quinta-feira, 31 de maio de 2007

Pingue-pongue

NTC
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Desde que o Público foi renovado que, durante quatro dias da semana na última página, Helena Matos e Rui Tavares esgrimem um contraditório interessante, sintomaticamente designado "Pingue-pongue". De repente, Rui Tavares efectuou uma espécie de fuga para a frente ao sistema e decidiu - estará no seu direito - diagnosticar as carências de Lisboa (élections obligent). Helena Matos reagiu, pressentindo provavelmente algum esgotamento do frente a frente. Esta crise do sentido fez Rui Tavares, por sua vez, lucubrar - muito à moda blogosférica, diga-se - sobre a sua infinita liberdade pessoal: "Um texto de opinião assinado com o meu nome serve para eu escever sobre o que eu desejar...". Embora a pequena procissão acabe de sair do adro, não deixa de ser verdade que há dez anos, não é preciso mais, este tipo de trica (ou metatrica) não teria qualquer razão de ser nos media tradicionais. É o mundo da rede - a sua provisoriedade e o seu zapping interactivo - a pressionar a própria estrutura dos jornais. É esse o véu que aqui vejo suavemente a levantar-se. Irei, pois, seguir a promissora intriga.

quarta-feira, 30 de maio de 2007

Greve?

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Sempre pensei que uma greve geral fosse o culminar de episódios insanáveis, únicos e gravíssimos. Nada disso me parece hoje existir. É como um romance que salta das primeiras páginas, meio adormecidas, para um clímax sem grande sentido. Quem mobiliza uma greve como esta recorre a um conceito singular de "trabalhador", uma espécie de auto-propriedade, e não entende que entre a imagem do "adquirido" e os modelos de estruturação das sociedades actuais existe um fosso imenso por preencher (e é o preenchimento desse fosso que devia ser a real preocupação dos sindicatos). Toda a gente sabe há muito que o rei vai nu: em alguns casos, há trinta anos que os mesmos maduros dirigem os sindicatos sem qualquer relação com o mundo efectivo do trabalho. Como ontem escrevia, estamos perante uma terapia dos direitos. Qualquer pessoa civilizada saberá defendê-los, apesar das aberrações e das manobras partidárias. Agora, repito, tal como acontece a imensa gente bloqueada pelos transportes de modo arbitrário, também a mim este dia me calha muitíssimo mal por razões óbvias: as do trabalho, mais precisamente.

Escavações Contemporâneas - 19


LC
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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: Viriato Soromenho Marques)
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Tempos e Clima (28/10/1999)
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Está a decorrer em Bona uma nova Cimeira sobre Clima.
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Em causa estão, mais uma vez, as ameaças colocadas pelo nosso modelo de civilização industrial e tecnocientífico, às próprias possibilidades de sobrevivência da humanidade, em condições de dignidade e qualidade mínimas, num horizonte histórico de longa duração.
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Há muitos elementos contraditórios e até patéticos neste tipo de reuniões, que se têm generalizado nas últimas duas décadas. Porém, não é todos os dias que centenas de pessoas -- desde burocratas da administração pública, passando por cientistas de reconhecido mérito, até representantes de organizações não governamentais ambientais, e de grupos de pressão ligados a sectores empresariais -- se reúnem em salas confortáveis para analisar relatórios científicos que apontam cenários de cataclismo cerrado, estendendo-se para além do ano 2100!
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No passado, o futuro pertencia a Deus e aos seus profetas, geralmente andrajosos e descalços. Hoje, o futuro sai em transparências coloridas de terminais informáticos, como resultado de simulações matemáticas de extrema complexidade.
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Contudo, o aspecto mais incómodo em todas estas grandes cimeiras, dedicadas ao candente problema das alterações climáticas, é a suspeita radical que nos assalta quando nos interrogamos sobre a questão chave da sua eficácia prática: será que daqui poderão sair resultados tangíveis e convincentes?
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As dúvidas e as proposições dos cépticos nesta matéria têm a seu favor um argumento muito importante: no dossier sobre o clima a assimetria, a clivagem entre o tempo da natureza e o tempo político atingem o seu limite extremo.
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Todos sabemos que em democracia o tempo político se mede por grandezas temporais que não ultrapassam um dígito, enquanto que a Natureza se avalia em décadas, séculos e milénios.
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As alterações climáticas, muito mais do que, por exemplo, a questão da depleção da camada de ozono, colidem generalizadamente com o nosso modo de vida quotidiano. Com o modo como moramos, como nos transportamos, como nos alimentamos, como nos divertimos, como trabalhamos...Para evitar que os nossos filhos e netos venham a habitar num planeta mais degradado e com menos opções para o exercício da sua liberdade precisaríamos de líderes políticos com visão estratégica e cidadãos corajosamente empenhados na vida pública. Precisaríamos de políticos e eleitores menos egoístas, com uma noção mais ecológica e menos economicista do tempo. Precisaríamos de uma concepção da vida que fosse estratégica e solidária, e não imediatista e hedonista.
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Qual será a direcção política que abdicará dos seus 4 anos de mandato para pensar nos interesses dos eleitores que ainda não nasceram? Qual será o cidadão que se importará autenticamente com a desgraça do seu próximo, exilado, contudo, na linha do futuro, que o egoísmo torna opaca e invisível?
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Quem será capaz de quebrar a lei de bronze do tempo político, que em Bona centenas de pequenos actores se limitam a afagar?
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Quintas - Bragança de Miranda
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)

terça-feira, 29 de maio de 2007

A sociologia da barricada

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A chamada "Greve geral", termo lírico de evocação eisensteiniana, tem reatado com ênfase a categoria "trabalhadores", como se no nosso mundo existissem, separados por uma barricada irremissível, uns humilhados que "trabalhassem" (todos representados pelo sociólogo Carvalho da Silva) e uns seres monstruosos que nunca em tal terão pensado, porventura herdeiros da famosa caricatura do charuto e do chapéu de coco. Alheio a este tipo de neurose histórica que crê na liturgia das multidões enfurecidas, o país reage geralmente com algum humor. É a chamada terapia dos direitos. Serei o primeiro a defendê-los, como é natural, embora saiba que o dia me calhe muitíssimo mal por razões óbvias: as do trabalho, mais precisamente.

Escavações Contemporâneas - 18


LC
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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: Fernando Ilharco)
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A Dissuasão da Informação (II -21 de Julho de 1997)
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As bases de dados, o multimédia, os satélites e as modernas telecomunicações estão a fazer da mass customization o terreno natural da competição. A capacidade de manipular uma imensidão de dados pode proporcionar conhecer os outros – inimigos, competidores, clientes, partners, etc. – melhor do que eles mesmo se conhecem a si próprios. O fim da guerra na Bósnia ilustra também este ponto. Os acordos de Dayton foram assinados porque os EUA demonstraram possuir uma superior capacidade de informação, nunca antes exibida por qualquer das partes – mapas do terreno a três dimensões, em realidade virtual, e a capacidade de mediante satélites e radares monitorizar detalhadamente e com precisão o cumprimento dos acordos. E, claro, a capacidade de colocar um míssil em qualquer parte do planeta qualquer instante.
A informação é a matéria-prima da estratégia. "Na sua essência, a estratégia não pode ser melhor do que a informação na qual é baseada", refere Jan Herring, ex-CIA, actual director da consultora "Futures Group" ("The Role of Intelligence in Formulating Strategy", "Journal of Business Strategy", 1994) . A guerra do Golfo em 1990 e a estratégia da operação Tempestade no Deserto são um exemplo para tornar claros os conceitos em causa. O general Schwarzkopf, para formular a sua estratégia e desenvolver o seu plano de batalha, dependia em grau elevado de informação sobre as forças armadas iraquianas – número e capacidade das armas e a sua disposição no terreno, etc. Uma vez iniciada a campanha, o general norte-americano passou a necessitar de informação em tempo-real sobre a resposta das forças inimigas, a fim de melhor ajustar a implementação dos seus planos. Por outro lado, Schwarzkopf criou propositadamente uma percepção, diferente da realidade na mente dos militares iraquianos, revelando-lhes o tipo de informação que ele – Schwarzkopf – queria que eles soubessem.
A Guerra do Golfo demonstrou um desequilibro de forças brutal. Mas essa desigualdade não estava nos homens, nos aviões, nos tanques ou nos mísseis. Tradicionalmente os EUA estariam em desvantagem. Como disse repetidamente Saddam, "não são de cá; são menos; e estão a atacar". De facto a grande vantagem dos americanos estava, como está, no próprio território dos EUA. Foi a partir de uma "cauda de tecnologia" que se espalhou por toda a América que a guerra do Golfo foi combatida.
A eficácia da estratégia está directamente relacionada com o grau de integração e a prontidão da informação disponível. "Isto é o sonho de um oficial de combate!", comentou um coronel dos Marines dos EUA, em Dezembro passado quando em exercícios na... Bolsa de mercadorias de Nova York ("Herald Tribune", 96/12/17).
Os novos guerreiros estão a ser criados nos sillicon valleys, nos campus universitários, onde intencionalmente se misturam escolas de tecnologia, de politica, de economia e de engenharia, nas redes planetárias de informação e nas garagens de start-ups da nova revolução, nos centros de investigação para o conhecimento das empresas globais, etc. Mas as surpresas não vão abandonar o futuro. A não-linearidade pode gerar todo o tipo mundo e o contrário. "Quanto mais conhecimento-intensivo são as acções militares, menos lineares de tornam; mais um pequeno input num lado qualquer pode neutralizar um enorme investimento" (Toffler, "Wired", Maio 92). "Demasiados especialistas vêm que nós (os EUA) estamos a ganhar! Mas eles utilizam as ferramentas da linearidade e o mundo actual não é linear. Aqueles que vão competir contra nós irão procurar meios assimétricos. Terão outro enquadramento do mundo" (Van Riper).
Toffler acrescenta, no texto que estamos a citar, que as actuais estruturas politicas e morais vão desaparecer. "Não há nada por mais remoto que seja que nos possa preparar para enfrentar exércitos equipados com armas de engenharia genética. Vai ser um mundo estranho". "É um mundo estranho", foram as palavras finais de Margaret Tatcher na última reunião a que presidiu do Governo inglês.
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Quintas - Bragança de Miranda
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)

