quarta-feira, 31 de março de 2004

Apocalipse today

Entro em Lisboa perto da uma da tarde. Estou quase a chegar à Ponte Vasco da Gama. Olho para a faixa de rodagem contrária e vejo a acontecer qualquer coisa que não devia estar a acontecer naquele momento (segno era, há uns séculos, o que escapava à ordem natural das coisas). Custa a crer mas é verdade: um carro a arder, as chamas elevando-se a uns sete a oito metros de altura e não muito longe distingo ainda um vulto, de pé, a olhar compassivo para o triste espectáculo. O trânsito abranda, mas ninguém pára. E eu chego a pensar que a grande explosão deverá estar iminente (refiro-me ao depósito de gasolina). Passo pelo local e sigo em frente. Não vislumbro a catástrofe imaginada. Fica apenas o fogo que já de si é tão inimaginável.
A grande catástrofe já não é, hoje em dia, a orquestração criada por uma ordem anterior e universal. Agora, qualquer imagem fulgurante é o quanto basta para que possamos inscrever o sentido e o espanto apocalíptico no dia a dia, no vivido, nesta fugaz travessia que é a vida. Como se nota, hoje fiquei com o dia marcado. É assim o terror involuntário.

terça-feira, 30 de março de 2004

Questão

Qual é a diferença entre a cidade ordenada e a cidade que se perde e edifica nessa e contra essa ordem? Não serão ambas a mesma?

segunda-feira, 29 de março de 2004

Poortugaal, uma terra holandesa (para o Nuno Guerreiro)


Ik hou van Poortugaal

A região envolvente de Poortugaal, nos arredores de Roterdão, já era habitada no século IV AC. Cerca de meio milénio depois, os romanos tentaram fixar-se no território que, no entanto, só viria a ser povoado, de modo estável, a partir do século IX.
Por volta de 1170, os moradores da região começaram a defender-se do desnível das águas através da construção de variados diques. Foi assim que surgiu um primeiro polder com cerca de cem hectares. No centro desse polder inicial, edificaram-se diversas construções em madeira (pelo menos algumas casas, uma torre e uma primeira igreja). No século XIII, a sul do sistema de diques já existente, foi-se concentrando alguma população que não dispunha de terra (denominada mais a sul por servos da gleba) e que acabaria por dar origem à actual povoação de nome Poortugaal.


O Schielands Hoge Zeedijk (século XII)

O nome desta terra - hoje inserida na rede de metro da grande Roterdão - ficou a dever-se às conexões estabelecidas com os Cruzados (na altura, o antigo porto de Poortugaal estabelecia ligação com o Rio Maas) e denota relações directas e prolongadas com Portugal, incluindo nas próprias armas que não deverão, contudo, ser anteriores ao século XV (o hipotexto luso correspondente data dessa altura).
Um dos sintomas interessantes dessa relação com Portugal é a existência, ainda hoje, de uma família com o nome “Tempelaar”. O ramo mais antigo dessa família remonta a 1574 (Herman), embora haja ascendentes com variações desse mesmo apelido, nomeadamente “Tempelar”, “Tempeler”, “Tempelers” ou “Tempelaer”. É provável - afirma-se no site da família (onde o Convento de Cristo de Tomar é ostentado) - que a genealogia derive de alguma ligação à Ordem lusa dos Templários, sendo, no entanto, quase certo que o actual nome deverá ter aparecido já depois de extinta a ordem. Nas várias pesquisas que levei a cabo, em torno desta curiosa povoação do Ijsselmonde, não encontrei vestígios de fixação judaica oriunda de Portugal, na sequência do fatídico início de quinhentos (fica desde já lançado o repto a quem vier a encontrar).


(Cornelis Tempelaar, n. em 1831)

No início do século XIV, foi construído em Poortugaal o castelo de Valckesteyn que, além de prisão, chegou a ter razoável importância militar em toda a região. No século XIX acabaria por ser demolido e no seu lugar encontra-se hoje o bosque do mesmo nome, o Vasckesteynbos.
Após a transformação em polder de toda a região do Ijsselmonde, Poortugaal cresceu bastante, sobretudo após a Segunda Grande Guerra Mundial, e passou a rivalizar directamente com Rhoon, a outra terra do concelho de Albrandswaard (situado a norte do Rio Oude Maas, a sul do grande concelho de Roterdão - que se espalha em forma de S deitado até ao mar - no lado oposto de Schiedam; ver nestes mapas).

domingo, 28 de março de 2004

Cidadanias da tanga



Imagine-se que o director nacional do IPPAR, em pessoa, tentava impedir a demolição parcial de uma casa que foi Prémio Valmor (na Av. 5 de Outubro, em Lisboa). É uma situação que em qualquer país civilizado era, no mínimo, para rir à gargalhada durante sete dias e sete noites. Por cá é normal.
Imagine-se que, entre as Amoreiras e a Estrela, um conhecido ministro de eras passadas construía uma gaiola de betão em andar de edifício centenário (com estrutura original de outra natureza). Ex-ministro, ou não, é uma situação que em qualquer país civilizado era, no mínimo, para rir à gargalhada durante oito dias e oito noites.
Imagine-se que uma imobiliária que arrenda andares na Graça dá a ler aos futuros inquilinos um contrato labiríntico e legalmente detalhadíssimo (cheio de direitos e de deveres) e, depois, pela calada e com boca pequena, avisa que o “senhorio não quer recibos verdes, porque não está para declarar a coisa às finanças”. Os futuros inquilinos mostram-se indignados e a representante do senhorio conclui: “Isto é uma situação banal. Só três ou quatro dos nossos clientes é que querem coisas legais”. É uma situação que em qualquer país civilizado era, no mínimo, para rir à gargalhada durante nove dias e nove noites.
Tudo fenómenos que se cruzaram, directa ou indirectamente, com o destino miniscente.
Este demolidor excelentíssimo, este ex-ministro exuberante e esta eminência de senhorio são figurões-tipo da alma lusa, entre muitos, muitos, muitos outros. Caricaturas assanhadas da esperteza lusíada. Gritam que o país anda de tanga e, depois, esquecem a mais pequena exigência que seria de esperar da cidadania patrimonial e fiscal. Fingem-se escandalizados com o novo-riquismo vadio e depois portam-se como cisnes parolos e selvagens.
Verdade, verdadinha. E até nem sou nenhum purista. Mas a vontade que eu tenho, às vezes, de me pirar daqui.

