sábado, 31 de janeiro de 2004

Inter

Como eles temem a democracia.
Chove chuva

Chove outra vez. O limoeiro balbucia com alguma aflição. No fundo do quintal, há um debate quase épico entre a coreografia dos lençóis estendidos à chuva e a persistente aura dos citrinos. Faltam as ondas, falta imaginar uma doce Carmen granadina a agitar o leque de pavão colorido. Falta o imenso calor com pelo menos quarenta graus à sombra. É nesses dias que me sinto imperador da felicidade. Hoje, mais não sou do que a pálida sombra de um insecto a olhar para os raquíticos troncos da roseira-de-Damasco. Chove.
White vs Delicado



Vi ontem o Ballet Gulbenkian. Na primeira parte apenas mulheres em transmutação - um jogo de ritmos e suspensões cromáticas sem quaisquer escorços de personagens individualizadas (criação de Gilles Jobin); na segunda parte, os homens a negro criados por Paulo Ribeiro - uma partilha de muitas catarses solitárias que desenharam o espaço delineado pelas danças ocultas (pena que as concertinas não aparecessem, elas mesmas, no fundo do palco). Na primeira parte, Delicado, uma peça para um gineceu labiríntico, desenhada com alguma frieza; na segunda parte, White, uma peça em que as individualidades (doze, ao todo) estabeleceram um belíssimo contracampo em movimento (fez-me lembrar o Leviatã de Thomas Hobbes em palco, imagine-se).
Ontem, hoje

Ontem um alaúde a vibrar algures sobre telhas ainda húmidas de tanto temporal, hoje a falésia a adormecer no abismo das vagas que soletram o ofício antigo do tempo. Ontem um relâmpago sem fim a abrir brechas e riscos de luz de tanto clarão, hoje a cidade lavada e quase despovoada pela brancura das paredes a desafiar o silêncio.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2004

Madrugasses

Obrigado Ma-Schamba, é bom saber de Moçambigue pelo acerado e atento crivo dessa blogosfera dos Índicos.
A janela de Ceilão


Vermittlung von Kunstwerken, Georg Gresko

Cada vez vou sorrindo menos com as micro-mini-polémicas que atravessam alguma blogosfera e que me fazem lembrar brigas entre meninos que vestem camisolas de lã de cor diferente e que se divertem numa sala de aula, algures em Ceilão, enquanto o professor olha pela janela a ver as garças (a voar pelas montanhas de Gresko).
Por que não utilizam antes os telemóveis para falar uns com os outros? Era mais seguro. Ou, por que não esgrimem argumentos que não se colem sempre ao mesmo hipotexto?
Tragédia do Esquecimento - 3

Para dissipar as dúvidas levantadas acerca das Noites de Cristal do início do século XVI que tiveram lugar em Lisboa (ver posts de 16/1), deixo aqui um testemunho publicado no blogue Rua da Judiaria que fala por si. Oxalá, daqui a dois anos, em 2006, o estado português saiba homenagear a parte mais esquecida do seu corpo nacional. Fazê-lo seria, para além de uma questão de justiça, sobretudo uma desafio vital para a nossa própria auto-imagem e orgulho próprio. Vamos, então, aos factos históricos:

O número de mortos resultantes do progrom de Lisboa, ocorrido em Abril de 1506, também não é certo, embora a maior parte das fontes e testemunhos da época apontem para cerca de quatro mil pessoas (cripto-judeus / cristãos-novos) chacinadas na sequência de motins antijudaicos incitados por frades dominicanos. No Rossio, contam Samuel Usque e Damião de Góis, o chão ficou “tapado com montanhas de corpos mutilados”. “Mais de quatro mil almas morreram(...)”, escreveu Samuel Usque em “Consolação às Tribulações de Israel” (1553).



“Von dem Christeliche / Streyt, kürtzlich geschehe / jm. M.CCCCC.vj Jar zu Lissbona / ein haubt stat in Portigal zwischen en christen und newen chri / sten oder juden , von wegen des gecreutzigisten [sic] got; reprodução a partir de cópia publicada pelo Hebrew Union College, Cincinnati, OH. O original, bastante raro, encontra-se na Houghton Library, Harvard University)”

Panfleto anónimo, impresso na Alemanha (presumivelmente poucos meses depois do massacre de Lisboa). O “progrom” de 1506 contra os judeus de Lisboa é descrito em detalhe e as matanças contadas ao pormenor. A gravura do frontispício mostra os corpos mutilados e envoltos em chamas de dois judeus portugueses, dois irmãos, os primeiros a morrer num massacre que vitimou mais de 4 mil pessoas.

Numa altura em que a Igeja Católica tem uma certa apetência em pedir perdão pelo passado, a oportunidade de 2006 tornar-se-ia no mínimo adequada. Mas o desafio seria - e creio que virá a ser - bem mais profundo: olharmo-nos de frente e encararmos finalmente o que somos, como fomos, em todas as suas facetas. Na multiplicidade histórica e mítica ainda por preencher e entender. Não há Idade de Ouro que não tenha reversos feridos. Mas tapar as feridas e ocultar o incómodo não é, nem pode ser próprio de uma cultura que fez da saudade um santuário de remissões vagas e místicas. Que o sonho e a lenda não sirvam para encobrir a dor. Encobrir não é viver; é mitificar e calar.
Fica, para já, o desafio proposto para 2006. Que acham?

O filme do olhar


Braque, Vogel

São cabos de alta tensão e desenham ao longe o fio de prumo onde navega, solitário, o horizonte. Abrem os braços, sibilam ao vento, percorrem quilómetros e parecem evocar Braque quando dividem a profundidade em sucessivas anamorfoses e montagens. Prodígios invisíveis.
Riso falado



Vi Um Filme Falado de Manuel de Oliveira. Muito diferente de todos os seus últimos filmes. Começa por ser uma peça didáctica (a criança que pergunta obsessivamente à sua mãe: “O que é...”?), no meio de uma viagem - que não chega a ser deslumbrante - através do universo mediterrânico: Ceuta, Marselha, Pompeia, Atenas, Gizé e Istambul. Depois do afloramento mediterrânico e da diluída conversa entre John Malkovitch, Irene Papas e Catherine Deneuve, tudo se transforma numa frágil comédia. Subitamente, o terrorismo torna-se num estranho e paradoxal pretexto para a gargalhada final. A Manuel de Oliveira tudo se perdoa. Digo eu.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2004

Tragédia em Jerusalém

Deixou-se fotografar ainda vivo, avançou depois com uma bomba para o meio de inocentes, fez-se explodir e conseguiu que dez pessoas morressem do mesmo modo como um homem toca com a mão num muro. Sem mais nem menos. Isto não é guerra, isto não é nada. Terror puro, sem explicação, sem princípios, sem argumentos. Chamava-se Alí e pertencia ao al-Aksa. Nem a boa vontade da troca de prisioneiros que hoje decorria, no leste de Israel, retirou o ímpeto a estes terroristas suicidários.
Semiotics


Christian Nolle, Semiotics 101

Eu estou de acordo Alexandre: preferia um mundo em que comunicássemos todos por telepatia. Já não era preciso a semiótica para nada. Mas, nesse caso, o próprio corpo humano teria tido um desenvolvimento muito diferente. Provavelmente não teríamos membros para gesticular (lá se ia a encenação do Paulo Ribeiro que vou ver amanhã), provavelmente não teríamos lábios (lá se ia o suave mistério da Mona Lisa), provavelmente também não teríamos orelhas (lá se ia o prazer de saltar com os olhos bem fechados ao som de Monteverdi). Estou em crer que, se não fôssemos seres semióticos, seríamos meros espigões marcianos sem aquela angústia primata que nos permite imaginar os olhos dos deuses e a cor do veludo das cortinas para onde estou agora a olhar. Não é?
Dit is een Spiegel



O asfalto molhado, distendido, deitado face ao olhar como se fosse um espelho sem idade é das sinfonias da simplicidade que mais me entretêm uma certa nostalgia que anda à solta no que pensamos ser o mosto da felicidade. Não acham? (e eu a lembrar-me dos canais gelados perto da minha antiga casa da Palmstraat)
Prova

Fica sempre por dizer aquele que é o primeiro olhar da manhã. As janelas abrem-se na frente dos olhos e dão-nos o pasto e o gorgolhar íntimo das ondas, talvez um dia nos concedam a evidência.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2004

Íntimos

A circular no interior das páginas. A desmembrar a liquidez de uma palavra que não chegou a vir ao ser. A esquecer o rumo. A adivinhar o som. A calcorrear o ritmo.
Viro mais uma página e o fantasma descobre o movimento, a teia, o tear, a sombra e o limo preso ao andamento que faz da leitura uma translação sem horizonte. Apenas breu e alguns holofotes a definirem o langor com que as nuvens cobrem este silêncio que faz do livro na minha mão uma verdadeira trégua solar.
A circular no interior das páginas. É assim a voz que vem de longe. De muito longe. E eu chegado agora mesmo a casa, chegado ao lume, chegado às letras inimagínáveis.
E a ventoinha parada, enquanto não é Verão. Sorrio e volto ao livro. Aos Escritos Íntimos de Baudelaire.
A las tres tomi amante

