quinta-feira, 31 de julho de 2003

Se existe paraíso, ele não deve andar longe destes dias de quarenta graus centígrados em que, de noite, deambulo entre árvores solitárias, no meio da penumbra dos ramos e dos versos. O resto, para já, pouco mais interessa.

segunda-feira, 28 de julho de 2003

Em breve, irei começar as obras. Muitas obras. Obras por todo o lado. No meio do imenso estaleiro, sobra um quintal entre muros altos onde pairam quatro árvores, um poço e algum manjericão. Olhei ontem para o quintal e desse olhar resultaram estas poeiras finas:


Como percorrer os anos e descer
entre glicínias até ao quintal onde o silêncio
é o que já foi
há tanto tempo afinal percorrido ?

os frutos no chão tão imóveis quanto a graça
que imaginei para aquilo que havia de ser o quintal
uns anos depois

havias de percorrê-lo e irias com os mesmos olhos
com que as folhas sangram ao vento

pelos degraus que descemos sem dar por isso
no primeiro dia em que os descobrimos.

domingo, 27 de julho de 2003

avaliações em vez de avaliaçãos gralha gralhindo gralhando
Tempo sem névoa, avaliaçãos acabadas, asfalto liberto, uma flor por aparecer. Fica tudo por dizer.

sábado, 26 de julho de 2003

Na maior parte dos blogues que vou lendo, existe um desfasamento entre a ciberlógica que é, naturalmente, caracterizada pelo instantanismo e pelo efémero, e, por outro lado, um certo sentido nem sempre disfarçado de projecção na posteridade. Como se cada palavra escrita aqui, neste jogo-limite de aquários, tivesse o secreto condão de, amanhã, poder ser finalmente escutada e reconhecida. Então, este cibermomento em que o génio único ditava a suprema alegoria, entraria no reino da eternidade. Esta projecção angélica é claramente subliminar na linguagem da moda que, como se sabe, é instintiva, revivalista, propositadamente banal, silly mas bem, sucinta mas bué feculenta q.b., afirmativa e toscamente escultural. Como se fossem directores de jornalecos de província, no início do século XX, grande parte da rapaziada que dirige e alimenta os seus blogues ainda pensa em tornar-se no Hermes imortal. É evidente que existem mares e mares de excepções. Mas fora delas, tudo é igualmente honroso. Fecundo como as cornáceas.

sexta-feira, 25 de julho de 2003

Acabam com o Acontece sem terem sequer escrito uma carta, ou sem terem sequer telefonado ao Carlos Pinto Coelho. O Salazar despedia os seus com uma carta, geralmente um parágrafo gramaticalmente correcto e bastante sucinto. Hoje em dia, o visceral ministro de que não lembro agora o nome despede quem trabalha na RTP, há mais de um quarto de século, por interpostos figurões mudos e sem carácter, sem sequer recorrer à fineza e à transparência que era típica de Salazar. Um sintoma do estado em que o país navega. Com esta tirada de Silly Season, o governo e a sua administração demonstraram mesquinhez e evidenciaram um claro cariz persecutório. Não se faz. Se queriam acabar com o Acontece, estavam no seu direito, mas ao menos fossem dignos e tivessem espinha direita e fossem capaz de falar com o CPC. Um nojo.

quinta-feira, 24 de julho de 2003

Na literatura clássica, épica ou profética, abunda a dimensão onírica e visionária. Mas aí nunca se ouve falar de insónia. É partir do grande spleen moderno que o stress nocturno se torna em tema, em moda. Proust, Kafka e Pessoa são grandes apólogos do novo modo de moldar a ficcionalidade. Curioso, este facto. E hoje, vivemos na pós-insónia ? Pelo meu lado. hoje, sem dúvida. Recompus-me de insónias dos dias anteriores. Até o blogue sorri doutra maneira.