sábado, 27 de março de 2004

A liberdade e os ressentidos



Antes do período experimental que conduziu ao Iluminismo e ao advento da modernidade, a liberdade era entendida como um dom de Deus, como uma condição espiritual que diferenciava o homem dos animais, ou ainda como uma qualidade que, conforme os contextos mais diversificados, se opunha às noções de servidão (há um congresso muito interessante sobre o tema, o Penn-Paris-Dumbarton Oaks Colloquia, editado com o título, La notion de liberté au Moyen Age - Islam, Byzance, Occident, 1995, Les Belles Lettres, Paris).
A ponte que liga seiscentos a setecentos encontra a pouco e pouco uma noção individualizada de liberdade, em conformidade com a progressiva visão de um sujeito autónomo que lentamente vai escapando à ideia de simples peça de um rebanho divino. A experiência e o poder de conjectura vão adquirindo primazia face a uma ordem universal e anterior (a pintura holandesa do século XVII, os inventos ópticos da mesma época e a arquitectura do vidro são disso sintomas). É curioso analisar o modo como a ideia de liberdade acompanha este período de transição.
Para Descartes, a liberdade tornou-se subitamente numa evidência que não podia ser subtraída à existência absoluta de Deus. Para Hobbes, a liberdade foi basicamente, de acordo com princípios físicos do seu tempo, a ausência de obstáculos. Para o grande barroco, a liberdade individual submetia-se (ao melhor dos mundos, caso de Leibniz) ou partilhava (caso de Espinosa) a alma divina universal. Para Hume, Locke e Voltaire, de modos diferentes, a necessidade e a vontade impunham-se à liberdade. Mas, fosse como fosse, ela era observada de frente e descomplexadamente por estes autores. Já Kant encontrou uma perspectiva mais valorativa para a liberdade ao atribuir-lhe, por um lado, um cariz espontâneo (idêntico ao da imaginação) de acordo com a criação natural e, por outro lado, um equilíbrio - ou seja uma não dependência - face à então recente ordenação racional e moderna do tempo (a ciência histórica como domínio do passado e o prenúncio do conceito de progresso como domínio do tempo futuro - a tese de doutoramento de Viriato Soromenho Marques sobre este último tema é de grande relevância).
O século XIX trocou - em grande parte - esta vasta tradição centrada na liberdade do sujeito individual pelos chamados macro-sujeitos (a humanidade de Comte, as classes marxistas, o espírito de Hegel). Muito do vivido no século XX ficou a dever-se a este apelo neo-escatológico e salvífico. O homem sonhou-se Deus, não como Fausto (lembro as aventuras aéreas de Murnau), mas como para-cientista destemido e auto-impositivo. Nietzsche sorriu em vão, Ortega parodiou em vão e as Grandes Guerras quase ocultavam descobertas fantásticas, e para alguns menores, tais como o monólogo interior, a heteronímia e as diatribes de Huxley.
Foi preciso entender nos eighties que as referências pesadas cristalizavam a humanidade e não estimulavam a democracia para que se voltasse a valorizar outra vez aquela ideia genuína que, até Kant e ao fantástico Émile de Rousseau, tinha levado cerca de dois séculos a ser congeminada. Pena é que os ressentidos da contemporaneidade não saibam respeitar e compreender esta caminhada e se limitem a tentar encontrar os bodes expiatórios dos seus males na convivialidade democrática actual, onde a liberdade é valor supremo e condição única e primeira para enfrentar todos os obstáculos locais e globais (interessante esta oposição ao Leviatã de Hobbes). Ofender a democracia chamando-lhe apenas “formal” é denegar precisamente o alicerce de onde ela brota e o exercício de abertura e de liberdade que alimenta esse mesmo brotar.

sexta-feira, 26 de março de 2004

O Ressentimento - 2


Muppets

Não li de ponta a ponta o último romance de Saramago, nem nada me entusiasma a fazê-lo (o que já acontece há muito, muito tempo). Mas se há exemplo de ressentimento - ver post mais abaixo - é aqui que o encontramos e, às vezes, de modo primário. Ou seja, proclamando em voz alta o que a maior parte dos ressentidos não está em condições de vociferar por si só.
Já vimos que o exercício do ressentimento, na maior parte dos casos, é levado a cabo de modo invisível, involuntário e sem que o próprio dê por isso. Até porque o ressentido reage contra a democracia e o outro (denegando-o), na medida em que não aceita ver defraudado aquilo para que foi programado, ou sonhou, ou definiu científica, afectuosa e unilateralmente há muito tempo. Para o ressentido, não há mudança de caminhos, nem há mudança de realidade. Isso seria traição, tal é a monossemia e o esquematismo de fundo em que assenta a sua vida fantasmática.
Ao fim e ao cabo, a luta do ressentido é entre si e as suas feridas, projectando essa dor irradiante e autista na sociabilidade plural que o envolve e onde se vê irreparavelmente obrigado a viver. É também por essa razão que o ressentido não é capaz de escutar um único eco ou conforto para a sua voz amarga. Sobretudo porque o lamento ferido dessa voz se resguarda na sua própria pele acossada, longe da abertura e das possibilidades múltiplas criadas pelos espaços públicos actuais.
O ressentido detesta o debate franco e procura nos mecanismos complexos e variados da democracia todas as chaves do (seu) inêxito e da (sua) injustiça. O ressentido passou até a traçar equivalências delirantes entre a compreensão que sente pelo terrorismo contemporâneo e os males cirúrgicos da democracia que detecta com escalpelo de clara má-fé. É nesta linha que Saramago, em Ensaio sobre a Lucidez, decide dar corpo a uma “revolução” (termo perpétuo de adulação nostálgica) materializada pela insistência do “voto em branco” de uma vastíssima maioria em duas eleições seguidas. Toda a democracia e os seus agentes institucionais entrariam subitamente em pânico. Sem mais adornos, o autor de A Jangada de Pedra deleita-se com dedinhos de pianista a pôr a nu e a desproteger radicalmente esta longa aprendizagem secular do ocidente que é a democracia (valeria a pena a Saramago ler o capítulo IV, A Aposta Democrática, do excelente livro Impasses - seguido de coisas vistas, coisas ouvidas de F. Gil, P. Tunhas e D. Cohn). Foi sob este estafado pano de fundo que o nobel apareceu anteontem à noite na RTP-1, com aquele habitual rosto martirizado, a dizer que “isto”, ou esta “coisa em que vivemos”, não é uma democracia. Que o voto é uma ilusão e uma pura mentira (ficamos a ouvir alto o que muitos pensam).
E dizia-o sem entender que a flexibilidade e a complexidade das posições em presença numa sociedade democrática constituem a mola real da expressão do contraditório e da prática insofismável da liberdade. E dizia-o sem entender que as várias esferas da vida (económica, social, jurídica, lúdica, imaginária, epistemológica, etc.) não estão divididas em gavetas estanques e que se movem no sentido indefinido das escolhas compostas e livres. E dizia-o sem entender que o poder político e o estado são partes ou linhas limítrofes com responsabilidades definidas e não moldes totalizantes e formativos das sociedades abertas. E dizia-o sem entender que os modelos impositivos e fechados das sociedades em que tanto acredita/ou não podem, nem poderão jamais vir a projectar-se sobre que miragem subliminar for.
Saramago troca ficcionalmente a ilusão do voto “contra o sistema” (que imagina sempre de modo estático e economicista) pela realidade daquilo que é a democracia, porque não quer saber que a democracia é, em primeiro lugar, um processo de permanente renovação e reinvenção da representação que tende a dar forma a vontades dissonantes e que tende a cruzar opiniões e modos de ser visando sempre a coabitação do diverso numa mesma arena pública (aconselho Saramago, a este propósito, a ler a reflexão sobre o inacabado em projecto, enquanto enunciação da própria democracia, tal como J. Derrida reflectiu em O Outro Cabo).
Para ser sincero, aos ressentidos, apenas desejo que comam muitos chocolates.
Dia Mundial do Teatro


Teatro Garcia de Resende (Évora)

E assim acaba a mensagem que hoje é lida em todos os teatros do mundo (este ano da autoria da dramaturga egípica Fathia El Assal):

“Enfim, estou convencida que o teatro é a luz que ilumina o caminho do ser, uma luz que assegura a ligação orgânica com o espectador. Esta comunicação cria um calor entre nós, quer estejamos frente a uma peça escrita ou frente à sua interpretação em cena.”

Parabéns, teatro.

quinta-feira, 25 de março de 2004

Dez mandamentos para o feitiço de Scarlett Johansson

(divertimento a meias com muitos, muitos amigos)



1 - O desejo e o tau-tau nunca esqueceram interstícios.
2 - As curvas em chama não almejam visíveis labirintos.
3 - O deleite e a arte nunca foram água ou fogo-fátuo.
4 - A carne viva e o ai-ai nunca pintaram banda desenhada.
5 - O todo bravo nunca foi a soma das cinderelas desejadas.
6 - A elasticidade e a verve nunca evitaram mil verrugas.
7 - A dieta e a voragem nunca doaram cobiça ao encanto.
8 - O dedinho velhaco nunca atraiu as luzes dos solários.
9 - A vírgula não é ponta sem nó e a língua arisca que o diga.
10 - A orla e o mel nunca olvidaram o que nesta nua coserei.

