quinta-feira, 19 de agosto de 2004

Ficcionalidades de prata – 41


(Untitled, E. J. Bellocq, c. 1912)

Numa história comum não interessa o que está à mostra. A mais profunda partilha está nos lugares onde a sombra é mais impenetrável, mais densa, quase opaca. É a partir daí, desse orbitar incorpóreo, que a cena se expõe à luz e ganha o sentido da prece, da súplica, para além da claridade que lhe é própria. E é vê-la, sem título e sem nome, como heroína da candura e, sobretudo, como alegoria da felicidade fortuita: perna trocada, as tiras como divisa de paixão, os braços lascivos, o rosto oblongo, o cálice secreto e, um pouco atrás, a mesa a diferir e a espalhar o centro da miragem onde, afinal, se cruza a geneologia e o fruto actual, a postura, a afectação, o móbil contido do sorriso. Numa história comum, o que não está à mostra também está à vista e empresta à encenação a liquidez, o ritmo de exposição e o pulso de que se alimenta. Não há limite entre o que se expõe e aquilo que parece permanecer nublado, espesso, resguardado. Na parede do fundo, suspendem-se as imagens e nelas o que interessa ainda orbita, ainda circula, ainda espreita de longe para todos os nomes da felicidade fortuita. A aura que se prolonga.