quarta-feira, 23 de julho de 2003

Insónias, textos que se colam ao outro lado onde não há texto, desejo de sono e os passos que se arrastam pela casa vazia. Noite imperturbável, grande ópera do sossego. Ramagens inquietas, céu parado, Verão adiado, sussurro de gatos sob os pneus dos automóveis. Surgem palavras e o que nelas é hiato, uma espécie de surpresa, de imprevisibilidade serena. O que vem ao ser é amigo, nuvens carregadas, estrelas quase adormecidas. Imenso o jogo dos contrastes que atravessa o olhar, quando é tempo de voltar a tentar o sono. Imagens a dançar com o outro lado onde não há imagens. Insónia, um reino de desejados, um limiar de cansaço. Mais uma vez.
portu galinho, sim pequena mercearia cheia de senhoras de idade aos gritos agudos. Cada uma mais encosta que a outra a querer prender a atenção do merceeiro. Às vezes é ver os blogues a falar uns dos outros e a curtirem uns com os outros, porque uns têm grandAs templates, porque os outros são rechonchudinhos nas palavras, outros porque se ofendem com o tom que o outro achou austero, outro ainda a citar sempre o mais abrupto, outro ainda e ainda a reivindicar que mil e um avejões o visitam porque o não sei quantos very known o citou. E o merceeiro com cara de caso e o caso com rosto oblongo; e a ajudante do merceeiro com ciber-varicela e a dona Felpina, à entrada, a mandar à m. o merceeiro que a trocou por outra. Tudo isto ao mesmo tempo e num único flash. Porque o instantanismo e o imediatismo é que estão na moda qb. Bué de template. Às vezes, esta blogosfera é uma chatice. Ou seja, muita corrente de ar que por aqui grassa não é coisa que caiba na paciência. Todos do mesmo círculo, todos do mesmo perímetro, tudo piKeno. Meu portu galinho. Crista aconchegada. Pim Pam Pum. Viriato.

terça-feira, 22 de julho de 2003

A alcatifa e o rombo. Ao longe, poeiras e umas letras. Vêem-se lâmpadas de feira e uns poemas revivalistas como arma de arremesso inteligente, mas de sabor a nada. Viro a página e o sol põe-se. Há gente a passar, um grande centro comercial, coisa imaterial com nariz à Concorde feito de um vidro espesso meio azulado. Quando me levantei, a alcatifa parecia um maremoto e ouviu-se Poum ! Vinha de baixo, da zona blogalizada, vinha desse magma de campeadores à solta, dessa matéria que não tem forma a não ser aquela que Cid, o aventuroso, herdou na sua solidão final. Um cais de anti-heróis. O rasgo dos ciberdeuses das máquinas de amanhã. Um fru-fru sem arrepio e sem norte. Uma cilada sem precipício. Cada nuvem no seu céu. Cada sorriso no seu rombo. E a alcatifa a dar-lhe, um fru-fru que vinha de cima e um Poum, POum que vinha de baixo. Ao longe, poeiras e letras, links, buganvílias, o ceú a arder e a palavra a ocupar o seu espaço quase inerte. Quando saí do centro comercial, virei à esquerda, depois à direita, e transformei-me na parte de dentro de uma bola de futebol. Era aí, afinal, que tudo se estava a passar. E está ainda.
Ao fim desta primeira e verde semana de blogue, fico sinceramente admirado com o mar de reacções, cruzamentos, travessias e esquinas que este humilde blogue respirou. Na rede é assim, o mais anónimo é o mais acompanhado. Para além de real e ficcional fica um único plano, aparentemente aberto, em que nada do que aparece remete para outro lugar meio oculto ou misterioso. Aqui o jogo não é um jogo exposto, é antes um jogo jogado. E se a opinião que surge na blogalização é uma opinião de "mainstream" - pelo que tenho lido, na sua maioria - diga-se que tenta contornar, pelo menos, o ensimesmamento que pulula nos nossos jornais diários e nos sacos pesados de fins-de-semana. Nem que fosse por isso, e pela expansão da subjectividade mais hilariante (que nem sempre se dá bem com o perfil quasi-institucional dos sites e com o que tende para o prefiguradamente correcto dos chats), já esta blogalização exponencial teria valido a pena.
O Corredor


