Europa-América, Mem Martins, 2007 (Setembro).
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Pré-publicação:
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"O Manual de Escrita Criativa (Volume II) está organizado de acordo com uma dupla estratégia: os primeiros oito capítulos enfatizam aspectos de ordem técnica que complementam os dados avançados no Volume I, ou seja, a descrição, a narração e a poética, e criam, por outro lado, condições operacionais para uma oficina projectual, isto é, para a escrita de um projecto ficcional que dominará os últimos seis capítulos.
e
Os primeiros oito capítulos (“I Parte – Dados para um Projecto Ficcional”) requerem aprofundamentos particularizados que visam, respectivamente, as relações entre “fábula e enredo” (ou entre o corpo da narrativa e as montagens possíveis), o tratamento de personagens (“Personagens: o vir ao ser”), a engenharia das sequências no processo narrativo (“Gerar sequências”), o “humor como textura da narração”, uma oficina de “imagens” ao longo do relato, a criação de “multiplicidades narrativas”, o emergir de “novos tipos de narração” (sobretudo na rede) e o exercício do clímax (com ênfase para o “duplo clímax”).
e
Os seis últimos capítulos (“II Parte – Projecto Ficcional”) dividem-se, por sua vez, em duas partes. Na primeira parte – Capítulo 9 –, serão apresentados, quer uma “grelha mínima” de tratamento do nível discursivo (essencial para uma escrita em grupo), quer – no Capítulo 10 – um leque de normas e indicações a seguir, tendo em vista o tratamento a dar ao enredo (capítulos, partes de capítulos, sequências, motivos, etc.) durante a execução do projecto ficcional que irá ocupar os membros da oficina de escrita durante uma segunda parte (entre os capítulos 11 e 14).
e
Na fase técnica deste Volume II do Manual de Escrita Criativa (“I Parte – Dados para um Projecto Ficcional”), cada um dos seus (oito) capítulos é dividido em três partes distintas: apresentação da matéria, “Adendas temáticas” (textos que desempenham a função simultânea de exemplo e de aprofundamento dos conteúdos) e exercícios. A bibliografia apresentada é abundante, diversa e reflecte a necessidade de permanentemente cruzar bons textos em Língua Portuguesa com matrizes da literatura universal.
e
Na fase projectual (“II Parte – Projecto Ficcional”), para além das variadíssimas injunções que pressupõem um laboratório de escrita confortável e objectivável, os membros da oficina terão ao seu dispor grelhas (discursivas e diegéticas) bastante claras sobre as quais poderão reinventar e criar com algum fôlego e liberdade.
e
São dois os objectivos deste Volume II do Manual de Escrita Criativa: tratamento de uma oficina de escrita a partir de uma natureza já especificamente literária e aplicação e interpretação variada de todo o material trabalhado no Volume I do Manual –, sob a forma de projectos de fôlego e de franco cariz ficcional. Um e outro surgem claramente corporizados nesta proposta de trabalho de catorze capítulos – prevendo um curso homólogo de catorze semanas – que tem como finalidade última a criação planeada, ponderada e obviamente também criativa de narrativas em Língua Portuguesa.
narrativas em Língua Portuguesa.
e
Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Cotovia, Gradiva, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

O dia

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É verdade: há seis anos, tornou-se visível uma nova ruptura que passou a opor blocos globais, dispersos e acentrados, sob o pano de fundo de valores que dificilmente dialogam (e dialogarão) entre si.
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Há seis anos, a escalada hiperterrorista e tecnológica reatou o imaginário que, no fim da guerra fria, em plenos anos oitenta, ficou simbolizado pela ficcionalidade terminal do The Day After.
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Indefectivelmente, e desde a primeira hora, apesar de tantos erros cometidos, eu estou do lado da democracia como arena viva e activa das liberdades, invenção preciosa que, desde setecentos, foi sendo inventada no Ocidente.

Cerveja e literatura - 7

e
“Adoro os assados temperados com queijo; mas comer mais de uma libra de carne, à noite, não é, sobretudo, prudente. Todavia, até ao número dois não pode haver objecção material, e, na realidade, entre dois e três não há senão a diferença de uma unidade. Aventurei-me talvez até quatro; a minha mulher diz que foram cinco, mas evidentemente foi confusão de duas coisas bem distintas. O número abstracto cinco, estou disposto a admiti-lo; quanto ao concreto, só referindo-se às garrafas de Brown Stout, sem cujo adubo os assados com queijo são difíceis de digerir.”
e
(Edgar Allan Poe, Pequena Discussão com uma Múmia em O Rei Peste e outros contos, tradução: L.V.Nicolau; Editora Hugin, Lisboa, 2001, p.45)

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

A velha "Aliança"

e
Já existia, há alguns séculos, uma famosa aliança entre Portugal e a Inglaterra. Cresci a ouvir falar desse pacto de sangue sem nunca ter reparado nos seus reais efeitos. Foi preciso chegar ao século XXI, já o Allgarve é uma peça de teatro de arrabalde, para entender a profundidade da coisa. Afinal, é na aliança entre o furor tablóide inglês, por terra, mar e ar, e a expressão indígena e genuína do nosso povo que essa força imensa se está agora a revelar. Não é por acaso que a CNN abriu ontem noticiários a discutir a palavra "arguido" e as razões quase metafísicas que terão levado dois "arguidos" a escaparem do Reino conquistado pelo nosso Afonso III para os conhecidos bosques de Notthingam. Cumplicidades apenas explicáveis por uma aliança, no mínimo, peculiar.

