sexta-feira, 31 de dezembro de 2004

Bom ano!

Cá estou entre sacadas solares, cornijas voadoras, brasões sem memória, ombreiras amareladas, clarabóias coloridas, acenos invisíveis, escadarias abismadas, cantarias imobilizadas, frestas simuladas, amarras manuelinas, águas-furtadas ao vento, ameados entre sebes, jardins oblíquos, janelas namoradeiras, logradouros de ervas aromáticas, frisos com fantasmas, balaústres fugitivos, mármores enleados e terraços presos à névoa crepuscular. E é deste local mágico que vos desejo a todos, sem excepção, um grande e feliz
2005!

quinta-feira, 30 de dezembro de 2004

Actualidades referendárias

Foi hoje publicado, no Diário da República, o Acórdão n.º 704/2004 (304, SÉRIE I-A) onde "o Tribunal Constitucional procede à fiscalização preventiva da constitucionalidade e da legalidade da proposta de referendo aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 74-A/2004, de 19 de Novembro (proposta de realização de referendo sobre a Constituição para a Europa)".
Algum português acredita ainda neste labirinto de séries, legalidades, propostas, truncagens e procedências ao serviço de um referendo claramente imaginário?
Actualidades culturais

"Resolução da Assembleia da República n.º 86/2004. DR 304 SÉRIE I-A de 30-12-2004: aprovada, para adesão, o Primeiro Protocolo à Convenção para a Protecção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, adoptado na Haia em 14 de Maio de 1954".
Já era tempo. Os portugueses sentiam tremendamente a falta desta grave e incontornável decisão.
Dois em um e um em dois

Há paradoxos portugueses que são interessantes. Vejamos as três facetas de um em particular que anda aí muito em voga:
a) Toda a gente cala e reduz a tabu a homossexualidade, pretensamente, por causa da separação entre a esfera privada e a esfera pública;
b) Toda a gente envia e recebe SMSs que dizem alto o que todos dizem saber (nomeadamente que os dirigentes políticos A, B e C são gays. É interessante como o uso da palavra inglesa suaviza a alegada tempestade);
c) Toda a gente que é gay prefere viver na clandestinidade, sem tentar sequer fazer da vida um curso normal e assumido de direito próprio (a excepção é sempre coisa de malucos e excêntricos, tipo opus gay, artistas, meninos de coro, almirantes, actores, bailarinos, etc., etc., etc.).
Nos países protestantes sempre há menos hipocrisia; mas nós, portugueses, amantes de altares barrocos e de malinhas pretas de mão, adoramos ser dois em um.
Hoje lá tive que apagar mais um SMS que fingia ser
- já se sabe - mais uma mensagem de "santo natal"...

quarta-feira, 29 de dezembro de 2004

Balanço - 2

Há quarenta anos, os programas de TV que faziam o balanço do ano apareciam carregados de fascínio. Arrastavam o imponderável caudal das imagens a preto e branco, durante uma hora, e desse modo passavam em revista o que se sentia como distante, inocente, fotogénico e único no sentido da pouca compulsão criada.
Hoje, esses mesmos programas aparecem carregados de uma redundância enjoativa. Mobilizam o que já havia sido desenterrado reiteradamente, cortando ou alargando partes do fluxo global de imagens durante uma hora, como se quisessem anestesiar a nossa memória através de uma banalização galopante e desinteressante.
Acabei de comprovar este verdadeiro contraste, ao esforçar-me por seguir, do princípio ao fim, o programa da RTP que acabou há pouco.
Ou será isto tudo uma desfocagem com origem nos acenos da infância?
Vá-se lá saber.
Sem resposta

Todos os dias, há mais dez mil mortos que se noticiam na sequência da imensa catástrofe do Índico. Amanhã serão cem mil e poderemos então imaginar uma cidade como Coimbra a afundar-se na impiedade do oceano, entre Sumatra e a Somália. Que dizer, para além de explicar, enumerar, ajudar, agir, mostrar, comparar, difundir e repetir até à exaustão? Que dizer para além da enxurrada retórica? Que dizer aquém da necessidade? Que dizer?
Há perguntas que é impossível colocar.
Sontag

De Susan Sontag ficam-ne duas recordações: um grande livro sobre fotografia que li nos anos oitenta e um outro onde a autora avançou com a interessante noção de "interpretose" (não me apetece levantar e ir ver às estantes os nomes e tudo o resto; mas, já agora, por que me esqueço eu de todos os nomes dos livros, mesmo daqueles que ando a ler?).
De resto, Susan Sontag pertencia a outra galáxia.
Seja como for, a morte traz sempre a terreiro essa incompreensão de voltar de novo a não ser.
Balanço - 1

Nunca tive grande jeito para círculos de afinidades persistentes. Nas ideias, nos livros, nos filmes, nos blogues e noutras coisas que a vida enfrenta. Na maior parte das vezes, vejo-me a regressar a sós. No limiar da partilha. Ainda que infusa, espontânea ou admirada. Mas nunca tive a tentação das tutelas e das referências fixas, a montante ou a juzante. O que não quer dizer que a amizade não ilumine este meu regressar, algo solitário, entre tectos do mundo; embora ela - a amizade - também não seja contínua, linear e indivisa.
Permanecerão os afectos e milhões e milhões de eventos que denegam a ilusão da montagem. Permanece o amor. Permanece o desejo da lucidez e da independência radical. E é assim que vejo mais um ano quase a acabar e um outro prestes a começar: sorrindo. A ternura a desfilar na confissão e a compaixão a esquecer-se do principal que haveria afinal a dizer.

terça-feira, 28 de dezembro de 2004

Declaração do tempo

Regresso após uma semana de ausência. Talvez a maior desde que esta escrita se fez blogue. Vive-se um tempo incomum, embora a ameixoeira se resuma ao ermo dos ramos e a macieira ainda resista. Enquanto pode. Sobram-lhe umas amolecidas trinta folhas. Um ronronar sem fim. O Natal foi cheio, pleno. Sigilos, doces, apologias domésticas, vilegiaturas, memoriais, lume fortíssimo, litanias, luzes na janela, meteoros (um enorme na estrada para Machede) e ainda uma desmedida incontinência da paixão. Reconciliei-me este ano. Não sei com o quê. Talvez com aquela parte de mim que havia partido e hoje regressou. Somos todos a épica que mais amamos sem sequer o sabermos. E da ausência fazemos castelos, pontes levadiças, estradas desenhadas em névoa. Volto a olhar para a ameixoeira e para a macieira. Imensa a gratidão que habita no ar. Sem lugar. Por isso se escreve aqui. Como se fosse sobre a neve. Regresso.

terça-feira, 21 de dezembro de 2004

Confissão em tempo de festas

Todos os anos é o mesmo.
Um exercício de renovação, uma prática de reencontro, um emaranhado de afectos em torno do tempo e do esquecimento.
Com mais ou menos consumo e luzinhas - só faz bem cumprir os rituais -, este período resiste às inércias, às agressividades menores, às vitimizações e - esperemos - ao mau humor.
Vale a pena agora pôr os pés em terra e saborear uma boa lareira.
Vale a pena agora olhar em frente e saborear a flor do solstício.
Vale a pena agora voltarmos a olhar os que amamos para entender o amor como ele é: misterioso, real, profundo, envolvente e ancestral na nossa condição própria de amar.
Permitam-me que hoje escreva com este tom, com esta legenda sentimental e com este abreviado e penetrante sentido de pertença.
Bom Natal para todos! (ver post fotográfico de boas festas mais abaixo)

domingo, 19 de dezembro de 2004

Conjugalmente ao vivo


José M. Rodrigues

Olá, o que é que julgam?
Como vêem, só nos deixamos fotografar por Prémios Pessoa.
A Isabel dirá o resto. Stop.


José M. Rodrigues

Olá, desejamos a todos um grande natal e um magnífico 2005!


José M. Rodrigues

Já agora dizemos o mesmo a duas vozes:

José M. Rodrigues

Boas Festas!

sábado, 18 de dezembro de 2004

Por cima

o sol a esquecer tudo o resto. Mas há ainda a buganvília amarelada e ao lado a ameixoeira que agora vive apenas da nudez dos troncos e dos ramos. É como a escrita no osso, tão depurada, sem letras, tão esquecida de si que quase se confunde com tudo o resto. Por cima.
Shifters

E eis como a volúpia se conformou decisivamente com o apetitoso reino digital.
Radical vs. Conservador

Caríssimo MacGuffin: foste claríssimo. Eu já desconfiava que eras, afinal, um devotadíssimo membro da Academie Française. E agora mais não fiz do que confirmar esse elementar facto estelítico. Só não citaste o medidativo Pascal, o cultural Mirabeau, o utópico Mercier e o nome do café. Daí a minha suave desilusão.
TOP TEN

Só agora reparei que a malta está a fazer TOPs. Eu sou o mais breve de todos: inscrevo e escrevo o meu próprio Miniscente nas dez linhas seguidas do TOP.
E pronto, sou assim o único a falar verdade. Ou não existe a verdade?
Publicidade convincente vs. memória



TIME IS MONEY: About 80% of learning Portuguese consists of memorization. Can you imagine how fast you could learn to speak Portuguese if MONTHS of tedious rote memorization were eliminated? Unforgettable Portuguese CD-ROM courses are an amazingly fast way to learn how to speak Portuguese.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2004

Máximas de 2004 - 3

"IN MEDIEVAL Europe rulers who wanted to make a statement built a cathedral. In modern Europe they build sports stadiums. This weekend the eyes of much of the continent will focus on the Stadium of Light in Lisbon, where the final of the Euro 2004 football championships will be held.… "
(The Economist, 01/07/04)
A palavra a Mário Cláudio


Luísa Ferreira

Como director de um jornal de artes e letras pouco conhecido, mas que, mesmo assim, teve três belos anos de vida (& O Mais, 1994-1997), propus a vários escritores que respondessem a um inquérito, no número 4 da publicação (Setembro/Outubro de 1994), cujo tema central era: "Literatura portuguesa dos últimos vinte anos: que balanço?". Mário Cláudio respondeu às três perguntas do inquérito. Deixo aqui, agora, como homenagem ao hoje justamente galardoado com o Prémio Pessoa, a sua quase inédita resposta à segunda pergunta e que era: "Que temas gerais e universais foram nos últimos vinte anos recuperados na nossa literatura?"
Eis o singularíssimo texto de Mário Cláudio:

"Entendo que, na literatura, em globo, e na portuguesa, também, se fez sentir o sopro de um vento renovador, contra o peso da vária inércia de sempre, capaz de dinamizar a presença do sonho, e de conferir estatuto à magia, ao confessar a convicção na salubridade possível, numa era de múltiplas e desenfreadas poluições. A queda dos sistemas estruturados de fora para dentro, os quais encaravam a liberdade, afinal, como aplicação de uma conjuntura livresca, e a alternativa criada, desde há pouco, o tal paradigma, por uma atitude que abre a porta ao milagre, permitindo encarar a existência, em conclusão, para além da dialéctica vida-morte, deixariam iniludível rasto, bem inesperado, não raro, na produção literária nacional. Será provável que não beneficiem, com tal mudança, os criadores que se esforçam por não perder o comboio, e se afadigam, ainda, na venda incessante da imagem que lhes coube, mas eis que do calado triunfo das minorias se trata, em regra, quando a multidão vociferante não logra perceber o alarido da própria voz."