Parabéns e obrigado, Rua da Judiaria. Já agora, também eu nasci no coração de uma Judiaria. Adivinhem aonde.
Le Boeuf sur le Toit


Battista Sforza de Pierro Della Francesca

Ontem a autoestrada era uma bátega de chuva, hoje a autoestrada foi um quadro de Piero Della Francesca. Cada vez vivo mais tempo na autoestrada. Entre faixas e crisântemos imaginados, entre vozes da rádio e a passagem abrupta dos traços contínuos ou descontínuos, entre faróis e a desmedida suspensão da palavra. Cada vez mais as minhas cidades são aeroportos mascarados de memória involuntária. Anamorfoses com paredes de granito, ou com alvenarias a saber a basalto e a fontes de água fresca. No tempo em que vivia na Holanda, na década de oitenta, também assim era. Só que em vez de autoestradas eram linhas férreas. E em em vez do eixo Évora - Lisboa (onde agora estou), era o eixo Utreque - Amesterdão. Mas pouca diferença faz. E quando entro no culto dos interiores, ou seja, em casa, tanto faz saber que à minha volta o nome da cidade já não se confunde com a cidade que me empresta o nome à topografia interior. Vivo a dançar e sempre imaginei que um pas de deux mais não é do que uma celebração para distender o corpo sobre os telhados de uma cidade de cristal, fosse ela qual fosse. Talvez porque, com os meus seis ou sete anos, passou pelos meus olhos o preto e branco fotogénico de uma reportagem sobre jovens bailarinas que fugiam da Ópera, em Paris, para os telhados e para as varandas despovoadas. Nunca mais esqueci essa imagem. Esse delírio da alma saudosa. Esse estigma de um desejo sem fim. É ela mesma que prolonga as divisórias das minhas autoestradas de hoje. Minha dança, meu país sem leme. Cidades imperfeitas, planetas de papel.
Espessura

De novo a serenidade da noite após as chuvas de viagem que me trouxeram de Lisboa. Deixo de lado polémicas e agravos, névoas e luzes, ribaltas e cometas ainda por aparecer. Agora resta-me olhar pela janela e abençoar o insaciado momento que é cada véspera. Cada cidade de ouro a ser visitada. Cada rosto a ser auscultado. Cada planeta a ser tocado. Ver antes de ser. Urgir antes de voltar a partir. E é já amanhã, outra vez, dia em que termina o meu primeiro semestre de aulas e se inicia um período de escrita. Primeiro compor escritas romanescas e depois a tentação de um ensaio. No vidro da janela, a timidez que abrevia a chuva ainda espessa da noite. Talvez um arco-íris subterrâneo. Ou apenas os jarros selvagens que se unem secretamente sob a esperança da próxima lua nova.
Rádio à tarde



Vale a pena deslizarem pelas Hertzianas e ouvir a voz baixa e quase gnóstica do Pedro Ramos que pode ser ouvido, testado e celebrado na Rádio Radar (97.8 Lisboa), todos os dias, entre as 15h e as 20h. Fica feito o registo e o resto pode ser lido ou, pelo menos, pressentido no blogue Anilinca.

terça-feira, 27 de janeiro de 2004

Não, não, Abrupto!

Gosto muito de acompanhar a escrita do José Pacheco Pereira. Nem sempre concordo com as suas opiniões, sobretudo quando, aqui e ali, escapa ao criticismo aberto em benefício de algum verosímil menos adequado. Nem sempre tal acontece em matéria política. Ainda ontem, criticava JPP o clima de "masturbação da dor" que havia atravessado Portugal. Não vou, agora e aqui, contrariar a argumentação de JPP através dos efeitos de banalização da esfera privada que passaram gradativamente, nos últimos anos, a intrometer-se na agenda, ou seja, no, dantes, estriado alinhamento mediático de factos públicos (seleccionados sem ingenuidade, como é sabido). Esta contra-argumentação, secundada sem reservas por inúmeras correntes do pensamento contemporâneo (dispenso a sua citação), bastaria para pôr em causa alguma recusa por parte de JPP em analisar, de modo plausível, o que é uma realidade, ainda que dela (eu e ele, seguramente) nos possamos distanciar, sobretudo nos efeitos-limite que suscita diariamente. Agora o que não pode JPP é projectar a sua aversão face ao futebol - tão maniqueísta como a dos seus fans mais apaniguados - para exigir uma "tristeza reservada" quando o que esteve em causa, no triste caso de Fehér, foi, precisamente, a imprevista catarse em directo, a incomum tragédia convivida ao vivo, a improvável dor pressentida e partilhada quase em directo. Eu próprio que vi o jogo e que sou adepto do Benfica (mas não fanático primário) vivi este facto com o pudor possível, confesso, mas não pude, como é evidente, cercear a normalíssima perturbação que me invadiu e ainda invade. No seu post, JPP fala a partir de uma frieza marciana, elevada a gelo cristalizado lá no alto da sua torre de marfim de onde o futebol e outras coisas menores da vida não passam de meros dislates de mortais sem profundidade nem génio (hiperbolizo?). O amor de JPP pela mitologia - que eu partilho - poderia ajudá-lo a compreender que a vida é bem mais vasta e rica do que tudo aquilo que possa motivar qualquer desinteresse (no sentido kantiano do termo) e menosprezo pelo que não gostamos. A cascata mediática pode desagradar, mas tem justificação noticiosa por escapar ao campo do vaticinável; tem justificação simbólica por se enquadrar numa escala de significação onde a paixão e as pulsões agem como pura hierofania; tem justificação ao nível da activação dos próprios fluxos mediáticos e tem ainda justificação ao nível do sentimento do Outro (aquele que JPP não supõe senão no quadro de uma ilimitada reserva, algo calvinista, diga-se).
Reparo

Tal como é referido no comentário ao post de baixo (obrigado, Carlos Vaz Marques!), a Anabela Mota Ribeiro já desmentiu a sua pulsão blogosférica. Fica o reparo.
Espantos e nenúfares

Pergunta a agora muito conhecida Anabela M. Ribeiro: "Estará a blogoesfera repleta de helenistas ilustres ou é só dualidade de critérios voltada contra uma recém-chegada?" Eu não nasci no Porto, por isso não posso responder. Sinceramente. Mas aqui, de onde escrevo, sempre estou mais perto da Grécia. Já agora: é mesmo a menina Anabela do Magazine que escreve no Possibilidade? Seja bem-vinda. Sinceramente.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2004

Fórum virtual literário

Recebo mensagem de Maria Maroca da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) a propor a formação de um cibergrupo de discussão sobre literatura. Clique aqui para ver o projecto.
Re- Magazine

Com o objectivo de "ajudar uma jornalista em apuros" o blogue Eu Hoje Vou iniciou a sua vida (paródica, irónica, satírica e freudianamente quotidiana na sua essência ready made). Ainda dizem que a blogosfera não anda dinâmica!
Feher - 2

Por mensagens recebidas, já entendi que continua viva aquela ideia de que fica mal os "chamados intelectuais" (detesto o termo!) vibrarem ou interessarem-se por futebol. Eu sempre gostei muito e sempre acompanhei e apoiei o Benfica (sou mesmo sócio). Era e é uma questão de família, era e é uma questão de paixão pessoal que ocupa um certo lugar na vida. Quando falo de família, falo em dois níveis (no meu caso). Por um lado, da família real, toda ela herdeira dos mesmos sentimentos clubísticos e, por outro lado, da chamada família abstracta que une, de forma algo mágica, todos os que partilham a mesma mística benfiquista ainda que não se conheçam pessoal e intimamente (mas é curiosíssimo o entendimento cúmplice e a abertura radical que pode sentir-se com quem se senta ao nosso lado no estádio durante hora e meia de jogo). Ontem, senti uma amputação súbita e uma profundíssima perturbação. Precisamente porque esta segunda família foi atingida de modo trágico e de um modo excessivamente directo. Confessei-o e disse-o. C´est tout.
O blogue é também este exercício de revelação confessional, ou melhor, por outras palavras, este exercício de fusão entre a expressão diária do que é geral e abstracto (relativo ao espaço público) e aquilo que irradia de um foro pessoal e insubstituível (relativo ao espaço expressivo de cariz individualizado). O actual tempo da rede é o tempo desta fusão e distancia-se francamente da arqueologia patológica que ainda insiste em não compreender que é ilusório o divórcio entre o público e o privado ou entre o futebol e a reflexão (intelectual).

domingo, 25 de janeiro de 2004

Feher



Vi em directo, na Sport-TV, Feher a cair no relvado. Uma espécie de tragédia iminente intensamente partilhada. Neste momento parece confirmar-se o pior. As minhas sentidas, sentidíssimas condolências.
Como benfiquista e como homem.
Comentário sobre a questão da Apagogí vs Abdução (Peirce)