Cerveja e literatura - 6

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Descrever a genealogia dos Ramires sem cerveja? Manifestamente impossível:
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“O Paço acastelado de Santa Ireneia, com as fundas carcovas, a torre albarrã, a alcáçova, a masmorra, o farol e o balsão; o velho Tructesindo, enorme, e os seus flocos de cabelos e barbas ancestrais, derramados sobre a loriga de malha; os servos mouriscos, de surrões de couro, cavando os regueiros da horta; os oblatos resmungando à lareira as Vidas dos Santos: os pajens jogando no campo do tavolado – tudo ressurgia com verídico realce, no poemeto do tio Duarte! Ainda recordava mesmo certos lances; o truão açoitado, o festim e os uchões que arrombavam as cubas de cerveja, a jornada de Violante Ramires para o Mosteiro do Lorvão... ”
e
(Eça de Queiros, A Ilustre Casa de Ramires, Editora Ulisseia, Lisboa, 1995, p.42)

sábado, 8 de setembro de 2007

Uma história encantada

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Uma amiga minha entra na Biblioteca de Oeiras. É fim de verão. Tempo para leituras ao modo dos teares por completar. E diz-me ela, alertando-me para uma "história curiosa": "Tenho passado o dia a ler e a escrever com calma. E como te disse as minhas leituras têm sido as tuas páginas". Até aqui tudo bem, Vanessa, e só espero que não te caia em cima um meteorito ou uma dessas setas envenenadas que são próprias dos deuses mais desastrados. A minha amiga resistiu e lá conseguiu continuar a ler-me (há vários romances meus por lá: é assim a generosidade do serviço público). A certa altura, está a Vanessa à luta com o meu Máscaras de Amesterdão, e eis que a grande surpresa invade a via láctea. Diz ela: "imagine-se que eu estava apenas a abrir as páginas ao acaso para saborear frases soltas. Não era para perceber o sentido, queria apenas sentir o som. Por vezes, faço isso com poesia e também o tento fazer lendo outro tipo de literatura" (...) "E ao abrir, comecei pela página de face, quase vazia, com inscrições de datas e pontuações da biblioteca com referências. Então os olhos caíram sobre a tinta azul que dizia: "Para o Eduardo Prado Coelho com um abraço do... assinatura ilegível".
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Nessa altura, a Vanessa precisou de confirmar a assinatura com a do seu próprio exemplar de E Deus Pegou-me pela Cintura para ter todas as certezas acerca do móbil do crime. Salvo seja. Mas era mesmo verdade, verdadinha: "Eu tinha nas mãos um livro que autografaste ao Eduardo Prado Coelho em 22/10/02. Em cima da secretária repousava um outro que me tinhas autografado em 06/03/2007. Após o pasmo inicial, calculei que aquele momento fosse muito bonito e representativo da forma mágica como as vidas se cruzam no ocaso do acaso. E as datas, que já foram dias específicos, com acontecimentos concretos, com pessoas dentro de pessoas, de repente foram mais do que números" (...) " Fiquei imaginando o hiato entre os dois tempos com a mesma assinatura, a quantidade de vida, de histórias, de pessoas, de paisagens sonoras, que cabiam ali dentro" (...) "e era verdadeiramente impressionante".
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"É assim", minha amiga - que me autorizaste a tornar pública esta ópera silenciosa: do outro lado das empatias, dos reconhecimentos e dos panegíricos sinceros, ou não, os vulcões também se abatem. Há muitos anos, já tinha comprado romances meus por vinte escudos no Terreiro do Paço. O que eu não sabia é que um romance com dedicatória e tudo pudesse, em menos de cinco anos, ser extraviado para os corredores de uma biblioteca pública. Achei este enredo delicioso, confesso. É terno e dispõe os acasos diante de nós como se fossem um self-service sem fim. Às vezes, a literatura não muda mesmo as nossas vidas. Não é?

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Cerveja e literatura - 5

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Foi neste escritório que o vi pela última vez. Com aquela prancheta inundada de traços, riscos e manchas onde escrevia. Lembro-me da sua voz e do humor que se desprendia do edifício aparentemente austero. E parece que o imagino no final da década em que nasci, a de cinquenta, a medir forças com a sua intensa e duradoura estadia de Évora. No final do mais emblemático dos seus romances, Aparição, com o enredo já praticamente resolvido (à excepção da morte de Sofia), a Feira de S. João merece um testemunho descritivo derradeiro e solar. O reitor do liceu é então focado, no centro da sua última ceia, ou cena, ao modo de uma despedida e simultânea evocação:
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"Eis-te aí, bom reitor, com amigos que eu não sei, a uma mesa da esplanada, cheia de canecas vazias de cerveja, como um pólipo de ventosas... Saúdas-me risonho, o lábio grosso, a face injectada de boa disposição. O verão era a tua hora de grandes libações, lembro-me de no "café" te ver com frequência bebendo uma tarde inteira, enchendo a mesa de vidros que mandavas retirar para não publicares a tua sede."
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(Vergílio Ferreira, Aparição, Portugália Editora, Lisboa, 1960, p.260)