Parabéns, Mário Cláudio!
Máximas de 2004 - 2

"The problem is this: In a highly polarized election year, the only part of the electorate still in play—those coveted swing voters—is the part that isn't paying attention. They will tend, more or less by definition, to be fairly moderate and to make their decision in a rough and impressionistic way. They'll pay attention less to policy differences, which are clear enough, than to who seems trustworthy, who seems like "one of us."
(Reason, 8/09/04, Julian Sanchez)
Máximas de 2004 - 1

“As of 1980, these three countries (Espanha, Portugal e Grécia) on average had per capita GDPs that were about 65 percent of those of the nine countries that belonged to the EU at that time. And in 2003, their per capita GDP still stood at slightly above 70 percent of the nine members, evidence that injection of EU Structural Funds, aimed at compensating for the structural problems in the poorer members of the union, has not improved the situation much over the past two decades.”
(The Japan Times, 22/11/04, Takashi Kitazume)
Agora mesmo

vejo a noite a transformar-se em oceano de sombras, lusco-fusco esquecido nas soleiras de alvenaria que dão para o pátio, glicínias sob o manto denso do maracujá ainda enleado à trave de metal que mais parece um remo a escapar-se entre brumas. Até amanhã.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2004

Poeticamente incorrecto

Ontem , o divertimento do governo chamou-se monovolumes (também houve o caso da Rádio Portalegre). Mas o que eu mais gostei foi a senhora que apareceu na conferência de imprensa governamental. Aqueles óculos, aquele lenço, aquela varicela estética, aquele cabelo encapelado, dourado e mergulhado pela poiesis da ventania de Ílhavo; enfim, aquela beleza vulcânica para dar o dito pelo não dito. É que o império cinzento dos homens tem, por vezes, hiper-equivalência em casos específicos como este!
Nona Pergunta

Faltou uma nona pergunta às oito meta-fisgas de ontem (obrigado Ana pela sagacidade das respotas!). Depois de ver uns espessíssimos quinze minutos da Judite de Sousa de ontem, eis-me a postulá-la: o que haverá ao mesmo tempo de falsete e de ditirâmbico em Paulo Portas que transforma sempre a sua expressão numa espécie de crispada arrelia ressentida que não parece ter fim?
Coisas da música

1 - Um dos famosos fados cantado por Amália e com marca vareliana teve como título "Sabe-se lá". O fado tinha - e tem - um refrão penetrante e fabuloso quando moldado pela voz de Amália: "Sabe-se lá para o que nasce, quando nasce uma pessoa". Uma gravação célebre deste fado foi registada ao vivo no Olimpia parisiense, em 1957, e ontem o Portugália da Antena 3 passou, não apenas esse registo, como também uma versão revisitada do fado pela voz de Marta Bernardes. De arrepiar, no bom sentido! Já agora, acrescente-se que a Antena 3 vai manter o jogo das revisitações de Amália até Sábado.

2 - Amanhã às 23 h., apresenta-se, na ZDB, integrado no Lumpen Trio, o meu amigo Miguel Sá (laptop)Dj, produtor e compositor autodidacta que integrou o colectivo de músicaelectrónica Zzzzzzzzzzzzzzzzzp! (1991-2002) e que criou com Fernando Fadigas osProducers em 2001. Excelente manipulador de fluxos sonoros em tempo-real que atravessam de forma acidentada - súbitas interjeições e padrões rítmicos abstractos - os territórios da dita Música Ambiental.
A não perder.
(outros concertos: M.Sá (Dj set), Sex. Fri. 17.12.2004, 23h, A CAPELA, Lisboa; Seg. Mon. 20.11.2004, 23h, ETILICO, Lisboa; Ter. Tue. 21.12.2004, 23h, A CAPELA,Lisboa; Qua. Wed. 29.12.2004, 23h, A CAPELA,Lisboa)
Gostos, posições, explicações

O tempo que perdes a explicar ao Antigo Egipto essa coisa das compatibilidades vs. incompatibilidades! ("Pode ser-se politicamente conservador (ou liberal) e esteticamente radical" - é verdade, sou o primeiro a concordar com tais saudáveis arbitariedades, em todos os sentidos, mas a verdade, no reverso, é que esses campos se tocam uns nos outros tal como as massas de ar se atravessam indolormente. Por exemplo, qual é a tua posição no campo polistético?... e no campo estelítico?)
Parabéns

ao Maschamba que é um dos blogues, entre cerca de oito a dez, que visito diariamente (sempre que posso). Nele não vejo apenas Moçambique; vejo, sim, em primeiro lugar - parafraseando João Cabral -, muita "faca sem lâmina" que galga "canavial" global, mas sem jamais se esquecer de cortar quando é preciso e a safra mordazmente o exige.Obrigado José Flávio!

quarta-feira, 15 de dezembro de 2004

Interrogação - 2

De onde virá a ideia de que há questões que o ser humano não pode ainda colocar?
Questão - 2

Existirá um valor que possa caracterizar a mudez de uma pessoa?
Pergunta - 2

O que faz uma pessoa ser obrigada a interrogar com a ajuda de um enigma?
Dúvida - 2

O que leva alguém a identificar-se com uma metáfora?
Interrogação

Qual é o enigma no que se diz, quando - é preciso supor que - nada mais há a dizer?
Questão

O que domina a emoção, quando ela mesma se livra do peso que a preenchia?
Pergunta

Que vantagem existe na palavra que deambula à procura de sentido?
Dúvida

O que faz um gesto demorar-se na impaciência com que avança?

terça-feira, 14 de dezembro de 2004

Já lá está quase

Muito antes de se aproximar das esferas do indizível e do imperscrutável, a metáfora penetra, como uma corrente de ar, nos mundos e nas divisões contíguas que ordenam a casa da nossa mente. E nesse ardor, nessa inquietação, nessa voragem, o pasmo, a admiração e o gáudio como que pactuam. Em vez de riso, advirá um sorriso, uma espécie de procura serena sobre o que estará para vir.
Textos e imagens em luta de meio campo

A partir das Cruzadas ocidentais (1017) e orientais (1096), a guerra escatológica islamo-cristã tornou-se, no essencial, numa guerra entre profecias. Ou seja, não apenas entre revelações proféticas distintas, mas sobretudo entre textos que se cruzavam, enxertavam ou manietavam, na senda de um triunfo rápido, simultaneamente terrestre e divino. De certa forma, noutra escala e noutra proporção, antecipando o actual papel dos média, na sua relação mundializada com o jogo político.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2004

A situação política actual


(Sem fulanizações.
Imagem meticulosamente roubada ao bicaense Hana Bi)

(Decreto do Presidente da República n.º 100-A/2004. DR 290 SÉRIE I-A 1ºSUPLEMENTO de 2004-12-13Presidência da República Demite o Governo, por efeito da aceitação do pedido de demissão apresentado pelo Primeiro-Ministro, Dr. Pedro Miguel deSantana Lopes)
Rectangulozinho / Gil - Gis

Estou a ler um livro que comprei na passada Sexta-feira, na FNAC do Chiado: Portugal, Hoje: O medo de existir. É do José Gil, mais um (gostei menos das recentes abordagens sobre o Pessoa - que já vinham do fim dos anos oitenta - e gostei bem mais das abordagens da segunda metade da década de noventa sobre os "monstros" e a "imagem-nua", aqui perseguindo o conceito de aura de Benjamin). É a primeira incursão de José Gil nesta área das identidades lusas, tema sempre quente e desejado por quem viveu alguns anos fora do país. Tenho muitas linhas sobre este tema, mas nunca arrisquei a passar da intensidade do borrão a livro. Não é pela quantidade do material acumulado que ainda hesito em publicar; será antes, quem sabe, devido a algum mal estar na minha relação com o próprio tema (destestaria ser misturado com essa coisa a que se chamou - e que se chama ainda - filosofia portuguesa).
Já agora, a título de nota meramente exploratória, reparo já há alguns anos que existem permanentes confusões entre José Gil e Fernando Gil. Advirá a dita do apelido, mas, mesmo assim, a tentação confusionista é imensa. Confesso que já estive diante de alunos e também de fantasmas profundamente meus que são apanhados em flagrante e repetido lapso. Portanto não confundir José Gil com Fernando Gil, o autor do grande Mediações e do já antigo Mimesis e Negação, além de participante (com Paulo Tunhas e Danièle Cohn) num dos livros centrais do ano 2003, e que aqui sublinhei com a vénia mais do que devida: Impasses seguido de Coisas Vistas , Coisas Ouvidas.
Soberanias, abismos e convivência