Na indução procuramos caminhos num campo mais ou menos inexplorado (o exemplo arqueológico é funcional neste caso). Esses caminhos permitem-nos, depois de muitas tentativas, acasos, ilações lógicas, inferências, associações (e, outra vez, mais e mais acasos), chegar à constatação de uma regra que a própria realidade, em princípio, confirmará (o exemplo de que o muro descoberto, no tal campo arqueológico, é, em princípio, romano). Estaríamos assim a aportar numa primeira premissa silogística, a partir da qual se pode tornar possível deduzir (até que a “crença”, a “dúvida” e “o inquérito” peirceanos o possibilitem). A abdução surge, neste quadro que liga a indução à dedução, como uma espécie de trave-mestra processual, já que é ela que pressupõe intervalos no agir indutivo tendo em vista a conjectura que conduz à inflexão, ou seja, à mudança de caminho (a Charlotte bem dizia a propósito da Apagogí: “interrupção, um desvio num caminho”). No fundo, abdução coincide com o próprio leme que acaba por alterar o rumo de um olhar prospectivo que persegue, independentemente das intencionalidadesa em jogo, uma regra. Daí que o(s) “afastamento(s)” (citado na Apagogí) face a uma via que se vai traçando pareça(m) concordar com a disposição que Peirce atribui à sua abdução. Uma reflexão interessante e a continuar.
Josef Nadj



Ontem vi o Woyzeck de Buchner, encenado e interpretado por Josef Nadj (trata-se de uma temporada de dança comissariada por Rui Horta e que decorre em Évora, no Teatro Garcia de Resende, entre Outubro de 2003 e Maio próximo). Sem fio narrativo claro e confinado a uma caixa negra de iluminação bastante ténue, esta trama transdisciplinar rompe as fronteiras da dança e do teatro (e não só), aproximando-se da lógica íntima de uma caixa de música que tenta, a partir da cena imaginária, criar a sua própria realidade. O silêncio, o desconforto, os breves lances de ironia, a fogosidade às vezes iminente, a acrobacia gestual e o elo trágico trazem a este Woyzeck uma visão talvez imprevista no seio da qual o humor e alguma crueza pactuam com estoicismo. Um belo espectáculo, afinal.
Bomba Inteligente: o serviço público

Pedi à Charlotte que me desse a oportunidade, na sua óptima "Etimologia hebdomadária", de confrontar o conceito de Peirce de "abdução" (conjectura) com "apagogí". Eis a explicação:

"Apagogí (este último "i" lê-se "ê" e é escrito com um eta, que corresponde graficamente ao nosso "h") é um vocábulo composto pela preposição apó, que expressa afastamento, distância (de) e pelo verbo ágo (este "o" é um omega), que significa conduzir. O correspondente de apagogí seria em latim abduco: ab + duco, cujo significado corresponde ao grego. O rapto, ou a abducção, não será uma interrupção, um desvio num caminho? Tirar algo de um sítio em que habitualmente está para pôr noutro menos habitual? Já se fizeram teorias da linguagem com menos."

Eis, agora, o conceito de Peirce, tal como aparece exposto na sua Sexta Conferência de Harvard (1903):

"A abdução é o processo de formação de uma hipótese explicativa. É o único tipo de operação lógica que introduz uma ideia nova; de facto, a indução mais não faz do que determinar um valor, enquanto a dedução se limita a desenvolver as consequências necessárias de uma hipótese pura. A dedução prova que algo deve ser; a indução mostra que algo é actualmente operativo; a abdução apenas sugere que algo pode ser. A única justificação da abdução reside em que, a partir da ideia que ela sugere, a dedução pode inferir uma predição que pode ser indutivamente testada, e ainda em que, se queremos aprender algo ou compreender os fenómenos, é através da abdução que o podemos fazer. Tanto quanto posso ver, não podemos encontrar-lhe uma razão; e de facto ela não necessita razões, visto limitar-se a fornecer sugestões. Um homem deve estar completamente louco se negar que a ciência fez muitas descobertas verdadeiras. Contudo, qualquer aspecto das teorias científicas que hoje se encontram estabelecidas foi obtido através da abdução. Mas como é que todas essas verdades foram iluminadas por um processo no qual não existe compulsividade nem sequer tendência para a compulsividade? É por acaso? Considere-se a multidão de teorias que poderiam ter sido sugeridas. Um físico constata no seu laboratório um novo fenómeno. Como é que ele sabe que apenas a conjugação dos planetas tem a ver com esse fenómeno, ou então que a sua explicação não se deve à imperatriz viúva da China ter, por acaso, pronunciado há aproximadamente um ano uma palavra com poderes místicos, ou ainda que ele não se deve à presença de um certo espírito invisível? Pense-se nos triliões de triliões de hipóteses que poderiam ser avançadas, de entre as quais apenas uma única é verdadeira (...)"
(Tradução de A. Machuco Rosa, Antologia Filosófica, I.N.C.M., 1998, p. 221).


Deixo o comentário para outra altura. Logo que puder. Estou cheio de trabalho neste momento!
Indígenas anunciados

Nunca gostei de me deixar arrastar por fórmulas que fazem moda fácil em certas circunstâncias e que depois falam massificadamente através da própria “pele da cultura” (Derrick de Kerckhove). É por isso que algumas expressões me cheiram sempre a uma espécie de enxofre palavroso, ou a alface pacóvia, ou ainda a sardinhada mediática. São elas, por exemplo, “janela de oportunidade”, “é suposto”, “em termos de”, para não falar já dos “gramas” (falo da medida de peso) soletrados e escritos no feminino. Abrimos o jornal, ouvimos os debates, fechamos a rádio ou abrimos a televisão e lá está o coro dos indígenas bem afinados a soletrar estas parangonas. Hoje em dia, o papel dos dicionários é afinal registá-las. A pouco e pouco. Contra a minha vontade. Acho que é nestas pequenas coisas (serão mesmo pequenas?) que a morte se vai tornando nossa vizinha bem comportada. Oxalá tal ideia nem me tivesse passado pela cabeça!

sábado, 24 de janeiro de 2004

Água

É a grande notícia (europeia) do dia. Se é que as notícias têm que se submeter ao império dos dias.



A imagem é da NASA e foi ontem tirada por uma câmara panorâmica a partir do Mars Exploration Rover Spirit. Mostra-nos as proximidades da cratera de Gusev.
Memória a fio

Um dia hei-de regressar ao deserto. Atravessá-lo-ei de lés a lés e, de noite, voltarei a ver beduínos a rir na direcção do mar. Hei-de lembrar o atrito dos camelos quando a manhã descer nas margens do Mar Vermelho. Hei-de andar naqueles mercedes de nove lugares todos riscados por fora e a cheirarem a açafrão adocicado por dentro. Hei-de perceber a razão pela qual, em Dahab - que quer dizer ouro em Árabe - as palmeiras entravam pelo mar dentro, fosse maré alta ou fosse maré baixa. Hei-de voltar a escalar os morros que têm a cor ácida dos tijolos. Hei-de voltar a ver a poeira a desenhar a limpidez do ar e, por cima de tudo, no zénite solar, estou certo de que a grande sombra reaparecerá. E então cruzar-me-ei com o desejo de Vénus. Com o ímpeto da memória. Ou ainda com a desmedida mancha que faz do sorriso dos deuses o perfil mais querido das nossas próprias sombras.
Sombras

E tive a ideia de imaginar a sombra de uma personagem. Apenas a sombra, não ela, a personagem. Não o devia escrever pois o nocivo poder do intertexto é terrível. Seja como for, imaginava-a, à sombra, a escalar pelos céus montada num pau de vassoura (isto é já prosa para disfarçar). Verdade, verdade, é que os meses de Fevereiro são espaços privilegiados de escrita há muitos anos. E eu só gosto de trabalhar com adrenalina QB. E tenho um romance para consolidar e outro ainda para imaginar (adiciono-lhe agora a história das sombras); e tenho um ensaio para escrever e dois subtextos seus para levar a congressos; e tenho uma adaptação a argumento cinematográfico; e tenho outras, outras coisas. Mas o que é a felicidade? Voragem de escritas? Torrente de sombras? Ou apenas este momento em que levanto a cabeça e volto ilimitadamente a olhar para a janela cheia de escuridão ainda a dançar no meio da luz amarelada de alguns candeeiros?

sexta-feira, 23 de janeiro de 2004

Suddenly

E, subitamente, uma massa de ar fria e densa, rápida e cinzenta, avançou sobre este território solar que já se tinha tornado num hábito de vários dias. Tal como um barco mitológico que tivesse atravessado o canal dos solstícios de um lado ao outro e, nessa expedita metamorfose, visse a luz na sombra e a sombra na luz, descobrisse a chama no gelo e o gelo na chama, inventasse o clarão no escuro e o escuro no clarão. Uma romagem vertiginosa, uma peregrinação instantânea, uma surpresa aventurosa. E agora, o que nos contará o resto deste dia em que os contrastes se transformaram num único tear sem qualquer Penélope por perto?
Limites líricos

