quinta-feira, 23 de junho de 2011

Conteúdos - cânone - 17 (fé)





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Quando dou conta do conteúdo fé, digo ou faço o que tenho a dizer ou a fazer. Mas, ao mesmo tempo, sigo o que o guião do conteúdo fé me diz sobre a certeza íntima de que algo irá acontecer.
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A fé: ver acontecer o que ainda não se realizou, como se se prefigurasse como certo aquilo que se desejou. A fé tem a característica expressionista da visão: estar dentro da cena que se imagina, mas estar nela antes ainda de acontecer e com a certeza de que irá realmente acontecer. Na fé há uma conversão espontânea de acontecimentos: entre aquilo que virá e aquilo que já existe na mais íntima determinação. Clube de futebol, lotaria ou deus são – todos eles – objectos de vaticínio da fé. Uns com ironia (ter fé e ver a fé com humor), outros com rigidez (ter fé e ver a fé com estriada seriedade). A fé é partilhável como fenómeno de massas – e aí tem contada toda a sua história pública ao longo de séculos e séculos de manifestações variadas –, mas é sobretudo, na sua auto-especularidade, um fenómeno íntimo. Um jogo egotista de certezas. Uma coerência tão fechada quando silenciosamente monologada. A fé existe como um conteúdo que não deseja ser definido. O senso comum traduz a intraductibilidade justamente nessa medida: “É uma questão de fé!”. Essa longa história do inexplicável e, em certos aspectos, da sujeição de alguém a uma fé partilhável porque impositiva – neste caso, um tabu que não se pode por dogma aflorar – transformou a questão em algo incómodo. Por vezes insuportável. A atitude moderna, por exemplo, sempre se tentou definir contra a fé. Afirmação por contraponto, portanto. Embora, nessa definição, a fé reaja com assimetria devido ao que mais a alimenta: a intimidade. A fé é essencialmente uma forma de resistência: poder ver o que não é dado a ver pelo real mais imediato. Crer nessa possibilidade e realizá-la, tal como a arte se realiza sem necessitar de se referir seja ao que for. É esse o guião da fé: uma visão que se confunde com o ser que a tem.

sábado, 18 de junho de 2011

Conteúdos - cânone - 16 (massificação)

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Quando exprimo a ideia de massificação, exprimo o que tenho a exprimir. Mas, ao mesmo tempo, sigo o que o guião do conteúdo “massificação” me diz sobre um corpo decapitado que sorri como se o mundo fosse um ‘reality show’ sem princípio nem fim.
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A massa foi sempre uma preocupação moderna. De Marx a Ortega Y Gasset. Mas a massa moderna era um caudal que ameaçava, perturbava ou se alienava. Tanto faz. A massa era sobretudo um caudal que criava contrastes, porque convivia com entidades que eram o positivo ou o negativo da própria massa. Elite, intelligentsia, classe, nomenclatura e outros termos designaram essas entidades. A massa moderna era um rio poderoso que contrastava com a serenidade das margens. Nas margens fazia-se a política, a literatura e o mito. No rio – e sôbolos rios (grandes revoluções) – fazia-se o resto. As inundações marcaram, por isso mesmo, grande parte da história dos séculos XIX e XX. No nosso tempo, o rio e as margens desapareceram. O rio envolveu as margens e as margens envolveram o rio. Nem um nem outro hoje se reconhecem. O que deles sobrou foi um efeito de massa: um manto em 3D que avança em direcção ao sentido. Como se tudo pudesse acontecer: com a agravante de que os ares de clímax são tão simulados quanto reais. A crise dos mercados representa, no novíssimo palco, o drama da massificação: tudo se comprou, tudo se construiu, tudo se esbateu e tudo se disse. E agora, aberto o abismo, a massa reage como um caudal sem margens. Tal como uma angústia profunda sem objecto preciso. Esse ‘pathos’ é a própria natureza da massificação: um corpo decapitado que sorri, como se fosse para sempre, diante dum ‘reality show’ intemporal.