(espero que traduzam estes mandamentos para todas as línguas do mundo)
O Assentimento

O contrário do ressentimento (ver post por baixo) é o assentimento ilimitado. Veja-se o que se passou hoje em Entre-Os-Rios. Tudo bem, não há culpados, somos um povo brando, bom, sereno.
O Ressentimento



O ressentimento age de modo deliberadamente unilateral. Muitas vezes sem que o próprio dê por isso. O ressentimento funda-se na frustração da alma, na impossibilidade de respirar perspectivas antes sonhadas, no desencanto que não se aceita. O ressentimento recusa o outro, recusa a colegialidade de opiniões, recusa o contraditório ou até a sanidade da crítica. O ressentimento luta e vive com fantasmas, luta e vive com figuras imaginárias que preenchem quixotescamente o vazio deixado pelo desaire. O ressentimento já nem sequer habita neste mundo, tal como os místicos que o encaram como mero trânsito e portanto apenas aspiram aos deuses ou ao além. O ressentimento é violento e tende a recusar a democracia. Não a aceita, no fundo, nem como uma espécie de mal menor. O ressentimento tende a encontrar no seio da democracia aquilo que é próprio da monstruosidade, do abjecto e do terrorismo. Faz-lhe jeito que assim seja. O ressentimento adora trocar os termos e concede imunidade e compreensão aos cultos da morte que brotaram com visibilidade no mundo do pós-11 de Setembro. O ressentimento prefere apontar para o terrorismo e para a barbárie, ao apontar para a democracia (onde vive com liberdade suficiente para o poder fazer). O ressentimento é o autismo do século. O ressentimento é a aridez retórica que mais notícias cria no dia a dia. O ressentimento é uma praga. O ressentimento é uma cegueira. E sendo isto tudo, imagine-se que o ressentimento pode ser nobel, deputado, lente, cronista e o mais que se quiser. O ressentimento anda por aí, muito activo e praguejador. O ressentimento alia o reverso do clã sebástico ao velho do Restelo sem rio para olhar. O ressentimento é um Peter Pan sem causas que inventa o que for preciso para fingir que defende causas. O ressentimento é um fingidor que detesta a poesia. O ressentimento é um dos maiores opositores da democracia. O ressentimento é realmente um grande sacana, cheira a mofo e odeia definitivamente a Primavera.

quarta-feira, 24 de março de 2004

Pixel

Vi Pixel do coreógrafo Rui Horta no passado fim-de-semana. A cena enclausura os espectadores num túnel que se subdivide em duas partes distintas, através de um fundo móvel. Do lado de cá, um bailarino jovem confrontado com as imagens que produz digitalmente em tempo real e com o espaço cénico que na sua frente se reinventa. Do lado de lá, um bailarino com mais cinquenta anos de vida, hesitando entre a assimetria sonora e plástica e a condução dos actos e gestos que se desenvolvem na cena.
O movimento oscila, erra, desliza ao longo de uma história, dir-se-ia muda, onde em vez de intriga entre sujeitos cresce uma hipernarrativa da pele. Uma espécie de Pele da Cultura de Kerckhove sufragada pela pesquisa imaterial, tecnológica, áspera, quase rude (muito alemã) e descentrada face ao duplo olhar que a limita.
Os dois lados da cena nunca se tocarão e o espaço vital de Pixel acaba por viver precisamente desse desdobrar, dessa prega, dessa morfologia incerta que parece parodiar toda uma tradição do Ocidente em que um lado claro remete sempre para um outro mais obscurecido (que significa ou legitima aquele). Esta descontrução da metafísica em acto é um dos aspectos mais fascinantes de Pixel.
No final, os actores despem-se e a cena apaga-se sem suavidade. A derradeira imagem de um espectador perdurará para além da errância proposta. A clausura passa subitamente a visibilidade. Pixel torna-se então numa experiência quase limite ou na animada natureza do efémero, esse nova estrela que brilha cada vez mais na actualidade.
Pretenders

Pretender apenas conservar a sucessão e a sensação fugaz do que é transitório. Pretender apenas fazer perdurar o efémero (pixels, imagens voláteis, a consciência alargada redimindo-se da sua cansativa montagem secular). Pretender apenas, por outras palavras, fruir e gozar a plenos pulmões aquilo que são manifestações claras da crise do sentido que afecta o nosso tempo.
Estas pretensões são afinal tão óbvias quanto desejar que tudo voltasse sempre ao mesmo, para que, desse modo, se pudesse entender com alguma estabilidade o que está - ou o que estaria - a passar-se à nossa volta. Estas pretensões são afinal tão óbvias quanto desejar tocar no vácuo e arejar a mente ilimitadamente com a ilusão de que a vida é um boomerang sucessivo de ilusões (imaginar que isto é tudo imaginação fragmentada, posta a circular sem norte, adiada para sempre). Estas pretensões são o reviver da graça divina medieval, agora sob a forma de chips, clones, lasers, hologramas, cyborgs e outros, muitos, gafanhotos imateriais.
Signs of our times.

segunda-feira, 22 de março de 2004

Estranhas elegias

Tanto lamento varre hoje o Ocidente por causa do Hamas!
É verdade que a operação israelita surgiu fora do tempo e da oportunidade, no quadro da previsibilidade política - e filantrópica - que muitos projectam sobre o Médio Oriente.
É verdade que a simples espiral de violência e a sucessiva roda de retaliações não auguram nada de bom, nem poderão constituir-se como método político credível e com futuro para o Médio Oriente.
É verdade que há uma guerra em curso no Médio Oriente entre o exército de um país democrático e um conjunto de facções que representam pessimamente os palestinianos.
Sendo tudo isto verdade, parece, contudo, delirante esta tendência que Fernando Gil, Paulo Tunhas e Danièle Cohn caracterizaram recentemente como “ódio a si próprio” e que conduz sistematicamente um mar de vozes, sobretudo no Ocidente europeu, a visar Bush, Blair ou Israel e a esquecer - ou a pôr de lado - patologias políticas não democráticas tais como a Coreia do Norte, Fidel de Castro ou o terrorismo mais radical (entre ele o do Hamas).
Não me guio por estes binarismos auto-flageladores.
O critério que me guia é a democracia e a liberdade (e não qualquer tipo de antipatia ou de legalismo estático). Os EUA, o Reino Unido e Israel são países democráticos e livres e por isso mesmo as lógicas de poder aí dominantes podem ser destituídas regularmente pelo povo. O mesmo não acontece, infelizmente, noutros cenários. Nomeadamente no cenário de terror onde o Hamas se move e age.
Há lamentos e lamentos, mas convenhamos: elegias dedicadas a um cérebro do terrorismo parecem-me de facto excessivas.

domingo, 21 de março de 2004

Leituras de Primavera

Estou a ler Patrícia Melo (Inferno) e estou espantado. Grande livro, poderosa escrita, registo sincopado, hip-hop rítmico, sintaxe rap, a história engalanando-se de cor e abismo, rugidos ao fundo dos becos, vida de favela, crack, funk, fuga, assalto, choque e, apesar de tudo, tanta ternura e tanta fidelidade ao olhar que se redime diante do sofrimento mais corrosivo. Deixei a meio o último Lobo Antunes e, passe a minha sincera admiração pelo caudal múltiplo que fala nos livros do nosso melhor escritor, a verdade é que o encanto de Inferno de Patrícia Melo nos deixa a milhas do excesso da escrita entrecortada de Boa tarde às coisas aqui em baixo. Em fila de espera - depois de severamente instigados por leituras diagonais - está agora o cosmopolitismo poético de Amos Oz (O mesmo mar) e os segredos impiedosos de Philip Roth (A Mancha humana). Nem sempre a literatura tem tempo para se intrometer abundantemente entre os ensaios que tenho que ler (ou que releio em função dos meus compromissos regulares); nem sempre a literatura tem oportunidade de invadir o meu pathos e a minha rede de empatias, na medida em que, ao escrever - nos períodos em que escrevo, evito ler com devoração e lealdade a esse precipício que é o gosto. O que quer dizer que, neste preciso momento, a avidez está a ser compensada. Obrigado Patrícia Melo!
Bem-vinda!