As previsões demográficas provam à saciedade que a sobrevivência da democracia e da liberdade passa, nos tempos que correm, mais pela hábil gestão das mobilidades e dos recursos globais do que pela obsessão do fechamento forçado das fronteiras, hoje em dia meros entrepostos do viver global. Até porque um novo tipo de soberania está claramente, nos nossos dias, a extravasar a ordem dos antigos nacionalismos. Lutar pela soberania significa, agora já e nos tempos que se avizinham, salvaguardar a liberdade e a democracia, não apenas no território ocidental onde fez e faz história, mas também nas vastíssimas diásporas que se movem cada vez mais entre os vários blocos democráticos do Ocidente e as mais diversas origens e paragens do planeta (China, mundo árabe, etc.). É neste movimento de sucessivos reencontros que se situará a ideia de sinoecismo, defendida por Paul Virilio, e que se centra na grande cidade cosmopolítica para que o mundo contemporâneo tenderia.
Vivemos numa grande ponte entre dois universos. Entre um mundo moderno que todos revemos e codificamos claramente, e de que não nos livrámos de grande parte das tarefas, e um novíssimo mundo, cujos sinais globais, hipertecnológicos, ecológicos, macropolíticos e pós-humanos (no sentido das novas antropologias cyborg) nos acenam e nos mobilizam quotidianamente. Vivemos um período porventura homólogo ao Iluminismo de setecentos. Na altura visionava-se retrospectivamente o mundo antigo, enquanto os novos sinais - também tecnológicos, demográficos e económicos - prenunciavam já o mundo que balizaria as práticas de oitocentos e de novecentos. Nessa corrente de ar entre dois universos, Kant, Rousseau, Herder, Diderot, Vico, Hume, e muitos outros, filtraram os múltiplos devires e criticaram o complexo curso das tradições. Dessa sistematização nasceram valores fixos que evoluíram da individualização para a individuação cada vez mais fluida. Hoje revemo-los com a nostalgia dos marinheiros sem embarcação e, entre novos lances meteóricos, voltamos a ter na nossa frente a mesma corrente de ar entre duas voragens, entre dois vórtices.
É na antevisão do universo para que caminhamos - do outro lado da ponte - que os diagramas possíveis da democracia e da liberdade deverão hoje ser devidamente acautelados. Pode mesmo tornar-se normal, daqui a alguns anos, que os dois grandes blocos que se digladiavam nas narrações de muitas profecias quinhentistas, o Ocidente então artificialmente unificado por Carlos V e o vasto desígnio otomano, se venham a reestruturar no seio de uma mesma casa omnipolitana, integrando as tradições e a consciência de devir de uma mesma partilha (e esse poderá vir a ser um dos inícios do sinoecismo acima referido). Contudo, este desígnio - hoje ambicioso e bizarro para muitos - terá que pressupor uma ordem mínima, um entreposto novo, ou seja, um conjunto sucinto de regras de convivência global que deveriam postular-se, para além das crenças e das formas diferenciadas de interpretar e significar o mundo. Foi algo que a década de noventa estrategicamente descurou, devido, talvez, à vertigem de ser, ela mesma, um tempo abruptamente apaziguado.
Para caminhar nesse sentido, deve referir-se que a actual ONU, muito marcada ainda pelos anátemas do pós-Segunda Guerra Mundial, continua presa a um mundo que não entende a complexidade trans e pós-territorial (por outras razões, foi já clara a sua ineficácia em conflitos internacionais dos anos noventa e sobretudo no Iraque de 2003). Vão, portanto, ser necessários, nos próximos anos, novos mecanismos de integração e de interface que assumam, de modo descentrado, o cumprimento dessas regras. A regulação democrática das mobilidades, a segurança, assim como a normalidade das vizinhanças entre culturas e modos de vida constituem feitos estruturantes a que o início do novo milénio deverá inelutavelmente aspirar, para além das questões ambientais e da vital gestão de recursos.
Só assim, um novíssimo denominador comum poderá servir de novo ponto de partida para um novo tipo de entendimento entre blocos planetários: o Ocidente (Europa, Américas, Austrália, etc.), o imenso Mundo Árabe, a grande China (onde o crescimento da classe média tenderá a pôr em causa, a médio prazo, a comunhão entre totalitarismo comunista e capitalismo sem regras), a Índia, a Comunidade Russa, o Mundo Judaico, etc.
Kant teria teórica razão no seu tempo, mas, hoje em dia, essa razão terá que converter-se numa racionalidade que consiga agir para além dos efeitos da brusca civilização da imagem e das significações teo-centradas do mundo. Essa racionalidade ainda não existe e não pode ser sequer imaginada como uma espécie de compromisso à moda do Metropolis de Fritz Lang, ou de deslumbrada injunção diplomática que resolveria milagrosamente todos os males do mundo. Essa racionalidade deverá antes confundir-se com a democracia em projecto, não apenas formatada e fixada territorialmente em nome da liberdade e das convivências pacíficas entre diferentes, mas sobretudo no seu desdobrar para uma dimensão trans-política onde venha a ser possível, de modo inovador, salvaguardar a coexistência diferenciada entre as diversíssimas significações do mundo que, ao fim e ao cabo, definem o nosso mundo (conferindo assim sentido à cidade cosmopolítica do planeta).
A vida humana requer um sentido, uma modalidade pactuada, uma retaguarda face à barbárie. Os abismos dos dias de hoje advêm do tempo real e do império da comunicação, enquanto os de há quinhentos anos advinham do tempo divino e do império da salvação na terra. O que os liga e, por sua vez, o que nos liga ainda hoje, para além das miragens do futuro, é a medida do homem no seu caminhar no mundo, bem como a necessidade de disponibilizar recursos para todos no presente. É aí que a vida requer um sentido, um cuidar no sentido heideggeriano, e não o simples eclodir, ou a inadvertida implosão (ou desconstrução) como prática quotidiana.

sábado, 11 de dezembro de 2004

My dog and the TV

O Cabaré da Coxa já está em decadência, o governo também, irremediavelmente. Resta, para rir, o Inimigo Público, o Jerónimo de Sousa e o mapa de Portugal com os incêndios de Verão marcados a marcador. Há ainda, ao fundo da rua, uma locutora com óculos de massa esbranquiçada que dizia, há pouco e em directo na RTP, que o PP é um partido muito agarrado ao direito à vida. E há ainda Carlos Magno com o Douro por trás a praguejar em nome da presença de uns tantos barquinhos rebelos. Hoje nem Sócrates precisou de fazer a barba. Depois virá a publicidade e a meteorologia. E também a campanha eleitoral. Easy way.
On the road

Ver sábias palavras de Cesariny aqui. Obrigado Isabel!
Tentativa de aniquilação

A URSS ainda existe. Envenenamento de Iuschenko faz lembrar outros tempos que são ainda estes. Até quando?
Rir a ler, rir e escrever

O exagero embala sempre a expressão, confere-lhe um barroco repousante de onde acaba por extrair-se o minério retórico e as camadas associativas mais hilariantes que a linguagem, felizmente, não teme. Um acontecimento existe, entre outras coisas, para ser metamorfoseado pela experiência do leitor, mas, no caso de o acontecimento ser um acontecimento da linguagem - uma locução que choca em cadeia com os níveis da ilocução e da perlocução -, a verdade é que esse acto de metamorfose se torna, quase sempre, num desdobrar irreal que culmina no riso.
Até porque o riso não decorre apenas da surpresa, da quebra de suspense ou da revisitação de uma origem intocável. O riso é sobretudo um produto pouco amadurecido da conotação. É como um fruto que ainda não está pronto a ser mastigado, mas já alegra exuberantemente a minúscula árvore que jamais viu na sua frente a Primavera. Está a mais no contexto, está deslocado no seu palco. Está desconforme no seu papel. Mas não deixou, lá por isso, de ser conotado. Mas não deixou, lá por isso, de ser parte da metamorfose. Nas não deixou, lá por isso, de integrar o vultuoso mapa de figuras que o exagero fez nascer e crescer.
Tudo isto, porque não há melhor do que a hipérbole para exprimir o essencial. Precisamente, porque o essencial contrasta vivamente em cena com todos os outros pares que a metamorfose (ou a conotação) espalhou pelo palco. O exagero pode, pois, ser um espectáculo. Um insondável e mínimo momento em que a clareza e a silenciosa gargalhada se identificam. Um ínfimo aceno grotesco que, ao fim e ao cabo, assiste e é cúmplice do mais nítido entendimento.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2004

Aproveitando os feriados

Estou a encerrar um livro que vai sair na Europa-América em 2005 (trata-se de um ensaio sobre a multifacetada natureza do profético). Estou ainda indeciso quanto ao título, mas posso desde já confessar que vai abordar o terrorismo, o "prophetic turn" (conceito de que já retirei o véu no post de baixo), para além de apresentar uma tradução inédita em Português de um conjunto de profecias anónimas da região de Aragão do século XVI, escritas em alfabeto árabe embora veiculando um vernáculo híbrido de base dialectal aragonesa (que estudei e analisei aquando do meu doutoramento já há mais de uma década). No final do livro, haverá ainda espaço para um breve ajuste de contas com o mito do milénio.
Tudo isto tendo como base a ideia de que o fenómeno profético continua ainda hoje a subsumir-se à actualidade, na medida em que se inscreve nas modalidades de controlo do futuro (temos a ordem instantanista global em vez de Deus), na ordenação ficcional dos acontecimentos em redes mundializadas por fluxos (temos notícias enunciadas através de meta-ocorrências ficcionalizadas) e, ainda, na figura da dissimulação e ilusão com que se forjam e manipulam as mensagens (temos novos heróis e novas gestas que vivem nas e para as linguagens esteticizadas, através de um caudal ininterrupto de imagens que está ilusoriamente no mundo em todo o lado e ao mesmo tempo) .
Cada um tem as pontes que merece.

terça-feira, 7 de dezembro de 2004

O que é a viragem profética?
(extraído e resumido de um ensaio que sairá a público em 2005)

Nas várias culturas que se organizaram sob o pano de fundo da civilização do “Livro” (o mundo judaico, cristão e islâmico), a chamada civilização axial ou escatológica, foi sendo instituída uma espécie de ordem dicotómica que tendia claramente a separar a normalidade das coisas daquilo que, devido às mais variadas razões, se evadia dessa normalidade. Aliás, a palavra “segno” (não confundir com signo, nas suas várias acepções correntes), em finais do quattrocento e no século seguinte, traduzia precisamente a ideia do conjunto de alterações que se processava escapando-se ao “curso natural das coisas” (O.Niccoli, 1990, p.31).
Isto quer dizer que o diabo, as metamorfoses inexplicáveis, as excrescências evidenciadas pela natureza, os monstros que habitariam a periferia do planeta, os eventos imprevistos, os animais fabulosos que respiravam nos relatos de Preste João ou do imaginário trágico-marítimo integravam, cada um a seu modo, esse desmedido mundo do segno. No entanto, para que o segno pudesse existir e tornar-se reconhecível, independentemente da significação que lhe fosse atribuída, era necessária a existência de uma ordem muito bem ancorada que, por contraste, separasse o seu mundo do mundo definido como normal. Sem esse contraste, as bruxarias, os textos proféticos considerados anómalos, as apostasias, as arquitecturas desproporcionadas, as heresias e outros “horrores” jamais teriam sido perseguidos.
Curiosamente, o mundo utópico e o mundo ideológico, que desaguaram um e outro, com idades e naturezas diversas, no século XIX, acabaram por trazer consigo, no Ocidente cristão, a antiga marca das civilizações axiais e escatológicas. Só que, em vez de paraíso, convocaram a ideia de um igualitarismo terreno. Por outro lado, a natureza racional do dogma substituía o “Livro” divino, enquanto a luta “por um mundo melhor” passava a encarnar os exigentes preceitos da antiga fé.
Nesta novíssima geometria, o segno adquire novas formas, até porque a modernidade avança em cascata, mobilizando, a partir do fim do século XVIII, diversas autonomias, nomeadamente de natureza jurídica, científica, estética, mediática, ética, constitucional, social, clínica, etc. Mas em todas estas naturezas, em todos estes palcos subitamente libertos (ou deliberadamente ausentes) de uma tutela divina, a racionalidade moderna teve sempre tendência a instituir contrastes férreos entre a normalidade e a não-normalidade. Pode mesmo dizer-se que o segno acabou por persistir sendo o que sempre havia sido, mas agora luzindo de um modo lógico e tornando-se, por isso mesmo, peça de arremesso e móbil para a iniciativa.
Em cada uma das áreas de sociabilidade moderna, os contrários passam a digladiar-se ferozmente definindo mutuamente o campo do segno (nos sistemas políticos, nas modalidades jurídicas, na sucessão vertiginosa de vanguardas artísticas, no debate científico, etc.). Esta sistemática e violenta norma de oposições trouxe o segno para dentro da vida social e deixou, portanto, de o imaginar como um sinal divino vindo do alhures e cujas finalidades últimas escapariam à compreensão humana (era esta a explicação de Santo Agostinho para a existência de monstros e portenta).
Contudo, quer no mundo cristão pré-moderno, quer no mundo cristão moderno, verifica-se, ainda que com uma topografia claramente diversa, uma necessária separação entre segno e não-segno. Essa barreira une ambos os mundos, o pré-moderno e o moderno, o que acaba por ter como importantíssima consequência a não banalização do que vai escapando à ordem “natural” ou “normal” ou ainda “previsível” das coisas (o chamado segno).
Ora o que muda abruptamente no Ocidente no final do século XX e no início do século XXI é precisamente este aspecto. E essa mudança, por si, tem uma força histórica tremenda e, por isso mesmo, bastante silenciosa ainda hoje. A grande mudança dos últimos quinze anos ficou a dever-se a dois factos fundamentais: por um lado, à diluição e perda de eficácia das grandes referências pesadas e doutrinais de carácter ideológico e similares (o fenómeno atravessa diversificadas esferas e não se circunscreve ao esboroar da guerra-fria) e, por outro lado, à entrada em cena de uma globalização hipertecnológica associada a um novo tipo de espaço público aberto.
Os vários compostos de uma era que fora prenunciada como “pós-moderna” e policentrada criam rápida e progressivamente, em todo o Ocidente, o apagamento da antiquíssima barreira que sempre havia separado segno e não-segno. E, de um momento para o outro, em muito poucos anos, a verdade é que a relativação quase absoluta tende a incluir, na horizontalidade social pós-moderna, quer o que precede do segno quer o que precederia do não-segno. Mais: a separação entre um e o outro deixa mesmo de ser uma questão, um problema ou uma preocupação, da mesma maneira que a superação da divisão clássica entre real e ficcional aparece anunciada sob o desígnio da hiper-realidade.
A consequência mais importante desta grande mudança ainda em curso - o tempo de transição é quase nulo e a sua percepção é abismada - consiste na banalização daquilo que, secularmente, no Ocidente, sempre foi encarnado sob o manto do “mal”, ou, numa perspectiva menos simplista, do “segno”. A primeira vez que esta mudança efectiva nos entrou em casa - através do fluxo globalizado de imagens - foi no dia 11 de Setembro de 2001. O carácter extraordinário desse evento, para além das suas implicações políticas (que reputo de fundamentais), foi o facto de, ele mesmo, ter conduzido ao pasmo, à ambiguidade ou à tentação relativadora (houve mesmo, numa perspectiva neo-conceptual, quem lhe atribuísse conotações artísticas). Ainda hoje existe, em certos meios, a ideia de que o 11 de Setembro é aqui e ali “justificável”, ou é, “bem vistas as coisas”, uma deriva do “sistema”: ou é uma “vingança”, ou ainda uma “inevitável resposta” face aos factos A ou B produzidos no Ocidente (esta última é a explicação autofágica).
É este apagamento das barreiras que sempre separaram segno e não-segno que eu designo por viragem profética. É esta relativação imparável que eu designo por viragem profética. Ao exemplo nevrálgico do hiperterrorismo podíamos acrescentar o pressentido mundo das manipulações genéticas e ainda algumas das implicações do que hoje já se chama a “pós-humanidade” (assim como a diluição das próprias ideias-força que separam dever e não-dever, tolerância e não tolerância, democracia e não-democracia. etc.)
Jamais na história do Ocidente (e noutras culturas axiais - o caso do Islão é extraordinário, pois aí, salvo excepções pontuais e sempre superadas, nunca existiu um Iluminismo racionalizante), o segno deixou de ser um elemento individualizado, descodificado e bem reconhecível, independentemente da siginificação que lhe era imputada (essa é uma outra questão de natureza semiótica). Este facto novo está hoje em dia a traduzir-se na dissolução do segno no meio das mais variadas ordens que, de modo devorador, agenciam todos os dias factos e ocorrências que se processam à nossa volta através de imagens seriadas e mundializadas.
O terrorismo, hoje em dia, não é apenas uma ameaça. Ele é sobretudo um desenho quase invisível que atravessa os desenhos sobrepostos da nossa sociabilidade contemporânea. Ele é design a contracenar discretamente com o macro-design. O aspecto mais terrível do actual terrorismo é a ideia, no Ocidente, de que ele não existe, porque conviveria no mesmo horizonte aparente com outros factos cuja textura não seria afinal diversa. O terrorismo converter-se-ia, desta maneira, numa ocorrência entre as muitas outras ocorrências do quotidiano para o mais puro deleite e para a mais fatal das gargalhadas do cidadão ocidental, esse novíssimo guardador e curador global de imagens.
Daí, também, a propensão europeia para a imagem de uma grande Suíça neutral, pacífica no seio da qual o terror e o não-terror seriam uma espécie de irmãos gémeos federados, sem problemas, sem ambições e sem olhos para observar as perversas ausências de fronteiras que se criaram na sua própria casa.
É a esta indiferença indigente, é a esta cegueira involuntária - e, em última análise, auto-flageladora - que eu chamo a viragem profética.
The prophetic turn”, um dos sinais mais vitais dos nossos tempos.
Convite à viagem