Conteúdos - cânone - 15 (falha)

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Quando comunico que algo falha, comunico o que tenho a comunicar. Mas, ao mesmo tempo, sigo o que o guião do conteúdo “falha” me diz sobre um mundo em que a falha se tornou na coisa mais comum que se pode imaginar. Puro espectáculo.
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Vivemos num mundo em que a falha se vulgarizou. Sem receituários (baseados na harmonia ou na perfeição) capazes de dar algum sentido aos actos do dia-a-dia, a vida passou a ser recheada por falhas. É por isso que notícias passaram a incidir muito mais na repetição da repetição (nas meta-corrências) do que em falhas, inversões, acidentes e outras anomalias. Torna-se, hoje em dia, muito mais difícil distinguir o que escapa à ordem natural, normal ou previsível das coisas (o “segno” medieval) do que em qualquer outra época. Justamente porque, neste ‘mundo pós’ – deixou de existir uma ordem natural, normal ou previsível para as coisas. A normalidade é, no nosso tempo, um firmamento de falhas: uma curva que religa simultaneidades que disputam e desafiam o código que vão criando. Micro-narrativas, micro-códigos e micro-discursos: um terreno pouco estriado e aberto, mas seguramente fértil para o culto de falhas. Ao ter-se vulgarizado a falha, o alarme deixou de com ela conviver. Antes se exilou e foi deixando em pé de igualdade o pasmo criado diante das torres gémeas – há uma década – ou o pasmo criado diante da morte de Diana – há década e meia (tudo passou a ser encarado como espectáculo e todo o espectáculo foi deixado em pé de igualdade). Os pasmos tornaram-se quase todos iguais e passaram a sintonizar uma mesma frequência. Bits como factos. Os pasmos tornaram-se vórtices sensoriais dos media e passaram a ignorar o alarme que sempre foi gerado pela própria falha. Um circuito vulgarizado pela falha – de que a generalização dos erros ortográficos é uma óptima metáfora – é um circuito que se impõe pela inclusão sem diferenças. Uma inclusão sem diferenças é uma massa informe que tem a falha como identidade.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Conteúdos - cânone - 14 (sms)

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Quando envio um/uma sms, exprimo e faço o que tenho a exprimir e a fazer. Mas, ao mesmo tempo, sigo o que o guião do conteúdo “sms” me diz sobre a redescoberta da palavra como desmontagem e elipse ao serviço de uma transfusão da linguagem.
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Um/uma sms molda a linguagem para caber em qualquer lado (ou em qualquer género). Já um toque é apenas a interrupção simples de um tempo em princípio plano. Um toque tenta criar fronteiras entre o antes e o logo que o sucede. Como se um dedo apenas fizesse criações descontinuadas. A interpelação, por seu lado, já é um esboço de narrativa, mas o toque ainda não: simples aceno. O/a sms é também uma espécie de toque, mas com alguma ressonância e amplitude. Mera flutuação que se distende ao longo de vários caracteres, como se um desejo de narrar fosse evocado mas logo fugisse e não passasse de uma sugestão à procura de encantamento. O/a sms dilata o vórtice do toque, dá-lhe águas, esquece fronteiras e acaba por inscrever um desejo como breve traço ao longo do tempo. Se o toque interrompe, o/a sms esvazia o balão da palavra: é essa a sua duração. É esse esvaziar que, ao preencher uns tantos segundos de leitura, acaba por dar perfil e espessura ao/à sms. Moldar a linguagem é fazer do vaivém entre ar e balão um sentido que nunca se esgota. Um sentido sempre em aberto: palavras de fractura, pontos insinuantes, consoantes nuas, parêntesis com rosto, vírgulas risonhas e sufixos com perfil de puras elipses.

Conteúdos - cânone - 13 (tempo real)



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Quando exprimo a ideia de “tempo real”, exprimo o que tenho a exprimir. Mas, ao mesmo tempo, sigo o que o guião do conteúdo “tempo real” me diz sobre a possibilidade de não existir nem futuro nem história.
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Sabe-se que o tempo não é capturável. É isso que o determina, seja ele cronológico (chronos) ou ligado a invariantes (aion). O tempo é um conteúdo que ocupa a percepção de uma passagem. Mesurável ou ético, não mesurável ou émico, o tempo existe para além do código, seja ele qual for. A designação “tempo real” pretende assinalar uma coexistência entre o acontecer (tornado conhecido) e o acontecimento. Trata-se de generalizar a contingência em flagrante. O que não é “tempo real” está fora de jogo. Mas no jogo do “tempo real”, tudo se assinalaria e incorporaria no instante em que emerge. O que torna real o “tempo real” é a sua extrema irrealidade. Esse paradoxo é, afinal de contas, o seu dom e também o lado mais apelativo do seu uso. Ao repetir até à exaustão “tempo real”, o tempo corre até o risco de se tornar capturável. E uma ilusão em era de ilusões é a mais pura das verdades. O guião do conteúdo “tempo real” é, pois, tão assertivo quanto inebriante. Toca os sentidos e invade o domínio das certezas cronológicas. Para além do “tempo real” já não existe história nem futuro. O “tempo real” impõe-se, deste modo, como único momento, ou como uma espécie de clímax exclusivo de uma narrativa que se bastaria ao instante. Uma coexistência e uma intensidade que não deixam – ou que não deixariam – respirar.