E o dia abriu os olhos. E a luz entrou de um momento para o outro nessa íris imensa e a descoberto. É a Primavera a chegar com o seu excesso, com a sua exuberância, com a sua profusão. De olhos subitamente abertos, o corpo vislumbra a liquidez do ar, a mornidão dos sentidos e a paciente memória da terra. Bem-vinda!

sábado, 20 de março de 2004

A melhor cidade para viver



Eis finalmente expressa em ranking a razão que me fez escolher Évora para viver, há já mais de uma década, embora continue a dar as minhas aulas no paraíso de Cesário Verde. A uma hora do mar, a uma hora de Espanha e junto ao umbigo do universo, nesta terra ainda há laranjeiras e nespereiras frondosas que respiram junto a alvenarias deslumbrantes e a alguma urbanidade, lado a lado com o campo mais extraordinário e variado que já se imaginou no planeta. Escolhas. O estudo é hoje publicado no semanário mais institucional do nosso cantinho e impossibilita os linques adequados. Mas vale a pena abrir o saco e ler essas esclarecidas linhas.

sexta-feira, 19 de março de 2004

O dominó de Paul Auster - 4

Diz Fiona no início de Música do Acaso: "Estamos na América, Nashe, A casa da maldita liberdade". Duas páginas depois, diz-se através da voz do narrador: "O dinheiro era responsável pela (sua) liberdade". E o destino de Nashe, o protagonista de Música do Acaso, acaba por se fundir com o jogo, com o dinheiro, com o sacrifício e com uma fixação chamada imolação.
Em Leviathan, a prefiguradora saga (terrorista) da estátuas da liberdade e a queda física de Sachs, enquanto pontos de viragem da narrativa, mantêm e sustentam o princípio de uma fixação que é anterior à fruição da liberdade. De algum modo, em Paul Auster, encontramos materializado aquilo que Vattimo designou por "liberdade problemática". Quer isto dizer que a liberdade, tal como é tratada por Paul Auster, se transforma quase sempre em algo insuportável, parte da curva de um labirinto maior onde a interpretação acaba por esgotar-se, enclausurada que se sente por obsessões e fixações mais profundas que não cabem sequer no sentido das explicações.
Mas não será a disputa de novos horizontes de compreensão - alheios à explicação - aquela que nos domina e dominará, nos próximos tempos, na medida em que a arena da nossa vida se debate cada vez mais com o espectro do hiperterrorismo? Não estará todo o ocidente a conter uma desmesurada tensão entre um estado de fixação ou obsessão e uma tradição de ilimitada vivência da liberdade?
É a literatura a glosar o real. Ou é o contrário?
Parabéns!

Parabéns ao Contra a Corrente, o blogue que vê o mesmo céu que eu vejo e que vislumbra a mesma cor da Primavera que eu vislumbro. E nunca nos encontrámos off-line!

quinta-feira, 18 de março de 2004

O dominó de Paul Auster - 3


Sigrid Estrada

Paul Auster sempre explorou com mestria as semelhanças entre os acontecimentos mais diversos e mais diferenciados entre si. Este ponto de partida, baseado na equivalência do improvável, parece às vezes sobrepor-se a tudo. Veja-se, no romance Música do Acaso, os paralelismos entre as infâncias de Pozzi e de Nashe e entre os destinos de Flower e Willie. Veja-se o paralelismo formal que se desenha entre os desaparecimentos de Sachs e de Dimaggio, em Leviathan, e, por outro lado, o tipo de simulação praticado por Quinn/Auster na Trilogia de Nova Iorque e por Maria/Lilian em Leviathan. Vejam-se ainda as semelhanças que são propostas entre o ponto de partida da própria vida de Nashe (em Música do Acaso) e o que acontece na vida de Walter, no final da segunda parte de Mr Vertigo. Vale a pena seguir as pistas.
As sucessivas e extravasantes semelhanças (que atravessam a superfície lisa ou enrugada dos acontecimentos) narradas por Paul Auster não andam muito longe da interpretação que os média e os governos da actualidade levam a cabo em situações-limite. A tentação de relacionar o não relacionável faz parte de um modo de entender o mundo no qual o desejo se transforma em esteio de serenidade, ou em pura estabilidade augurada.
Só que o mundo não é estável, nem sereno. Tal como a literatura.
Urgências nacionais

Então não é que o Fórum TSF de hoje se pôs a discutir o local onde deve ser disputada a final da taça de Portugal!
O dominó de Paul Auster - 2

O que é que legitima a ideia de acaso sempre presente em Paul Auster? Talvez o simples jogo de contrastes Pozzi-Nashe na previsibilidade das ocorrências (em Música do Acaso); talvez a fatalidade imanente atribuída ao pontos de viragem que cruzam todas as narrativas de Auster; talvez o puzzle criado pelo desencadear de enunciações lógicas do tipo "Este encontro não era um acaso" - modo como é apresentado o primeiro encontro aparentemente fortuito entre o Tio Slim e Walter Rawley em Mr. Vertigo; ou talvez ainda as sucessivas elipses na intriga da Cidade de vidro da Trilogia de Nova Iorque, para já não falar das cruzadas astúcias da memória (veja-se o esquecimento de Peter Aaron que o conduz ao conhecimento inevitável de Sachs, no início de Leviathan), ou das falsas analepses - flash-backs - com sabor a prolepses - a previsões -, o que é comum em todo o discurso profético. Ou não será a transgressão da narrativa, em Paul Auster, uma forma de conformar a necessidade do acaso com o destino dos seus próprios personagens? Afinal, a crise é sempre uma espécie de pacto que concede alguma ordem ao mutismo das explicações. O mundo actual, como se vê, tem muito a ver com os argumentos e com as teias postas em jogo por Paul Auster. É a literatura a glosar o real.

quarta-feira, 17 de março de 2004

Make love and SMS

Agora aprenderam a divertir-se com SMS.
O dominó de Paul Auster


Mimsy Moller

Em Paul Auster há sempre uma catástrofe que é designada. É assim no desfecho suicidário de Música do Acaso, quando Nashe leva ao extremo a intriga em que se deixa envolver; é assim quando o cão de Timbumktu pratica semelhante movimento em jeito de eterno retorno. E é assim, também, quando o mestre Yehudi de Mr. Vertigo, ou quando o caderno vermelho de Quinn (da Trilogia de Nova Iorque), ou ainda quando o livrinho preto dos telefones (achado por Maria Turner, em Leviathan) desencadeiam, cada um de seu modo, sucessivos movimentos de dominó nos destinos dos personagens.
Não terá andado Paul Auster a vaticinar, há já alguns anos, tudo aquilo que temos estado a viver nos últimos tempos?

segunda-feira, 15 de março de 2004

Cabeça fria



Os espanhóis penalizaram o PP por ter tentado ocultar alguns dados fundamentais relativos à tragédia do 11-M. O partido de Aznar esqueceu-se, à última hora, de que vivemos num mundo onde tudo está praticamente globalizado: os serviços secretos, as diplomacias, a comunicação social e a própria opinião pública. À dor, o povo espanhol juntou uma mobilização talvez imprevista e definiu a sua posição, quatro dias antes verdadeiramente improvável.
Sem a tragédia do 11-M, o PP teria ganho as eleições com maioria absoluta e com toda a história do Iraque pelo meio. Não foi, pois, por causa da questão-Iraque que o PSOE ganhou as eleições. Há mil e uma especulações redutoras e maniqueístas a pairarem por aí e que acabam por projectar sobre o que aconteceu em Espanha os fantasmas, as paixões e os desejos dos seus acalorados autores.
Haja cabeça fria! Ou alguém imagina que a al-Qaeda irá diminuir alguma vez o seu ímpeto contra o ocidente, após as mudanças operadas em Espanha? Haja cabeça fria.