segunda-feira, 28 de maio de 2007

A Chave do Dia - 10


JMR
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Quando as ideologias apareceram, o método foi simples: tirar a pele a toda a história humana e declarar que agora é que ia ser a sério. No entanto, não deixou de ser curioso como os tempos modernos se nos foram antes apresentando através da diversidade, do contraditório e da diferença. Actualmente, uma coisa chamada "consenso" está a transformar-se numa bactéria infecciosa cujo contágio é simples: acabar com a polémica ilimitada e propor um sorriso comedido que tudo e todos acabem por levar a sério. É assim o consenso, a nova ideologia que se dá, muitas vezes, a ares patológicos. Já tinham reparado?
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Recebi entretanto a seguinte resposta:
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"Em resposta à sua pergunta (1) e socorrendo-me do conceito de “novos guerreiros” do F Ilharco (ver post de cima - 2), diria que já tinha reparado que caminhamos para consensos nesta tão ‘pouca’ Europa; diria ainda que, para (tentar) perceber as contradições da democracia, parece-me necessário acedermos ao canal de notícias Globovisión - www.globovision.com - entrar na secção de "señal en vivo" + "señal gratis" e observar como, hoje, se fintam (?) ditaduras.
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(1) L Carmelo - “Quando as ideologias apareceram, o método foi simples: tirar a pele a toda a história humana e declarar que agora é que ia ser a sério. No entanto, não deixou de ser curioso como os tempos modernos se nos foram antes apresentando através da diversidade, do contraditório e da diferença. Actualmente, uma coisa chamada "consenso" está a transformar-se numa bactéria infecciosa cujo contágio é simples: acabar com a polémica ilimitada e propor um sorriso comedido que tudo e todos acabem por levar a sério. É assim o consenso, a nova ideologia que se dá, muitas vezes, a ares patológicos. Já tinham reparado?”
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(2) F Ilharco - “Os novos guerreiros estão a ser criados nos sillicon valleys, nos campus universitários, onde intencionalmente se misturam escolas de tecnologia, de politica, de economia e de engenharia, nas redes planetárias de informação e nas garagens de start-ups da nova revolução, nos centros de investigação para o conhecimento das empresas globais, etc.”
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Lembranças, MJE.

Pré-publicações - 31


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Isabel Freire, Fantasias Eróticas - Segredos das Mulheres Portuguesas, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2007 (Maio).
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Pré-publicação:
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"Nas últimas três décadas houve uma grande diferença de apresentação dos problemas nas consultas de sexologia. No início da minha prática clínica, apareciam mulheres movidas pela curiosidade de perceberem vivências de prazer que não tinham, mas que queriam experimentar, “pelo menos uma vez na vida”. Em certos casos era muito difícil a intervenção em termos de casal, pois elas fingiam sistematicamente o orgasmo. Hoje em dia não. Se as mulheres fingem, fazem-no ocasionalmente, para não terem problemas, porque os companheiros são frágeis, ficam ansiosos, inquietos e é uma maneira de resolver o que às vezes poderia tornar-se um problema.
Há 30 anos era frequente aparecerem mulheres com problemas de desejo ou de falta de sensibilidade, mas que faziam questão de honra em dizer que nunca se negavam. Além disso, muitas vezes nas entrelinhas percebia-se uma conflitualidade moral (quando começavam a sentir-se excitadas, entravam em conflito com elas próprias e bloqueavam o prazer). Actualmente as mulheres têm relações sexuais quando lhes apetece e se não lhes apetece recusam-se. São mais donas do seu corpo e do seu prazer», explica Francisco Allen Gomes.
Se as três fantasias que abrem o primeiro capítulo deste livro fossem figuras de estilo, seriam metáforas de emancipação sexual. No grande ecrã, já foram excelentes planos, na literatura, arrebatadas descrições e diálogos:
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– A menina inocente e virgem, que alguém mais velho e experiente (homem ou mulher) inicia sexualmente, de forma gentil e sedutora, mas sem margem para renúncia;
– A procura do «sexo pelo sexo» com um prostituto, sem laços nem afectos, e portanto fora da esfera do «sagrado matrimónio» ou do compromisso estável;
– O prazer sexual na igreja, diante dos olhos de Deus, como recusa da ideia de pecado e da concepção reprodutiva do sexo
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A imaginação erótica destas mulheres recria portanto actos transgressores do ponto de vista cultural, social, religioso, todos eles passíveis de condenação (abuso sexual, profanação de local de culto e prostituição). O «mal» sobrepõe-se ao «bem», o prazer alimenta-se do crime, proibição e pecado.
Nas três fantasias, o parceiro é por norma desconhecido e o relacionamento fugaz, sem consequência nem compromisso. Estamos fora do plano emotivo, romântico, e os principais ingredientes do prazer erótico são a liberdade, ousadia, interdição e risco."
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

domingo, 27 de maio de 2007

A Chave do Dia - 9


JMR
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É curioso como a raiz de "migrar" adaptou a velha divisa mágica - "migração de almas" - para o novo cibercontexto - "migrar um computador para outro". As coisas serão parecidas, talvez meio ensombradas e é evidente que invadem a angústia do mortal como um catavento na alma do tornado. Passei anteontem por isso e estou agora na fase experimental de um novo teclado, de um novo visor, de uma nova caixa de ressonância, de tudo. Hoje em dia, passamos o tempo a aprender a andar. Às vezes, cansa. Outras vezes, não. Sobretudo quando, com toda a liberdade, viramos a cara ao monopólio. Neste caso, à PT. Quem me dera poder fazer o mesmo à EDP e a outros simulacros monopolistas que vegetam em Portugal como se fossem donos de cada poro da nossa pele.

sábado, 26 de maio de 2007

O Triunfo do Design

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Através do design, as passagens e os habitats urbanos (privados ou públicos) são cada vez mais preenchidos pelo espelho confortado do nosso corpo. É assim que, quase por sortilégio, a nossa confidência se está a reencontrar consigo própria. A satisfação, o usufruto e a paixão estão a fixar-se na cultura material que nos envolve como um segundo ar, tão sintético quanto espiritual. Há uma ergonomia nova que está, a pouco e pouco, a levar o nosso corpo para fora de si. Há um novo deus em cena a escrever direito por linhas muito subtís.
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Texto completo: "Triunfo do Design - III" no Expresso Online a partir da próxima Quinta-feira (ver crónicas anteriores desta série aqui).

Escavações Contemporâneas - 17


LC

O sorriso do arquivo no tempo da rede

(hoje: António Quadros - Org. António M. Ferro)

"As caravelas já não partem deslumbradas a desvelar o Cabo. Não. O tempo é outro. Mas os pescadores portugueses continuam na praia a fixar com olhos estáticos o mar infindável e a viver e a lutar e a sofrer e a morrer o destino do mar. E na imaginação das crianças e dos adolescentes, no inconsciente dos adultos frustrados numa fixação à terra que lhes parece injusta e odiosa, a ideia da aventura, da viagem, do descobrimento palpita como uma promessa e como uma fascinação."

