quarta-feira, 19 de maio de 2010

O último romance de António Manuel Venda

O sorriso enigmático do javali é um livro sobre a intimidade. Laços chegados à experiência que torna a vida numa escola de pequenos gestos. O minúsculo toma muitas vezes conta da acção, também ela lida e relida através de um microcosmos caprichoso e ditado pela lei das muitas proximidades. Tudo nesta arena ficcional criada por António Manuel Venda é cúmplice, órgão com órgão, interrogando pistas, processos, revelações, o próprio sentido. O protagonista, um jovem baptizado cripticamente por “pequeno Tukie”, é o elo fundamental do argumento e o núcleo aventuroso a partir de onde a narrativa constantemente se reinicia. O que acontece por uma dúzia de vezes, desde o primeiro dos ‘incipits’ que cruza, de modo meteórico, o movimento de duas perdizes, a memória de uma garça, o olhar atento do protagonista e a terra da “Herdade do Convento” que se anuncia como geografia nevrálgica de todo o relato.

O pequeno Tukie testemunha, ao longo das doze estações deste ciclo ficcional, um conjunto de factos que resvalam, de modo súbito, de uma esfera normal e verosímil para uma outra, cuja identidade nunca se fecha ou declara. Aliás, é esse estado de metamorfose sempre em suspenso, ou de laboratório em contínua efabulação, que liga – repito intimamente – as doze histórias que compõem O sorriso enigmático do javali.

Existe realmente um pasmo de ‘media res’ – um enredo que respira fundo sem que se lhe conheça início ou fim precisos – que atravessa todos estes relatos, cuja simetria assenta mais na alegoria dos propósitos do que na ficção narrativa propriamente dita, enquanto agir que tende para o abismo de um clímax. Um pouco como no Émile de Rousseau, embora elevado ao maravilhoso, o quadro geral desenha, na boca de cena, o pequeno Tukie e o pai e, junto ao pano de fundo, o bebé, a mãe e os cães. Como, aliás, se sintetiza no final da décima história em jeito de concatenação fotográfica.

Mas o que concede a singularidade a este livro de António Manuel Venda é o modo delicado e enraizado (nos elementos puros) com que é posta em prática a metamorfose em suspenso que vai moldando cada uma das doze histórias. Se levarmos a cabo uma visita guiada a estas viragens que nunca desocultam completamente o seu rosto e o seu molde, apercebemo-nos de que são variadas, quer pela natureza dos seus agentes, quer ainda pelo deslumbramento e pelas quase aparições que sugerem.

Tudo se inicia pelo mistério da garça e da fotografia, em “1. Depois das perdizes paradas (pp.14/15), quando o que se vê e o que acontece se digladiam. Depois, é enunciada uma virtude nobre, o riso, que é imputada a um javali. Tal como na visão de Pirandello, a causa do riso parece estar no próprio motivo do riso. Ora leia-se: “Os dentes daquele javali, bem perigosos, parecendo afiados, dentes com restos de terra e ervas, esses dentes o pai do pequeno Tukie não sabia como classificar, mas esses dentes, junto com o focinho de javali, formavam uma espécie de sorriso” (“2. O sorriso enigmático do javali” – p.21). Na terceira história, surge uma gineta que “tinha uma motosserra no estômago” prestes a explodir (“3. Gina Gineta” – p. 31). Logo a seguir, em “4. A águia que subia” (pp. 42/43), aparece no céu uma bola ou bala de canhão que não passa afinal de uma águia. Tal como na quinta história, uma cobra aparece a voar como um gafanhoto ou um zangão (“5. Uma cobra para três corvos” – p. 49). A meio do livro, há espaço para um deputado a quem falta uma parte da cabeça (“6. O deputado das lebres extraterrestres” – pp. 58/59) e, também, para a quase ressurreição da gata Malhas (7. “Talvez a segunda vida” – p.69). Na oitava e nona histórias, as intermitências tomam conta do relato. É a borboleta que se materializa e desmaterializa ao mesmo tempo, em “8. A borboleta do imperador Ming” (p. 71), e era o lagarto que aparece e desaparece e que – já agora - também ri como o javali ( em “9. O lagarto da clave de sol” – p. 77 e p. 82). As duas histórias seguintes oscilam entre a magia e a singularidade. É o caso do ouriço “atrapalhado” que não se enrola diante do pequeno Tukie, em “10. Animal doméstico (p. 87”), e é o caso do texugo gordo que se comporta – imagine-se – como um cão, em “11. O texugo mais gordo do montado (p. 90”). A fechar a décima segunda história, surge ainda a rã que não era rã, mas que podia ter sido rooter ou parceira musical do lagarto que tinha a mania que era importante (12. “Uma rela” – p.100).