Conteúdos - cânone - 12 (património)

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Quando exprimo a ideia de património a alguém, exprimo o que tenho a exprimir. Mas, ao mesmo tempo, sigo o que o guião do conteúdo “património” me diz sobre um culto que vai resistindo com bastante ímpeto nas malhas da cultura dessacralizada.
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Há mais de dois milénios, o conteúdo cultura andou associado à ideia heideggeriana de ‘cuidar de’ – cuidar da terra e dos animais, num sentido relativamente neutro. Um sentido de teor secular (que surge em Plutarco ou Cícero) remeteu, por conotação, para a ideia de cultivo do ‘espírito humano’ e havia de se projectar, até aos nossos dias, em significações como “desenvolvimento intelectual’, ‘saber’, ’estudo’, ’esmero’ ou ‘elegância’. Um terceiro sentido atribuído ao conteúdo cultura, o de Santo Agostinho, transpôs, na Idade Média, o conceito para o modelo divino de ‘culto’. Um quarto sentido surgiu, já no Illuminismo, por via do alemão Herder que estabilizou a noção moderna de cultura enquanto objectivação da totalidade do produto humano realizado, independentemente dos seus autores subjectivos. Nesta perspectiva, a imaterialidade e a materialidade historicamente acumuladas pelas comunidades (língua, terra, tradição, objectos ‘culturais’, etc.) tornaram-se em novos objectos de culto. O património – que tem apenas algumas décadas de vida – descende desta ‘inovação’ já com dois séculos e meio e projecta-se sobretudo no edificado, no meio construído e nos próprios quadros do vivido. No fundo, uma recuperação da ideia de culto no meio de um mundo que se dessacralizou. O conteúdo património redescobre-nos, deste modo, no centro de uma redenção que nos é docemente revelada pela cultura. Algo para levar muito a sério, quando da realidade se apearam já quase todos os altares.

Conteúdos - cânone - 11 (rede)

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Quando comunico a ideia de rede, veiculo o que tenho a veicular. Mas, ao mesmo tempo, sigo o que o guião do conteúdo “rede” me diz sobre o lugar que ocupamos e os lugares onde interagimos numa vastíssima conexão aparentemente sem fim, nem hierarquias.
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A rede é um daqueles conteúdos que tende a surgir em todas as épocas e que serve essencialmente para enquadrar o todo da realidade, para a designar de modo confortável ou até para a tentar explicar de uma maneira económica. No nosso tempo, a simulação de extrema proximidade atravessa, quer o sentido criado pelos dispositivos tecnológicos, quer a interacção – quase corporal e estésica (intensíssima a nível sensorial) – que o ser humano passou a estabelecer com esses dispositivos. A rede decorre desta assunção criada pelos interactores digitais e pelas mediações humanas que com eles concorrem em permanência. Na rede, a diferenciação entre actores e personagens discretos não é relevante, pois o que a significa é o esteio pancomunicacional. Há na rede uma gramática holística – ou totalizante – que se assemelha à visão medieval de deus ‘todo poderoso’, embora o regime vertical (céu-terra) tivesse sido substituído por uma espécie de majestoso e infindo ‘self-service’ (chão a todos os níveis). Este nivelamento da estrutura clássica desestrutura, do mesmo modo que a coerência de todas as relações sistémicas clássicas é, na rede, ‘assistemizada’. A rede é um conteúdo extremamente eficaz, pois reúne, na sua brevidade, a larga maior parte dos mecanismos de significação do nosso dia-a-dia. A rede é efectivamente uma espécie de 'story line' de um guião maior, capaz de colocar em cena a totalidade da nossa vida actual.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Conteúdos - cânone - 10 (dever)