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António Quadros, «A Existência literária»

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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Quintas - Bragança de Miranda
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)

sexta-feira, 25 de maio de 2007

Blogues e Meteoros - 32

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(Crónica publicada desde ontem no Expresso Online)
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O Triunfo do Design - II
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A presença do design na nossa vida está a tornar-se na consecução da última utopia do século passado: fazer do presente um território habitável.
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E o facto é que hoje vivemos definitivamente afastados do tempo em que tudo se investia a pensar num futuro perfeito, mas sempre adiado. Ou seja: hoje vivemos sobretudo imersos na quadratura infinita da rede e num limbo aberto onde confluem, cada vez mais, o público e o privado, a ficção e o real, o excesso de informação e o delírio global (é assim nos reality shows, nos media, nas metáforas políticas ou na publicidade). E tudo nos chega alinhado, recortado e enunciado pela mão (às vezes paradoxalmente invisível) do design: os jornais que lemos, os passeios que atravessamos, os sites que visitamos, os copos por onde bebemos, as viaturas que guiamos, as camisas que vestimos, os telemóveis onde segredamos, as torneiras que abrimos, os ciberjogos que sonhamos ou as janelas que fechamos.
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Nada parece, pois, escapar a um mundo de figuras e formas que, para além de garantir a eficácia e o bem-estar, também nos conta histórias ou efabula em voz baixa (como faziam os mitos da Antiguidade). Neste palco do dia a dia, o design deixou de ser apenas um revestimento: o que ele agora nos promete é o milagre da transformação do mundo físico envolvente numa imensa aura onde o nosso corpo acabará por rever-se, como nunca aconteceu em toda a história humana. É como se o design se estivesse a converter, diante de todos nós, no primeiro hardware que é, ao mesmo tempo, um puro e ilimitado software.
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O que antes, ao longo da recente história moderna e industrial, se limitava a ser uma simples companhia instrumental do presente, está hoje a constituir-se como um modo de o homem se cumprir, se realizar e, de algum modo, passe a alegoria, se salvar.
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Esta quase ritualização dos objectos culturais que nos ordenam a vida e o sentido – à partida apenas ferramentas práticas e funcionais – é menos uma novidade e mais um reencontro. Lembremo-nos, por exemplo, dos báculos que apareciam inscritos em monumentos megalíticos e que, no seu tempo, eram, indiferenciadamente, objectos de culto e objectos de elementar pastoreio. Esta mistura já há muito que nos povoava a memória, mas hoje volta a correr-nos no sangue de um outro modo. Possivelmente como um navio sem velas nem mastros que decidiu submeter-se a uma súbita e fascinante ordem dos ventos.
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O caos respira onde não há imagens que lhe dêem sentido. Quando se criam imagens, a voragem tranquiliza-se. Era assim com Heraclito, em Éfeso, e é assim hoje por todo o lado. Pela mão do design. A nova mão de Deus, depois de Maradona.
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P.S. — Na última crónica, anunciei uma visita guiada aos blogues que se dedicam ao design. Esse texto já está escrito, mas submeterei a sua publicação – e eventual desenvolvimento – à espontaneidade com que a presente série se for desenvolvendo.

Escavações Contemporâneas - 16


LC
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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: Paulo Tunhas)
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DEZ ANOS DEPOIS*
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Não é preciso ir muito longe. Aqui há dez anos atrás, a pequena e média intelectualidade, que tinha gostado das côdeas de poder pós-revolucionário, adorava Khomeiny, admirava Mao e a China comunista e achava horrível e disparatado que pelas almas daquelas gentes vivendo sob o Império russo passasse algo como um vago desejo de democracia. Mais: aqui há dez anos atrás a pequena e média intelectualidade achava Sá-Carneiro e Freitas do Amaral liminarmente fascistas e tinha pelo Dr. Mário Soares — como costuma ainda ter, pensando que não — um íntimo e profundo desprezo, muito parecido com aquele que as pessoas infelizes têm pelas felizes. Sob este ponto de vista é difícil de esquecer um artigo absolutamente fascinante do Prof. Eduardo Lourenço, publicado por volta de 1977, suponho, e recolhido num livro intitulado «O Complexo de Marx» (título, diga-se de passagem, eminentemente equívoco atendendo ao seu conteúdo), em que se dizia — é citado de cor porque há coisas inesquecíveis — que Mário Soares não poderia nunca ser o Salvador Allende português, não por falta de coragem física e moral, mas por falta de convicção socialista. Esta pequena maravilha, que merece ser lida e relida para ilustração própria, era dita naquele tom superior, que o General Eanes divulgou na medida das suas possibilidades, de quem não duvida das suas convicções e lhes atribui o estatuto de predicado moral inefável. Uma esmerada colaboradora de uma revista recentemente publicada, e dirigida pelo Dr. Eduardo Lourenço, é de resto, a Dra. Edite Estrela. Ficam feitas as contas e fechado o círculo da convicção socialista.
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O que é sumamente misterioso nisto tudo, como de costume, é o tempo e o que se passa no tempo. A maioria absoluta das almas que juravam, esperançosas, por Khomeiny; para quem a China era uma espécie de Disneylândia revolucionária, paraíso terreal onde ambicionavam poder espraiar o seu indomável altruísmo; que achavam que as formas representativas da democracia burguesa eram uma solução pérfida e indecorosa para os polacos — como é que essas almas se dão com as imagens dos milhares e milhares e milhares de mortos do regime de Khomeiny e os episódios recentes com ele relacionados?; com os cinco mil mortos presumíveis em dia e meio de ocupação militar da praça Tiananmen; com os resultados das recentes eleições na Polónia, em que, o Solidariedade alcançou a totalidade dos lugares do Senado, exprimindo a vontade do povo através — deve-se sublinhar — do processo clássico das democracias «burguesas» e representativas? Como é que essas almas se dão com isso?
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A resposta, tão inacreditável que deve certamente revelar um grande segredo escondido nas profundidades do espírito humano, é: surpreendentemente bem. A boa-consciência dos pequenos e médios intelectuais de esquerda permanece intacta através dos tempos, sem possível ameaça de intranquilidade. Está tudo na linha da plácida descoberta de Vital Moreira sobre as dificuldades globais do marxismo-leninismo. Afinal estava tudo errado, mas a descoberta de um erro que é uma espécie de ilustração teórica do sangue de milhões — um erro a que Octavio Paz pôde um dia dar o nome de pecado — é vivida fora de qualquer tragédia e sem qualquer espécie de sensação de comprometimento pessoal.
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Porque é que isto é assim? Eliminada a hipótese improvável de tal se dever a um extraordinário poder civilizacional do Prof. Cavaco Silva, que teria baptizado os portugueses na água da democracia, limpando as suas almas de qualquer mácula, resta uma outra solução, não particularmente agradável mas substancialmente mais verosímil: é a de que os pequenos e médios intelectuais de esquerda não pensam, e, portanto, não podem viver como tragédia humana os seus pensamentos. Não estão ligados a eles e não se sentem por eles culpados. Os adeptos do comprometimento são do mais absoluto descomprometimento por relação às suas ideias.
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Isto manifesta-se nas mais comezinhas coisas. No outro dia, na televisão, Francisco Louçã, que a esquerda agraciou com uma misteriosa fama de inteligência e criatividade, inquirido sobre que Europa se deveria opor à Europa da actual CEE — quer dizer: respondendo à única pergunta realmente interessante que o jornalista (excepcionalmente benévolo, de resto) lhe poderia pôr — limitou-se a algumas tiradas de uma espantosa indigência sobre a solidariedade com os pacifistas das duas Alemanhas e com uns movimentos quaisquer de uns rapazes espanhóis. Por inacreditável que pareça, foi tudo. E este tudo, infelizmente, é simbólico da esquerda.
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*O Primeiro de Janeiro, 7 de Junho de 1989
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Quintas - Bragança de Miranda
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)

quinta-feira, 24 de maio de 2007

Nosferatu

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Um rosto boçal, um corpo melífluo se fosse anfíbio, as hastes com o tédio do marciano que agita as mãos anafadas e diz "jamais" en Français. Depois, prenuncia augúrios, suspira e diz que, a sul do Tejo, não há gente, nem escolas, nem cidades, nem hospitais, nem nada. Apenas cactos. Pior: apenas deserto. Pior ainda: apenas cancro e logo do pulmão. E se o homem fosse pentear macacos para Gibraltar?