A Turandot que estreou ontem no S. Carlos não teve igual sorte há três quartos de século (em 1929). Como os espectáculos nessa altura não podiam ultrapassar uma hora de duração - e a Turandot o ultrapassava em seis minutos - a cena acabou por resvalar para o bom e para o bonito.
Greve Geral (estatal)

O lado oitocentista e paródico da greve de hoje - não está em causa o que nela se joga - é um vago halo épico que assombra o rosto de alguns sindicalistas como se estivessem a cruzar-se com o clímax orgástico de uma longa marcha, ou de uma prolongada guerra agora em vésperas de se transformar em revolução vitoriosa. É um tom suavemente viperino, exaltantemente ébrio e propenso à elevação mística dos que desvendam o paraíso atrás do quiosque da esquina. E depois, quero queira quer não, fico a pensar em duas questões: por que razão as greves apenas resultam no (sacrossanto) estado (responsável por 15% do emprego do país)? E... por que razão se escolhe sistematicamente a Sexta-feira como dia de greve (eu não tenho problemas com isso, mas parece que os sindicalistas gostam de lançar a casca de banana para caírem, eles próprios, no chão).
Alguém saberá responder a tais irascíveis questões?

quinta-feira, 22 de janeiro de 2004

A ficcionalidade onanista

Aí está um (fortíssimo) tabu que raramente me lembro de ver tratado literariamente com algum fôlego: a imaginação onanista, ou mesmo, como se escreve no Avatares de Um Desejo, a sua narratividade (embora eu pense que se trata mais de sequências narrativas muito breves, sobrepostas por bastante e desalmada descrição). Não sejamos ingénuos ao ponto de considerarmos o onanismo como uma simples experiência da memória adolescente (lembro-me de, na Balada da Praia dos Cães, o inspector da Judiciária, já maduro como os figos, se masturbar, mas algo desinserido da ficcionalidade que desenha a homophysis desse prazer efémero e solitário). Creio que existe mesmo um subtetxo muito culturalizado que arrasa este tipo de reflexão e ponderação (com a excepção da aridez estatístico-verbal dos psicólogos), pressentido até no léxico utilizado: onanismo em vez de masturbação e masturbação em vez do vocabulário mais providencialmente Pipi. Seria, contudo, interessante perguntar à blogosfera, se existe uma flagrante diferença na ficcionalidade (onanista) feminina e masculina; se esta ficcionalidade é mais esteticizada e autotélica (isto é, se cria o seu próprio mundo ainda que filtrando o mundo da experiência), ou mais ancorada referencialmente (isto é, se baseada em quadros conhecidos e vividos). É uma questão em aberto e que, ao retomá-la, espero ver discorrida. Que os blogues ocupem as margens abandonadas pela tematização culturalizada!
Big Maçã



Vi ontem à tarde o filme de Jane Campion, In the Cut (Atracção Perigosa). É uma Nova Iorque inquieta, turbulenta, à procura de si própria (típica aragem pós-11/09). Os destinos que surgem na arena ficcional parecem deslizar tal como a câmara, meio perdida ante a poética da surpresa e o hiper-realismo dos fragmentos, dos detalhes e das frestas sempre meio entreabertas. Entre o pretexto Serial killer e a tentação cristalina e inocente do desejo, a trama chega a brilhar em certos momentos de luz mais baça, em certos diálogos breves e cruzados, em certas presenças onde a paisagem urbana trai o desespero anunciado. Vale a pena ir ver.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2004

Striking

Manuel Monteiro vai aderir à greve da próxima Sexta-feira. Creio que a Nova Democracia começa assim a trilhar o caminho mais lógico para poder crescer e aparecer. Não se espera outra coisa de políticos inteligentes.

terça-feira, 20 de janeiro de 2004

Travessia

Embora, enquanto escriba de ensaios, navegue cada vez mais entre as falhas que se abrem entre campos diversificados do saber, a verdade é que estou, neste momento, entre tantas outras alucinações que atravessam a balbúrdia estável do planeta, a orientar uma tese de Mestrado sobre o poeta Al Berto. E ocorre-me afirmar, agora que voltei a deixar Lisboa (para amanhã de novo a vislumbrar): "Corpo/Que te seja leve o peso das estrelas".
Atracção fatal

Um leitor diário do Miniscente que me pede anonimato comenta hoje o post Mothers of Invention e faz eco, a propósito do relato do momento criativo nele referido (e que hoje me preencheu o dia todo), da obra de Teresa Direitinho, O Princípio da Atracção. No site da escritora, avisa ainda o simpático leitor, publica-se um texto de grande interesse que foca igualmente a acrobacia abismada do acto da “parição” das escritas. Fica o registo e o duplo agradecimento pela nota enviada.
Ecos do tempo

Entro na Sá da Costa (ali ao Chiado) e peço que me indiquem o local onde possa consultar a obra ensaística de Umberto Eco. Responde-me a senhora com um sorriso oxigenado e brando na suave empatia vernácula: “desse autor só temos dois romances que estão ali…” (apontando com um ar redundantemente indexical). E eu fico a pensar que, no tempo em que havia livreiros e sinaleiros a sério, o Costa ainda era Costa, o Sá ainda era Sá, e o bacalhau à Gomes da Costa ainda era a mais alta patente do belíssimo Gomes Sá. Que tristeza.
Não-lugares

E por que razão caminhará o meu cão, quando recebe um osso, sempre e invariavelmente, para um tapete negro que se esconde no canto da cozinha? Decerto que a coisa deve misturar profundos fetichismos com alegorias cavernais jamais escritas no mundo canino. Seja como for, esta fidelização épica pelos lugares tem a contrapartida humana na ancestral sacralização dos espaços. Por outras palavras ainda: cada um transforma, a seu belo prazer, o espaço em lugar.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2004

Alerta!

Creio que foi Richard Rorty que escreveu, no início dos anos oitenta, que "há pessoas que escrevem como se só existissem textos". Alerto para o facto de haver, hoje em dia, muita gente que bloga como se só existissem blogues na vida. Às vezes, passo por vários blogues e reconheço a tendência, o germenzinho, a picardia involuntária, a moenga imaculada, a nódoa embevecida, a lamúria ressentida, o escárnio deliberado, o ardor incontinente, a resposta desnudada, a guerrinha vitoriosa, a verve viscosa e a remissão pouco alterada. Fico pasmado, sorrio, relembro cenas exultantes e aceno por fim com ambas as mãos a bater palmas a tanta ventania, embora saiba de cor (i.e., pelo coração) que a vida continua. Mesmo aqui, na íntima e prolixa rede dos blogues.
Mothers of Invention

Ontem ao fim da tarde, quase ao sol pôr, estava eu na cozinha a fazer um café (desses com filtro) e a olhar para um livro como quem olha para um nenúfar (a sério). E, de repente, mais pelo céu esfumado em violetas crepusculares do que pelo latejar das páginas sublinhadas e desgastadas, a verdade é que fui invadido por uma daquela ideias que aparecem uma vez no ano. Daquelas que gerarão livro. Já hoje me pus a vasculhar no vasto campo para que subitamente despertei. Deixo em meio muitos textos já começados e atiro-me a outros assim. Sem mais nem menos, por súbito e espontâneo despertar. Como se o alinhavar do futuro texto já estivesse a vir ao ser e só faltasse, agora, a tarefa de dar corpo físico à coisa. É verdade que tenho passado a vida, nos últimos anos, sempre no meio curso desse tipo de tarefas. Só posso dizer que se trata da análise do humor na obra ensaística (imagine-se!) de um autor não português. Estimulante? Indubitavelmente afirmativo.
Esquecimento

Muito obrigado ao Rua da Judiaria, ao Contra a Corrente e ao Almocreve das Petas pelos comentários e pelas considerações adjectivas que os nossos posts sobre o paradoxo judaico português acabaram por suscitar. Trata-se de um tema importante, diria vital e pouco convidativo para muitos (porquê?). Daí que mereça continuação e toda a nossa atenção. Sob pena de o silêncio - ou o esquecimento - dominante se tornar, ainda que de forma involuntária, em mais um argumento anti-semita. A juntar a tantos, tantos outros.
Res Pública

Uma sondagem recentíssima da Universidade Católica - que vai ser hoje utilizada num programa da RTP 1 - indica claramente que 75% dos portugueses consideram a actual discussão sobre a interrupção voluntária da gravidez oportuna. Contudo, a agenda definida pelos eleitos que legitimamente nos governam aponta para a sua radical inoportunidade. Em que ficamos? Boa pergunta a pedir uma resposta que não feche a porta a nenhuma das partes. Sobretudo porque em democracia convivem sempre diversas legalidades, umas institucionais, outras não. Ou seja, numa sociedade aberta, o legal-institucional e o espaço público activo devem equivaler-se e debater-se em estado de positiva tensão. E tal é verdade para a relação entre os média e o segredo de justiça como o é para a urgente discussão - ainda que desconfortável para muitos - que a interrupção voluntária da gravidez exige. E não é a pretérita realização de um referendo não vinculativo, nem tão-pouco as compreensíveis tácticas de concertação no seio da coligação governamental que poderão ditar, de modo indefinido, um bloqueio à questão (que nos coloca, na Europa civilizada, num lugar vergonhoso).
A cupidez dos másculos