O meu ex-aluno Bruno Ribeiro escreveu-me do sul das Américas:

Seguimos nesta viagem por terras que queimam a pele. A Península de Paracas juntava um largo deserto de areia e rochas avermelhadas ao frio do Pacífico. Depois de visitarmos as ilhas das "balestas", onde leões marinhos conviviam com pinguins e outras aves marítimas, negociámos um transporte para atravessarmos o árido e quente território da reserva natural. O taxista tinha uma camisa azul, era bem disposto e, ao endireitar o espelho, distraiu-se e bateu contra uma das grandes pedras lascadas que se aglomeravam ao longo do caminho. Depois das reparações visitámos praias desertas, uma delas que nos levou até à catedral, uma formaçao rochosa, altiva, com gruta em abóboda, estilo "renascentista". Vimos uma praia vermelha, que contrastava com a arriba amarela e com o verde do mar. Nao houve uma noite igual. Numa madrugada, acordámos com um pequeno terramoto, que fez estremecer as delgadas paredes de platex do quarto. Em Pisco, entre a Praça de Belém e a Praça de Armas, circulámos e fomos criando pequenos hábitos. Em Nasca, vimos os geóglifos num miradouro de metal na berma da Estrada Pan-Americana. Grandes figuras realizadas para agradecer aos deuses as colheitas e a água. Maria Reiche teorizou que as linhas (algumas chegam a atingir dezenas de quilómetros) serviriam para esta cultura marcar um calendário destinado à agricultura. Falámos com pessoas que trabalham actualmente nas escavações da cidade de Cahuachi, a cidade perdida - fundada 300 anos a.C. - que recebeu as culturas Inca, Nasca e Huari. Disseram-nos que as maiores figuras tinham sido erigidas por ordem de sacerdortes para rituais onde se dançava e oferendava, ao longo das linhas que as compunham. Entrámos numa parte interdita, naquela que foi a entrada principal de Cahuachi. Pensámos na "cidade dos imortais" de Borges, ou em algo mais grandioso. Fomos também ao cemitário de Chauchilla e ouvimos como o vento sopra nos ossos (sem metáforas); vimos como há tanto para descobrir, conservar e compreender. Passámos pela maior duna de areia das Américas e parámos nos aquedutos, em diagonal. Aqui outras histórias...a uma hora de Nasca, chegámos a Lomas, uma aldeia de pescadores, com uma das praias mais limpas da zona. À sombra estavam mais de trinta graus. As casas de madeira, o cheiro a algas, os pequenos-almoços de peixe fresco, os sumos de goiaba e ananás. Chegámos entretanto a Arequipa. Foi uma noite inteira de viagem, num autocarro cheio de gente, que passava bem rente às bermas das falésias andinas. À frente, só nevoeiro e, em baixo, um mar profundo negro. Fechámos os olhos. Mas chegámos.

Oxalá envies mais novas, Bruno!

segunda-feira, 6 de dezembro de 2004

Prognósticos na antevéspera dos 110 anos de Florbela Espanca

Paulo Portas está demoradamente a decidir se faz coligação ou não, até porque não precisa nada dela. Se concorrer sozinho, basta acenar e já está. O país está indefectivelmente com ele. Questão de doutrina.

Santana Lopes está bem mais aflito e por isso não deixa de pensar em coligações. Já tem carta verde, ou branca, ou outra. Mas tem. Objectivo máximo: assegurar pelo menos a confiança do PPM. Os manos Câmara Pereira são, de facto, uma mais-valia a não perder.

Sócrates, por seu lado, decidiu invocar o santo nome das fronteiras em tempo de diluição das ditas. Fica bem. Mas, por outro lado, Vitorino trouxe à alma lusa o sorriso interrompido pelo bate asas de Guterres e pela mania das cabalas do aziago Ferro. Se não fizerem muito barulho, arriscam-se a passar a meta à frente dos outros. Mas sem darem por isso.

Louçã é o missionário hipnótico nacional. O Daniel Axial sempre comeu mais espinafre em pequenino. Talvez o Bloco cresça entre o promissor público do Jorge Palma (já agora - e sem ter nada a ver com o caso - devo dizer que o vi a tocar na FNAC, na semana passada, e até gostei de algumas das suas modas).

O Jerónimo já disse o que tinha a dizer. E todos rezaram de lábios postos no Marxileninixmum. Oremos. Parece que vai acabar com a frente alargada que dá pelo nome de CDU. Foice e martelo é outra coisa! Três ou Quatro por cento, vão apostas?

A Nova Democracia de Manuel Monteiro, por fim, é o partido favorito para estas eleições. Em Abrantes, na delegação do Politécnico nabantino, o nosso minhoto parisiense tem carregado baterias como poucos. Descuidem-se, descuidem-se!
Talma



Acabei de publicar no Minitempo a adaptação do meu romance O Trevo de Abel (2001) a peça de teatro. Coisa também escrita pelo próprio, moi même.

domingo, 5 de dezembro de 2004

D66



Hoje - não sei porquê - lembro o partido em que sempre votava quando vivia na Holanda: o Democracia 66 (independente, liberal, dandy, mas não imune a preocupações sociais).
Não há nada do género em Portugal. E, nesta altura, até fazia falta.
Hão-de pagá-las!



Com que então... no Fialho, a escassos metros da minha nova casa, e ninguém me disse nada! Deixa, deixa...
Já se sabe

Proibidinhos de contactar uma SAD nortenha e casas de alterne e de prostituição. Tudo ao mesmo nível: coisas da metafísica futebolística.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2004

Subitamente

Uma pessoa é sempre uma individuação e não uma singularidade, porque se move entre intensidades: defesa, desejo, devir, afectos. O que conhecemos de uma pessoa, sem a conhecer pessoalmente, são simples traços de uma personagem muito fixada, já que aparentemente imobilizada nesse movente que ela na realidade percorre, que ela na realidade é.
Ontem conheci pessoalmente o MacGuffin. E senti de imediato essa distância (indizível) que liga a multiplicidade da pessoa à personagem que emerge da linguagem blogosférica.
O realismo é este aceno que diz em silêncio o que é a dissimulação e o que é a matéria. Embora o que nos individualize (e singularize) não seja da ordem da matéria, nem da ordem da dissimulação. Conhecer uma pessoa - e não uma personagem - é uma tarefa vasta, mas não necessariamente duradoura.
Vou gostar de conhecer o Carlos, pois tenho um grande respeito intelectual por ele (a Bota Rasa tem uma sala de espelhos que é lindíssima, retirada quase directamente de um oitocentismo puro e castiço).

quinta-feira, 2 de dezembro de 2004

A ferver

Nestas alturas o ruído adensa-se. As vozes fazem-se ouvir ao mesmo tempo. Há ressentimentos e euforias que se confundem. Todos reivindicam ter colocado o ovo em cima da mesa.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2004

Um homem é um homem

O post anterior foi eminentemente profético (escrito num cibercafé junto ao S. Carlos, às 18 h. de ontem, Terça-feira). De facto, a crise já estava ultrapassada àquela hora e só faltava Sampaio fazer a vontade de que Santana fazia feericamente eco, desde o início do passado Verão. Depois de tanto divertimento e de sucessivos e ininterruptos dislates de todo o tipo, só se esperava um Natal prolongado a culminar com uma grande campanha alegre em Fevereiro. Portugal gosta destes artifícios e destas soluções tonitruantes. Santana também. E Sampaio sai da presidência a dizer que é um homem. E Sócrates já pensa vitoriniamente no governo (estou, no entanto, de acordo com um detalhe: não ponham lá os Tó Zés Seguros - mas haverá algo mais além disso?). Bem, pessimismos de lado e falando agora a sério, devo dizer que o Miniscente acabou de fazer doze anos de idade. É fácil fazer contas: se o Pedro disse que ia governar até 2014, isso significa que dentro de dois meses terão passado dez anos; ora, se o Miniscente já tem um ano e meio... como dizia Guterres... "é fazer as contas".