Era silencioso
longo
e a cortina ao vento
paralisava os sentidos

ao fundo
havia um corrupio de pombos a revolver
a escrita com que se respirava
o ar profundo e fresco do poço

passavas em frente da cortina
bordada pelas viagens e aí permanecias
como se fosses uma deusa vestida de negro
a olhar para a crista das ondas

até que um dia a sétima vaga subiu pelo farol
e drenou a imagem com que te apagaste
na lembrança dessa paixão
que era a minha.
Não sei o que aconteceu ontem, mas depois de escrever umas linhas, os caracteres que surgiram no ciberespaço, sem mais nem menos, transformaram-se completamente. O que eram cedilhas, acentos agudos, ditongos com til, acentos graves, tudo, mas tudo, ficou desfigurado e reconfigurado. Mistérios da blogalização. Estou à espera da explicação que pedi a blogamigos.
Existe hoje, já há algum tempo, um acordo tácito entre os que vêem na arte uma religião e aqueles que fazem da arte um produto sobretudo interessante para o mercado. Para além desta dicotomia muito estriada fica muita coisa, quase tudo, por dizer e vir ao ser. Embora eu não tenha nada contra o mercado, enquanto instrumento, e muito menos, como é natural, contra a afirmação da arte na sua mais radical subjectividade, a verdade é que vejo nos descendentes da apologia da arte pela arte a adulação pelo génio que, no mundo antigo e teo-semióco, podia ser comparado ao estatuto do profeta. Ambos viviam de capacidades inatas e ambos eram receptáculo de uma mediação e inspiração superiores. Isso bastaria para uni-los. É Kant que, na Crítica da Faculdade do Juízo, atira para a modernidade a noção de génio que caracteriza, no seu tempo, como “talento (dom natural) que dá regra à arte” e como “faculdade produtiva inata do artista”. Esta naturalidade inata do artista é ainda definida com mais rigor, quando o autor afirma: “Génio é a inata disposição do ânimo (ingenium), pela qual a natureza dá a regra à arte”. Ressalta nesta definição uma contradição entre, por um lado, a presença de uma “regra”, a qual jamais pode determinar o que é, ou não, a arte; e, por outro lado, a ausência dessa mesma regra, sem a qual não se poderia considerar artístico o que o é. Para sair deste aparente círculo fechado, Kant atribui ao “Génio” três qualidades essenciais. Sigamo-las: “(o Génio) - 1) é um talento para produzir aquilo para o qual não se pode fornecer nenhuma regra determinada, e não uma disposição de habilidade para o que possa ser apreendido segundo qualquer regra; consequentemente que a originalidade tem que ser a sua primeira propriedade;” - 2) “os seus produtos têm que ser ao mesmo tempo modelos, isto é exemplares; por conseguinte eles próprios não surgiram por imitatação e, têm que servir a outros como padrão de medida ou regra de julgamento;” 3) “que ele próprio não pode descrever ou indicar cientificamente como realiza o seu produto, mas que, como natureza, fornece a regra; e por isso o próprio autor de um produto, que ele deve ao seu génio, não sabe como para isso as ideias se encontram nele e tão pouco tem em seu poder imaginá-las arbitrária ou planeadamente e comunicá-las a outros em tais prescriçõees, que as põem em condição de produzir produtos homogéneos”. Conclusão: Onde dantes havia deus, há agora natureza. Onde dantes havia profetas, há agora génios.
Isto não quer dizer que eu não defenda a existência da genialidade, mas acredito que ela é filha da forma, do resultado, do trabalho, da surpresa, do imponderável, do risco e jamais de uma substância abstracta, de um dom já dado, ou de uma redoma espiritual em que tudo estaria à partida resolvido por vias de uma inspiração dir-se-ia supra-natural. Aos agentes mais rígidos na crença do mercado como um fim, teleológicos como os antigos crentes no paraíso, a ideia da arte enquanto religião serve às mil maravilhas. Nada melhor, às vezes, do que uma rapaziada a vender por milhões de Euros uns pregos espetados na parede. É contra este facilitismo que não quer pensar - e criar não deve ser um álibi para negar o meta-discurso e acelerar a ignorância - que me bato. Aos defensores da arte como religião serve sempre bem a máxima, segundo a qual quem cria nada tem que explicar. Tal como sucedia com os ícones medievais que, dentro das catedrais, falavam por si na sua inefabilidade mais essencial, repetindo sempre a mesma narrativa (possível) do mundo. Adoro a arte e acho o mercado e a democracia esteios fundamentais da vida, mas acho que estou a ficar, como diziam os marxistas quando existiam, demasiado anti-materialista. Não é que, às vezes, não sinta, como um arrepio súbito, o contrário, ou quase, do que disse até aqui. Mas é essa multiplicidade que faz o ser do blogue, aquele que o enuncia e que, queira-se ou não, é uma pessoa. E, por isso mesmo, a sua indecibilidade, a sua procura, a sua dúvida persistente.