Um aviso

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Hoje à noite, o meu computador principal vai migrar para um novo portátil. Além disso, o sistema de ligação à rede também vai mudar. A grande metamorfose deste final de semana poderá ter implicações - oxalá não! - na edição normal de rubricas e posts. Ficam as possíveis desculpas e fica sobretudo a confissão dos novos temores e tremores face ao abismo. De facto, esta máquina é, cada vez mais, parte da parte do nosso corpo.

quarta-feira, 23 de maio de 2007

A filosofia da filosofia

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Embora em muitíssimos aspectos eu esteja nos antípodas de Mehdi Belhaj Kacem, acho imensa piada ao facto de o autor escrever filosofia sem ser propriamente um filósofo (i.e., sem ter formação académica na matéria). E reforço o meu agrado pela simples razão de que Kacem faz disso carreira, obra e até manifesto. A questão é interessante: as epistemologias foram-se impondo nos últimos séculos como arenas de extrema especialização (as linguagens das ciências reinventaram-se de modo cirúrgico). Este processo de exclusões mútuas tornou-se num tabu inquestionável. As excepções aparecem raras vezes através da chamada "divulgação de qualidade" (Damásio é disso um exemplo fulgurante). Só a literatura e alguns derivados das chamadas ciências sociais e humanas (geralmente considerados como menores ou especulativos – entre as para-ciências "psi" e o espírito "xis" o caminho é fecundo) é que extravasam esta arrumação que uma unanimidade radical testemunha ao jeito das velhas moralidades. A filosofia aparece como um eixo muito singular que atravessa o caudal das excepções e a voragem metódica e tradicional do rigor. Por vezes, citar autores que os filósofos reivindicam como sendo apenas da filosofia é ainda uma heresia. Aproveitando a descontraída boleia de Kacem, pus-me a imaginar o que podia ser o meu tratado de filosofia. Fiz um esquema numa A4 dobrada ao meio e percebi, de imediato, os dez temas que o organizariam (começaria sempre, capítulo a capítulo, por destacar a questão postulada e a tese a defender): Instantaneidade e absoluto, Deus e terrorismo, Liberdade, Expressões e rede, Design e utopia, Topoi e media, Ilusão e Metailusão, Patologia do consenso, Esquerda/Direita/Vazio e Causas diáfanas contemporâneas.
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(a propósito do artigo de Alexandra Lucas Coelho sobre Kacem, ontem publicado no Público
: creio que uma boa transcrição fonética do Árabe, sem ser, portanto, a partir do Francês, daria "Mahdí" e não "Mehdi". Repito: creio eu...)

Pré-publicações - 30

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Diana Pimentel, Ver a Voz, Ler o Rosto – Uma polaróide de Herberto Helder, Campo das Letras, Porto, 2007.
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Pré-publicação:
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"(...) Retome-se o centro, recoloquem-se as questões, tal como formuladas por Herberto Helder: “O poema está então centrado em si mesmo? (…) Possui forças expansivas bastantes, façam-no sair dali” (Helder, “Poesia Toda”, A Phala, n.º 20, 1990: 4). Um dos modos – aquele que aqui ensaio – de comparticipar no idioma particular por que os textos de Helder se escrevem é o de deles me aproximar tal como se pudesse “descer aos abismos da génese da
linguagem” (Amaral, 1991). Questão de método, atente-se na prescrição relativa à organicidade que para os seus textos o autor defende: “mas ou [o] levam inteiro com o centro no centro e armado à volta como um corpo vivo ou não levam nada, nem um fragmento” (Helder, idem, ibidem). Concebe-se, portanto, o texto como um “corpo vivo”, orgânica e totalitariamente fundado na linguagem que lhe dá forma, espelho e reflexo do seu centro. Admitida a importância da posição autoral sobre a integridade do discurso, observe-se a lucidez do leitor crítico: “Esta poesia é vital, não posso compreendê-la por meros actos de dissecação” (Magalhães, 1989). E é no próprio centro do poema que se colocam as questões para as quais tento aqui ensaiar uma correspondência: “Onde estão o corpo e a vida dele e a sua integridade? Onde, a solidão para escutar a solidão daquela voz?” (Helder, idem, ibidem). Trata--se precisamente de concentrar a atenção na “integridade” e singularidade de tal “voz”, a partir do estudo do conceito de escrita em Photomaton & Vox [particularmente no texto (em volta de)]. Tento aqui experimentar a especularidade inerente à linguagem, seguindo a hipótese apresentada por Helder: “eis o espelho, o mágico objecto do conhecimento, o objecto activo da criação do rosto” (Helder, “Poesia Toda”, A Phala, n.º 20, 1990: 4)."
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

Escavações Contemporâneas - 15


LC
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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: Viriato Soromenho Maques)
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ROUBAR A ALMA*
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O véu da violência sexual tem muitas cores. Começa, lentamente, a ser destapado. Em Portugal e no resto do mundo. Da violência doméstica aos escândalos de pedofilia em instituições tão respeitáveis como a Igreja Católica norte-americana.
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Para onde quer que nos voltemos nesse arco-íris da ignomínia é difícil não sentir sempre asco e repugnância. O velho preconceito do «entre marido e mulher não metas tu a colher», quebrou-se, e o espectáculo da «paz familiar» esconde, muitas vezes, um cenário de prepotência e terror.
e
Mas o pior de tudo é o abuso sexual sobre crianças e adolescentes. Uma jovem, violada aos 17 anos, dizia para a televisão que duas semanas após a violação tentara o suicídio. Só depois dessa frustada tentativa fora capaz de denunciar o criminoso. Mas, um ano depois, confessava, com voz embargada, que todos os seus sonhos se tinham desfeito para sempre.
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Como se pode compensar alguém que aos 18 anos já não tem sonhos? Como se pode punir alguém que rouba a alma e a esperança a uma criança ou a um adolescente? O nosso Código Penal não é, certamente, o lugar onde encontraremos respostas para estas perguntas.
e
*19/04/02
e
Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Quintas - Bragança de Miranda
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)

terça-feira, 22 de maio de 2007

O Triunfo do Design - II

e
A série continua depois de amanhã no Expresso online. Deixo, para já, o brevíssimo destaque que a abrirá:
r
"O caos respira onde não há imagens que lhe dêem sentido. Quando se criam imagens, a voragem tranquiliza-se. Era assim com Heraclito, em Éfeso, e é assim hoje por todo o lado. Pela mão do design. A nova mão de Deus, depois de Maradona."

Roma?

e
Da janela vejo a mancha de ciprestes que remata Campo de Ourique do alto dos Prazeres. Mário Botas fixou-os como um bouquet meio selvagem que a cidade, talvez por galanteio trágico, teria herdado do mar. Monsanto, a Ajuda, as bancadas do Atlético, a Tapada e a Tapadinha, Belém, Porto Brandão, os silos da Tafaria, o Bugio, a iluminura final do estuário e a foz do Tejo completam a vista. É diante deste palco ventoso e húmido, sempre sobrevoado por Ícaros motorizados e pela maior das nostalgias solares, que penso no nada que tenho a dizer acerca do episódio de Roma que ontem vi na RTP2. A Cláudia bem perguntava há cinco dias: “Que será de Roma?”.

Escavações Contemporâneas - 14


LC
e
O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: Fernando Ilharco)