Todo o relato coloca face a face o pequeno Tukie – por vezes também a mãe – e o seu pai. É, pois, sobretudo à boca de cena que a interpretação de todo este milagre natural é expiado. Sob o olhar mais presente do que atento das personagens a quem foram confiadas as efígies do pano de fundo. Curiosamente, a figura da iniciação é quase sempre substituída por uma outra que não se confunde nem com a parábola, nem com a passividade de um perceptor à Émile de Rousseau. Em O sorriso enigmático do javali de António Manuel Venda, é a ambiguidade das respostas do pai (ou ocasionalmente da mãe) e, por vezes, a própria aura do irrespondível que tomam conta da cena. Acaba por ser este o modo de a narrativa melhor relevar e até significar uma metamorfose que jamais se aclara e que jamais se consuma. A eficácia da ambiguidade criada é óbvia, já que é por causa dela que se cria, ao longo das doze histórias, um espaço – ininterruptamente aberto (é esse o nome do enigma que dá nome ao livro) – que acaba por ser povoado pelo sortilégio, pelo fascínio e pelo encantamento.

A ambiguidade é gerada de formas díspares. Ou adiando uma resposta clara, o que acontece, por exemplo, em “Gina Gineta” (“Ficaria para depois o esclarecimento daquela dúvida…”) e em “Uma rela” (“O pai do pequeno Tukie achou que não era altura de explicar que não se tratava de uma rã mas sim de uma rela)”. Ou referindo explicitamente o conforto de não ter que clarificar, como acontece em “A borboleta do imperador Ming”: “São mentirosos porque…/ Foi então que parou, decidido a não dar explicações que o mais certo seria originarem perguntas mais difíceis”. Ou ainda admitindo simples possibilidades, veja-se: “O pequeno Tukie insistiu, e o pai acabou por ceder um pouco. Se calhar o lagarto era deficiente, tinha nascido assim…” (O lagarto da clave de sol). Por vezes, a ambiguidade decorre do cariz irrespondível que perpassa as situações, como é o caso de “O texugo mais gordo do montado” (“– É um texugo, não é?!/ – perguntou o pequeno Tukie/ E a mãe disse que sim, hesitante. Ela já nem sabia bem”) e de “A águia que subia”: “Sabes que pássaros são, mãe?/ A mãe disse-lhe que não, que iam tão alto que nem se atrevia a arriscar uma espécie” (A águia que subia). Outras vezes, a ambiguidade resulta do facto de se deixar simplesmente “no ar” o questionamento: “– Ri de quê?! – perguntou o pequeno Tukie./ Nem era uma pergunta para o pai, nem para o javali. Era apenas uma pergunta que deixava no ar” (O sorriso enigmático do javali).

Em todos estes casos, que devolvem abertura intencional ao “’Porquê’ Habitual” referido na penúltima linha do livro, uma certa imobilidade – nada altiva, sublinhe-se – assiste ao galopante vaivém entre o cosmorfismo e o antropmorfismo que constrói toda a malha discursiva. Em “Uma cobra para três corvos”, quando o narrador regista – “E ele, o pai, devia dizer que não, com firmeza, mas tal como não conseguia mexer-se também não conseguia falar” –, mais do que precisar os perigos do hipnotismo de uma cobra, acaba sobretudo por definir o tom que celebra toda a estratégia narrativa de O sorriso enigmático do javali: um ‘ser ou não ser’ terno, aberto à tentação do inverosímil, pautado pela inocência da dúvida e sustentado por um espaço de feitiço que vai entretendo a realidade como se esta tivesse a invisibilidade do mito.