domingo, 14 de março de 2004

Sinais claros do mundo actual



Tal como a sida, a meados de oitenta, veio acabar com uma sociedade hedonista que reatava a errância dos sixties associada a um halo pós-moderno, também o hiper-terrorismo de escala (11-S e 11-M) veio acabar com uma sociedade que tinha aliado, nos anos noventa, o optimismo do globário tecnológico à superação positiva da guerra fria (facto que eu realcei em dois ensaios meus, nomeadamente, Anjos e Meteoros e Órbitas da Modernidade). Sei que algum grau de hipérbole apenas realça a verdade essencial dos factos.
Hoje em dia, o fim do deslumbramento e a nostalgia da felicidade confundem-se com a formação de novos horizontes de compreensão que se estão a formar, a pouco e pouco, visando enfrentar e enquadrar o que se está a passar à nossa volta (no fundo, um novo tipo de guerra mundial). A nova errância - ou a nova procura -, mais lenta na Europa, mais célere nos EUA, processa-se já num universo de objectos massificados e mediatizados e tende, quer os políticos queiram quer não, para uma tácita ausência de objectivos.
Ao ocidente resta, nesta fase, a reinvenção da democracia e a obsessiva defesa da liberdade, sabendo afastar-se, ao mesmo tempo, da chamada política-fortaleza. Numa palavra, é este o cunho - em parte defensivo - que começa a marcar o desígnio histórico do alvor do século XXI, ou, pelo menos, da sua primeira década.
Até porque o terrorismo deixou de visar as arquitecturas fáticas, simbólicas e securitárias do ocidente e passou a ter como alvo as pessoas. Apenas as pessoas. Massiva e encenadamente, e com uma frieza radical. A esta macro-engenharia da morte devemos todos responder com serenidade. Com empenho. Com um aceno de vigilância reforçada. E podemos acreditar que este novo tipo de terrorismo virá um dia a ser derrotado, menos por via dos recursos bélicos clássicos e mais pelo mérito cumulativo da inteligência, da moralização democrática e da concertação positiva entre governos.
Dupla face, não obrigado



Não há legitimidade possível, seja de que ordem for, para o terrorismo. Para qualquer tipo de terrorismo. Independentemente da sua origem e motivação. Pôr em causa este ponto de partida (o que aconteceu, aqui e ali - e com certeza, aí, nas televisões - no debate acerca da responsabilidade do 11- M) é conciliar com os desígnios dos terroristas.
Uma faceta do actual correr dos tempos é precisamente vulgarizar e relativar de modo excessivo e labiríntico o que não merece sequer um nome, já que um nome é sempre, entre outras coisas, o estatuir de uma diferença. E o terrorismo não é diferente do terrorismo; é ele mesmo, sempre, igual a si próprio, hediondo. Ainda hoje, em Israel, a chamada Brigada dos Mártires de Allah reivindicou mais um acto hediondo.
Demarco-me frontalmente dos que choram Madrid e silenciam esse acto hediondo. Dos que choram Madrid e evitam a ETA. Dos que choram Madrid e falam do Iraque. Dos que choram Madrid e minimizam o 11/9. Dos que choram Madrid e não estão na Madrid em que hoje o mundo todo se transformou. Seja onde for.
Dupla face, não obrigado.

sábado, 13 de março de 2004

Boa!

São palavras da autoria de Mário Santos:

Depois que Fernando Pessoa afirmou há mais ou menos 70 anos (não me lembro bem, já não é do meu tempo) ser Eça de Queirós "o exemplo mais flagrante do provincianismo português [...] porque foi o escritor português que mais se preocupou (como todos os provincianos) em ser civilizado", não há escritor português que não seja parente de aristocratas russos exilados. No mínimo.

Para descongestionar o ambiente, hoje que é Domingo.
Barbárie Não


sexta-feira, 12 de março de 2004

Eles e o seu W de estimação

Há blogues (e autores não blogueadores) que eu leio quase diariamente e que prezo pela inteligência, pela ironia, pela densidade e pela coragem. Contudo, verifico que muitos dos textos desses autores podiam ter um brilho e uma riqueza muito maiores. E porquê? Porque antes de enunciados já estão em subliminar estado de alerta. Visando W ou contestando W. Há sempre o objecto W de que falam, que ironizam, contra o qual falam, ou que tão-só denunciam. É como se estivessem hipnotizados por W, seu oponente profundo (e que pode ser político, ideológico, estético, esquerdo, direito, geracional etc.). É como se tivessem inevitavelmente que inventar uma arena limitada onde se debatem com W, ainda que, ao mesmo tempo, continuem a falar nos seus textos das coisas mais diversas do universo. Esquecem que existe todo um espaço múltiplo e plural para intervir, um imenso volume multipolar, preferindo antes optar por uma elementar linha para a sua intervenção (onde há muito, e se calhar para sempre, contracenam linearmente com W). É pena que assim seja, mas parece que a duplicidade de hemisférios tem um peso somatosensorial considerável.
Humores


Apresentadores da edição de 1968 (La, La, La de Massiel ganhou então na Eurovisão)

Humor, humor, humor, tem isso tudo que aparece tão bem descrito no post do Homem a Dias (que eu muito prezo), mas sobretudo se visto em contraste com os festivais da canção do senhor Ramiro Valadão dos idos de 1973 para trás (as coisas andavam muito ligadas, nessa altura). Ver uns e outros, juntá-los, amalgamá-los, contrastá-los a preto e branco, isso sim, é quase tão fotogenicamente cómico como os Inimigos Públicos e os felinos ruços de hoje. E se víssemos o telejornais dos tempos de D. Maria II cruzados com os directos da revolução descrita por Fernão Lopes, então é que a malta rebolaria a rir, pelo menos quase tanto como o fazemos hoje, em massa, diante da SIC Radical de Carnaxide. Bom, bom, é apalpar o vazio doutros tempos e abraçá-lo depois como se fosse a pelugem desnudada do nosso próprio contendor silencioso e informe. Difícil, difícil, é apalpar os vazios que nos circundam hoje. Cada um com o seu fantasma (hipótese de Mr. W, ver post acima), todos, todos com Sical.
Sem palavras


via El PAIS

DEMONSTRAÇÃO ANTI-TERRORISTA.
AGORA, SEMPRE E TAMBÉM ÀS 18 HORAS.
Comportamentos de risco



O governo está decidido a criar no secundário uma disciplina com o objectivo de prevenir comportamentos de risco. Acho bem. Até porque a recente massificação nacional ainda não encontrou um eco coerente que garantisse ao ensino alguma seriedade, apesar da expansão dos metadiscursos pedagógicos em todos os cantos e recantos do ensino superior e politécnico. Aquilo que a sociologia foi no fim dos sixties e a comunicação foi no fim dos eigthies parece agora ser a eufórica voga das ciências educativas. Voragens.
O que eu espero da nova disciplina é que saiba pelo menos harmonizar-se com o que se passa na realidade e, nesse sentido, as práticas sexuais constituem um campo óbvio de abordagem. Mas também espero que a nova disciplina não fique por aí. Por várias razões: porque também é comportamento de risco não compreender o que se lê; porque também é comportamento de risco ignorar as práticas mínimas de civilidade; porque também é comportamento de risco a falta de iniciativa associada ao dramático leviatã da administração pública portuguesa; porque também é comportamento de risco esquecer que os alunos são pessoas que se querem, no futuro, livres, responsáveis e participantes numa sociedade aberta e sem discriminações.

quinta-feira, 11 de março de 2004

Não notícia, ou o terror irrespirável


via El Mundo

O que faz do terrorismo de massa uma não notícia? Precisamente o facto de ultrapassar o horizonte de compreensão que se tornou habitual a produtores e receptores de notícias em mais de dois séculos. O terrorismo de massa não trata daquilo que faz uma notícia ser uma notícia, tal como a entendemos, ou seja, o excesso (massacre em contexto bélico, por exemplo), a falha (insuficiência que conduz a factos algo inesperados), os acidentes naturais (que escapam ao leme humano) e as inversões (acções praticadas por agentes imprevisíveis). Seja por excesso, falha, acidente ou inversão, a notícia estatui sempre, à partida, um perímetro de possíveis onde os factos acabam depois por emergir. No terrorismo de massa, este perímetro de possíveis - ou este horizonte de compreensão - esvai-se radicalmente e o que fica à mostra é apenas um aparato caótico e desconjuntado de violência pura que perde o sentido, a plausibilidade e a referencialidade. No terrorismo de massa visam-se as multidões de modo discricionário, independentemente de valores, motivações políticas ou convicções. Aconteceu há pouco tempo no Iraque, em meio shi´ita, e aconteceu hoje, dia 11 de Março de 2004, em Madrid. Um e outro destes factos reforçam os atributos da nova era que o 11 de Setembro veio indiciar no ocidente pós-guerra fria. Uma era que está a construir novos horizontes e condições de possibilidade. Pior: estas tendências terríveis que ultrajam já a tradição democrática e a liberdade ameaçam amanhã a própria iminência apocalíptica do hiperterrorismo tecnológico. Hoje somos todos madrilenos. Hoje comungamos todos o mesmo pranto irrespirável e inconsolável. Hoje cerramos fileiras contra a barbárie.