Nos jornais do fim-de-semana vi escrito um habitual e repetido slogan do PCP: "Não são as pessoas que interessam" (era a propósito de Manuel Maria Carrilho). Poderia parecer mero ruído como tudo o que vem desse sector político. E é de facto; mas não o é apenas. Pois, quando se repete exaustivamente que as pessoas não contam e o que conta, afinal, são as abstracções que cabem na cabeça de alguns e que são tidas pelos ditos cujos como puras e perfeitas (a velha "superioridade moral dos comunistas"), é porque estamos no reino da mais insopurtável intolerância. Assinale-se tamanha cupidez.
Regresso

Regressa o brilho intenso do sol, o antigo eco dos nautas apolíneos. E a verdade é que a grande laranjeira do quintal parece agora elevar-se bem acima no recorte do horizonte. Fico a vê-la pairar sobre os plátanos despidos, sobre as máscaras dos deuses.

sábado, 17 de janeiro de 2004

Avalon

Depois de atravesssar a Atouguia da Baleia cheguei há pouco à antiga Ilha de Peniche de onde hoje não se avistam as Berlengas, tal é a névoa e o volume baixo das nuvens a povoarem o limite agitado do oceano. Do lado do jovem continente, a arriba é poderosa, limada a círculos rápidos, escavada nos intestícios profundos da rocha, e parece querer celebrar, na sua aspereza sublime, o vaguear imemorial que o tempo apenas humano não consegue descortinar.
Cometa

As cortinas abriram-se e eu vi ao longe uma luz a descer no horizonte. Um fio a crescer para fora de si e a invadir o olhar incandescente com se fosse a vela de um barco quase a aportar na grande estrela ausente. É assim a noite, de facto: um cometa a navegar sobre o seu próprio movimento e a tactear com rapidez o encanto do que não está. Estará amanhã, outra vez. É nessa esperança, e só nela, que os cactos ao fundo do quintal adormecem. Sem esquecerem a bruma que cobre o limite do muro e o confunde com a água calma que se suspende no estendal. Para tudo eu olho, em silêncio, à espera da tal luz e do imenso olhar em fogo que a perseguiria até ao limiar do desejo.
Édipo - 2

Já agora, e isto são excursos típicos de blogue, o dramaturgo de Um Édipo (ver post de baixo) não deveria ter feito o que fez. Então não é que, com um cosmos tão grande, tão ilimitado, tão em expansão desde o alegado Big Bang, se lembrou de ir nascer à mesma casa e ao mesmo número da mesma rua e da mesmíssima terra que eu próprio! Ó Judiaria de Évora, Ó rua dos Mercadores, Nº 37! Não fosse ele ter nascido no rés-do-chão e eu um pouco mais acima (por isso sou mais celestial), onde é que iríamos pousar os nossos bustos, ou as nossas estátuas equestres do futuro?
Édipo

Acabei de ver Um Édipo de Armando Nascimento Rosa. Gostei do ar fresco, sobretudo do modo como a base trágica se transverte numa sequência paródica e satírica ateando, aqui e ali, o lume do quotidiano. Além disso, na peça, os personagens não são na sua maioria entes carnais, mas antes fantasmas, presenças ou vozes. É assim que a trama põe, na mesma carruagem um pouco pasoliniana, um Tirésias hermafrodita, a sua filha (de nome masculino) Manto e ainda Críscipo e Laio, este último uma espécie de ex-rei de Tebas perdido. Uma óptima surpresa hilariante, lúdica, mas também reflexiva.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2004

Espírito Livre


NASA

Vale a pena ir ao site da NASA ver as imagens que nos chegam de Marte.
Tragédia de um esquecimento - 2

Recebi uma mensagem do Nuno Guerreiro da Rua da Judiaria que me tocou. Nela, o Nuno agradece o meu post anterior, Tragédia de um Esquecimento. Contudo, tenho sincera dificuldade em respoder ao agradecimento pela simples razão de que não consigo colocar-me de fora da questão judaica.
Estou por dentro dela e todos os portugueses também estarão (embora não conscientemente; embora ignorante e, às vezes, hostilmente inconscientes desse facto). Essa é, de facto, a outra faceta do paradoxo judaico português. Enquanto que no caso do Islão, ao longo do século XV - nas Ordenações Afonsinas estão prescritas as últimas instruções conhecidas a observar nas mourarias - , houve uma assimilação natural progressiva e sem "noites de cristal" (o próprio Manuelino mudéjar o prova através da mão-de-obra e ornatos utilizados), já com o judaísmo houve um conhecido fim brutal de tipo nazi que a história oficial portuguesa sempre ofuscou e silenciou (de um modo abrupto, antes do 25 de Abril, e, de um modo baço, mas talvez mais hipócrita, hoje em dia).
É uma tragédia do nosso esquecimento, de facto.
Aliás, o meu doutoramento, defendido em Utreque há uma década, centrava-se na análise semiótica da literatura profética oriunda da complexa comunidade mourisca de Aragão; e aí, sim, no caso do Islão mourisco, também houve um final brutal de tipo nazi com expulsão já no início do século XVII. Só que a história e a literatura do levante espanhol nunca tornaram este facto numa espécie de ilha imersa situada na escuridão profunda dos mares mais inatingíveis. É essa a grande diferença.
Portugal adora vaguear sobre uma memória estriadamente obliterada. E foi sobre essa rugosidade que edificou, ao longo de séculos, mil e uma máscaras que não se reconhecem hoje com parte do corpo que é, afinal, o seu.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2004

Tragédia de um esquecimento

Lembra o blogue Rua da Judiaria que, em 2004, se celebram 350 anos "sobre a chegada dos primeiros emigrantes judeus à colónia holandesa de Nova Amsterdão, na ilha de Manhattan (actual Nova Iorque)". Tratou-se, na altura, de um contingente de 23 emigrantes judeus fugidos à Inquisição do Recife, no Brasil. De facto, um certo mutismo português adora esquecer os labirintos judaicos de Amesterdão, de Antuérpia, de Istambul ou do Recife que, afinal, lhe saíram da sua própria carne. Por que razão será muda a história oficial portuguesa acerca da implosão judaica de finais de século XV e inícios do século XVI?
Independentemente de tal mudez, a verdade é que não há português que não traga consigo um pouco de Israel e, no entanto, parece disfarçá-lo com uma leviana saudade da escuridão, com uma timidez pessoana e quase mitológica, com uma ignorância tétrica e, às vezes, com uma apaixonada tentação pela erradicação memorial (tantas vezes pressionada pelos fluxos ideológicos de conjuntura).
É como se, na frente de um Portugal marmóreo e cristalizado, apenas ficasse o mar e as suas lendas a sós, apenas ficasse a imagem passada de um século de ouro, apenas ficasse a euforia das Europálias, das Expos, das Décimas sétimas, das N Capitais da cultura e das várias Exposições do mundo português. É como se, em todas estas cenografias da exaltação lusa, nada sobrasse do vestígio da alma judaica arrancada à nossa própria alma. Que auto-imagem celebrará tal amputação, ou tal compaixão desprovida de rosto?
Saúde-se, pois, Miguel Real, e as suas recentíssimas Memórias de Branca Dias (Temas e Debates).
A noite, hoje

A noite aparece pródiga e serena, espécie de respiração sem rasto. Apenas sobressai o restolhar tranquilo com que se pressupõe o passar da corrente a meio do rio, esse fôlego antigo que não deixa vestígio e que mesmo assim silencia o pasmo da noite tão subitamente aparecida.
Traduções em curso

Tenho escrito um pouco menos aqui no blogue por estar a adaptar um romance dos anos sessenta a argumento cinematográfico. Reinventar plots, recentrar contracampos, expandir personagens, projectar situações, inventar visibilidades, gerir sequências narrativas, cortar os pontos mortos, depurar descrições, calibrar ritmos, ponderar toadas poéticas e acertar o passo nas palavras. Adaptar ao cinema é traduzir, é transpor conteúdos de um mundo para outro, é intertextualizar modos de dizer e modos de não dizer. Adaptar ao cinema é dissuadir a tragédia da impossibilidade. É escrever e calar (por agora).
Semestre aniversariante



Há seis meses, às 12 horas, escrevia: "À espera de que a blogosfera seja como o Saral. Um vasto mar de sal sem encontros. Pelo menos no início. Por isso mesmo o inicio sem aviso."
Eram os primeiros passos do MINISCENTE.
Hoje, o MINISCENTE não sendo um tablóide da blogosfera, nem um clássico na senda da salvação, já foi, no entanto, visitado por perto de dez mil pessoas que espreitaram mais de dezoito mil páginas (dados Bravenet) e já foi citado por cerca de cento e sessenta outros blogues (dados Technorati).
Fica o registo e o desejo de continuar no mesmo ritmo paulatino, crítico, estético e, sobretudo, radicalmente indiferente às estatísticas.
Interessa-nos mais a dimensão qualitativa e o diálogo com o cibermundo e, no seu seio, também, naturalmente, com o mundo blogosférico. Interessa-nos a vitória dos desilusionismos. Interessa-nos o humor. Interessa-nos a luz. Interessa-nos a rede. Interessa-nos a desestruturação das escritas. Interessa-nos a paixão e a cor das nuvens.

terça-feira, 13 de janeiro de 2004

Cultura 1

Se eu fosse director do Jornal de Artes e Letras (JL), dissolvia o jornal e transformava-o num blogue chamado Coelhinho. De certeza que aumentava os leitores, as críticas, os tipos de público e - é assim a lei da oferta e da procura - o leque de entrevistados e de correspondentes. A bem da Nação. E do corte de barba feito a tempo.