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Quando exprimo a ideia de dever a alguém, veiculo o que tenho a veicular. Mas, ao mesmo tempo, sigo o que o guião do conteúdo “dever” me diz – se for ainda possível decifrá-lo – acerca de uma certa determinação íntima para agir.
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O que já foi tracção, contenção e freio auto-impostos passou a corresponder a uma lógica de mãos soltas. O que se faz, faz-se com fôlego de contracultura embora sem qualquer alvo a destronar. Uma liberdade que não quer ter na sua frente qualquer obstáculo que a caracterize, embora Hobbes a tivesse definido, precisamente, como uma força que se expande até ao momento em que encontra um obstáculo. Sem obstáculo, sem tracção e sem alvo, a liberdade passa a ser um corpo sem pele. O dever é a entidade invisível que separa esse corpo dessa pele. O dever é hoje uma efígie ou um enigma sem história e não já uma determinação íntima com consequências reais. Um vórtice de narcisismo, fluxo, consumo e de repetição da repetição passou a habitar a casa do dever. A ordem que no tempo das regras axiais instaurou o dever como algo natural passou da nuvem que lhe dava a natureza a um vazio ainda à procura de nome.

Conteúdos - cânone - 9 (projecto)

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Quando dou conta da ideia de projecto, faço o que tenho a fazer. Mas, ao mesmo tempo, sigo o que o guião do conteúdo “projecto” me diz sobre a quase certeza de que algo, um dia, irá encarnar ainda que sem corpo claro e definitivo.
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Projectar deixou de ser a preparação para algo acabado e orgânico. Projectar passou a ser um estado definido pela preparação inorgânica e ininterrupta. Um projecto confunde-se com um processar que não é maquínico, nem digital e que sobretudo não visa almejar metas, mas antes conter-se na realidade de um ‘work-in-progress’. Projectar significa crer no curso das coisas ou no simples decorrer em ‘media res’, sem dar confiança às ameaças de um acontecimento final. O projecto é uma recusa em sucumbir face ao acontecimento, embora seja este que o justifica. Saltando da arquitectura para o design e daí para todos os modelos projectuais do dia-a-dia, o projecto passou a ser notícia, porque a notícia também vive em estado de projecto: acontecimentos fluidos que se encadeiam na fluidez dos meta-acontecimentos. No projecto, o que avança é a tentação do acto ou, por vezes, a consolidação de uma entidade abstracta que se assume como possível. Um proto-real transitório que prefigura a hipótese plural do acontecimento, mas sem o desejar. O projecto prolonga-se no próprio projecto.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Conteúdos - cânone - 8 (criação artística)

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Quando faço arte ou comunico algo relacionado com a criação artística, faço/comunico o que tenho a fazer/ a comunicar. Mas, ao mesmo tempo, sigo o que o guião do conteúdo “criação artística” me diz sobre uma certa exclusividade em aceder ao inexplicável através de formas tangíveis e imagináveis.
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A imaginação foi um dos alicerces da modernidade (de Hume a Kant, a ideia evoluiu meteoricamente). A imaginação passou a ser sobretudo um dispositivo de produção ficcional que visa, a partir da tabula rasa (Damásio refere-se à mente como “contadora de histórias”), a possibilidade de tornar real dados sondados pelo sujeito. É este o alicerce do artista – que tem acesso a visões de completude ou de totalidade – sonhado pelos românticos alemães, sobretudo pelo chamado Círculo de Jena. No entanto, a estética no seu devir idealista, só se enuncia, pela primeira vez, ao longo de setecentos, porque antes haviam sido criadas condições para tal. A intemporalidade mitológica deu lugar à transcendência e esta deu lugar ao sujeito moderno criador e questionador. Entre as duas últimas etapas, o gnosticismo foi uma corrente de várias proveniências mas com duas características essenciais: uma dimensão salvífica e a aceitação da gnose como conhecimento dos mistérios reservados a uma elite. Foi sobre esta disposição superadora e de busca do inexplicável que, milénio e meio depois, foi possível teorizar e crer na arte e na estética, tal como as entendemos ainda hoje. Por outro lado, a pressuposição dos sentidos e da imaginação como vias ligadas a faculdades superiores do homem completaram o quadro e legitimaram as funções da arte e da estética no mundo moderno, elevando a dimensão criativa de todo o sujeito e atribuindo-lhe sobretudo o crédito de uma espécie de gnose exclusiva, superior e irrespondível (de que o “génio” de Kant foi apenas o prenúncio).