quarta-feira, 10 de março de 2004

Orgulhosamente único



O espírito de gentlemanship tem assegurado, em todos os países europeus democraticamente maduros, uma base política alargada e um “mínimo ético” (expressão de Lobo Xavier) comuns que têm constituído afinal o alicerce para a resolução legal desse problema real que é a interrupção voluntária da gravidez (independentemente das complexas e variadas matizes postas em jogo). Só em Portugal é que a questão dilacera extremos, mistura planos, disputa a razoabilidade e liberta calores e tentações insuportáveis. Portugal é, pode causticamente dizer-se, um país muito orgulhoso na sua identidade. E se isso é coisa que muitos têm hipocritamente medo de perder (coisa que me preocupa tanto como a forma da uva na sua relação com as videiras divinas), também creio que a pseudo-compostura extremista do país profundo está mais de acordo com a moleza das convicções, com a brandura do centro e com o unanimismo de fachada do que com putativos arrufos heróicos, com amuos patrióticos e com insolúveis intransigências de princípio. A verdade é que a grande sombra esconde e até favorece os fogachos aqui e ali. O que ninguém quer, no fundo, é resolver seja o que for. O que ninguém quer, no fundo, é encarar os factos sejam eles quais forem. O que ninguém tem, no fundo, é patavina de gentlemanship. Portugal anda a discutir este tema há décadas, alimentando uma fúria bizantina, hesitante, mesquinha e herdeira híbrida de miguelismo ostracista e de jacobinismo angélico. Os portugueses gostam de ver o rosto de Cavaco Silva em silêncio e adoram depois auscultar-lhe os lábios a abrirem-se com alguma secura e a pronunciarem, finalmente, a brevíssima palavra “tabu”. De bradar os céus!
De antologia, Nuno!


via Rua da Judiaria

O Rua da Judiaria publicou esta semana um post sob a questão do “antisemitismo” (e não do “anti-semitismo”, como o Dicionário da Academia estabelece e eu, possivelmente, me verei tentado a violar). É um texto denso, recheado de informação, divulgador de estudos importantes e vital para os tempos que correm. Aconselho todos os meus leitores a passar por lá. Concordo com o leque ponderado e, ao mesmo tempo, incisivo das posições aí evidenciadas. Parabéns Nuno!
Quase no final deste post de eleição, pode ler-se:

A necessidade da paz entre israelitas e palestinianos é inegável, essencial e urgente. Mas enganam-se os que acreditam que com ela virá também o fim do antisemitismo. O Paquistão serve aqui de exemplo – um país sem judeus, que nunca teve qualquer contacto com judeus, afastado do Médio Oriente, é hoje uma das maiores fontes de propagação do antisemitismo.
Ao mesmo tempo, como Mark Strauss escreve na revista Foreign Policy, quando se chegar a uma paz real, as condições conducentes à propagação do antisemitismo não irão desaparecer de forma milagrosa. Os governos árabes continuam avessos a reformas políticas e económicas sérias no sentido de abrir as suas sociedades e retirar os seus cidadãos da pobreza endémica. E o ódio, esse, dificilmente será extirpado por completo.
Coro

Em todas as escritas existe uma solidão que se assemelha a um certo abuso de presença. Escreve-se, inscreve-se, marca-se o campo e o que vai aparecendo vale pela sua própria comparência, a dos convocados, mas nunca faz esquecer a magia dos suplentes. E o olhar de quem lê, incluindo o olhar daquele que escreve, fica súbita e involuntariamente solto e hesitante. Parece saltar de um lado para o outro, como num agitado jogo de ténis, à procura daquilo que, ao mesmo tempo, aparece e desaparece. Ou seja, do que comparece e é legível e do que permanece desaparecido, embora aflitivamente audível sob a forma de coro grego, neste espectáculo solitário - e às vezes deslumbrante - que é a escrita e a leitura.
Up

E há um dia em que o espanto se chama gárgula. Basta olhar para cima e esquecer a passada repetitiva com que o quotidiano molda a habitual armação, o tradicional aconchego e a rotineira vista (de tão desarmada e imprevista).
Down

E há sabores súbitos e sem origem clara que invadem o território das papilas gustativas. De repente, sinto-me escravo daquele chocolate muito negro que se usa apenas para fins culinários. Até quando?
Olha, aqui um gato! (actualizado)



Já sabemos que adoram assumir o feliz e desejado papel de cómicos da corte contemporânea (e muita falta fazem no insípido panorama que nos é dado no dia a dia). Mas o alvoroço com que repetem, nos seus posts, o anúncio de uma ida à televisão faz lembrar aquela malta que se põe de telemóvel na mão quando a dita os apanha em directo.
P.S. - Se o programa é deles, pior. Então agora é que o Miniscente vai mesmo criar um canal na TV cabo. Vou passar o dia a dizer adeus com a mão. Basta-me isso, já estou como aquele amigalhaço ali da Fontes Pereira de Melo. E levo o bichano comigo.
Som puro

Ontem, no início do jogo de Manchester houve uma anomalia técnica e não se ouviu, durante seis a sete minutos, a voz dos locutores da RTP. Foi excelente. Voltei a lembrar a fotogenia elegante da voz pura e dura da multidão e senti saudades de Artur Agostinho a relatar apenas o essencial. Depois, lá vieram as imbecilidades do costume. No que diz respeito ao jogo jogado, parabéns aos vencedores. Haja desportivismo, não é assim?

terça-feira, 9 de março de 2004

Contravapor



Às vezes questiono os motivos que levam o ser humano a irritar-se. Uma irritação é sempre um contravapor súbito, às vezes imprevisível outras vezes salivar, às vezes hilariante outras vezes estigmatizado, mas sempre imediatista e primário. É coisa que se contém, ou que não se contém de todo. Há quem o contenha e dele faça gravidade, aperto, resguardo. Há quem não o contenha e dele faça discurso, atitude, conformação. Posso dar exemplos de coisas que me irritam e, por isso mesmo, valem o que valem: leões de cerâmica a coroar portais; a verve, as vestes e o cinzentismo do ministro da administração interna; a pseudo-arquitectura continuada da nossa orla costeira; os viras do Minho, os corridinhos mais a sul e outros folclores demasiado regionalistas; a arrogância vazia e repetitiva de certas esquerdas cristalizadas; a simulação de contracultura como fenotexto dos conservadorismos da moda; o fechamento argumentativo (em torno de uma narrativa, de uma especialidade, de um autor ou de uma corrente); os GNRs barrigudos, malcriados e discricionários; a malta aos gritos a gritar em redundância mental “não pagamos”; o desordenamento copioso das nossas cidades, etc.
A irritação é coisa de químicas, para utilizar uma linguagem dos apaixonados fogosos. Há qualquer coisa de esbraseado, de repelente, de antípoda ou de perverso na matéria que conduz à irritação. Às vezes, o que irrita é também o pólo secreto onde marcámos ajustes de contas de que nem nos apercebemos. Felizmente, muito do mais importante que nos rodeia fica aquém ou além da irritação: Bin Laden não me irrita (agonia-me), mas irritar-me-ia ler ou ouvir o discurso absolvicionista que o desculpasse por “compreender o sistema que o criou”. Marc Dutroux não me irrita (agonia-me), mas irritar-me-ia ouvir dizer nos média mais influentes que a única solução em casos destes é a pena de morte. O chefete da Coreia do Norte não me irrita (agonia-me), mas irritar-me-ia ouvir dizer a alguém no ocidente que aquele paíseco é muito provavelmente uma democracia (só não me irritaria, se tal tivesse sido dido pelo pobre diabo que o disse cá em Portugal).
Sibila