Cultura 2

Vou hoje mesmo enviar um mail a Eric Dayton, editor da famosa antologia, Art and Interpretation - An Anthology of Readings in Aesthetics and the Philosophy of Art (1998, Peterborough, Ontario, Canada) para que acrescente uma nova entrada à prestigiada edição, i.e., P. Santana Lopes, Causas da Cultura (2004, Grémio Literário, Lisboa, Portugal).

Cultura 3

Já sei o que estranho verdadeiramente na nova Dois. São os filmes à noite. Escusavam de lhe chamar "Cinco filmes, Cinco noites", já que a nomenklatura - estou de acordo - cheira a barbudos clandestinos do século passado. Mas podiam chamar-lhe "Lanterna que acende alumia e já não mente". Sempre rimava e não era assim tão caro.

Cultura 4

Há ainda alguns projectos inadiáveis em Portugal: a Universidade Pública em Viseu (urgente devido aos diagramas etários e à inexistência de qualquer ensino superior na região), um Instituto Público devotado ao humor e ao optimismo nacionais (com o alto patrocínio da facção Levanta-te e Ri) e ainda uma Grande Área Metropolitana em Aljezur.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2004

Pathos de Inverno - 3

Ainda o nevoeiro a polvilhar os ramos e a luz amarelada a espargir-se sobre telhas de barro, de onde sobressaem rumores antigos do fundo do mar e asas episódicas de pássaros que não esperam por resguardo ou sequer pelo anúncio de qualquer redenção. A sonolência do Inverno é feita desta bruma incerta e estranha onde as ervas mais rasteiras se ofuscam e até confundem com a sua imagem de tímido pasto ainda a respirar através de raízes subterrâneas, elas sim à espera de parto e de redenção. Mas isso é outra lenda, outra história, feita apenas de aura e de memória involuntária, e que é narrada por vozes sábias, à luz do fogo, quando este frio, que atravessa mármores e granitos espessos, voltar a ser afagado pelo nevoeiro que nos garante a compaixão do olhar. Ei-lo mais uma vez, na minha frente, denso e liquefeito, a coar os ramos das árvores e a sussurrar o silêncio da carne. Veio como há-de partir, um dia. Pela aguardada planície do desejo.

Outra Esquina

A nova Dois (TV) tem um blogue. Pela minha parte, estou ainda na fase de análise. Recuso-me, para já, à tese do antes e do depois. É uma tese que esquece a linha de fuga (que geralmente se expande, de modo ecléctico e dinâmico, por entre as cristalizações do antes e do depois. Transcendendo-os).
Confissão estonteante

Há hoje uma cruel confissão no blogue de José Pacheco Pereira. Declara JPP que queima os seus próprios livros, quando passam uma determinada validade (uso, velhice, "perda de sentido", como refere o autor do Abrupto). Juro que existe nisto algo de subliminar que me assusta. Juro solenemente. Ou serão complexos da antiga era exclusiva do livro? Não faço ideia, mas fiquei sinceramente atordoado com o post de JPP.
Majestade

As laranjeiras suspensas pela névoa. Patos de asas muito abertas a correrem na penumbra entreaberta em pleno dia. Uma voz de mulher a intrometer-se no silêncio da fogueira que dá ao muro um tom vulcânico. Os candeeiros a acenderem-se arrastando o sinal prodigioso de uma fé irremissível, mas perdida. Volto a olhar para a janela e imagino o que veria Vermeer ao ver o que eu vejo, o que ouviria Bach ao ouvir o que eu ouço. Não faço ideia. Só sei que há um gato a atravessar o muro, o imenso muro rodeado de fogo; ei-lo completamente alheio a tudo, como se viesse da Antártida e fosse agora sentar-se no vértice da maior pirâmide de Gizé.
Sinal dos tempos

Com o máximo respeito pela memória do falecido poeta Eduardo Guerra Carneiro e pelos que o acompanharam na vida e na morte, não posso deixar de sublinhar a importância - eu diria antropológica, sem qualquer sentido pejorativo - de um texto de Baptista Bastos que descreve, como poucos o terão conseguido até hoje, o que é a auto-imagem de uma certa esquerda oitocentista ressentida com a história real do planeta,angustiada com a morte do seu deus (dos seus dogmas) e claramente inadaptada às metamorfoses da actualidade. Transcrevo o texto, que fechava uma crónica de Baptista Bastos no Público do passado Sábado, pelo valor literário e sobretudo metafórico do mesmo e sem querer, repito, de qualquer modo, atentar contra a pureza dos sentimentos que lhe são, com toda a certeza, subtetxo. Eis a descrição que se centra nas pessoas presentes ao funeral de Eduardo Guerra Carneiro:

“Gente que tinha experimentado a tristeza de viver, na alegria esfuziante das conivências e das irmandades. Gente ardida, indócil, iluminada pela saudade do heroísmo impossível. Gente da noite, do uísque, do silêncio e da repulsa. Gente certamente imperfeita, mas certamente impoluta, instigada pelo ânimo cordial que subvenciona a mais imperiosa das exigências: a das amizades intactas.”
Suspensão

Um fio de nevoeiro a penetrar nos sobreiros que se arrastam pela encosta como que a procurar o ângulo preciso de uma redenção. Uma bicicleta muito vermelha a escalar até ao cume onde a fonte decidiu congelar a alvenaria num branco vivo e quase igual à névoa que a rodopia. E eu fico a olhar, enquanto suspendo o teclado e invento mil pássaros a voarem sobre a colina, como se a indecisão fosse afinal o plano mais elevado e sigiloso do paraíso.

domingo, 11 de janeiro de 2004

Moleza dominical

E não haverá no dilatado tempo de Domingo uma espécie de aflição seminal que nos expõe à tentação do tédio e, ao mesmo tempo, nos conforma com o impraticável sonho de um mundo sem fracturas? Não pairará neste tempo de Domingo uma espécie de doce angústia que nos encaminha para a ilusão utópica da felicidade e, ao mesmo tempo, nos informa do lapso e da fenda que é afinal a substância da efemeridade do mundo?
Nos Domingos, os carros arrastam-se como lagartixas indecisas, os restaurantes deixam invadir-se por bichas familiares sem finalidade, os parques são preenchidos por corpos que ostentam fatos de treino faustosos, os relatos de futebol enunciam os gladiadores e a simulação das esperanças a vir, enquanto as praças cruzam o seu extremo vazio com a nostalgia de uma idade de ouro em que a contemplação teria substituído a mais ténue das actividades.
O Nosso Primeiro

Vi ontem Durão Barroso no Expresso da Meia Noite. Achei curioso o tom sorridente e aqui e ali facilitista à Guterres (ou à Blair) e achei importante a referência incondicional contra a pena de morte. A prudência comemorativa da emissão aconselhou a que se falasse apenas de política externa. E, já agora, retomando o verso de ouro da entrevista, continuo a pensar que Portugal, no seu todo, ainda não interiorizou o novo tipo de partilha que a Europa irá projectar no mundo nas próximas décadas. Seja como for, por trás do sorriso embalador e da palavra bem centrada nos temas em agenda, pareceu-me não descortinar em Durão Barroso aquela ponta de entusiasmo que a circunstância e a actualidade tanto carecem.

sábado, 10 de janeiro de 2004

Pathos de Inverno - II

O céu recobre agora esta estranha alma de Janeiro com o mesmo cor-de-rosa que entrevi, um dia, nas margens salícolas do sul do Mar Morto. Foi-se o prodígio do dia, é verdade, mas, a pouco e pouco, o universo próximo da noite vai toldando a imensa roda da natureza com estes torrões liquefeitos, com esta textura crepuscular à procura de uma música possível, com esta diluída imagem do deserto do Neguev já sem fim. Para a frente, fica a viagem que apenas acabará no limiar do Mar Vemelho, justamente onde o gorgolhar do firmamento confina com o ardor mais terráqueo que há na obscura noite. É essa a travessia que é confiada a este olhar sereno de fim de tarde, quando o rosa de há pouco já se transformou no violeta fenício que abraça para sempre a desmedida vista dos altos de Haifa. É dela que me sinto refém, afinal; é dela, dessa felicidade efémera e saudosa, que me sinto finalmente pródigo filho. Mas fidelíssimo. Tão ou mais fiel do que as cegonhas que pousam, aos pares, nos cedros selvagens que ligam os caminhos de Évora a Monsaraz.
O tom apocalítpico