A Dissuasão da Informação (I) - 21/07/1997
e
O nuclear já tem sucessor. Para variar é a informação. Na politica internacional, a dissuasão baseada na capacidade de destruir os outros (nuclear) está a ser substituída pela capacidade de evitar que os outros nos destruam (informação).
Alvin Toffler avisa em várias das suas obras que "a forma como se faz a guerra reflecte a forma como se cria riqueza". Ou seja a tecnologia mais avançada de que cada grupo, região ou país dispõe é a utilizada para criar o futuro: gerar riqueza, manter o poder e elevar a dissuasão sobre os "diferentes".
A ameaça da recolha dos benefícios das novas tecnologias, e a capacidade para o fazer, ditou para já o fim de um império mundial: a União Soviética. A "guerra da estrelas" de Ronald Reagan foi o projecto que levou a URSS a assumir uma derrota estratégica. Na Islândia em Reyckiavick, em 1986, Gorbatchev despediu-se de Reagan dizendo "podia ter dito não". Era do projecto "guerra das estrelas" que estavam a falar. Esse projecto ilustra a nova natureza do poder e as características revolucionárias da nova tecnologia.
A "guerra das estrelas" visava tornar impossível a penetração de qualquer míssil no espaço aéreo dos EUA, um objectivo alcançado com tecnologias de informação. Um sistema de satélites, radares, etc. manteria em vigilância permanente os céus dos EUA, da URSS, e as respectivas bases de mísseis e mais umas quantas zonas criticas um pouco por todo o mundo. A tecnologia teria a capacidade de detectar todo e qualquer míssil que se dirigisse para os EUA, accionando automaticamente mecanismos de resposta (mísseis anti-misseis, "lasers" a partir do espaço, etc.). A ideia era boa e deitava por terra o pressuposto mais fundo da era nuclear: a doutrina da destruição mútua assegurada. Os EUA tinham competência e capacidade para a colocar em prática. A URSS não tinha.
Basta ver o que está a acontecer neste preciso momento no espaço. A América envia de Marte para a Internet as mais espantosas imagens sobre o planeta vermelho. No espaço, a MIR do ex-império vermelho está à beira de se tornar o tumulo dos seus cosmonautas, porque entre outras coisas, um deles "desligou a ficha errada e toda a nave ficou sem energia" !? ... Foram coisas como esta que desequilibraram o jogo. O decorrer do tempo faria – como fez – o resto.
O conceito e a capacidade mudaram o mundo. Este é ponto critico na utilização de toda a tecnologia. Mais do que o último grito da tecnologia, praticamente à disposição de todos, a derradeira vantagem está na forma como a utilizamos. Não se trata se uma questão de imaginação ou de inspiração, mas de transpiração, de treino, de inteligência e de tempo. O General Van Riper, dos Marines dos EUA, referiu em Abril passado num encontro do United States Institute for Peace, em Washington, que "o determinante é a importância dos conceitos subjacentes à tecnologia, bem como o contexto histórico e cultural em que a tecnologia é disponibilizada". Por exemplo "em 1939, todos tinham a tecnologia, mas os alemães tinham os conceitos. De facto, o exército alemão era mais pequeno do que a sua oposição, mas era dotado de superiores conceitos na utilização da tecnologia, o que lhes permitiu uma posição de superioridade". Atente-se na forma como os alemães organizaram o seu exército "à volta" do conceito do tanque (panzer), não se limitando a adicionar tanques ao anterior conceito de exército.
A Guerra do Golfo reflectiu de forma brutal o choque de duas civilizações tecnológicas. A dos modelos industriais, da quantidade, de massas e da força bruta (Iraque), e a dos modelos da nova tecnologia, da qualidade, do conhecimento, da precisão e do detalhe (EUA).
Pouco depois desse embate, o golpe pró-comunista na URSS falhou. E a informação esteve de novo no centro dos acontecimentos. A história é certamente muito longa e recheada de segredos, mas entre outras coisas é interessante referir uma conversa entre Peter Schwartz e Alvin Toffler, publicada na "Wired" há 4 anos. Referiu Schwartz: “Em 1987, em conversa com Vellakoff, conselheiro de Gorbatchev para a ciência, ele disse-me que a prioridade das prioridades era colocar o maior número possível de antenas de satélite por toda a União Soviética, para quando o "inevitável golpe" chegasse Moscovo não pudesse controlar o espectro radioeléctrico. Foi precisamente o que aconteceu. No dia do golpe, eles correram para a sede da televisão, mas já nada disso interessava. Toda a gente podia ter acesso à CNN!”
Em Belgrado, numa história cuja primeira parte terminou já este ano, sucedeu o mesmo. Como é possível manter uma manifestação anti-governamental, anti-militar, anti-policia na rua durante seis meses a fio? A resposta é esta: com a atenção da CNN e com a Internet! Ao fim de duas semanas de protestos nas ruas, Milosevic, que se recusava a aceitar os resultados das eleições locais, decidiu silenciar a rádio B92, que coordenava os manifestantes. Mas os B92s não se foram abaixo. Agarraram-se a um telefone (e na Jugoslávia há muitos ...), ligaram-se à Internet e continuaram a dizer o que queriam... para a Holanda! Aí, a BBC e a Voz da América reenviavam o sinal para a Sérvia. Melhor e mais barato! Tal é o lema da Mars Pathfinder e do século XXI!
Dos modelos político-económicos construídos sobre o pressuposto de que a informação relevante é difícil, morosa e cara de obter, estamos a passar modelos baseados no pressuposto inverso. Contudo o overload de informação exige estratégias complexas, capazes de cortar a direito na ambiguidade. "A questão decisiva quanto ao tipo e ao grau das ameaças, e a base da cooperação, é agora a capacidade de cortar a direito nessa ambiguidade" (Joseph Nye, Jr., William Owens, "America's Information Edge", "Foreign Affairs", Março/Abril, 96).
e
Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Quintas - Bragança de Miranda
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)

Mini-entrevistas/Série II – 150


LC
e
O Miniscente tem estado a publicar uma série de entrevistas acerca da blogosfera e dos seus impactos na vida específica dos próprios entrevistados. Hoje o convidado é Hélder Faustino Raimundo, 50 anos, professor no ensino superior (blogue Contrasenso)
r
- O que é que lhe diz a palavra "blogosfera"?
Já me disse coisas diferentes. Primeiro, uma surpresa de descoberta de um meio tão revolucionário quanto caótico. Depois, uma bola de neve de atracção e perigo relacional. Por fim, um instrumento complementar da informação e da comunicação. Um processo social como todos os outros, aliás.
- Qual foi o acontecimento (nacional ou internacional) que mais intensamente seguiu apenas através de blogues?
Na verdade nenhum, em exclusividade. Os blogues funcionaram umas vezes como catalisadores, outras como complementos ou alternativas aos acontecimentos. Mas, muitas vezes, marcaram-me a agenda de pensamento e a emissão de opiniões.
- Qual foi o maior impacto que os blogues tiveram na sua vida pessoal?
Apetece-me dizer que me impuseram um comportamento mais virtual com a realidade: muitas horas no teclado e no ecrã obrigaram-me a olhar o mundo em antecipação. Mas nunca me retiraram da "rua". Contudo, reconheço que, ao mesmo tempo, me dotaram de uma competência de resposta mais premente.
- Acredita que a blogosfera é uma forma de expressão editorialmente livre?
Se olhar o problema do ponto de vista da liberdade moral não posso acreditar. Muita gente já disse, por aqui, as peias e os estereótipos que nos manipulam. Mas o ponto é outro: comparativamente aos media tradicionais a expressão editorial é, de longe, muito mais livre. E essa liberdade irá impor-se sobre os outros meios e transformá-los, não tenho dúvidas.
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Entrevistas anteriores (apenas a Série II): Eduardo Pitta, Paulo Querido, Carlos Leone, Paulo Gorjão, Bruno Alves, José Bragança de Miranda, João Pereira Coutinho, José Pimentel Teixeira, Rititi, Rui Semblano, Altino Torres, José Pedro Pereira, Bruno Sena Martins, Paulo Pinto Mascarenhas, Tiago Barbosa Ribeiro, Ana Cláudia Vicente, Daniel Oliveira, Leandro Gejfinbein, Isabel Goulão, Lutz Bruckelmann, Jorge Melícias, Carlos Albino, Rodrigo Adão da Fonseca, Tiago Mendes, Nuno Miguel Guedes, Miguel Vale de Almeida, Pedro Magalhães, Eduardo Nogueira Pinto, Teresa Castro (Tati), Rogério Santos, Lauro António, Isabela, Luis Mourão, bloggers do Escola de Lavores, Bernardo Pires de Lima, Pedro Fonseca, Luís Novaes Tito e Carlos Manuel Castro, João Aldeia, João Paulo Meneses, Américo de Sousa, Carlota, João Morgado Fernandes, José Pacheco Pereira, Pedro Sette Câmara, Rui Bebiano, António Balbino Caldeira, Madalena Palma, Carla Quevedo, Pedro Lomba, Luís Miguel Dias, Leonel Vicente, José Manuel Fonseca, Patrícia Gomes da Silva, Carlos do Carmo Carapinha, Ricardo Gross, Maria do Rosário Fardilha, Mostrengo Adamastor, Sérgio Lavos, Batukada, Fernando Venâncio, Luís Aguiar-Conraria, Luís M. Jorge, Pitucha, Gabriel Silva, Masson, João Caetano Dias, Ana Luísa Silva, Ana Silva, Ana Clotilde Correia (aka Margot), Tomás Vasques, Ticcia Patrícia Antoniete, Maria João Eloy, André Azevedo Alves, Sílvia Chueire, André Moura e Cunha, Helder Bastos, José Bandeira, João Espinho, Henrique Raposo, Jorge Vaz Nande, João Melo, Diogo Vaz Pinto, Alice Morgado e Sérgio dos Santos, Adolfo Mesquita Nunes, João Paulo Sousa, Pedro Ludgero, João Tunes, Miguel Cardina, Paula Cordeiro, Edgar, André Azevedo Alves e Inês Amaral, David Luz, Saboteur, João Miguel Almeida, O Impensado, Hugo Neves da Silva, Paula Capaz, João Pinto e Castro, Sandra Ferrás, Alberto Lyra, Carlos Araújo Alves e Luís António Martins dos Santos.

segunda-feira, 21 de maio de 2007

A Chave do Dia - 8


JMR
e
Com os devidos parabéns aos vencedores da Liga, devo confessar que há sempre algo de contra natura quando o Benfica não é factualmente campeão. Sei que o é sempre, apesar desse “raw state – à l´état brut – bad, good or indifferent” de que falava Duchamp, a propósito das artes que não eram propriamente apanágio da “grande arte”. E o facto é que dormi bem, sem apitadelas na rua e com o humor razoavelmente iluminado pelo fio acastanhado de uma Boémia. Valeu a pena ir à Luz. A fé - essa espécie inconvertível - poderá compreender-se a partir do título singular que António Maria Lisboa consagrou num dos seus mais conhecidos livros: “Isso Ontem Único(1953).