E, de noite, quando as imagens se misturam com o excessivo sabor a mel que desafia as areias das praias indianas onde a lama, o areal deslavado e as palmeiras ancestrais se confundem com o mugir da vaca sagrada? E, de noite, quando a insónia se anuncia pelo trilho e pela poeira de caminhos sem fim onde os exércitos de Alexandre conheceram a sede, a face das monstruosidades e o grande esplendor do sol oriental? Que memórias, que pesos, que intranquilas miragens andarão a vociferar este monólogo? É simples: o herói, quando os havia, era aquele que permanecia acordado na destemida noite da duração, isto é, na intemporalidade. Não chegava a fechar os olhos e a sua palavra era o maior dom dessa abundância de ser.

segunda-feira, 8 de março de 2004

Fashionlog



Ao novo template adiciou hoje o Miniscente a sua cor Primavera-Verão. Para durar até às ameaças do próximo Outono. Cruza tonalidades a lembrar o cheiro a feno com outras que remetem para o afogueado que se espalha no ar quando os quarenta graus à sombra ilustram alguma iminência. Espero que a profecia se cumpra, pois esses são para mim os dias mais felizes da existência. E mais uma vez, obrigado João pelo teu generoso trabalho de tanta qualidade! (não sou eu o único a dizê-lo)
O caos e a moda

Li O Público na Segunda-Feira. E depois, eis que me vejo a dizer a mim mesmo: - É verdade que o EPC não anda lá muito na moda na blogosfera. Até eu costumo sempre começar por ler o Fernando Ilharco e não tenho qualquer paciência para cronistas revoltadas com coisas como mulherzinhas, trapos e bolos. Mas a crónica de hoje do EPC é um sinal a tomar a sério. Vale a pena lê-la e rir se possível.

domingo, 7 de março de 2004

Mariana, a ramba

Há uma senhora chamada Mariana Coruche (não, não é Cascais, é da Lezíria, mas os extremos tocam-se) que tem uma posição ossuda e alentada sobre a questão dos exames. É coisa para ler. Já não é todos os dias que se dizem coisas destas.
Não à pena de morte

Hoje saí da atmosfera e fui à blogosfera. Há alguns dias que não o fazia. Sem mais nem menos, fui logo dar com uma discussão sobre a pena de morte. E reparei que a polémica não versava o tema em geral e abstracto, mas antes referenciando o caso concreto do facínora e perverso Marc Dutroux.
Que fique claro: eu sou frontalmente contra a pena de morte, porque acho que não compete ao estado, seja de que modo for, providenciar legalmente pela extinção da vida (embora admita, como é natural, que o quadro político que institui o estado se possa descontextualizar radicalmente numa situação de guerra ou congénere).
Quando o agir da existência humana era dominantemente interpretado através de uma estrutura não racional, ou mais ou menos delirante (teo-semiótica, salvífica ou ideológica), é normal que a questão se pudesse ter colocado (e colocou amiúde). Mas nós, o Ocidente livre, tal como nos conhecemos e entendemos democraticamente a nós próprios, somos uma criação do pós-Iluminismo. Habituámo-nos há muito a descrer das soluções em que o humano se reduz a mero escravo de um rebanho divino ou ideológico. Habituámo-nos há muito a descrer das soluções em que o humano é visto como um viajante que empreenderia um mero trânsito a caminho das redenções, dos pontos-ómega, ou das visionárias sociedades sem classes. E isto apesar das questões individuais de fé, ou de crença.
O estado moderno desenvolvido no ocidente não é um deus, nem é uma arena de arremesso primário e deverá, portanto, conformar-se e confinar-se à racionalidade para que foi pensado, a bem da tolerância, da reinvenção democrática e da salvaguarda radical da liberdade. É por isso que, face a casos concretos (como o de Dutroux), devemos evitar todo o tipo de vacilações. Custa, às vezes, conter a revolta mais gritante e imediata face ao sustentáculo sólido que é o da melhor tradição ocidental. Defendamo-la, pois, fazendo da justiça uma arma impiedosa mas legal contra os crimes hediondos de Dutroux; fazendo da justiça um instituir cego, racional e afastado logicamente das possibilidades que possam prescrever a pena de morte.
Conversas da febre



Poder livremente comparar as metáforas da espera de Godot e de Penélope. Ou seja, pôr lado a lado dois modelos universais, baseados na apreensão e na dramaticidade de um desfecho; no preenchimento da duração em função de algo que está ausente no viver-se do presente sempre-construído-ali; no desígnio último e derradeiro que legitima o próprio ser-se, até porque é esse desígnio do ainda-não, ou do ainda-nunca actualizado, que faz luzir o próprio acontecer do tempo-a-passar. Tanto tempo que eu também fico à espera. Augurando o que desconheço. Perseguindo o rasto de uma melancolia antiga. Comparando Godot e Penélope, mas sem o saber.

sábado, 6 de março de 2004

Febre

Dia de febre pode ser dia de boa sina. Arrepios, sonhos hiperbólicos e calor em excesso. De manhã, o corpo aparece cansado, ludibriado pela alteração inesperada e subitamente disposto ao descanso e ao distender mais inabituais. E eis-me, ao longo deste Sábado de Março, recostado no sofá a ver canais enlatados da TV Cabo e sem forças para mais. Pelo Canal História fico a saber que Nixon, no ano em que perdeu para JFK, insistiu em não se maquilhar antes dos directos pois isso era coisa de “gays”. Pelo People and Arts, fico a saber que a cidade do México se afundou, no século XX, cerca de nove metros (18 vezes mais do que Veneza). Causas: exploração desmesurada dos lençóis de água subterrâneos e secagem abrupta dos lagos onde, em poucas décadas, a mancha urbana se foi implantando de forma feroz e brutal. Faz lembrar a tragédia criminosa do Mar Aral, essa da responsabilidade da antiga URSS. Depois, durmo e volto a acordar enquanto os telejornais trocam e truncam as suas e as nossas ficcionalidades. Mais bombásticas as da TVI, sentenciosas as da SIC, de plinto as da RTP. Passam algumas horas, vejo-me a fechar a televisão e torno a tomar aspirinas, pastilhas para a garganta e vitaminas tardias. Um pouco tonto, com a memória revolta e o ar da casa tão quente como as dunas do desejado Verão. Dia de febre pode ser dia fiche. Hoje foi um deles. Blog fever.
Febre nacional

Um quarto das famílias portuguesas tem duas casas. O dobro dos EUA ou da França. A malta anda de tanga, mas sabe distribuí-la por diferentes paragens. Eis a grande vantagem do nomadismo luso, sem esquecer uma outra fundamental: é que, entre as suas duas casas, o indígena gosta de conduzir de modo a assustar os próprios deuses. Conclusão: tanga repartida e em persistente fuga para a frente é sinal de pura febre, ou não será?
Presente-particípio



Vem a bruma, uma espécie de nuvem alta que envolve a cidade como se fosse um novelo sem fim. E o sol que ainda ontem despertava com a força de um seixo a arder aparece agora rendido ao vestígio de coral acocorado no ressequido tronco de uma das últimas palmeiras. Parece que estou a vê-la, quando Dahab - essa praia do Sinai que quer dizer Ouro em Árabe - de novo avança para mim na memória; é noite e do fundo do mar saem japoneses com barbatanas gigantes, num alarido que alastra subitamente como se todos partilhássemos o mesmo imprevisto aquário. De um momento para o outro, esse instante fantástico e inusitado esvai-se como todo o passado se esvai, involuntariamente, em choque com o presente. É por isso que, num texto, todos os tempos são presente. Um presente-particípio que tem a morfologia informe da bruma, após uma brevíssima esperança de sol. É assim que vão rezando os vaticínios nos primeiros dias de Março.
Pergunta para hoje



O que quer dizer perseguir um alvo? Que pode saber-se de um alvo antes de o atingir?
Já viram? Eu a imaginar a meta a que quereria chegar e, anos e anos depois, agora mesmo, a perguntar-me: seria isto? Era isto precisamente o que eu desejava?
Fica sempre aquela tendência de adiar. De protelar o balanço das expectativas. Ou seja, de dizer que, mais tarde, um dia, sabe-se lá quando, ainda hei-de encontrar a forma precisa e exacta do que perseguia, do que almejava, do que desejava. Mas esse dia idealizado virá alguma vez? Ou não será já hoje? E eu respondo: sim, esse dia é já o dia de hoje.