terça-feira, 30 de novembro de 2004

Iluminações da época

A virose do Natal começa já a criar alguma anestesia face aos episódios políticos lusos. Basta descer o Chiado para ver a festa. Quer lá o pessoal saber da russa boazona que aderiu ao PSD, dos timorenses de Canas de Senhorim, das fidelidades pessoais do Pedro, das ponderações de Sampaio, do silêncio do filósofo da sicuta, dos indígenas praticantes das pontes, ou da cara aziaga do Jorge Costa. Um puto atira fogo pela boca, as caixas da FNAC têm bichas descomunais e os duodécimos na boca sensivel de Ferraz sabem já a Dame Blanche. A crise está ultrapassada.
Esse grande esculpido

Entro no restaurante O Funil - passe a publicidade (come-se bem, pelo menos) - e o gerente recebe todas as pessoas com um amplo sorriso. Depois repetirá sempre a mesma frase: - "hoje há muitos lugares, é que já começou o fim-de-semana!"
E fica-se a conhecer a ideia de tempo que se gera na cabeça de um português, na véspera de uma Quarta-feira que é feriado. As pataniscas com arroz de feijão estavam óptimas.

domingo, 28 de novembro de 2004

Os nossos cronistas

Os nossos principais cronistas encarnam muitas vezes o personagem Martin que Voltaire criou para explicar a Cândido que os gaviões e os homens jamais mudam de carácter. São pedagogos à sua maneira, enchem três a cinco colunas num jornal diário para defender um único ponto de vista, mas sempre com o intuito de fazer crer, ou de conquistar a alma do leitor para a sua própria navegação.
Existe um único cronista que não tem preocupações dessas, até porque nada o transborda de afectos. Com duas breves colunas apenas diz o que tem a dizer, breve e escorreito, e sobrepõe sempre dois registos: um intelectualizado, às vezes geometricamente histórico-científico (ou, pelo menos, querendo vincular-se nessa legitimação por mérito próprio), um outro rebuscado na voz do povo corrente, na oralidade mais elementar, no diz-se diz-se que sabiamente intercala no meio de frases, mas com uma demarcação que traduz por aspas (palavras como “canalha”, “indígena”, “populaça”, etc. aparecem assim como oriundas doutro mundo).
É de um sincretismo com esteio amargo e rédea curtíssima que este último tipo de crónica vive. E por isso contrasta profundamente com a afectividade apologista, pegajosa e demoradamente analítica que se confunde, ao fim e ao cabo, com o estilo maioritário dos nossos cronistas.
Nomes às coisas? Para quê?

sábado, 27 de novembro de 2004

O interface nacional

Haverá esquerda e haverá direita, é verdade. Para mim, essa discussão, embora nobre, tende, hoje em dia, para uma certa voga esterilizadora. Sobretudo porque não reflecte os embates múltiplos e as posições singularizadas que se agenciam no mundo contemporâneo, nas suas mais variadas escalas.
Desde que o universo bipartido e vertical da guerra-fria se esboroou que, num mesmo movimento, se foram diluindo os quadros doutrinários que tutelavam posições, muitas vezes independentemente da racionalidade e da pertinência exigida por cada caso concreto. Era a luta movida pelo espírito de corpo. Era a linguagem do bardo contra a linguagem do outro bardo, sem que a realidade, pelo meio, interferisse ou fosse acautelada e, em primeiro lugar, devidamente cuidada.
Felizmente, o ambiente finissecular abriu a democracia para uma nova noção de espaço público hipertecnológico, tendencialmente liberto da excessiva redoma doutrinal. Essa abertura é histórica e culmina uma caminhada bastante culturalizada, porque, desde logo, intimamente ligada ao devir do Ocidente após o século XVIII. Bem sei que a banalização do mal - refiro-me sobretudo ao terrorismo - também entrou recentemente na ordem do dia, na medida em que se foram esvaindo, com notória celeridade, as barreiras mentais que separavam secularmente o segno do não-segno (palavra que, na Idade Média, significava “tudo aquilo que escapa à ordem natural das coisas”). Se tal não tivesse acontecido não havia, em alguns sectores da nossa sociedade, tanta relativação face ao hiper-terrorismo (é curioso que o líder parlamentar do partido liberal holandês - VVD -, o senhor Jozias van Aartsen, tenha ontem criticado o governo holandês pela sua relativa contemporização face ao terrorismo).
Seja como for, em princípio, o ambiente de abertura é sempre positivo, embora, no reverso, acabe por atrair para o interior dos seus sistemas elementos de caos que pululam nos intervalos entre as várias ordens que convivem e determinam posições e multiplicidades. É esse o mundo em que vivemos e é nessa complexidade que o primado da dicotomia esquerda-direita se me revela, hoje em dia, no mínimo, inerte e desajustada.
Contudo, observo atentamente a existência de meios que forçam e vincam o “ser de esquerda” e o “ser de direita” como modalidade essencialmente afirmativa.
Não é o caso do partido comunista, pois o que aí domina é a esteticização esotérica e redundante da linguagem, ou seja, “os trabalhadores” para o PCP significam os “trabalhadores para o PCP” e pouco mais. Não há grande relação entre a realidade pragmática e as palavras de ordem intrínsecas e “inclinadamente consensualizadas” que ilustram a metafísica comunista.
Já grande parte dos manifestos do Bloco de Esquerda (e dos seus activos blogueadores), dos acenos nostálgicos de Manuel Alegre, das determinações organicistas de Vasco Rato (e dos seus co-blogueadores de O Acidental) e do inadequado ênfase algo ressentido de Portas delineiam essa modalidade expressiva.
No fundo, estamos a falar das margens do sistema e das dobras que, de algum modo, se auto-exilam à abertura que, na nossa periférica terra, tenderia e tende sempre para um inevitável mimetismo. Daí que, à direita, nestes sectores mais estriados, haja alguma permeabilidade aos nacionalismos e outro tanto de desconfiança em relação à Europa. Daí que, à esquerda, nestes sectores mais estriados, haja permeabilidade à autofagia (o inimigo é sempre o Ocidente) e uma grande desconfiança face a tudo o que soe a América.
Este jogo quase simétrico documenta bem a necessidade de criação de barreiras, muitas vezes imaginárias, onde dantes existiam quadros doutrinários fixos. Por outro lado, este jogo de posições ilude a real dimensão do nosso país e desfoca a intensidade do puzzle global contemporâneo.
Muito deste jogo é pura linguagem para consumo descartável. Grande parte do que ouvimos e lemos passa por aqui. É este o interface que mais facilmente se torna visível. E, no entanto, ele tem a sua origem numa extrema minoria.
Também isso é o que permite e deseja uma sociedade aberta.
Perversão?
Talvez.
À boleia na blogosfera

Pus-me à boleia na blogosfera, entre maresia perdida e um deslumbrante luar quase a apascentar a ilusão que emerge nas autoestradas vazias. E ouvi dizer a certa altura que devíamos lutar pela mudança dos tempos. Mas eu nunca entendi bem o que existe no tempo que possa ser mudado. Já se sabe que toda a gente quer manipular, mas para quê? (talvez por ser fácil demonstrar a existência de vida noutros planetas). Vendo bem, vivemos todos num mundo de adolescentes retardados. E, assim sendo, pouco mais há a fazer do que ligar a aparelhagem e voltar a ouvir pela milionésima vez os álbuns dos Kings of Convenience. No fundo, é tudo uma questão de interpretação. Até porque, quanto mais se interpreta, mais se constata que o mundo não passa de uma metáfora cheia de metáforas por dentro.
E quando já cansado, após boleias e mais boleias, me passou pela cabeça esperar um pouco numa área de serviço, confesso que tive uma sensação estranha. Enquanto ali estava, sem grandes horizontes, os meus olhos disseram-me adeus e deixaram-me como Édipo em Colono. Para terminar esta breve viagem, devo ainda dizer-vos que ouvi dizer duas coisas simples e interessantes a um pastor. Primeiro, segredou-me ao ouvido que tinha começado o julgamento da Casa Pia. Depois, disse em voz bem alta que a Europa tinha deixado de ser uma ideia de um espaço de liberdade para passar a ser uma espécie de monstro ultra-regulado. E as ovelhas responderam em coro, seguindo um estilo jurássico e contundente: Venha o diabo e escolha!
Inclinações diabolizadas

No Congresso do PCP houve indignação quando alguém propôs que, para além do comité central, também os militantes deveriam poder livremente propor listas alternativas. A argumentação quase irada dos indignados e sequiosamente revoltados limitou-se a uma palavra: fraccionismo.
Fraccionismo entendido como um demónio indiscutível, cujo conteúdo e significado seria no mínimo indiscutível.
Ouvi na TSF a repetição dessa incompreensível e ansiosa intolerância.
É claro que não me choco, pois sei o que a casa gasta. Mas a coisa lembrou-me uma outra passada em 1588 (no fundo, é essa, cada vez mais, a actualidade do partido comunista português).
Nessa data, surgiu uma obra fundamental que se propôs separar as águas entre, por um lado, as profecias legalmente válidas e, por outro lado, as que a ortodoxia deveria proibir. A obra foi escrita por Horozco y Covarrubias e teve como título, o Tratado de la verdadera y falsa prophecia.
O seu prefaciador, o franciscano Fray Juan de Colmenares, referiu-se do seguinte modo às intenções da edição: "(...) desengano das invenções e enredos do demónio nas falsas revelações que em diversas partes ha sembrado estos dias...".
Concordâncias quase prefeitas.

sexta-feira, 26 de novembro de 2004

Vinte e quatro de Julho

Esperar três horas a ver a hora de ponta. A ponte, ao longe, iluminada. Sei que, nestas alturas, qualquer capricho tem voz enovelada, dormente, quase acrobática.
Notícias da Holanda

Na sequência de um inquérito governamental realizado na Holanda, ficou a saber-se ontem que, nos últimos dois anos, 86.000 pessoas declararam de forma fraudulenta rendimentos baixos para poderem receber subsídios de renda. Embora, com um desfasamento de mais de vinte meses, a verdade é que os inquéritos funcionam nos Países Baixos e vão regularmente ao parlamento de Haia. Os tribunais geralmente também batem à porta a horas. O exemplo é curioso, sobretudo quando o estado social - e, em primeiro lugar, a questão das reformas - se está a tornar, hoje em dia, num tema, num problema e também numa preocupação que atravessa todo o leque político neerlandês. Mais do que adormecer, há que saber agir. Entre nós, mais do que atacar por atacar as subvenções que são justas e adequadas, valeria a pena inquirir a sério e punir, quando é caso para tanto. Economia de argumentação, agilidade na acção. E também acredito que o estado social, infelizmente, não tem a imortalidade da alma platónica.

quinta-feira, 25 de novembro de 2004

Nefertiti - 2

Continuei hoje a publicar no Minitempo - o blogue subcutâneo do Miniscente - as árias da ópera de José Júlio Lopes, Nefertiti, de que fui autor do libretto (a dita esteve em cena no Teatro da Trindade, em Fevereiro de 2000, e o texto foi escrito em Março de 1999).
Não resisto

Ontem, um aluno (de Seminário de Escrita Criativa) chamado Miguel Silva - fixem este nome - escreveu num ápice e leu em voz alta este texto:

A história do Capuchinho Preto

O Capuchinho Preto corre em direcção à casa da avozinha, tropeça e rebola vale abaixo, embate numa árvore e perde as duas pernas. Continua a rebolar a grande velocidade, vai contra um pedregulho e perde os dois braços, rebola e rebola e rebola aceleradamente até esbarrar nas escadas da velha casa, a cabeça desprende-se do corpo e bate na porta que se abre. O olho salta fora da cabeça do Capuchinho Preto e voa em direcção à cama da avozinha que acorda sobressaltada: "ai! que horror, um bicho!". E esmaga o olho da neta na parede.

