segunda-feira, 16 de agosto de 2004

Ficcionalidades de prata - 32


(Large Sleeve, Sunny Harnett, New York, Irving Penn, 1951)

E quando a fotografia ainda não era uma simples paragem do fluxo global e continuado de imagens, mas já dava mostras, há muito, das ciladas que se tramavam dentro do seu próprio castelo: eis então que surge o rosto a divergir da massa que o faz vir ao ser; eis então que surge o fundo a deslizar atrás dos lábios, esse único plano em jogo; eis que surge o alcance filigrânico dos contrastes a definirem limites entre o que corporifica a imagem e o corpo real que na imagem se esvai; eis que as linhas de fuga da narrativa ousam empurrar a fotografia na direcção das diferentes periferias onde ela mesma respira e brilha; eis que o olhar se torna em contínuo boomerang, errando na ausência de centros e perseguindo a faca sem lâmina que ameaça cortar o cristalino e a íris; eis ainda o modo como o modelo se lapida naquele sangue imensamente branco que diz o inefável ou o puro nada em vez de coisa; eis, por fim, que fica apenas à mostra o grande engenho da cilada, não o que sempre honrou a fotografia com um passado infinito, mas aquele que jura que as constelações jamais envelhecem. A fotografia é uma fingidora.