segunda-feira, 21 de julho de 2003

Não sei o que aconteceu. Mas neste mundo da blogalização tudo é possível. O texto publicado antes deste ficou ilegível. Mas porquê ? Fica a pergunta !
Existe hoje, e já há algum tempo, um acordo tácito entre os que vêem na arte uma religião e aqueles que fazem da arte um produto sobretudo interessante para o mercado. Para além desta dicotomia muito estriada fica muita coisa, quase tudo. Embora eu não tenha nada contra o mercado, enquanto instrumento, e muito menos, como é natural, contra a afirmação da arte na sua mais radical subjectividade, a verdade é que vejo nos descendentes da apologia da arte pela arte a adulação pelo génio que, no mundo antigo e teo-semiótico, podia ser comparado ao estatuto do profeta. Ambos viviam de capacidades inatas e ambos são receptáculo de uma mediação e inspiração superiores. Isso bastaria. É Kant que, na Crítica da Faculdade do Juízo, atira para a moidernidade a noção de génio que caracteriza como “talento (dom natural) que dá regra à arte� e como “faculdade produtiva inata do artista�. Esta naturalidade inata do artista é ainda definida com mais rigor, quando o autor afirma: “Génio é a inata disposição do ânimo (ingenium), pela qual a natureza dá a regra à arte� (211). Ressalta nesta definição uma contradição entre, por um lado, a presença de uma “regra�, a qual jamais pode determinar o que é, ou não, arte; e, por outro lado, a ausência dessa mesma regra, sem a qual não se poderia considerar artístico o que o é. Para sair deste aparente círculo fechado, Kant atribui ao “Génio� três qualidades essenciais. Sigamo-las: “(o Génio) - 1) é um talento para produzir aquilo para o qual não se pode fornecer nenhuma regra determinada, e não uma disposição de habilidade para o que possa ser apreendido segundo qualquer regra; consequentemente que a originalidade tem que ser a sua primeira propriedade; (...)� - 2) “os seus produtos têm que ser ao mesmo tempo modelos, isto é exemplares; por conseguinte eles próprios não surgiram por imitação e, têm que servir a outros como padrão de medida ou regra de julgamento; 3) que ele próprio não pode descrever ou indicar cientificamente como realiza o seu produto, mas que, como natureza, fornece a regra; e por isso o próprio autor de um produto, que ele deve ao seu génio, não sabe como para isso as ideias se encontram nele e tão pouco tem em seu poder imaginá-las arbitrária ou planeadamente e comunicá-las a outros em tais prescrições, que as põem em condição de produzir produtos homogéneos� (212). Onde dantes havia deus, há agora natureza. Onde dantes havia profetas, há agora génios.
Isto não quer dizer que eu não defenda a existência da genialidade, mas acredito que ela é filha da forma, do resultado, do trabalho, da surpresa, do imponderável, do risco e jamais de uam substância abstracta, de um dom já dado, de uma redoma espiritual em que tudo estaria à partida resolvido por vias de uma inspiração supra-natural. Aos agentes mais rígidos na crença do mercado como um fim, teleológicos como os antigos crentes no paraíso, a ideia da arte enquanto religião serve às mil maravilhas. Nada melhor às vezes do que uma rapaziada a vender por milhões de Euros uns pregos espetados na parede. É contra este facilitismo que não quer pensar - e criar não deve ser um álibi para negar o metadiscurso e acelerar a ignorância - que me bato. Aos defensores da arte como religião serve sempre bem a máxima, segundo a qual quem cria não tem que explicar. Tal como sucedia com os ícones medievais que, dentro das catedrais, falavam por si na sua inefabilidade mais essencial, repetindo sempre a mesma narrativa (possível) do mundo. Adoro a arte e acho o mercado e a democracia esteios fundamentais da vida, mas acho que estou a ficar, como diziam os marxistas quando existiam, demasiado anti-materialista. Não é que, às vezes, não sinta, como um arrepio súbito, o contrário do que disse até aqui. Mas essa multiplicidade é que faz o ser do blogue, aquele que o enuncia e que, queira-se ou não, é uma pessoa.