Num tom paternalisticamente angustiado, Guilherme Valente mostra-se, hoje no Público (Sup. Mil Folhas), tremendamente ameaçado pelas "astrólogas a zumbirem em todos os canais de televisão" e pelo facto de "30 por cento dos portugueses" atribuírem "ao destino a causa dos acidentes de viação". Trata-se, já se vê, de uma cuidadíssima análise ao estado da nossa cultura tendo como base um inquérito levado a cabo pelo Mil Folhas no terceiro dia deste novo ano. Duas conclusões: primeira - a azia do futebol tem as suas urdiduras no campo celestial da cultura; segunda - o povo português lê filósofos pré-modernos e prefere a providência, ou o dahr, à autonomização da indagação pós-iluminista. E depois? Parece que o articulista nunca viu um repolho ao lado de uma arranha-ceús e uma auto-estrada a passar pelo meio de um galinheiro.That´s what Portugal is all about.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2004

Lucia Joyce, a nómada

O recente livro de Carol Loeb Shloss sobre a filha de James Joyce, Lucia Joyce:To Dance in the Wake (Farrar, Straus & Giroux), dá-nos conta de muitos aspectos pouco conhecidos do autor de Ulysses e convida-nos a perceber a múltipla saga autorial de Finnegans Wake. Leia a crítica de Joan Acocella publicada no New Yorker e vai ver que vale a pena.
A ler - 2

um blogue apenas devotado a falácias. Era mesmo o que faltava para nos compor o rosário do presente.
A ler

para que se possa ter uma ideia do que são as reacções aos actuais propósitos de Bush quanto às reformas da imigração nos EUA. Por cá, ainda vamos chegar ao ponto de encontrar nas sombras governamentais quem pense que, nesta área, o presidente norte-americano é um perigoso esquerdista.
Adesão ao flamenco

Ontem, o Marretas evocava a malta acocorada a vociferar que a greve estava "a registar uma boa aderência". E eu lembro-me, ontem, também, de ter visto - no primeiro Magazine que me foi possível seguir - Anabela Mota Ribeiro a insistir num novo género musical: o "flamengo". Seria Brel? Seria paixão por Vermeer? Ou seria pura adesão à doçura gutural do falar flamengo? (I heb de indruk dat het zo was)
Batel

Que supremo prazer este dos blogues, sobretudo para poder exprimir, quando tal apetece, que nada existe de facto a dizer e para dizer. Fique o registo e o embuste pronunciados mesmo em frente do vidro duplo da janela por onde deslizam manchas de uma humidade lustrosa e espessa, navegantes de águas bravas e praticantes de aleivosias ao sabor do céu escuro e ainda mais opaco e mudo do que o fio incerto destas letras. No fundo do cenário, por entre os candeeiros que são raros, suspende-se a talha dourada mais apetecível e que é, vá-se lá saber porquê, o riso próprio de quem escreve estes mil dislates a meio da noite. Ainda dizem que neste país de batéis o que reina é o pessimismo!

quinta-feira, 8 de janeiro de 2004

Eficácia

O terrorismo sentido dentro das fronteiras de Israel desceu, de 2002 para 2003, mais de 50%. O Haaretz de hoje divulga o relatório dos atentados e os dados falam por si: em 2002, o número de baixas israelitas foi de 451, enquanto, no ano passado, esse número desceu para 213. O diário israelita justifica o facto pela eficácia da prevenção:

"One shouldn't get the mistaken impression that the Palestinians have abandoned their campaign of terror against Israel," said David Baker, an official in the Prime Minister's Office. "Fortunately, the Israeli security services have been able to prevent the overwhelming number of terrorist attempts".

Oxalá, este ano, a tendência se mantenha.
Esperanças japonesas

Hoje, o editorial do The Japan Times é de um optimismo a toda a prova. Parece que a (convicção da) retoma já assentou arraiais em terras de sol nascente. Se o Luís Delgado descobre este texto!
Sim, mas

O princípio disciplinador de uma real avaliação da função pública é correcto e até necessário. A aplicabilidade da letra da lei é, no entanto, o grande pasmo que entreva qualquer reforma em terras lusas. Esperemos para ver, já que o sector é o símbolo do laxismo nacional (salvo as tais excepções, é claro).
A Dois e A Falha



Hoje, Quinta-feira, às 22 h, no novo Canal 2, passa o filme A Falha do João Mário Grilo, baseado no meu romance homónimo. Fica o aviso.

terça-feira, 6 de janeiro de 2004

Pathos de Inverno


Open Democracy

Um brilho de veludo, a luz da bruma mais esvaída e a humidade da vertigem a invadirem a verdadeira noite de Janeiro. É o frio a adivinhar o sabor a gelo e o antigo espectro das cavernas onde se desenharam traços de cor avermelhada de sangue. No inverno, o corpo ensaia a grande dança da gestação e a imensa espera dos citrinos torna-se agora na delonga do génio noctívago. E sem nada que o previsse, eis que a natureza fala através de sinais pouco claros, porque apenas amadurecidos na densidade mais crepuscular. São traços escuros sobre fundo escuro, são meteoritos brilhantes sobre o brilho de águas paradas, são vozes de silêncio sobre o mutismo mais longilíneo da terra. As marcas do inverno não têm nome. Apenas uma respiração profunda, um desejo avassalador e todo, todo o luzir da manhã desejada.
Já hoje olharam para o céu?

Ei-lo:



Com ou sem nuvens, ela está lá. Apesar desse imenso prazer (ver e rever a lua), hoje recomeçaram as aulas e as leituras entre mil tempos mortos e esse ponto morto que delimita sem fronteiras certas o ritmo do quotidiano. E o carro para a frente e para trás à procura de um destino. À procura de um sentido.
Em Fevereiro, vou ter muito para escrever. Os planos de viagem começam a ditar-me alguns horários, alguns desejos sob a forma de ocupação física do tempo. Até lá, fiquemo-nos pela contemplação da noite. A noite do verdadeiro Inverno.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2004

Loucura brevíssima


Botticelli, Primavera

Pode parecer uma loucura, porque é com efeito uma loucura supor vivencialmente uma coisa dois meses antes dela se prefigurar. Mas ontem, em plena tarde de sol maravilhado, ao interromper a leitura de um romance velho de trinta e cinco anos de idade (belo mosto!), dei comigo a dizer que isto era ou parecia ser um dia de Primavera. Mas não era. Era tão-só a imagem móvel, certa e precisa a correr na minha frente com lentidão godardiana e eu, do outro lado do lago, a pronunciar, em voz off, o texto da Primavera que parecia, ele sim, uma loucura. Árvores sem folhas, ramos sem fio, seivas sem dote, rebentos sem forma, mas, por outro lado, de verdade, era tal o prazer a deambular no ar azul e sem nuvens, era tal o fascínio a deambular sob aquele sol aberto e sem sombras, era tal a leveza a pairar naquela mornidão redentora e sem teias que eu me vi a clamar, em sigilo e sem freios, pela palavra Primavera. Hoje, como já se notou, vieram as nuvens altas e o céu adensou o seu mistério, ontem ainda tão apolineamente deslumbrado. Ritmos da natureza. Ritmos dos blogues.
Optimismos

A crença de que vivemos no melhor dos mundos é uma crença plausível apenas e tão-só quando o homem não acredita que é ele que tem de facto o leme na mão (cf. Leibniz ou os Mu´tazilitas de Bássora do Séc. IX). Quando todos sabemos que, de certo modo, o tem, ou que, pelo menos, o partilha com diversíssimas circunstâncias, é normal que políticos e bispos, uns e outros investidos no altar que ainda sobra do dever, apareçam a prenunciar a certeza de um mundo ideal e melhor, ou mesmo a aconselhar o dissimulado fruto do optimismo. É a habitual vaga fática de início de ano, de Páscoa, de dez de Junho, de vinte e cinco de Abril, de Natal, de um de Novembro e de outras pontes que oscilam entre a comemoração festiva ou vazia e o milagre da multiplicação da função pública. Somos um povo em que alguns dos seus escritores ainda sonham com o funcionalismo subvencionado e em que o estado é o mais antigo deus paternal que foi um dia incumbido de tratar das azias colectivas, as dos árbitros, as dos penalties ungidos pelo óleo do santo espírito e todas, todas as outras, as mais importantes. Claro. Com um tal estado e uma tal teodiceia terrena e natural, não há pessimismo que resista. Nem mesmo quando a crise e a sensação de desistência generalizada são o dia a dia do nosso grotesco mas gostoso bacalhau à Gomes Sá.
Ainda a agenda