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Não me mudaram a vida - 3

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Escreve Abel Barros Baptista, num estimulante texto hoje publicado no blogue de Carla Quevedo: "(...) só podemos dizer que mudaram a nossa vida os livros que nós próprios escrevemos, e só podemos dizer que não mudaram a nossa vida os livros que não escrevemos". Não iria tão longe, pois há muitos livros que escrevi no último quarto de século que em nada mudaram a minha vida: nela desaguaram, confundiram-se nela e depois aluíram no anonimato e nos sortilégios inexplicáveis do esquecimento. Hoje pertencerão a outro céu, a outras montanhas e a um outro rio. Por outro lado, os livros que ainda não escrevi - e estou neste Setembro a braços com dois projectos de livro a vir - mudam-me amiúde o curso real da vida, na medida em que pressionam limites, evitam horizontes definidos e alteram percursos que seriam (intimamente) óbvios. Estou a respirar, neste momento, dia a dia, o encanto de tal vertigem.
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Já agora, lembro-me do impacto que teve em mim o Grande Sertão: Veredas (que li, de ponta a ponta, apenas em 1983). O livro continua aqui, neste escritório, mesmo em frente, na estante principal. Sei que jamais o poderia ter incluído na minha lista, mas, por outro lado, devo confessar que acabou por diluir-se na minha memória activa. Aquela permanente metáfora da "travessia" acabou por criar outros precursores que, de longe, a foram iluminando e legitimando. E é por isso que o Grande Sertão:Veredas deixou, para mim, de ser matriz: por trás, envolvendo esse pasmo mais imediato, foram aparecendo e sobretudo reaparecendo textos de deriva, redenção e expiação que o superaram: textos sibilinos medievais (que o mundo académico me obrigou a ler durante anos), releituras do Quijote ou de Diderot e, nos últimos anos, toda a recolocação em evidência de uma literatura baseada em media res.

Volta ao Mundo - 2

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Uma volta ao mundo. Vamos dar uma volta ao mundo! E que simples se pode tornar. Uma mochila, com a leveza de um ano dentro, e uma enorme vontade de proximidade. Afinal a descoberta fica apenas a um passo.
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Queremos contar histórias. Aliás, será a nossa única responsabilidade: fotografar e escrever histórias do mundo. No Laos, no Tibete, na Patagónia, na Ilha da Páscoa... que histórias terão as pessoas para contar? Serão essas as crónicas que enviaremos para o Miniscente! Semanalmente, um pouco mais, dependendo das pulsações do planeta, mas sempre com a novidade nas mãos.
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No nosso blogue, historiasdomundo, podem ser também seguidos o projecto e o itinerário. Uma incerteza que acompanhará a liberdade dos dias.
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A partida será já amanhã, para Havana! E ao dizer isto fica tanto por dizer. Fica tudo para contar...
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Clara Faria Piçarra e Miguel Sacramento.

Cerveja e literatura - 4

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Mais uma espera tensa. Enquando Claude tenta desesperadamente (e em vão) contactar Joe Donovan, vai escutando a rádio e é então que a imagem da cerveja parece cair do céu. Patricia Highsmith cobre de negro os horizontes rápidos dos seus contos e tudo neles parece, de facto, bater certo até ao precioso nível da fermentação:
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"Ventos frios do Canadá estão a caminho e, quando chegarem, esta massa de calor que tem estado a pairar sobre Nova Iorque durante os últimos seis dias..., rapazes! Será então que suponho que a maioria dce vocês exclamará: "Que alívio!" E suponho que irão logo ao frigorífico buscar uma garrafa da melhor cerveja-glu-glu-glu... americana..."
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(Não se Pode Confiar em Ninguém em O Álibi Perfeito, Biblioteca Visão, Lisboa, 2000, p.39)

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Não sou de prémios, mas

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acho que o Jansenista merece o prémio das melhores crónicas de Agosto. Sem dúvida nenhuma. Parabéns.
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E acho que a Carla merece o prémio da melhor epístola de Agosto. Assino por baixo. Entusiasmadamente.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Intrigas da casa

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Escrevi uma peça de teatro no passado mês de Junho.Toda a gente que a lê diz que é, no mínimo, delirante. É de tal modo alimentada a metamorfoses, dizem, que acaba por parodiar a própria natureza dramática onde quereria respirar. Acham, por exemplo, que colocar em cena o "Senhor B" e a "Memória do senhor B" é assim tão complicado? Se continuam a fazer-me mais críticas dessas, ainda aqui a publico para desgraça minha. A pobre peça chama-se A Rosa de Junho e deverá estar para o drama como as fitas do Ed Wood estiveram - e estão - para o cinema.