domingo, 20 de julho de 2003

Por desafio de um amigo, o Nuno Nabais, estive esta tarde a escrever o texto para a conferência de boas-vindas ao Seminário Internacional de Filosofia e Literatura - espaço e linguagem em Proust e Kafka (organizado pelo Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens da Universidade Nova de Lisboa, Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa e Centro de Estudos Pós-Metafísicos do Rio de Janeiro). O encontro abre em Évora e encerra em Lisboa. Por isso mesmo, tentei associar a morfologia evolutiva e variada de uma cidade - neste caso Évora, onde nasci - à teoria deleuzeana do rizoma. Pelo caminho, falei da Metamorfose e das práticas de desconstrução no modo como a espacialidade urbana se digladia com as memórias. O resultado foi engraçado. Irei ler o texto na próxima Quarta-feira, no salão nobre da CME. E, depois de ter entregue à Europa-América a minha encomenda do ano, o livro Estudos Semióticos - uma introdução, é este o meu último acto do lado académico, antes de férias. Quem ficou a perder com o investimento deste primeiro semestre foi a literatura que se limitou a uma pequena semana do passado Fevereiro. E com a aventura, mesmo pequena como foi, ficou mais um romance à espera de melhores dias. Talvez em Setembro, quem sabe.


Nem a palavra "reminiscente" existe, no Diiconáriop da Academia (onde, acredite-se, não constam as palavras "semiótica" e "semiologia" !), mas, seja como for, um nome é sempre um nome. Daí o "Miniscente": um facto que celebra a reminiscência, mas sem remissão entre dois tempos, o da memória involuntária e o actual. No Miniscente, fica tudo num só plano, aberto, plural, imediato, voraz, rugido, ver-se-á o quê mais. Avec le temps...
Se a "animalidade" pode ser uma designação generosa para os meninos urbanos que protestam contra as touradas, mas que gostam de hamburgers assim como de cãezinhos e gatinhos de marca nas lojas dos hipermercados, diga-se que a "humanidade" poderia ser uma designação não menos generosa para os animais que, um dia, desfilem a defender os direitos do bicho homem.

sábado, 19 de julho de 2003

Com que devaneia aquela pequeníssima multidão que subia a Fontes Pereira de Melo, ontem, em Lisboa ? Que ideia cristalina de defesa dos animais os perseguiria ? Que tipo de representação teriam recebido dos animais para tal contenda ?

sexta-feira, 18 de julho de 2003

Umberto Eco, nas epístolas que trocou com o Cardeal Carlo Maria Martinio, em In cosa crede chi non crede ? (1997) recorre a uma analogia entre a mediação tecnológica e a miragem do fim (a morte), acabando involuntariamente por ilustrar, de modo exemplar, a necessidade de suspender o próprio fim, como se este fosse uma espécie de permanente meta-relato (recorro à tradução francesa): "Aujourd´hui, l´univers électronique nous apprend que peuvent exister des séquences de messages se transférant d´un support à un autre sans perdre leur caractéristiques uniques, et semblant même survivre comme pur algorithme immatériel à l´instant où, abandonné par un support, ils ne se sont pas encore imprimés sur l´autre. Et qui sait si la mort, au lieu d´être implosion, n´est pas explosion et impression, quelque part, parmi les tourbillons de l´univers, du logiciel (que d´autres appellent âme)”. Esta impressão é porventura a impressão com que o relato do fim se desdobra, em conotações sucessivas, até, quem sabe, se transformar no mito da eternidade.

quinta-feira, 17 de julho de 2003

Em breve, irei aqui mostrar as cidades que invento há vinte anos.
E Zás, saiu-me o poema ao serão:



As luzes ao longe ciciavam
na memória dos muros
entre amores-perfeitos e o ressoar
dos passos com que regressavas
no fim do verão e havia chuva

lembro-me de passar folha a folha
o tempo a correr como se a sombra trouxesse
ao suor aqueles dias já mais curtos em que
falavas de bois deslumbrantes a cruzar a nora do quintal

havia silêncio ao fundo do corredor
e ciciavam luzes por sobre a maresia
enquanto olhávamos para a chuva
que nos tolhia a voz na respiração da alma

quem dera ao luar este amor
este rugido na falésia da memória

lembro-te enquanto caminho
ainda sem idade
na direcção dos plátanos despidos.
De novo, na sala de espera. Tarde de correcções de provas. Sol a tardar neste Verão por vir. Tenho na memória Verões de quarenta graus à sombra e essa memória meio esvaída parece-se com a longa história do paraíso. Mas, hoje, para dizer a verdade, estou tão longe disso que a metáfora da sala de espera se torna bem viva.


Discordo do que diz JPP hoje no Público. Geralmente concordo com ele em muitas coisas, mas desta vez não. Pensar o ciberespaço com
a mentalidade preservadora e musial que teve a sua origem no pós-Iluminismo moderno é colocar lado a lado o que não pode ser colocado lado a lado. As estruturas descentradas ou policentradas e rizomáticas como são as da rede contemporânea estabelecem uma relação com o par efémero - não efémero que é completamente diferente daquela relação que as redes centradas e delimitadas estabeleciam durante o alvor moderno, i.e., desde o final do século XVIII até às últimas décadas do século xx. Falar de memória e de arquivo em tempo de rede aberta, espontânea e descentrada não é o mesmo que falar de memória e arquivo no tempo em que a fotografia foi ao parlamento francês, ou no tempo em que o fotojornalismo invadiu os salões políticos da Alemanha entre guerras. É preciso rever o modo como os metadiscursos abordam o nosso tempo.