Não consegui resistir a publicar este texo. Lembram-se do anúncio da cerveja preta?
Idade do bronze

A partir de hoje já temos uma reformatada licenciatura em cerâmica. Somos um país feliz (Portaria n.º 1447/2004. DR 277 SÉRIE I-B de 2004-11-25, Ministério da Ciência, Inovação e Ensino Superior Autoriza a alteração do plano de estudos do curso de licenciatura em Cerâmica ministrado pela Escola Universitária das Artes de Coimbra).

quarta-feira, 24 de novembro de 2004

Emissão interessante

"Portaria n.º 1420/2004. DR 274 SÉRIE I-B de 2004-11-22, Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações lança em circulação, cumulativamente com as que estão em vigor, uma emissão de selos alusiva à «Moda Portuguesa»"

Antes ente do que nada!
Corridas

Hoje foi dia de grandes mexidas diplomáticas (ver Diário da República 276 série I-A de 2004-11-24). Pelo menos em Atenas, Maputo, Viena, Copenhaga e Teerão.
Extraordinário

Acabo de dar a aula a que me referia no post crónica do dia e não é que, de modo espontâneo, sete entre setenta alunos se me revelam, no final da aula, como blogueadores! O que quer dizer que, numa turma de finalistas de Ciências da Comunicação, dez por cento, pelo menos, se espraiam nesta rede de respirações e escritas contíguas. Deixo-os aqui para que dilatem as suas múltiplas entradas e saídas e, naturalmente, os respectivos linques: são, portanto, os casos da Carolina ,do Pedro, da Patrícia, da Catarina, do António do Sérgio, do Tiago , e ainda o blogue desportivo do Gabriel, Pedro e Tiago.
Santana face a Judite

Santana disse que amava o povo e Portugal (a ordem é arbitrária) como eu digo que gosto de galinhas ou de vertigens. As coisas equivalem-se, ficam no uso da linguagem. Santana diz sobretudo aquilo que espera que seja ouvido (calculando a perlocução através de clichés), do mesmo modo que se endireita na cadeira e afina a gravata, quando a câmara se aproxima da cena após o intervalo. Santana esgrime arduamente com a expressão facial, quando se fala de sestas, ou da miséria que é falada nos média. Santana face a Judite: um caudal inútil. Depois disto, apenas retenho, por associação, o delongado sorriso de Guterres. Mas aí ainda havia uma pinta de doutrina. Demissionismo, esse, há nos dois lados. Um por migração deliberada, o outro por redução pura e simples à categoria de rumor. Sim, Santana - o Santana político - é um rumor. Nos Donos da Bola, embora fosse do Sporting, sempre tinha mais piada. Até porque desdizer e dizer não são coisas opostas no mundo do futebol, mas deviam-sê-lo face a Judite. Ou face ao país?
Crónica do dia

Chego a Lisboa num daqueles dias adormecidos, arrastados pelo sol vagaroso, tão sonâmbulos e antigos quanto o olhar demorado do viajante. Há dias como este que não chego a saber se estou de chegada, ou se estou de partida. Prefiro espreitar o brilho dos estuários. Seja como for, hoje, nas aulas, falarei de teo-semiose, darei o exemplo de Santo Agostinho e, mais tarde, daquela transição que se assiste dentro do gótico do século XIII e que, segundo alguns autores, reflecte o contraste entre a visão orgânica que dá realce à espécie (visão tomista) e a visão de Duns Scot que já dá algum realce à individualização (haecceitas). Depois, reuniões, reuniões, reuniões e a espessura quase viciosa de voltar a olhar o brilho dos estuários (escalarei, por certo, o jardim das Janelas Verdes. Encontro lá, sempre que posso, os fantasmas do meu antepenúlitmo romance, O Trevo de Abel).
Prophetic Turn

Propus-me prefaciar um ensaio que escrevi há uns anos e que irá ser publicado em 2005. No entanto, no meio do turbilhão, não é que estou a dar em mim a escrever um outro e novíssimo ensaio! Já nem sei bem como parar, ou como avançar. Hesito entre a velocidade de cruzeiro e a branda contemplação do já dito, do já escrito. O interessante é que a matéria do ensaio mais antigo - sobre literatura profética - vai encaixando de modo quase milimétrico na actualidade que vou interrogando. É como se uma viragem profética unisse os dois topics e os colocasse à beira de uma via sinuosa que os une sem que se saiba porquê. É nessa via que vou escrevendo, que fluo ao sabor da oportunidade. Há verdades nómadas, mas verdades. Só em movimento, em jeito de travelling acelerado, errático e errante é que se desvendam. É provável que o futuro ensaio, feito de várias camadas e múltiplos acenos, acabe por receber um nome diferente daquele que era o seu primeiro anunciado (e que, por sinal, era bem clássico). Veremos.

terça-feira, 23 de novembro de 2004

Nefertiti

Acabei de colocar no Minitempo - o blogue subcutâneo do Miniscente - as primeiras quatro árias da ópera de José Júlio Lopes, Nefertiti, de que fui autor do libretto. Esteve em cena no Teatro da Trindade, em Fevereiro de 2000, e o texto foi escrito em Março de 1999. Nos próximos dias continuarei a publicar estes versos tonitruantes e plenos de eco como convém à cena (existe uma micro-edição deste libretto que está totalmente esgotada. Imagine-se o sucesso!)
Portugal metafísico

Ontem, Almerindo Marques disse no Parlamento que, caso a escolha tivesse recaído no primeiro classificado da lista ordinal (ainda a questão do correspondente da RTP para Madrid), então um "alto quadro" acabaria por sair ofendido da RTP e colocaria o país inteiro em sarilhos. E acrescentou que só chamaria nomes às coisas se se fechassem as portas da sala. E elas fecharam-se e ele terá contado tudo. Resultado: nenhum requerimento das oposições, boquinhas fechadas, audições tranquilas. E eu pergunto: que terra é esta em que todos desconhecemos o nome de um "quadro" que traria um verdadeiro maremoto ao país, caso fosse contrariada a sua vontade?
Paz na estrada

Antes de se fazer à estrada, convém passar por aqui. Para além de todos os valores que são essenciais ao aprofundamento da democracia, este é vital para que possamos dizer que vivemos num país civilizado. Não é ainda, infelizmente, o caso.

segunda-feira, 22 de novembro de 2004

Pergunta inocente à hora do crepúsculo

Sinto uma espécie de atemorização quando pressinto ou chego mesmo a ouvir alguém, do outro lado do telefone, que fala, fala, fala e jamais se cala. Muitas vezes dou comigo a não fazer telefonemas essenciais, de que dependeriam coisas realmente importantes para mim, apenas porque, do outro lado da linha, existe uma inevitável e insuportável voz que não sabe silenciar-se depois de dito o que há a dizer. Serei só eu que funciono assim?
A cidadania para além da indiferença

A comemoração do dia mundial da memória das vítimas da estrada, que decorreu no passado dia 21 de Novembro, foi impressionante e marcante. E não se pense que a adjectivação seja, neste caso, um detalhe retórico ou uma singularidade expressiva. Longe disso. Quem se deslocou a Évora apercebeu-se de que existe um novo movimento de cidadania que está a alargar a sua influência no país. Milhares de vozes ocultadas e reiteradamente silenciadas, nas suas histórias trágicas e pessoais, parecem agora ter despontado como se rompessem a redoma que sempre as fez sentir e perceber o abismo. Subitamente, estas vozes invisíveis e sem direito a rosto decidiram enfrentar em conjunto o pranto, a injustiça e a revolta demasiado contida.
No fundo, para além das múltiplas razões das mortes na estrada, o que também está em causa é o modo miserável com que o estado trata as vítimas e as suas famílias depois dos “acidentes”. Ainda que o estado sejamos todos nós e que a queixa seja um sentimento pouco nobre, a verdade é só um forte desafio de cidadania democrática poderá contribuir para alterar a pesada tradição que faz com que os nossos responsáveis ajam com tanta falta e falha de sentido. Como se pode compreender, por exemplo, que, num dia com um significado tão profundo, para além de autarcas, governadores civis, deputados e de um representante da Casa Civil da Presidência da República, não se tenha visto ninguém do governo na cerimónia?
Talvez uma enorme apatia acumulada, apenas disfarçada com a fachada das campanhas pré-estivais, possa, de algum modo, justificar uma tal negligência. E essa apatia tem uma história real que foi documentada de modo muito directo e vivo por alguns dos interlocutores da guerra civil rodoviária que se deslocaram a Évora. Existem três aspectos que salientaria:
É comum o Ministério Público não permitir o acesso aos veículos sinistrados ou, aqui e ali, dilatar perversamente as tramitações legais que a morte pressupõe, quando não interfere mesmo, de modo directo, nas escolhas dos advogados das famílias das vítimas (ou chega até a mover processos contra elas). O segredo de justiça, em muitas das ocorrências traduzidas pela palavra “acidente”, constitui um atropelo ao desejo mais elementar das famílias poderem viver um luto pacífico e sereno.
É comum que a tragédia tenda, não para a racionalidade de um apuramento de causas até às últimas consequências, mas sim para a persistente legitimação da natureza de “acidente”, como se tudo o que acontece nas nossas estradas, ou na vida, fosse motivado pelas circunstâncias, pelas contingências, pelo fado saloio e indígena ou pelo determinismo mais inimaginável. Para já não referir os enigmáticos enredamentos que se criam em torno de grande parte dos acidentes mais aparatosos que, por sua vez, se convertem amiúde numa espécie de pacto podre de silêncio e mutismo. E o que sobra, quase sempre, nestes casos abjectos, é o desconhecido e o nada que se devolvem, sem qualquer face ou nome, à inquietação questionadora que é natural nas famílias das vítimas.
É comum ainda a imensa indiferença das nossas autoridades para com o estado dos que sobrevivem à tragédia e que se encontram, portanto, do lado da vida, mas em condição de profundo e continuado trauma. A sobrevivência a situações limite atravessa Portugal de lés a lés como jamais aconteceu em qualquer guerra em que Portugal tenha estado envolvido. Um mundo nasce e um mundo morre em décimos de segundo e é por isso normal e legítimo que exista, entre nós, hoje em dia, um Secretário de Estado da Defesa e dos Antigos Combatentes. O que é menos normal é que os novíssimos combatentes da causa mais perdida de que há memória em Portugal tenham por parte de quem dirige o país um tão grande défice de atenção, de cuidado e de amparo.
É verdade que o estado é chamado a intervir em tudo e em nada, às vezes muito acima do que é ou seria necessário. Estou de acordo. Temos uma cultura de parca iniciativa e de desmedida lamúria. Mas neste caso, nesta murmurante e delongada tragédia que perpassa Portugal, está tudo ainda quase por fazer. Repito: o estado somos todos nós e compete a todos nós modificar o que há a modificar. O caderno reivindicativo apresentado em Évora, no passado dia 21 de Novembro, contempla soluções técnicas interessantes e muitas delas, desde logo, presencialmente, acatadas pelo Director Nacional de Saúde.
Pena é, mais uma vez, que o governo não tenha comparecido através de um dos seus membros, o que, quer se queira quer não, apenas revela uma imensa falta de empenho e de interesse face a uma das maiores epidemias que o país está, no dia a dia, a sofrer.

sábado, 20 de novembro de 2004

A blogosfera explicada às crianças

Obrigado Pedro. Sabe bem reconhecermos o nosso nome a sobrevoar bem alto e airosamente o terreno quase sempre minado da paroquialidade insultuosa. É um tapete persa onde nos encontramos os dois, embora não nos conheçamos pessoalmente. O que ainda torna a coisa mais interessante.

sexta-feira, 19 de novembro de 2004

A palavra a Dylan Thomas

Light breaks where no sun shines;
Where no sea runs, the waters of the heart
Push in their tides;
And, broken ghosts with glow-worms in their heads,
The things of light
File through the flesh where no flesh decks the bones.