sexta-feira, 5 de março de 2004

Nova proximidade

Temos novo Template, todo ele obra do João Nogueira. Peço desculpa pelos desarranjos dos últimos dias. Caprichos e descaminhos da rede. É assim a Primavera: súbita, desconcertante mas eficaz. Espero que a navegação frutifique, seja ela costeira ou ao largo. Obrigado, João!
Proximidade



O sol de novo. Aproxima-se vivamente a estação que parece não deixar nada escondido. Num mesmo plano, na mesma cena tudo desponta. Em excesso. E é devido à profusão e à abundância que a Primavera é o esteio poético das grandes paixões. A fartura e a opulência conduzem à ausência de montagem. E as imagens aparecem de todo o lado, sem direcção, disputando o sentido e o caos, o olhar e a carne. Imaginação fértil, corpo aéreo, navegação turbulenta.

quarta-feira, 3 de março de 2004

Resposta breve ao Cruzes Canhoto e ao Glória Fácil

Não criei o Miniscente para poder dizer o que não conseguiria dizer noutro lado, nomeadamente nos média. Era o que mais me faltava! Não partilho, pois, essa vitimização da voz não publicada ou não difundida como ponto de partida irradiador e criador dos weblogs. Quando há coisas a dizer e uma voz ou várias vozes a enunciar, aparece sempre o momento e o suporte em que essas coisas se dizem e em que essas vozes se enunciam. Agora, tenho a liberdade de poder escolher o tipo de blogues que mais aprecio (os vossos estão, curiosamente, nesse lote). E esses são os que não andam, por sistema e como regra reiterada, atrás da obsessão do fluxo noticioso. Não quer dizer que não me fascine um aceno inteligente, um ripostar paródico ou um comentar mais consistente sobre os factos do quotidiano. O que me cansa é sobretudo o estilo páginas amarelas, a indexicalização permanente (há certos blogues que podiam ser telemóveis ligados entre blogueadores) e a subserviência radical e corrosiva face ao exclusivo padrão da agência noticiosa. Mas não se pense que há no que digo algum propósito ou intenção subliminar de censura. Pelo contrário, creio que a rede é a grande panóplia e a grande expansão aventurosa da liberdade. Como nunca houve. Que se frua! Mas não impeçam, caros amigos, seja quem for de discorrer sobre os vários estilos e discursos que por aí pululam.
P.S. - Quando disse "carcaça ideológica" referia-me às discussões entre pseudo-bancadas políticas estriadas e aparentemente antagónicas que pensam ainda viver no tempo em que a carga ideológica mobilizava hostes guerreiras. Referia-me aos Sanchos Panças das blogosfera. Mas a esses, juro, acho-os giros, porreiros e divertidos. São uma espécie de televendas aqui do circuito. Sem eles, a acidez seria com toda a certeza mais cinzenta.
Um jogo circular

Num conhecido fragmento - o nº93 - atribuído a Heraclito por Plutarco, pode ler-se: "O senhor, cujo oráculo está em Delfos, nem fala, nem oculta, mas manifesta-se por sinais". Esta postura releva uma interpretação reversível entre o conhecido e o desconhecido e entre o visível e o invisível, como se navegássemos num só plano onde a simulação e a verdade há muito teriam pactuado. Por que razão lês tu, Nuno Gomes, estes livros tão antigos durante as viagens para a Noruega?

terça-feira, 2 de março de 2004

Os perversos torcedores de causas

Uma imagem aparece na mente, não porque alguém o determina ou exige, mas porque ela mesma - a imagem - o decide, ao aparecer (e, como se sabe, uma imagem é sempre a selecção de uma selecção operada entre os vários níveis da consciência: o proto-si, a consciência nuclear e a alargada). Certas mentes, porém, excessivamente rígidas e crispadamente sabedoras, ainda entendem que o único modo de funcionarem é o controlado e o pseudo-voluntário como se receassem que a inteligência se pudesse entregar aos seus próprois caminhos e caprichos. Eis como o entendimento mais cabal da liberdade acaba afinal por pertencer aos crentes na “memória involuntária” (a expressão é de Walter Benjamin). Há muitos teóricos da liberdade - e, entre eles, muitos arautos actuais do mais puro liberalismo - que se inserem, a meu ver, e ainda que não o saibam, na horda das mentes rígidas e, portanto, no campo dos verdadeiros adversários potenciais da liberdade. Contradições interessantes.
By By, génio!

A esteticização generalizada do mundo, ou seja, o modo extremo como a arte se propagou no quotidiano (publicidade, design e ciberdesign, arquitectura, moda, genéricos televisivos, todo o tipo de objectos culturais, etc.), é um dos aspectos mais interesantes da vida dos últimas duas décadas. E foi por causa dessa brusca e quase inapecebida inovação que a noção de génio - que vinha de Kant - se foi diluindo e ridicularizando naquilo que é hoje a voz mediana e hipermassificada do bardo que nos rege a construção de mundos. Vejamos o que era o génio em Kant e pensemos três vezes:

“(o Génio) é um talento para produzir aquilo para o qual não se pode fornecer nenhuma regra determinada, e não uma disposição de habilidade para o que possa ser apreendido segundo qualquer regra; consequentemente que a originalidade tem que ser a sua primeira propriedade (...)” – “2) os seus produtos têm que ser ao mesmo tempo modelos, isto é exemplares; por conseguinte eles próprios não surgiram por imitação e, têm que servir a outros como padrão de medida ou regra de julgamento; 3) que ele próprio não pode descrever ou indicar cientificamente como realiza o seu produto, mas que, como natureza, fornece a regra; e por isso o próprio autor de um produto, que ele deve ao seu génio, não sabe como para isso as ideias se encontram nele e tão pouco tem em seu poder imaginá-las arbitrária ou planeadamente e comunicá-las a outros em tais prescrições, que as põem em condição de produzir produtos homogéneos.” (C.F.J.,182;1787,1998,p.212)

Ou seja, génio é aqui entendido como uma mediação especial e superior da natureza que cria modalidades exemplares e sobretudo originais. Mitos que os últimos dois séculos foram desfazendo. Hoje cada vez menos se crê em antinomias tais como natural/articicial ou ficção /realidade. Hoje sabe-se que a paródia e todo o tipo de procedimentos intertextuais conferem à exemplaridade e à originalidade um lugar arqueológico. Hoje descrê-se de toda a agregação ou construção. A regra passou a ser a conformação com um descrer que apenas é desdito, dia a dia, diante da simulação das imagens com que fazemos os nossos mundos.

segunda-feira, 1 de março de 2004

Not to be or not to be

Acho que foi Gide quem escreveu que a estratégia central do diabo é levar-nos a acreditar que (ele mesmo) não existe. Hoje diríamos que a estratégia vital do nosso tempo é fazer crer que (todos nós) existimos. Como? Através de dissimulações, de imagens, de anamorfoses, de encantos televisionados e de projecções pouco discretas em fétiches globais. Se não andarmos por essas paragens narcísicas e massificadas, corremos o risco de nos desviver. Ou simplesmente de não ser.
Estar aqui


New York Movie

Estar já em Março e ainda ontem ter cruzado os meses habituais do Inverno e do Outono. Olho para trás e vejo formas ainda indefinidas e velozes com as quais o tempo concerta a sua radical invisibilidade. É verdade, do tempo apenas se desvenda a miragem da quilha. O resto avançará em movimentos diferentes. O resto é material diferido. O resto é uma sombra a conceder-nos ilusões de preenchimento. O resto é a voz sigilosa da inocência. O resto é estar aqui.
Blogdog

E depois da quarta noite em claro (a sério, das sete da tarde às oito da manhã), o meu cão - o Ulisses - lá se cansou do cio. E agora só quer é dormir. Ele há modos e modos de blogar.
And... The Winner is



Tudo aqui.