quarta-feira, 16 de julho de 2003

O meu regresso a Portugal, em 1990, marca uma nova etapa da minha vida e com ela surge o meu romance, Sempre Noiva. A virtude deste novo romance (que viria a ser publicado em 1996) não foi a de agarrar o mundo, o cosmos, ou a chamada divina proporção. A sua virtude terá antes sido a de tentar focalizar as minhas origens, Évora e o Alentejo mais concretamente, como um local ao qual já é possível voltar a dar toda a atenção poética e todo o carinho universalista, após a grande viagem. Em Sempre Noiva narra-se uma história cortada por um imenso tempo de gestação e onde a imaginação imaginante e a imaginação imaginada aparecem realmente divorciadas. Contudo, a força descritiva, o ímpeto da relação entre personagens, a poética da cidade e algum burlesco policial, à moda de Godart, fazem de Sempre Noiva um romance possível e, em parte, para ser justo, conseguido.
A meio da década de noventa, o essencial da minha escrita podia resumir-se em cinco pontos: a) emergência de personagens mutantes, errantes, "arealistas" (o termo é do neo-pragmático Rorty) e desenhados através do horizonte da dúvida; b) a paixão pelas cidades e pelas paisagens, não só enquanto armadura discursivo-descritiva, mas também enquanto agentes e motrizes da acção; c) a simultaneidade das instâncias narrativas, quer as da terceira e primeira pessoas, quer a da segunda pessoa; d) a transfiguração contrastante e expressionista dos ambientes, através da fusão entre o quotidiano e o fantástico, ou o maravilhoso; e) e, por fim, o apelo diria cosmopolita como traço geral temático e local de embarque para a demanda de destinos possíveis por parte dos personagens.
Na segunda metade do anos noventa, a minha escrita sofreu algumas mutações. Caracterizaria, hoje em dia, essas mutações em duas direcções: a) um novo fôlego narrativo que se viria a projectar no domínio de materiais literários, sobretudo no tratamento das vozes, mas também numa certa tendência em transformar a sintaxe e a engenharia dos romances num elemento decisivo; b) o pôr em marcha, ao nível do texto e das relações suscitadas pela diversidade e pela novidade do pensamento contemporâneo, de uma escrita ensaística que viria a interrogar o saber, o mundo e a actualidade, acabando por influenciar, ainda que de forma não imediatamente visível e directa, a própria literatura.
O ponto de viragem foi o ano de 1996, logo após a defesa do meu doutoramento, quando escrevi o romance A Falha (1998) e o ensaio Anjos e Meteoros. Escrevi A Falha em cerca de três semanas, no Setembro solar de 1996. Entendi subitamente, de rompante, o percurso de uma história simples e eficaz, em contraste com os labirintos de construção até então habituais. A relativa unidade e coerência das tensões, a dimensão dramática esclarecida, o controlo da espacialidade e dos diversos tempos e ritmos, a dicotomia dos registos e a ideia de situação-limite única como tema fizeram de A Falha uma metáfora atraente que superou a ideia do tempo presente, ou geracional. Para mim, o romance A Falha transformou-se num sinal do que é mais perene na condição humana, isto é, a sua falibilidade diante do edifício, imaginário ou físico, mais pretensamente acabado e defendido (a metáfora da catástrofe iminente de que o 11 de Setembro foi infelizmente acto real estaria, de certa forma, aqui, em germe puramente ficcional no que acaba por ser, afinal, um atributo das angústias e das espectativas do nosso tempo).
De qualquer forma, A Falha apenas existiu literariamente a sós durante quatro meses, isto é, entre o mês do seu lançamento (Maio de 1998) e um belo dia de Setembro, quando o realizador João Mário Grilo me propôs a sua adaptação ao cinema, ou a adaptação da leitura que fizera do meu romance ao cinema. Entre esse Outono de 1998 e o Verão de 2001, altura das rodagens, sucederam-se cerca de quarenta meses em que redigi, por ampliação, novas partes (analepses, encarnações de situações noutros contextos, reinvenções de personagens e criação de novos) do que já era a intriga de A Falha, para que a enunciação, agora cinematográfica, encontrasse as suas próprias e mais adequadas soluções. Foi um trabalho muito positivo, concordante e realizado sempre em persistente diálogo com o realizador.
As Saudades do Mundo, romance saído a público em 1999, retoma o tema da grande viagem e a invocação do cosmos sem fim. A tragédia que estivera ausente em A Falha, pelo menos em A Falha literária, recobre agora a parte final deste romance que pretendeu abraçar, em jeito de despedida ao olhar puramente histórico, ainda que glosado, a continuidade moderna do século XX e a sua panóplia de secretas e bem sonoras crises. Mais do que uma definição de saudade, enquanto desejo do que não pertence a este tempo (ou enquanto locus que não se enquadra em todos os lugares possíveis), As Saudades do Mundo são a imagem de uma lenta iniciação que vai desde a voz selvagem e marginal, intertextualizada na e pela voragem de Malcolm Lowry, ao sigilo da finisterra portuguesa e daí, ainda, às chamadas "Epístolas de Cláudia aos de Limoges", onde o Médio Oriente volta a ser um lugar visceral e profundamente metafórico no cruzamento de todas as origens e destinos.
Aparentemente mais sedentarizado na minha imaginação, escrevo, ainda na cauda do século passado, o romance O Trevo de Abel (2001). Faço-o a pensar e a sonhar com Lisboa. Já não era sem tempo para um país que tem como periferia e como centro esse umbilical e intempestivo epicentro do fado. Escapei como pude às referências pesadas, Cesário ou Pessoa, por exemplo, e tentei que a poética e o caminho da história emergissem do olhar, do vislumbramento e da memória imediata dos lugares. Depois da imensa luz de As Saudades do Mundo, eu estava agora em condições de lançar os braços a este romance, enunciado ao longo de uma noite em que as águas do Tejo apareciam, por mistério, a luzir e a reflectir a cor da tinta-da-china.
É o meu romance mais alquímico, ainda que não fosse porque um homem, o herói ou protagonista, se transforma em fogo e em luz no final. É, por outro lado, um tríptico que narra a história de um homem que involuntariamente vive três vidas, sem saber a razão para tal e sem poder traduzir sequer para si e para os outros qualquer conformidade mais razoável acerca desse seu quase fáustico dom. Apresentador de concursos televisivos e notável figura pública, chulo azarado e viajante sem rumo pelos mares do Oriente e, por fim, taxista reservado e comedido na vila velha de Belas, eis o triângulo que, depois de aberto, se fecha num desenlace imprevisível e próprio apenas dos nautas aventurosos. Devo afirmar que é dos (meus) romances que mais gosto. Talvez por isso, continuasse a escrever sem intervalo algum, logo que soaram os primeiros minutos do século XXI.
E foi assim que o quase antigo culto de Van Gogh (muitas, muitas vezes, em Amesterdão, ia para a sala envidraçada do museu homónimo e para as esplanadas dos seus jardins) e, por outro lado, um certo regresso aos ambientes revivalistas da cidade de Rembrandt me atiraram ao que já é, neste momento, o meu último romance, Máscaras de Amesterdão (2002). Trata-se de um livro estranho, porque recente, muito influenciado pelos processos de depoimento utilizados no argumento fílmico de A Falha (escrito, na sua maior parte, no ano de rodagem, em 2001) e desenvolvido numa lógica que une, outra vez, o falso policial (o que acontecera, com já se viu, em Sempre Noiva) com a história da heroína predestinada, ao contrário de No Princípio Era Veneza, apenas a pequenos e singelos feitos. Máscaras de Amesterdão narra, pois, uma história seca, crua, irónica, onde trair e amar se fundem como ouro sobre azul. É a primeira vez que regresso literariamente a uma das cidades onde vivi mais anos e, por isso mesmo, uma das minhas cidades do mundo. De autobiográfico, neste livro, deverei realçar a paisagem, o espaço e o encantamento transfigurado dos abismos da memória.
Ou não fosse esse o rosto, apeado já da máscara, que melhor define e persegue as vias de um romancista.
Passei a última semana no Hospital de Santa Maria, porque um familiar muito chegado aí foi operado. Nesses corredores brancos, interrompe-se a cadência normal e corrente do dia a dia. O tempo torna-se numa experiência que não irá decerto ter memória consistente e, por outro lado, nele emergem súbitas partilhas entre visitantes e doentes que criam a ideia de um interface onde tudo é possível. Há um lugar limite nesta atmosfera: o saber-se onde cada um está na sua relação com o destino de todos os outros: enfermeiras, médicos, doentes, auxiliares, técnicos, visitas repetitivas, passageiros múltiplos deste zepelim entre tempos e não-tempos. Corte, falha, intermezzo, ponte. Oxalá a minha Tia Carmo melhore.
Travessia