Como se o casulo nunca se abrisse à borboleta e essa permanência extraordinária fosse a matéria de onde se teria extraído toda a ciência telúrica deste livro que, complementarmente, também escapa à definição de géneros. Romance? Contos? Novela fragmentária? Que interessa isso! Ao fim e ao cabo, trata-se da mesmíssima ambiguidade que se esconderá no gáudio – espero – do leitor, demasiado educado ao percorrer o coração das tramas e ao adicionar-lhes desenlaces que adora imaginar (e com os quais dá sentido à vida).

Concluamos com uma opinião pessoal. O sorriso enigmático do javali de António Manuel Venda é um “Livro de Horas” – como se designava na Idade Média o misto de iluminuras, salmos, orações e textos muito variados – , enunciando-se sadiamente liberto de referências pesadas, ungido de simplicidade e acabando por fundir ou confundir o relato com a liturgia da vida, ou não fosse boa parte do narrado, quase de certeza, de teor biográfico… aparecendo o narrador pelo buraco da agulha um pouco mal escondido, aliás em coerência plena com a arquitectura da própria obra.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Renovação ou melancolia sebástica?

INET

Alegre apresentou-se em Ponta Delgada como o candidato da renovação. Foi essa palavra - a "renovação" - que melhor tentou traduzir a essência da sua candidatura. Contudo, para o bem ou para o mal, Alegre é um candidato muito pouco renovador.

Em primeiro lugar: o mundo está a mudar muito rapidamente e os valores que eram taxativos, certos, quase imutáveis, atravessando e marcando ideologicamente as sociedades, deixaram de ter influência decisiva. A partir da última década do século XX foi despontando, contra a inércia da geração a que pertenço (nasci em 1954), um mundo muito mais livre que se afastou das cartilhas rígidas. Este novo mundo, apesar das crises que são rostos habituais do nosso tempo, é muito melhor e bem mais sadio do que aquele que fez jus à Guerra Fria.

Vivemos, de facto, num mundo bem menos assente em cartilhas e mais problemático e mais aberto. É um mundo que adoptou o instantanismo tecnológico e que estreitou o espaço e o tempo do planeta. É um mundo talvez demasiado relativador e mediático, mas menos nostálgico e dogmático. É um mundo a que Alegre intimamente nunca pertenceu e a que, no fundo, não pertence. Este mundo, naturalmente, também não é o de Cavaco. Poucos são os políticos com espessura que representam o nosso mundo actual de modo positivo, criativo e estimulante. Crise profunda, a da politica, certamente. E não apenas em Portugal.

Estou convicto de que Alegre não incorpora um mundo aberto à iniciativa sem fim, de que a rede é, afinal, uma excelente metáfora. E é por isso que nos crê a todos como afundados. Ou perto disso. O pensamento sinceramente trágico de Alegre admite que a ausência de valores taxativos, previsíveis e capazes de marcar ideologicamente a sociedade significa, só por si, ausência de ética. E é por isso que se apresenta como campeador da ética. Uma espécie de PRD com gravata e barba anteriana: como se a ética fosse o imaginário de uma coutada própria a verberar-se poeticamente. Uma renovação destas precisava, talvez, o mundo do futebol. Não um país.

Toda a aparição de Alegre é almofadada, afectada, própria de quem ostenta um ceptro invisível. Ao invés de uma imagem política renovada - o PR em Portugal é essencialmente um símbolo que pressupõe capacidade de decisão -, Alegre propõe antes uma efígie política de nobreza sobre um plinto composto pelo mármore poético.

O candidato a PR discursa com um tom declamatório e pausado. Trata a linguagem, não como uma ferramenta para anunciar o verbo político e um leque de mensagens concretas e mobilizadoras, mas como uma linguagem que fala acerca da linguagem. Um registo que se move à volta de si próprio, com óptimo ritmo, boa gradação e uma certa proximidade da rima. Mas, de qualquer modo, um tom proclamatório que pede emprestado ao Parnaso a prosódica para a política. Eficaz para cintilar em corações românticos ou para preencher os vazios de quem não entende - ou não aceita - o mundo em que vivemos.

Um tom exaltante para jovens saudosos, sebásticos de 68 e ideólogos desempregados. Mas uma renovação às avessas, certamente.