Escavações Contemporâneas - 13


LC
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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: João Pereira Coutinho)
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Manual de conservação
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Não é fácil ser um conservador. Tem as suas vantagens: interessados em viver o presente, deixamos o passado e o futuro para reaccionários e revolucionários de todas as cores e idades. Isto proporciona uma certa diversão, como dizia Mr. Bennet à filha Elizabeth em momento de inusitada confissão: rimos dos nossos vizinhos até ao dia em que eles se riem de nós. Mas depois alguém pede um manual para conhecer o ideário e o pânico instala-se. É como o noivo que no momento sacramental se esqueceu das alianças em casa.
Um conservador não tem manual. E grande parte da sua atitude assenta, precisamente, no ataque a qualquer manual. Caricatura, eu sei. Também li o meu Burke. O meu Disraeli. O meu Oakeshott, o meu Scruton. E criaturas menores, como Quintin Hogg ou o lendário Duque de Cambridge, que era menos reaccionário do que o pintam e menos conservador do que eu gosto. Mas quando me encostam entre a espada e a parede, dou por mim a pensar alto. A pensar longe. A pensar caro. E se os diamantes são os melhores amigos das mulheres, os relógios Patek Philippe são os melhores amigos dos conservadores.
Uma questão de preço? Por favor, não sejam filistinos: o dinheiro não é conversa de cavalheiros. E as linhas clássicas do relógio não encerram a discussão: um conservador não é peça de museu, como Che Guevara ou qualquer lunático que se preze. Falo de outras linhas. As promocionais. Duas frases que resumem quilos e quilos de filosofia dispersa. «You never actually own a Patek Philippe. You merely take care of it for the next generation». Precisamente. Não somos donos de. Tomamos apenas conta para. E, na imagem que acompanha o produto, pai e filho jogam xadrez num banco de jardim. Xeque-mate!
E xeque-mate porque em duas frases está a essência do que somos e não tanto do que pensamos. Sim, é possível dissertar longamente sobre as vantagens da tradição, da hierarquia, da autoridade. Perante gente civilizada, é até possível mergulhar na sabedoria do «preconceito», entendido sem preconceitos como a velha gaveta onde procuramos a foto com o rosto esquecido, ou quase, que então relembramos para sossego da alma. Gratos, muito gratos. Mas um conservador não se faz nem se desfaz. Acontece. Dizem que é doença. Talvez seja: a doença própria de quem vive o mundo sem procurar destruí-lo ou reconstruí-lo com os caprichos próprios de uma criança.
Não ser dono do mundo implica não ser dono dos nossos semelhantes. Implica não os manipular ou arrasar de acordo com a nossa própria vontade. Só um selvagem desmonta um Patek Philippe para saber como ele funciona. A um conservador bastará saber que o relógio funciona. E quando houver atrasos de um minuto, ou dois, ou três, o conservador não vai buscar um martelo. Prefere mãos cuidadas e prudentes, que acertam o parafuso em falta. Ou nem isso: um conservador tenderá a aceitar a imperfeição das coisas e a adaptar-se pacificamente a elas. Um minuto a menos significa um minuto a mais: de tolerância e concessão. Às onze e cinquenta e nove da noite, saberemos, enfim, que um novo dia começou. Se o relógio diz o contrário, nós sabemos que ele diz o tempo certo. E está certo.
Talvez seja pessimismo a mais. Para um conservador, será sempre pessimismo a menos. Porque qualquer conservador viverá a vida com a certeza da sua própria morte. Não que essa promessa final se converta em desistência final. Pelo contrário: é a promessa final que valoriza os entretantos. Mas nunca demasiado. A vaidade humana será motivo de riso porque em cada gesto haverá sempre uma caveira. A arrogância humana será motivo de temor porque em cada gesto haverá também outra caveira. Neste caso, a nossa. A vossa. A dos que ficaram para trás.
Mas nós continuamos. Não que exista um mapa, uma rota, um porto determinado que orienta a nossa navegação. Existe apenas a certeza do barco e a necessidade de o manter a flutuar. É pouco? É o suficiente. Para que um dia as águas que hoje cruzamos possam ser experimentadas pelos viajantes que acabarão por chegar.
e
*Speakeasy
e
Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Quintas - Bragança de Miranda
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)

domingo, 20 de maio de 2007

A Chave do Dia - 7


JMR
e
Acabei por não comprar os três volumes de A Volta ao Mundo de Blasco Ibañez que vi na feira do livro (em segunda mão) das Amoreiras. O grafismo estimulava a descrição e a narrativa: uma mancha vermelha sobre a Europa e uma verde sobre a África, para além da amarelíssima Ásia. Chego a casa com uma sensação tão amarga quanto breve. Tanto que desejei aqueles livros e vim-me embora sem mais. Porquê?

sábado, 19 de maio de 2007

A Chave do Dia - 6


JMR
~e
Entrar na água como um peixe no centro da Terra. Abrir os músculos à memória do tempo. Todos os anos se repete este dia, mas raramente ele antecede o dia da libertação dos impostos. No ano em que o hemisfério balnear se antecipar ao fiscal, estaremos mal, muito mal. Não é ainda o caso. Estava a falar da piscina, não é verdade?

Escavações Contemporâneas - 12


LC
e
O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: António Quadros - António M. Ferro Org.)
e
O movimento no método pragmatista
e
(…) o pragmatismo é uma aquisição de povos jovens, mas de povos jovens interessados em cortar com um longo passado a que, vitalmente, precisam de voltar as costas. É o caso americano. O americano tem um passado europeu, mas é evidente que para se dedicar inteiramente à tarefa gigantesca de construir uma civilização no deserto, não podia retomar os conflitos ideológicos e os meandros escolásticos da Europa. (…) a palavra de ordem tinha de ser acção, acção acima de tudo.
e
(…) Assim, a filosofia americana, opõe ao dualismo cartesiano, o naturalismo evolucionista; à substância, o acontecimento; à eternidade, a temporalidade, à contemplação, a acção; à intuição, a significação, aos elementos, os conjuntos; ao passado, o futuro; ao sistema, o método; à filosofia da torre de marfim, a filosofia em equipa, à filosofia do pensador, a filosofia do cidadão; à moral pessimista da metafísica do Ser, a moral optimista da filosofia da acção.
(…) O tipo de movimento preconizado pelo activismo pragmatista americano surge-nos alegoricamente (…) como um caminhar em floresta insondável, de clareira em clareira, sem ideia ou noção do que estará para além da floresta, concentrando-se todas as energias em atingir a próxima clareira, ainda que tal processo possa levar a uma marcha em círculos.
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(…) a acção proposta(…) concentra-se na fabricação de objecto e exige como que uma coisificação(…) fora dos seus ambientes de trabalho, o espírito atrofia-se-lhes através de uma cultura vulgarizadora e medíocre. (…) afigura-se-nos que esta marcha é agora automática e procede por inércia; o seu crescimento é como o de uma bola de neve, rolando pela montanha abaixo. (…) Vive-se a folia do extrínseco, esquecem-se os preceitos do movimento do pensar.
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António Quadros, «O Movimento do Homem»
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Quintas - Bragança de Miranda
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados - António Quadros (org. António M. Ferro)

sexta-feira, 18 de maio de 2007

Blogues e Meteoros - 31

O Triunfo do Design - I
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(crónica publicada desde ontem no Expresso online)
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Quando no final dos anos setenta, e sobretudo a partir da década seguinte, se começou a falar em pós-moderno — e em “pós-tudo” —, percebeu-se que um ciclo histórico se estava a finar. A pouco e pouco tornou-se óbvio que, entre a amnésia colectiva gerada pelo excesso de informação e o fim dos futuros “de ouro”, apenas ia sobrando o presente. E foi justamente a urgência em dar um novo sentido ao presente que acabou por dominar o pensamento filosófico das últimas décadas. Mas não só. Essa urgência também encontrou o seu símbolo, a sua forma e a sua adequação por excelência: o design.
d
O design deixou, portanto, de ser um simples molde da nossa cultura, ou o recorte “ecléctico” dos objectos públicos e privados que nos rodeiam, para passar a ser um modo de ver e fruir o mundo que reúne, no dia a dia, a eficácia, o conforto e a estética. Ao longo de séculos, o homem sonhou com o paraíso. É verdade que não o encontrou nem no céu nem na terra, mas, em vez desse sonho muitas vezes trágico, acabaria por reunir numa experiência única aquilo que o realiza em termos práticos (eficácia e conforto) e aquilo que o cumpre num plano que ressacralizou o vazio deixado pelos deuses (a arte e a estética).
d
O design é, pois, um dos sortilégios maiores do nosso tempo.
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A emergência de novos materiais está a revolucionar a funcionalidade e a emoção globais. Estamo-nos todos a iniciar diariamente — sem tempo para pensar em impactos — numa nova galáxia onde abundam simulacros tácteis que podem ser fruídos com o corpo e com a percepção (cerâmicas flexíveis, espumas metálicas, condutores plásticos, emissores de luz capazes de memorizar as formas, fibras de carbono, etc.). Cada vez mais os produtos estão para além da forma e função para que terão sido imaginados. À liofilização alia-se, no nosso tempo, uma generalizada esteticização do mundo (o que antes comparecia dentro das rígidas paredes dos museus de arte contemporânea, comparece hoje no espaço que mundanamente se desenha à nossa volta).
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Esta redistribuição da eficácia, do prazer e da invenção ao nível do quotidiano não é coisa alheia aos blogues. Por natureza própria, a blogosfera está intimamente sintonizada com o novo imperativo que faz da actualidade uma gelatina apetecível, digerível, saborosa e (sobretudo) actualizável. Na nossa próxima crónica, faremos uma breve visita guiada à aliciante teia que une o universo dos blogues a essa aura com corpo chamada design.