Conteúdos - cânone - 7 (fim)



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Quando comunico o fim de qualquer coisa a alguém, faço o que tenho a fazer. Mas, ao mesmo tempo, sigo o que o guião do conteúdo “fim” me diz sobre a mais absoluta fatalidade ou – há aqui uma alternativa – sobre o modo de escapar a tal absoluto.
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A dificuldade em objectivar o fim está ligada ao facto de ser impossível objectivar um tempo sem fim. O tempo sem fim que foi sendo imaginado pelo homem, ao longo de milénios e milénios, desliza da experiência à linguagem, como se a força da gravidade empurrasse tais devaneios apenas para dentro da linguagem. Na impossibilidade de clarificar estes dois contrários ‘fim’-‘tempo sem fim’, é um facto que em vez da imagem do negativo fotográfico (de tipo analógico), o que sobra – é mesmo uma questão de sobrevivência – é a ideia de que o fim não pode nunca ser uma ruptura, uma falha, ou uma queda para o abismo, mas sim um espaço derradeiro onde se tornaria possível conter o tempo. Até porque o ‘depois do fim’, tão bem representado pelas muitas teorias ‘pós-qualquer coisa’ – que emergiram nas últimas décadas do século XX –, é sempre uma varanda aprazível de onde se passou a contemplar o próprio fim. Uma varanda larga e solar que representa a continuação sine die do relato que está em vez do fim. Como se os fins se multiplicassem: um fim gerando sempre outro fim, mas todos do ‘lado de cá’ dizendo não – de vez – ao próprio fim.

Conteúdos - cânone - 6 (digitalizar)

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Quando digitalizo, faço e exprimo o que tenho a fazer e a exprimir. Mas, ao mesmo tempo, sigo o que o guião do conteúdo “digitalizar” me diz sobre a mágica superioridade do modelo em relação ao real.
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Os sistemas digitais recorrem a valores e a naturezas discretas e descontínuas para representarem informação. No entanto, essa informação pode ser representada através de letras, números, ícones e signos contínuos, tais como as imagens e os sons. O representado e o representante acabam por ser tão parecidos, ou quase iguais, que a simulação deixa de ser um dado sequer a ter em conta. O uso dominante do digital, nas imagens, na reinvenção de sonoridades e em toda a electrónica em geral decorre da metamorfose sem dor da realidade em sinais de tipo binário. Ao contrário dos sistemas analógicos que recorrem a intervalos contínuos para representarem informação (também contínua), o digital faz suspeitar que um corpo possa ser realmente um corpo. No limite, o digital fará do espectro o corpo verdadeiramente ideal. Como se deus fosse afinal a encarnação do homem.

Conteúdos - cânone - 5 (crise)

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Quando comunico a ideia de crise, faço o que tenho a fazer. Mas, ao mesmo tempo, sigo o que o guião do conteúdo “crise” me diz sobre o entendimento possível do presente, ou doutro qualquer tempo que nos escape, ou que não cheguemos efectivamente a controlar.
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Quando dizemos crise, estamos a dizer o modo como compreendemos a actualidade. Mas quando dizemos “a crise” já estamos a cair na tentação de a compreender. De qualquer modo, nesta etapa em que a crise aparece definida e clarificada (como se fosse algo familiar – “a crise”), sucede, de modo óbvio, o tempo em que a procura nos oráculos e nas entrelinhas das “Escrituras” prenunciava respostas para tudo. A ideia de crise veio substituir todas essas demoras. A crise é, por isso mesmo, um jogo de expectativas que se tenta aproximar da realidade, embora se saiba que esta é sempre mais complexa do que todas as receitas. Um jogo fascinante que, por vezes, se identifica com a solução. O cenário passa assim a ser o real. Por isso se diz “a crise” em vez de “crise”, para que não seja apenas mais uma.

Conteúdos - cânone - 4 (espera)

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Quando espero algo ou alguém (ou comunico uma dada espera), faço o que tenho a fazer. Mas, ao mesmo tempo, sigo o que o guião do conteúdo “espera” me diz sobre o tempo que desagua na ausência de um horizonte.
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As metáforas da espera estão sempre à espreita de Godot e de Penélope: dois modelos baseados na apreensão e no drama que pressupõem a interiorização de um possível e desejado desfecho. Ao preencher-se a duração em função de algo ausente, o presente torna-se presente como nunca. Porque a sua natureza de ‘ainda-não’ vai-se tornando na expectativa de um ‘ainda-nunca’ que ilumina – de um modo oposto à nostalgia – o acontecer do ‘tempo-a-passar’. A espera não é, pois, apenas aguardar. A espera é mais abismada, pois vive sem a leveza que admite uma interpelação ou um corpo regressado em manhã de nevoeiro.