A chamada "agenda" (noticiosa, política, tanto faz) é um instrumento lexical recente. Serve para nos delimitar, com alguma precisão, as coisas em que devemos pensar e as coisas que devemos ouvir e ver (os chamados "conteúdos"). No fundo, a "agenda" resume-se a um conjunto de instruções que tende a edificar um mundo fechado sobre si próprio e que conteria em si todas as referências possíveis do nosso discorrer. Sem ter em conta que o complexo discorrer em que comunicamos (ou através do qual somos comunicados) é um vaivém muitíssimo mais irradiante e livre. Em tempo de rede, as tentativas de impedir a cultura do linque ilimitado são interessantes. Vendem-nos o fluxo e a indiferença e tendem a esquecer que a democracia é um habitat de indagação de todos os percursos possíveis. E o possível, repita-se e registe-se, não é apenas o construído, o dito, o agendado.
Só um apogeu trágico do hiper-terrorismo poderia, um dia, legitimar uma dada cultura da "agenda".
Inventários e mundos

O blogue Instapundit divulga hoje um contador que dá conta das vidas que todos os dias são poupadas no Iraque. É interessante ir e ver com os próprios olhos. Por trás da retórica que envolve o pós-guerra, sobretudo na Europa, há outros dados que poucos, de facto, relativam e colocam na agenda. Ou não é a "agenda" uma espécie de inventário que pretende soterrar os ilimitados inventários de que o mundo é feito?
Esplendores

Hoje começa de facto o ano de 2004. Para trás ficam N pontes e feriados, fivam N quadras luminosas e desmedidas bichas em pontes, para além das Janeiras, das cartas anónimas forçadas e das estatísticas rodoviárias da morte. É o nosso Iraque asfaltado e é, também, a nossa capacidade de baixar a productiveness até a níveis ínfimos durante uns bons dez a doze dias. Mas o sol brilha, esplendoroso. E concede aos portugueses aquela dose de alheamento e de inércia que se adequa na perfeição aos lazeres prolongados e à aparente doçura conventual. O pior é quando estala o verniz e o indígena se apanha ao volante.
E é nesse aquário de tubarões ensanguentados que então se descobre a outra face do esplendor mais rude, espertalhão, inventor de truques, egoísta, acaciano e mergulhador em águas muito pouco profundas. Infelizmente. Apesar de tudo é melhor ser português do que alemão.
Planeta vermelho



Estas imagens, enviadas hoje pelo Robô Spirit, convidam-nos a repensar o espaço além-global. Por outras palavras, quando ainda nos ocupamos em definir a hiper-realidade no nosso mundo bem como todas as suas consequências num quadro de fusão entre o homem e as máquinas do futuro (a nova antropologia cyborguizada), eis-nos, agora e aqui, a cair em nós e a trocar a velha fotografia pela simples paragem de imagens noutros globos e noutras coordernadas.
É a vitória red, marciana já se vê.

domingo, 4 de janeiro de 2004

sábado, 3 de janeiro de 2004

Pós-regionalização

A confusão já está lançada outra vez. Pequenos clientelismos, grandes pacovices paroquiais, imensas e tremendas crisálidas para protagonismos e novo-riquismos territoriais em torno das novas siglas: as C.U., as G.A.M. e as A.M.
Ser presidente de uma sigla destas é agora a tarefa de mil e um edis espalhados pela coluna dorsal do nosso luso jardim delico-doce e cheio de pequenas capitais a fervilharem de betão, canavial, centros comerciais, caminhos de cabras, telhados de zinco, vias verdes e pinheiros queimados na berma das estradas acidentadas. Para além dos estádios e das cartas anónimas, é verdade.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2004

Movida


Angel Rodrigo

Quando nada há a dizer, nesse preciso lugar de onde se avistam tantos outros lugares palavrosos, e subitamente surge uma sensação de vertigem e de algum fastio, que fazer senão desatar a dizer coisas, muitas delas seladas pelo nada a dizer, mas muitas delas, também, fugidias e luminosas como não era sequer de esperar?
É então que a face fica iluminada com o que exprime, é então que o silêncio fica cansado pelo que já não diz, é então que o não dito fica extasiado pela admiração com que a face entrevê o seu próprio jorro sem fim. É então que a vida mais se distancia da arte, sua filha movida a gôndola na gôndola que a faz movida. Será?
Declaração de Altino Juncal


Bela Lugosi como Conde Altino Juncal (substituição de imagem ofensiva)

Outras Provas: Exmº. Senhor Procurador-Geral Adjunto, sou íntimo do contínuo da EDP que é tio da cidadã YYY que, por sua vez, é amiga da porteira de um primo da vizinha de baixo do Bibi. Foi ela que ouviu dizer que, no dia 30 de Fevereiro de 2003, todos os delegados ao último congresso do PS estiveram num apartamento de duas assoalhadas em Belém com rapazinhos da Casa Pia. No entanto, o tio Raul que trabalha na EDP e foi ajudante de campo do Spínola, e eu próprio, camionista rijo e de bigode curdo que dou pela alcunha de Felino DJ, enquanto donos do respectivo apartamento, certificamos os factos expostos pela cidadã YYY em carta anónima que escapou, não se sabe como, ao apertadíssimo freio do segredo de justiça. Com todo o respeito, Altino Figueiredo Juncal.
E o ano novo a dar-lhe

Hoje dá para ler Molly Bloom na Bomba. O ano de quatro promete.
Cem anos de Madame Butterfly


Opera Bonn 2/11/97

Estreou há precisamente cem anos, no Scala de Milão, e viria a ser das mais vistas e ouvidas até hoje. No fundo, a história de Madame Butterfly é uma tragédia simples: aos quinze anos, uma gueixa encanta-se pelo tenente americano B.F. Pinkerton e fica à sua espera durante três anos, acabando por se suicidar quando descobre que ele tem outra mulher. Uma intriga ingénua e sobretudo pura em torno do tema da espera e do amor perfeito. Sem a amarra familiar de Julieta e sem a amarra dinástica de Castro. Pura e frágil como o seu rosto ofeliano. Uma perdição, afinal. Fica o registo.
Frase interessante

Paulo Cunha e Silva, o director do I.A. (ver post de baixo), diz uma coisa muito interessante na sua entrevista de hoje:

Cada vez mais a identidade dos países é uma identidade global. É muito negativo tentar encontrar uma especificidade na criação contemporânea portuguesa, é uma espécie de pós-nacionalismo. Não pretendo ser um pós-António Ferro. Na era global os países afirmam-se pela capacidade que têm em mostrar os seus protagonistas culturais, que não têm que ter uma identidade nacional.

Não posso estar mais de acordo.
Prometedor

Há uns anos, vivia eu ainda na Holanda, lembro-me de ler uma entrevista do António Variações onde a sua música se caracterizava como algo situado entre Braga e Nova Iorque. Eis que agora Paulo Cunha e Silva caracteriza o novíssimo Instituto das Artes (que dirige) como algo que "quer estar cada vez mais entre o Alentejo e Nova Iorque". Este espírito de fusão é, de facto, prometedor.
Ludwig

Até que a espessura da noite prolongou até aqui o eco da Apasionata (Allegro assai).

quinta-feira, 1 de janeiro de 2004

Ainda o Gender

No blogue Brothersjudd faz-se eco de uma visão à Gender e, por isso mesmo, redutora do Harry Potter. Não, não é centrada no feminismo; é-o, sim, na homossexualidade (do Harry Potter, imagine-se):

Michael Bronski, in the Boston Phoenix, connected the basic themes and language of Harry Potter to gay identity politics. He didn't argue that the fictional figure of Harry Potter is gay (though that's how the press played his remarkably nuanced argument), but that to present Harry as different, to express the complex dynamic of secrecy that separates the world of magic and the everyday world, Rowling couldn't avoid explicitly homosexual-laden words and themes.

E eu a pensar que o Gender (já) tinha os dias contados.
Notícias de Marte



Parece que a sonda Mars Express entrou na órbita polar do planeta vermelho. Eis um facto relevante do início do ano, tanto mais que Beagle 2 continua ainda sem dar sinais de si.
Quem é João A., segundo o JN de 1/1?

(sem comentários)

João A. (nome falso) é o autor das denúncias contra Ferro Rodrigues, Jaime Gama, Paulo Pedroso e outras personalidades da vida pública. É também o mesmo que o Tribunal da Relação já apelidou de inverosímil. Os desembargadores, que na altura apreciavam um recurso à prisão preventiva do ex-ministro socialista, entenderam que se tratava de algo sem qualquer consistência. Ignoraram-no, embora João Guerra o tivesse valorizado. Face às críticas demolidoras dos juízes da segunda instância, o magistrado do Ministério Público acabou por retirar o jovem da lista das testemunhas e optou por não incluir na acusação qualquer das situações que ele descrevia. Recorde-se ainda que João A. é a mesma testemunha que, aquando do rebentar do escândalo, assinou uma declaração no escritório de Adelino Granja, garantindo que apenas teria sido abusado por Jorge Ritto. Mais tarde, horas depois da detenção de Paulo Pedroso, disse, na TVI, que também tinha sido violado pelo deputado.

Sem comentários.