A Chave do Dia - 5


JMR
e
Há uma parte da vida que não tem pudor da sua natureza inevitavelmente patológica: o histórico das cadernetas prediais, a enganosa dança dos spreads, as vozes do call center (que invadem a privacidade), a ausência de rede e, claro, o modo como os monopólios (PT, EDP…) se fazem sentir na primeira pessoa de cada um de nós. O que vale é que hoje o Boletim Meteorológico concorda em género e em número com a realidade.

Escavações Contemporâneas - 11


LC
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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: Paulo Tunhas)
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Usbek tinha razão*
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Em 1721, Montesquieu escrevia nas Lettres persanes: «O grande erro que cometem os jornalistas é o de falarem apenas dos livros novos; como se a verdade alguma vez fosse nova. Parece-me que, até que um homem tenha lido todos os livros antigos, não tem nenhuma razão para lhes preferir os novos.
e
«Mas, quando eles se impõem a lei de não falar senão das obras ainda quentes da forja, impõem-se uma outra, que é a de serem muito enfadonhos. Não se preocupam em criticar os livros de que fazem extractos, mesmo tendo alguma razão para isso; e, com efeito, qual é o homem suficientemente ousado para se criar dez ou doze inimigos todos os meses?»
e
Estas palavras são, como se diz, actuais, pelo menos no que diz respeito ao nosso excelente país: eis um caso em que a verdade não é, efectivamente, nova. Tirando algumas criaturas excepcionais, que fazem sinceros esforços para perceberem porque é que gostam ou porque é que não gostam daquilo de que falam, a maioria declina qualquer interesse nesse género de desporto. Não é certamente por modéstia relativamente às limitações do seu gosto; não é, porque aquilo aparece sempre num tom definitivo que não deixa margem para dúvidas. É só puramente genial, pronto, e a inteligência do reconhecimento do génio é opinião bastante. De resto, a inteligência mede-se pela rapidez no reconhecimento dos génios, e há gente que bate extraordinários recordes. Na década passada, por exemplo, houve a caça aos génios alemães e austríacos: tudo gente jovem mas suficientemente madura para permitir o prazer de ser reconhecida. Disseram-se deles coisas que nunca antes foram ditas de Fielding, Sterne ou Dickens. Foi uma boa década.
e
O problema, no fundo, é ecológico. Devia haver um limite, fixado por algum organismo competente, para o número de génios que cada jornalista literário poderia caçar por ano. Abrir-se-ia uma excepção para os génios existentes, digamos, até ao século dezoito (inclusive). Para estes, a autorização seria ilimitada. Mas para os recentes, as proibições seriam severas, com vista a protegê-los da ameaça da extinção. Cada jornalista literário teria direito a reconhecer apenas dois génios por ano, no caso de esses génios oscilarem entre os trinta e os cinquenta anos e terem publicado menos de cinco livros. A tolerância aumentaria (prudentemente) com a idade e o número de livros publicados. Assim, um génio de oitenta anos com aproximadamente quinze livros estaria praticamente ao alcance de todos os jornalistas literários médios. Claro que é preciso pensar em excepções. Os Drs. Prado Coelho e Mega Ferreira teriam direito a mais génios do que os outros. Compreende-se: são velhos caçadores e ensinaram muito. Um pouco arbitrariamente, talvez, seria de atribuir ao primeiro, por ano, um total de cinco génios frescos (quer dizer com apenas um livro, publicado menos de uma semana antes de ser referido); o segundo contaria também com o bónus de dois génios frescos. De qualquer modo, é um assunto a estudar.
e
Mas os problemas do jornalismo literário em Portugal não se resolvem apenas com medidas ecológicas. Porque a falta de respeito não se limita à caça ao génio e ao dever do enfado a que se referia Montesquieu. Há uma falta de respeito mais recente que provém de uma atitude aparentemente oposta, carinhosamente auto-baptizada de irreverência. O exercício da crítica, nesta perspectiva, consiste em procurar por todos os processos demonstrar que o que se critica é infinitamente menos interessante do que quem critica. No meu tempo, chamava-se pura e simplesmente má-educação.
e
E depois há a obrigação de ter graça, que é uma coisa muito misteriosa. À falta de respeito enfadonha opõe-se a falta de respeito pretensamente engraçada, e gasta-se imenso esforço nisso. Tanto num caso como no outro não se corre o risco verdadeiro de gostar ou de desgostar; e não se tem, certamente, graça. Porque a graça é, como toda a gente sabe, gratuita. E não sua. A crítica irreverente sua como o diabo. Tal com a crítica enfadonha, foge de todas as maneiras dessa coisa elementar de buscar razões e de as explicar. O medo de ser burro é a mais exemplar manifestação da incompreensão da arte e a graça não é filha da labuta.manifestação da incompreensão da arte e a graça não é filha da labuta. ee
Mas o que preocupava realmente Usbek, o persa que assinava em Paris a carta escrita por Montesquieu, não eram de facto as características do jornalismo literário parisiense do pincípio do século dezoito. O que o preocupava eram as notícias que os eunucos lhe enviavam sobre as ameaças da revolta no seu serralho. Guardadas as devidas proporções, eis uma verdade que também não é nova."
e
*O Primeiro de Janeiro, 16 de Maio de 1990
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Segundas - João Pereira Coutinho
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quinta-feira, 17 de maio de 2007

A Chave do Dia - 4


JMR
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Entro na sala onde decorrerá o lançamento do romance de Eduardo Pitta, Cidade Proibida. Estou a correr entre dois compromissos, ambos muitos distantes da sala da FNAC. A simpatia do anfitrião alivia-me o stress até que algo acontece. Subitamente, a Teresa do Sem Pénis nem Inveja está diante de mim: cumprimentamo-nos, sorrimos e alegamos cometas e posts recentes. Ao lado, surge um rosto familiar: decifro a 'figura' (semioticly speaking), mas não consigo, num lapso de tempo mínimo e razoável, efectuar o "link". Tant pire. Sei quem é, mas a memória não se abastece a tempo e com a devida eficácia. Tenho que evocar o adjectivo "despistado". Depois, a visada identifica-se e eu caio em desgraça até hoje. Fica aquela ideia de desatenção imperdoável, de negligência inexplicável: a culpa - que vem lá das terras semíticas - no seu melhor. Peço desculpa, mas já é tarde. Chama-se a isto pôr "a pata na poça", melhor: a pata a saborear o risível perverso dos fantasmas. Renovo, pois, as desculpas. E reato até a citação de Wilde que aparece em epígrafe no blogue da própria: "Uma pessoa deve ser pelo menos um pouco improvável". Lo soy, si. Excessivamente.

quarta-feira, 16 de maio de 2007

Vale tudo

e
Não sei o que terá dado aos editores do site da Sapo para terem escolhido esta fotografia de Mourinho (ou de quem quer que fosse) numa notícia. Um bocadinho de decência cívica não faria mal a ninguém. Mesmo quando o que está em causa é uma detenção, a polícia, um treinador conhecido e um cão. Ou seja: coisas que vendem.

Escavações Contemporâneas - 10


LC
e
O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: Viriato Soromenho Marques)
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A TRITURADORA
(19/03/20902) e
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"Passou quase despercebida a passagem de António Guterres pela sede de campanha do Partido Socialista, a meio da noite eleitoral, quando a derrota já era inevitável. Tratou-se de um acto de cortesia, de alguém que ao abandonar o Governo ditou o destino fatídico do seu próprio partido. Mas o que me surpreendeu foi o distanciamento em que a figura de Guterres aparece já envolta, embora ainda seja o nosso primeiro-ministro em exercício.
e
A política mudou radicalmente nas últimas duas décadas. Todos os partidos já entraram na era da ditadura da imagem. As campanhas partidárias em nada diferem do ‘marketing’ de qualquer produto. E como para qualquer produto, também o ciclo de vida dos políticos é cada vez mais curto.
e
Ao exigir aos líderes que sejam os símbolos das virtudes que escasseiam na pátria, os partidos tornaram-se em máquinas devoradoras de homens. Num gesto endeusam os chefes, no gesto seguinte sacodem-nos para o esquecimento.
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António Guterres é já uma sombra. Durão Barroso brilha agora sob as luzes da ribalta. Mas, mais à frente, trabalha, sem cessar, a trituradora, que o espera. A última palavra será sempre sua."
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Quintas - Bragança de Miranda
Sextas - Paulo Tunhas

terça-feira, 15 de maio de 2007

A Chave do Dia - 3


JMR
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Redescubro um prefácio que escrevi (para um livro meu que, provavelmente, nunca mais acabarei). Só posso dizer que é sobre humor, melhor: sobre metáforas que fazem rir e que aparecem disseminadas no meio de certa literatura de teor ensaístico. Voltei a rir-me e gostei do que li. O narcisismo é esta antropologia pessoal do "minúsculo" (sim, o "minúsculo" é uma excelente palavra - muito 'Miniscente' - que retive do produtivo almoço a três que teve hoje lugar na Petisqueira da Estrela).