A candle in the thighs
Warms youth and seed and burns the seeds of age;
Where no seed stirs,
The fruit of man unwrinkles in the stars,
Bright as a fig;
Where no wax is, the candle shows its hairs.

Dawn breaks behind the eyes;
From poles of skull and toe the windy blood
Slides like a sea;
Nor fenced, nor staked, the gushers of the sky
Spout to the rod
Divining in a smile the oil of tears.

Night in the sockets rounds,
Like some pitch moon, the limit of the globes;
Day lights the bone;
Where no cold is, the skinning gales unpin
The winter's robes;
The film of spring is hanging from the lids.

Light breaks on secret lots,
On tips of thought where thoughts smell in the rain;
When logics dies,
The secret of the soil grows through the eye,
And blood jumps in the sun;
Above the waste allotments the dawn halts.
O Natal das muitas escolhas - 2

Eis três possibilidades de pergunta para o referendo europeu que se aproxima:

1 -Concorda com a Carta de Direitos Fundamentais, a regra das votações por maioria qualificada e o novo quadro institucional da União Europeia, nos termos constantes da Constituição para a Europa?

2- Concorda que o sentido do Ser venha a ser aquele que apenas parece vislumbrar o pensar e o dever na sua distribuição originária face ao ente, ainda que ponderada a regra das votações qualificadas?

3- Concorda que o Ser enquanto Logos possa ser a (re)união originária e não apenas um ajustamento e amontoado (Geschiebe und Gemenge) em que tudo afinal tem o mesmo valor, incluindo a maioria qualificada?

(abre-se agora um período de votação a que concorrem as três alternativas. A mais votada terá direito a um chapeuzinho azul gentilmente cedido pela Sagres. - Mas que Sagres? - Deixemo-nos de perguntas, vamos lá meninos!)
O Natal das muitas escolhas

Eis três perspectivas crípticas a concurso sobre a actual relação entre PPD/PSD e CDS/PP:

1-Um peixinho da horta e a boca do inferno por onde morre o peixe graúdo.

2-A Gabardina negra de Pinto da Costa e o ursinho de Natal do Continente.

3-A lâmpada de Aladino e o curto-circuito perdido no olhar de Sharbat Gula.

(abre-se agora um período de votação a que concorrem as três alternativas. A mais votada terá direito a um chapeuzinho azul gentilmente cedido pela Sagres. - Mas que Sagres? - Deixemo-nos de perguntas, vamos lá meninos!)
Quem fala assim não é gago:

"Esse director, se eu fosse o director nacional da PJ, já estava demitido. É que a PJ não faz favores à PGR, investiga para que o MP possa exercer a acção penal. Isso é o que está na Constituição. E esse senhor director não deve ter ideia nenhuma das funções da PJ e do MP. Ou estava a provocar. Como já disse outras vezes, e noutras sedes, o MP e a PJ não são centros de poder, são núcleos, instituições do estado democrático e só se compreendem para o exercício democrático das suas funções. Não admito, no estado democrático, que um polícia desafie a PGR."

Se não fosse Portugal, que esperança teríamos nós?
Ofertas pré-natalícias

Aquela Altíssima Autoridade com aquela prosódica cinzelada, com aquela retórica paladina, com aquela linearidade interpretativa e com aquela indisfarçada acutilância amadora (coerências forçadas só sabem bem no concurso da Teresa Guilherme) está mesmo a precisar de reforma. E para o ministro (não me lembro agora do nome do senhor), diga-se, este foi o melhor presente que poderia ter recebido, no momento em que o reconstruído PPD/Portugal Generation começa a dar os seus primeiros - e ainda ínvios - passos.
A desesperança da emergência

A acidentada hora e meia de Putin em Lisboa.
A lei das esperanças por Isidoro de Sevilha

"Entre sperare (tener esperanza) y expectare (esperar). Expectamus lo bueno y lo malo, speramus solamente lo bueno. Y Virgilio, de manera admirable, aparta el valor proprio de la palabra de su significado estricto diciendo: "Si puede esperar (sperare) dolor tan intenso", siendo así que todo aquello que el espíritu aborrece se dice con más propriedad timere. Pero los gramáticos se refieren a ello diciendo: dijo sperare en lugar de timere. Y Lucano, manteniendo la distinción dice: "permítasele la esperanza (sperare) al que teme" (De Differentiis,I,212,)".

quinta-feira, 18 de novembro de 2004

Horizonte negro

O dia mundial da memória das vítimas da estrada é assinalado já no próximo Domingo. De ano para ano, há mais e mais amigos que partem. Também comigo isso aconteceu este ano. São sempre acidentes, contingências, circunstâncias. Tudo é sempre obliterado, elidido, desculpado. Raramente alguém, seja que entidade ou instituição for, chama crimes aos crimes. Mais do que guerra civil, existe no terror das nossas estradas um halo perverso de impunidade. Peço solidariedade para esta causa a todos os blogueadores. Eu estarei lá.

quarta-feira, 17 de novembro de 2004

Inclinações

Vinha eu há pouco em pleno IC 19, uma das vias mais poéticas do nosso pequeno rectângulo, quando ouvi na rádio uma notícia espantosa. Própria de cardeais, de sínodos místicos ou de Dan Brown com turbo na perífrase. Imagine-se que já não sei que órgão do PCP terá prefigurado Jerónimo de Sousa como futuro putativo e totalmente imprevisível candidato a secretário-geral da agremiação. Mas a frase essencial que repunha o acto na realidade, atribuindo ao ex-candidato presidencial a certeza do cargo a ocupar era esta: existe sobre o dito J.S. uma "inclinação consensualizada". Nem Isidoro de Sevilha a diferenciar quadros semânticos, nem Sexto Empírico a rebater os Dogmáticos, nem Santo Agostinho a evocar os Epicuristas foram tão longe nesta retórica hipostática quanto o conclave deste partido único que a nossa pátria se orgulha de ver a respirar no seu seio!

terça-feira, 16 de novembro de 2004

Aviso quase urgente

Para quem queira comunicar comigo com urgência, até ao fim do dia de amanhã, dia 17/11/2004, agradecia que me escrevesse - devido a problemas momentâneos no servidor SAPO - para o mail alternativo: luis.carmelo@iol.pt
Obrigado.
Dois aforismos colados um ao outro

1
Os bárbaros são todos aqueles que não são (falam) como nós?
A própria onomatopeia cartografa já o outro lado de lá da fronteira.
Os estóicos aprenderam no seu tempo que existe uma grande instabilidade e uma razoável elasticidade entre o uso das nossas linguagens e aquilo que queremos exprimir, precisamente porque habitavam nas colónias gregas, local variado e difuso onde as línguas e os hábitos mais diferenciados se misturavam. Eles viam diante dos seus olhos os bárbaros e respiravam com eles a sua filosofia e o modo como esta explicava a significação.
E apesar de tudo, a terra rodava. O culto de qualquer coisa era comum a todos.
2
Existe uma redundância certeira e obviamente irrecusável, quando Wittgenstein afirma que o sentido é aquilo que a explicação do sentido explica. Ou seja, o sentido só se refere àquilo que a partir dele se consegue explicar. Em certos casos é muito mais o que não se consegue explicar do que o que se pode explicar. Há épocas que acolhem esse tipo de casos, dir-se-ia mudos, do mesmo modo que um príncipe recebe a sua desejada princesa. Uma época de terrorismo que opõe uma compreensão primeira do mundo de tipo religioso a uma compreensão primeira do mundo de tipo não religioso é uma época que tende, naturalmente, a coabitar com alguma falta de sentido.
Apesar de tudo a terra roda. E o culto - o sentido do culto - deixou de ser uma respiração comum.

segunda-feira, 15 de novembro de 2004

Está bonita a festa, pá!

O estado moderno só encontrou a sua "plenitude com a aparição de uma nova religião: o nacionalismo". Quem o disse foi Julio Galán, um jovem investigador da Complutense. Não posso estar mais de acordo, até porque nunca fui um nacionalista. Aquilo que a nação veio traduzir, no final de setecentos, não se esvai nem se expande por se ser ou não nacionalista. É irrelevante. Do mesmo modo que as grandes teleologias da esquerda de meados de oitocentos nunca esvaíram nem nunca expandiram aquilo que é o devir social. Eis duas religiões da modernidade: uma conotada com a direita, embora originalmente bastante jacobina: a nação; outra conotada com a esquerda, embora originalmente de direita (a avaliar pela matriz do Leviatã de Hobbes, por exemplo). Confusões interessantes, quais as que se revelam pela boca do imenso povo dos fóruns radiofónicos da manhã que hoje sabiamente analisou o congresso de Barcelos.

domingo, 14 de novembro de 2004

Um figo de confiança

Não vi o congresso do PSD. Andei pelos Algarves a percorrer o roteiro das figueiras. Mar azul, breve, sem ondas, sereníssimo. Apenas ouvi no rádio, já em plena Via do Infante: “Gosto muito deste estranho partido, deste partido que se enraizou nas entranhas do país. Gosto muito de todos vocês e sei que vocês sabem que eu precisava muito da vossa confiança.”