Conteúdos - cânone - 3 (zapping)

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Quando faço zapping, faço/exprimo o que tenho a fazer/a exprimir. Mas, ao mesmo tempo, sigo o que o guião do conteúdo “zapping” me diz sobre a errância como estímulo e forma de vida.
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O zapping é um movimento que suprime enquanto revela. Ao fim e ao cabo, designa um salto ou um gesto em zigue-zague que vai dando sucessivamente a ver, podendo regressar para de novo voltar a derivar. Ao contrário do “upgrade” que apaga para sempre e remove, o “zapping ondula e revela por intermitências e com uma intensidade variável, pois pode revelar na sucessividade de fracção para fracção temporal. A nossa mente está, de qualquer modo, mais próxima do funcionamento por “zapping” do que do funcionamento por “upgrade”.

Conteúdos-cânone - 2 (upgrade)

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Quando faço um "upgrade", faço o que tenho a fazer. Mas, ao mesmo tempo, sigo o que o guião do conteúdo “upgrade” me diz sobre a morte necessária do passado (da memória) e a crença apenas no que se vai tornando actual.
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Fazer ou dizer "upgrade" é levar a cabo a metáfora ideal que significa enterrar o passado e tornar presente qualquer coisa que o substitua. A amnésia colectiva vive à custa de uma centragem absoluta na esfera do presente. E não há conteúdo mais preciso do que “upgrade” para dizer o tudo que quero e devo remover em benefício do sempre-actual que inevitavelmente desejo actualizar. Um tipo de revelação única do ‘hic et nunc’.

Revisitação

Jantar de 22/06/2006 (Alcântara)

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Como já não fazia há mais de três anos, passei hoje por vários blogues. Os mesmos que, entre 2002 e 2008, visitei diariamente (foram estes: um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze, catorze, quinze e dezasseis – ordem arbitrária, claro). Verifiquei que estão ainda lá todos. E que se recomendam. Tudo se passou como se eu tivesse saído de um mundo – ou de uma cidade – e agora regressasse, hesitante, com aqueles tiques à Pavese que evitam tentações nostálgicas. Mas não as tive, seguramente. Senti na extremidade do olhar – esse estigma que lê e que sabe dar volta às entrelinhas – uma espécie de fio-de-prumo cansado. Algo suspenso no tempo que reataria, por reatar, o que sempre foi. E o que sempre lá esteve. Imaginar agora que a vida nos podia surpreender com mudanças de facto! Como acordar e ver um sol maior, ir dormir e ver duas luas no céu ou blogar e encontrar diamantes em vez de pérolas elementares. Sonhamos, creio eu, porque entendemos a passagem como uma espécie de ‘tempo real’ que miraculosamente substituiria, um dia, o próprio acontecimento final. Enfim, parece que houve eleições em Portugal, não foi? Eu sei, eu sei, disso saberão tudo. Muito mais e melhor do que eu.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Conteúdos-cânone - 1 (progresso)

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Quando recorro à noção de progresso, digo e faço o que tenho a fazer e a dizer. Mas, ao mesmo tempo, sigo o que o guião do conteúdo “progresso” me diz sobre a inevitabilidade de o amanhã ser sempre melhor do que o hoje.


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Um fatum que é veiculado como se predicá-lo e referenciá-lo bastassem para que assim fosse. A crença é recente, tem século e meio de vida activa, mas está impregnada em todos os discursos que vão dando vida ao quotidiano.

Literatura e pensamento: um salto, dois devires

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Acaba de sair a público o editorial da semana do site PNETliteratura. Ler tudo aqui.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Oferta actualizada dos cursos EC.ON

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Toda a oferta actualizada dos cursos EC.ON (EscritaCriativaOnline) num único PDF. Leia tudo aqui.

Hernán Rivera Letelier

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O editorial do site PNETliteratura desta semana é sobre um escritor chileno que li pela primeira vez: Hernán Rivera Letelier. Poderá entrar no texto aqui mesmo.