Roma - 1

HBO
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A última voz do primeiro episódio foi a voz do fogo, mas antes fora a máscara da morte a dar-lhe o incipit. A mulher de Voreno e César fecharam deste modo trágico os ciclos (privado e público) que haviam organizado a primeira série de Roma. Agora, foi Octaviano quem definiu o destino, repondo a diplomacia marciana de Marco António ao seu serviço. Servília e Átia mantêm as cordas da grande barca que contracena com a galáxia dos deuses. Isto promete. Pergunto, portanto: desta feita, será que vamos reconstruir o nosso fórum semanal? Eu também prometo não falar excessivamente.

Escavações Contemporâneas - 9


LC
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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: Fernando Ilharco)
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Terrorismo Pós-Capitalista - II
(30 de Dezembro de 1996*)
e
"A violência extrema e a sua ameaça visando fragilizar, destruir ou chantagear os poderes instituídos está a tomar novas formas. O traço apolítico e o anonimato ganham terreno. Veja-se os casos do gás “sarin” em Tóquio, da bomba dos Jogos Olímpicos em Atlanta, do terror da bomba em Oklahoma, do atentado em Dahran, do avião da TWA 800 (?), etc. No Peru, os Tupac Amaru obedecem a um outro modelo: um misto de terrorismo e de guerrilha, sem alta tecnologia e com Kalashnikovs e reféns. Um modelo de riscos cada vez maiores e por isso de sucesso difícil nos países mais avançados.
Ao novo complexo anónimo-apolítico do terrorismo, os poderes conhecidos e os desconhecidos, os grandes e os pequenos, sentir-se-ão cada vez mais inclinados a adicionar a nova tecnologia, as televisões por satélite e a world wide web. Um agente dos serviços secretos dos EUA, não identificado, - citado por Walter Laqueur, director do CSIS (um think-tank americano), na "Foreign Affairs" de Outubro de 1996 - referiu que "com 1 bilião de dólares e 20 hackers bem treinados conseguia "desligar" os Estados Unidos da América". Laqueur comentava que "o que ele consegue fazer, também um terrorista pode fazê-lo".
A defesa, a polícia, os bancos, o comércio, os transportes e as telecomunicações, a ciência e uma enorme percentagem das actividades governamentais e privadas dependem das tecnologias electrónicas. Laqueur refere que se trata de áreas vitais das sociedades modernas que podem ser alvo de ataques isolados ou concertados de piratas informáticos ou de info-terroristas, deixando cidades ou países inteiros "sem funcionar". "Desligado" ou "sem funcionar" podem significar realidades distintas no dia a dia das populações. Têm no entanto um traço comum: o caos.
A infraestrutura da informação das sociedades avançadas, ou seja a sua riqueza, códigos e conhecimento, pode sintetizar-se em cinco grandes áreas: as redes telefónicas e informáticas governamentais, militares e de entidades públicas; as redes de telecomunicações comerciais e dos media; os sistemas de informação que regulam e gerem os transportes (trânsito automóvel, aviação, comboios); o sistema de informação financeiro; os sistemas que gerem a produção e a distribuição da energia.
Todos estes sistemas e se relacionam electronicamente numa gigantesca e complexa teia de dados e de símbolos, alicerçando o funcionamento das sociedades contemporâneas. O mau funcionamento de um sistema pode provocar reacções em cadeia imprevisíveis. "Se retirarmos uma componente de um destes sistemas, todos os outros serão imediatamente afectados. Se desligarmos partes de dois ou mais destes sistemas, veremos o inicio de uma catástrofe" (Winn Schartau "Information Warfare: Chaos on the Electronic Superhighway" na "Wired" de Setembro 96).
Os ciber-terroristas poderão desligar, apagar, sabotar ou confundir "software" que gere sistemas vitais para o funcionamento das sociedades avançadas. O terreno da batalha são as redes de comunicação, os satélites e os computadores. As armas são os vírus, a sabotagem da programação, a falsificação dos dados, as "bombas lógicas de software", as quais tornam ilógico tudo por onde passam gerando maus funcionamentos em cadeia. Dos erros de "software" para os acidentes "reais" e o pânico generalizado podem passar meia-dúzia de segundos.
O que aconteceria numa grande cidade se na hora de ponta todos os semáforos ficassem vermelhos? Ou verdes? Como reagiria um país se as contas bancárias de todos os seus cidadãos ficassem a zero? Ou crescessem 1000 vezes? O que faríamos se o multibanco nos passasse todas as notas que tinha em stock na sequência no nosso pedido para levantar cinco contos? E se os telefones todos de uma cidade começassem a tocar ao mesmo tempo e não parassem ? E se deixassem de tocar de vez?
São cenários para o que os especialistas da "information warfare" chamam as "guerras da 4ª geração", em que os adversários dos Estados serão grupos extremistas, cartéis da droga, organizações internacionais do crime, grupos revolucionários extremistas, fundamentalistas vários, loucos sem causa e muitos outros; “trata-se de inimigos sem um centro de gravidade militar identificável” (Bernard de Bressy, presidente da Athéna, França, "Le Monde", Setembro de 1996).
Em 1995 os computadores do Departamento de Defesa dos EUA deverão ter sido atacados 250.000 vezes, segundo informações do próprio Pentágono. Nos mercados globais, em que as empresas evitam admitir vulnerabilidades deste tipo, conhecem-se alguns episódios. Fala-se de "estranhas" alianças entre serviços secretos e multinacionais. O FBI admitiu recentemente ter estado envolvido na investigação de um ciber-ataque que havia vitimado o Citibank em 1994. Oficialmente nunca houve qualquer confirmação, mas foi comentado que do banco norte-americano haviam desaparecido 400.000 dólares... “limpos por hakers russos”.
Quase 30 anos depois do Departamento de Defesa dos EUA ter criado um sistema de redes de comunicação invulnerável à guerra nuclear – o embrião do que é hoje a Internet – a rede global dos computadores e telecomunicações será no futuro a principal ameaça à segurança das sociedades mais avançadas do mundo. Os centros de investigação das guerras da informação e de formação das novas elites do conhecimento e do poder ganham fatias crescentes dos recursos das sociedades ocidentais.
Os desafios e as ameaças do ciber-terrorismo e da ciber-guerra já passaram há muito a sofisticação dos argumentos da melhor "ficção cientifica". Novos modelos e novas tecnologias são desenvolvidas em instituições militares e cientificas por todo o mundo – nos serviços secretos, nas forças armadas, em multinacionais, em locais que nem sonhamos, e por gente que não fazemos ideia quem seja."
* Futuro/Público
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Quintas - Bragança de Miranda
Sextas - Paulo Tunhas

segunda-feira, 14 de maio de 2007

A Chave do Dia - 2

JMR
e
As flores dos jacarandás começam agora a ver-se na D. Carlos. O taxista tinha lentes espessas, traulitava a música da Floribela e sabia comparar as três últimas Primaveras. Parecia ainda conhecer os dons particularmente raros do Desportivo das Aves.

Escavações Contemporâneas - 8


LC
O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: João Pereira Coutinho)
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Regressar a Madison County
e
"No passado domingo, provavelmente pela décima vez, dei por mim a rever As Pontes de Madison County, a obra-prima do melodrama que Clint Eastwood - quem mais? - realizou há uns anos, a partir de um romance intragável de Robert James Waller. E, uma vez mais, dei por mim a indagar se a história entre Robert e Francesca acaba mesmo como eu sei, e como vocês sabem, que ela realmente acaba. A natureza absurda desta dúvida absurda deve-se, claro, à famosa sequência final: quando Francesca apenas tem de abrir a porta do carro, abandonar a vida que tem e partir com o homem que ama. Quando assisto ao momento agónico da escolha, filmado com uma inteligência e uma sensibilidade que simplesmente me esmagam, eu sei, como vocês sabem, que uma vida e uma família, sobretudo na América rural da década de 60, não se apaga de um momento para o outro. Mas é certeza que dura pouco. O gesto de Francesca, ao renunciar ao amor e, por via disso, ao mortificar-se para sempre, oferece um dos momentos mais terrivelmente sacrificiais do cinema moderno. Pela sua violência, sim. E pela sua silenciosa e tão anónima tragédia. Não, eu não gostaria de um final feliz. Eu gostaria, tão-só, de fundir a realidade com a ficção. E, num gesto de misericórdia, de inocência e de fraqueza, mergulhar a mão na tela e abrir a porta do carro para que o filme terminasse como eu sei, e como vocês sabem, que ele talvez termine um dia. Quando eu passar novamente pelas pontes de Madison County."
er
Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Quintas - Bragança de Miranda
Sextas - Paulo Tunhas