Durante séculos atravessou o deserto
atrás de um cometa

levava consigo
limões de Alexandria
e desvendou um dia a cor de jade
nos sonhos que tinha com o fantasma
de Delfos

conheceu itinerários e palmeiras adulteradas
muitas escondidas entre fios de prumo
e miragens
até que um dia ficou paralizado
a olhar para a via láctea

e na humidade e no pasmo do rosto
deixou de haver qualquer forma
a não ser o ínfimo traço que o véu desenhou
de um lado ao outro do horizonte

e foi então que viu o fruto
a desprender-se
e a cair
em sangue, enquanto ciciava
o amor da travessia
com olhos deslumbrados
luiscarmelo@oninet.pt

terça-feira, 15 de julho de 2003

Às vezes, na imediaticidade do blogue, aparecem gralhas. Caracóis esfacelados no meio da erva que se propaga sem ordem, sem perímetro, sem limite. É uma erva tão errante e selvagem quanto o nome que ela nunca procura.
Dantes, reivindicava-se com instantaneidade o paraíso final, fosse ele divino ou comunista. Hoje, a instantaneidade abandonou esse móbil antiquíssimo, escatológico ou ideológico, e passou a ser o próprio modo como, a par das novas máquinas, o homem supre a ainda nova carência de deus. Sem codificações rígidas do futuro e em estado de amnésia colectiva, a instantaneidade ocupou de vez o único estado existente e potencialmente livre: o presente.
De que falamos quando falamos com o outro, quando o veículo e a estrada que nos liga são imateriais ? Meta-discurso, dir-se-á. Falamos das llinguagens com que e de que somos falados. Se a política é, ou devia ser, o agir livre de todos, como entendê-la neste meta-discurso ?
15/07/2003

À espera de que a blogosfera seja como o saral. Um vasto mar de sal sem encontros. Pelo menos no início. Por isso mesmo o inicio sem aviso.