sábado, 13 de novembro de 2004

As novas mortes globais

Lembro-me de Paris em 1997 e lembro-me, agora, mais recentemente, de Paris no ano de 2004. Memórias bastante presentes. A cena passa-se num viaduto nocturno e num hospital militar da periferia. Paira a névoa em vez da certeza. Ambos os lugares ilustram algum anonimato e inebriamento. Há quem lhes chame “não-lugares”. Num e noutro caso, comunga-se algo de muito parecido: subitamente, a morte terá interrompido de forma drástica o quotidiano.
Sem que se cumprissem augúrios extraordinários, a morte, ou melhor dizendo, as duas mortes como que suprimiram a natureza dos actores em benefício de uma aura que é a aura do tempo real. A causa imediata dessas mortes é elidida, diferida, ou até eclipsada, através de uma encenação grandiosa: cada minuto dos treze dias em que um dos actores permaneceu no Hospital Militar de Paris parece corresponder à longa convalescença de argumentos e contra-argumentos que, a pouco e pouco, foram dissociando um presumível acidente de um crime, ou de uma gravidez indesejada.
As imagens fortes que esbatem a conjectura geral (o que é que se terá passado?) tornam-se brancas, mudas e silenciosas. Mas são elas, ao fim e ao cabo, que acabam por dominar o apelo e o rasgo da notícia. São elas que acabam igualmente por radicalizar a interrogação das audiências. O pacto perfeito. Até ao momento em que deixa de haver qualquer interesse pela resposta. E o que restará, para além desse preciso momento? Perguntar-se-á.
Talvez a compaixão em cascata, a compaixão pela compaixão. Uma espécie de dor asséptica, esterilizada, desideologizada. Uma dor sem corpo, mas uma dor. Uma dor que dá a volta ao mundo. E o efeito dessa dor chega a ser cumulativo: à medida que as telemensagens realçam as ocorrências trágicas, mais estas se ficcionalizam e dialogam com a sensação de respirarmos intimamente o directo. Nunca a carne desses actores esteve tão próxima da nossa. E, no entanto, é no sofá que se distende a ubiquidade do nosso universo sem fim.
O que subitamente motiva o grande público é poder cotejar o perfume diáfano da tragédia. Em todo o lado do planeta e ao mesmo tempo, sabendo-se, embora, que essa simulação maior não passa de uma cena única e irrevogável, onde a humanidade é embalada face ao abismo que é o seu. É assim que se propaga uma dor antiga e sem sentido. Mas, mesmo assim, uma dor. Uma dor parisiense.
Esta é a grande cena das mortes globais da actualidade: elas repõem o homem numa desmedida arena mitológica, embora, ao contrário dos tempos antigos, essa reposição nos devore através do fluxo planetário de imagens e não já através de uma imaginação autonomizada, local e culturalmente colonizada.
Ambos os actores aspiram agora a uma espécie de transmigração, jamais imaginada nos tempos em que a palavra modernidade passou a ter sentido: Arafat, já não o guerrilheiro odiado e amado, saído da poeira de Gaza, do terror e da natureza de uma nação que ajudou a criar; Diana, já não a princesa amada e odiada, saída de um morris para as grinaldas da realeza, dos rumores e dos gestos aventurosos.
Um e outro tornaram-se bruscamente habitantes da nova Paris que é uma cidade sem terra, sem causas, sem lugares e sem afectos. Diante de nós, apenas fica a imagem que excita a imagem: um viaduto na penumbra e o extenso globário meio azulado que separa o hospital da sua sombra mais remota.

sexta-feira, 12 de novembro de 2004

Referendo

Vasco Pulido Valente levanta hoje no Público o problema essencial que pode, aliás, ser postulado através de uma simples questão: que relação existe, de facto, entre o texto do Tratado Constitucional Europeu e aquilo que é a realidade actual, pura e dura da Europa? O habilíssimo e perspicaz cronista discorre muito sucinta e cirurgicamente acerca deste “parentesco imotivado”, como se diz na pátria semiótica tradicional. Hei-de voltar ao tema um dia destes, sabendo, à partida, que a tentação de resolver as fracturas da realidade através de actos de linguagem (pomposos) é algo tão clássico como o pavão a abrir cautelosamente a sua ampla e gongórica cauda.

quinta-feira, 11 de novembro de 2004

A morte de Arafat

Arafat morreu hoje, após vários dias em que a sua morte foi sendo anunciada e sempre protelada. Poderá mesmo dizer-se que Arafat morreu há já algum tempo (estou certo disso), mas que apenas agora as emoções mais opostas se puderam expressar através de um calculado efeito em diferido, ou em câmara lenta.
Para mim, Arafat foi um resistente de outro tempo que acabou por contribuir para o reconhecimento e consciência de pertença a uma nação. E, no entanto, fê-lo e protagonizou-o amiúde do pior modo e sem ter em conta outros horizontes vitais da história.
Depois das várias guerras defensivas que Israel soube vencer em plena guerra-fria, Arafat desenvolveu um sentido (ou um clímax) singular de progressiva vitimização que acabou por marcar posição na cena internacional. Os jogos Olímpicos de Munique, a fase dos sucessivos desvios de aviões e o terrorismo selectivo precederam a primeira guerra aberta - em 1982 - contra as organizações palestinas, cujo fim último era (e continua a ser em muitas franjas) o aniquilamento do estado de Israel e a não aceitação da sua existência, enquanto tal.
Essa guerra levou o exército israelita a Beirute e ditou a passagem de Arafat para Tunes. Onze anos depois, em 1993, o acumulado clima de radicalização daria subitamente origem a uma tentativa fulminante e corajosa de paz. Mas os extremismos de uma segunda geração (a primeira intifada iniciou-se em 1986) acabariam, com os anos, por condenar a tentativa ao fracasso, embora sempre reatada e neutralizada, pelas mais diversas vias. Adiante-se a este facto a grande viragem de 09/11/2001 que viria contribuir decisivamente para que o terrorismo generalizasse as formas suicidárias de terror mais indiscriminado.
Durantes estas últimas décadas, Arafat nunca se predispôs a imaginar um desígnio estratégico de cariz democrático. Durante estas últimas décadas, Arafat foi sempre o símbolo das várias intifadas e, ao mesmo tempo, o arauto de um espírito revolucionário que dificilmente deixou de pactuar com as alas mais radicalizadas.
Em certo sentido, Sharon constituiu um elo de convergência com estas atitudes de fractura, embora sempre legitimado, refira-se, pelo sufrágio universal e pela inelutável defesa dos seus face às novas formas e normas de terror global.
A vitimização - elemento sensível do universo judaico-cristão - e algum escorço de anti-semitismo têm sido particularmente permeáveis ao politicamente correcto que filtra as abordagens dominantes dos opinion makers ocidentais. Essa permeabilidade tende hoje (no dia de hoje) a confundir Arafat com um herói mitológico, do mesmo modo que Che Guevara foi de algum modo beatificado, nos anos 60 e 70, em pleno ocidente democrático.
É verdade que Arafat morreu e que toda a nação palestiniana chora: uma nação com direito a terra e a um estado. Mas não nos esqueçamos do holocausto e do grito de vitória universal que uniu as esquerdas e as direitas do planeta, aquando da fundação do estado de Israel.
A memória é curta, traiçoeira e excessivamente selectiva.
Pode ser que o cenário de crise saído da perpétua crise do Médio-Oriente venha a proporcionar, a prazo e aos vários actores em cena nesta região sacrificada, um horizonte de convívio entre estados, povos, tradições e religiões. Para tal, seria necessário dissuadir e demover o espírito revolucionário de que Arafat foi e é símbolo. Para tal, seria necessário negociar o respeito e a aceitação mútuos. Para tal, seria necessário acabar com todas as formas de terror. Uma meta quase impossível, dir-se-á. Ou, pelo menos, um desafio do “tamanho do mundo”, como diria Torga.
Uma política de renovada concertação entre o ocidente e os estados moderados do Médio-Oriente pode ser um factor de peso nesta estratégia. Tentemos ser optimistas neste momento de súbita mudança.

terça-feira, 9 de novembro de 2004

Abraço holandês (met heimwee)



Em frente ao Cemitério De Ooster, em Amesterdão, decorreu hoje a cerimónia de cremação de Theo van Gogh. No ecrã vê-se o colega de Theo, o colunista Maarten van Rossum, a usar da palavra. A minha saudade de outra Holanda, passada e futura, exprime-se aqui com alguma emoção.
(ver meu post sobre o assunto mais abaixo)
Políticos e “merdiáticos”
(adenda questionadora ao amigo MacGuffin)

Não acredito num “masterplan” ou numa “cabala” santanista que envolva tudo e todos, como nunca acreditei numa cabala à Gomes da Silva ou à Ferro. A cabala é um diagrama de essência platónica e acho que almejamos e respiramos, hoje em dia, todos, outra geometria já mais arejada e pragmática.
Sei igualmente que uma sociedade aberta e democrática é, ela mesma, tacitamente, uma emanação das tensões entre todos os poderes. Desde aquele que encerra esta escrita singela até às decisões de Balsemão, de António Mexia ou do senhor Jerónimo Martins. Não há acto que não tenda à decisão e à procura tensa de uma verdade sempre transitória. Nem há agir livre que não se escude no que o possa adjuvar potencial e activamente. As regras estão cá para delimitar e regular o uso da liberdade e, portanto, para nos dizer que vivemos nela, para ela e através dela.
Agora, apesar de todas estas relativações, a verdade é que o governo Santana Lopes vive um pouco à deriva e à margem dos fenómenos reais como se eles caíssem, quais raros cometas, sobre as secretárias ministeriais. Foi assim com o recente affair do MNE (que no parlamento não soube explicar as diplomacias paralelas que tentaram descortinar na Europa casos similares ao de Marcelo), foi assim com a agenda da Ministra da Educação, foi assim com o gato com Arrábida de fora de Nobre Guedes, foi assim com os dissabores de Gomes da Silva (já Marcelo e a PT - de que os nossos impostos são parte do accionista principal - existiam há uns anitos nos respectivos figurinos).
Convenhamos que este desinspiradíssimo governo - a que tudo e “todos” reagem (J.P.P., A.B. ou V.P.V.) sem ser por cabala ou por comum e aristotélica “afecção da alma” - resolveu, ainda por cima, enveredar por um serviço de marketing verdadeiramente desastroso. Herda a redundância da edilidade lisboeta e reata o repentismo futebolístico do seu mentor: ora estimula uma ou outra conferência de imprensa à tarde, ora responde a factos menores de manhã e à noite. Com tal ruído, apressou-se ainda em infelicíssima “comunicação ao país” (o mau gosto igualou-se então ao ridículo cerimonial dos desgastados cem dias) onde sobrou apenas uma palavra: precisamente, o “ruído”.
Com um tal pano de fundo, com um tal contexto de actuação, com um tal aceno concertado e desassombrado, como podem os analistas e os comentadores ficar isentos de conjecturas relacionais onde a sombra do governo e a de outros poderes, mormente os tais "merdiáticos", se adjuvassem? Não é uma sociedade aberta o reflexo do agir livre de todos sob a forma de tensões e alianças, mesmo daquelas que escapam, aqui e ali, à lei (no sentido ético ou da própria prescrição cível)? Não é o poder da conjectura - ou da abdução - um dos modos de interpretar o que liga a indução isolada à verdade dedutiva (é esse, pelo menos, um ensinamento pragmático)? Não estimulará a situação criada pelos impactos do próprio governo Santana Lopes este tipo preciso de conjecturas de que os principais comentadores do país, da direita à esquerda, dão eco?
Não haverá nesse sintoma generalizado, ó amigo MacGuffin, alguma hipocrática verdade? Eu creio que talvez. Eu creio mesmo que talvez sim.
Entre a inocência de um poema da Florberla (Fez ontem 109 anos e onze meses que nasceu em Vila Viçosa) e o axioma de conjura inevitável vai uma imensa distância. Entre ambos os pólos, há muito espaço. Tanto quanto aparentam os sinais que o delimitam: e é aí que está, de facto, a questão. Saibamos, ao menos, dialogar com ela.