sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Cerveja e literatura - 1

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No início do segundo capítulo de Ter Ou Não Ter (1937) de Ernest Hemingway, o protagonista, em jeito de incontinência confessional, revela-nos: "Comi sopa de feijão encarnado e carne guisada com batatas por quinze cêntimos. Uma garrafa de cerveja Hatney levou a conta aos vinte e cinco". O livro (que contém uma cena de pesca incrível) seria, em 1944, adaptado ao cinema por Howard Hawks. E eu pergunto-te, Francisco: conheces esta cerveja? E, já agora, que achas deste projecto de rubrica (para o qual estou mal preparado)?
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Aos leitores solicitam-se sugestões, i.e.: muitas passagens de romance com cerveja!
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(Ter ou Não Ter, Livros do Brasil, s/d, Lisboa, p.32, tradução: Jorge de Sena)

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

O que parece não é

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A avaliar pela análise que está neste momento a ser desenvolvida no Laboratório Nacional de Engenharia Civil, parece que Alcochete é mesmo alternativa à Ota. Saliento sobretudo o facto de os media terem hoje reatado o tema. É, de facto, incrível como se passa da discussão em forma de torrente para o mutismo mais radical. As pessoas gostam de ser obedientes. Um bom rebanho faz sempre jeito. Quanto ao aeroporto: há coisas em que S. Tomás tinha e tem ilimitada razão.

Episódios e Meteoros - 46

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"Dado como morto em 1918"
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(ler versão integral no Expresso Online a partir de hoje)
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"(...) No porto de Brest, descontraído e ao sabor do vento, é ele quem acaba por receber no quebra-mar o barco que transporta o contingente português com destino à fatídica região da Flandres. As altas patentes já o davam, a essa hora, como desertor, mas também como actor de possível sumiço. Afinal, compreendidos os factos, tudo se compõe e ele acaba por cumprir, como previsto, no árduo corrupio das transmissões, um serviço vital para aquela longa faixa que vai do sul de Lille, ocupada pelos alemães, a Laventie e à Boulogne marítima. É nesse teatro de guerra que os gases entram subitamente em acção, lesando-o de forma algo irremediável (...)."

Contra os maus augúrios (act.)

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O mito não se dissocia do quotidiano. Pelo contrário: molda-o como se fosse um fogo sereno mas inteiramente seguro de si. Outros vibrarão pela fugacidade. Aqui, pelo contrário, vibra-se pela atemporalidade feita hora. Em cada hora.
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P.S. - E nas renovadas origens, o bom gosto da Luz parece ter aportado em boa hora! Também já me fiz sócio do Marselha (ah, Papin!), do Liverpool (que derrotámos por duas vezes há duas épocas) e do Besiktas que tem vista para o Bósforo. Quanto aos felinos da capital, creio que não vale a pena preocupar-me: a loba de Roma e a brisa de Manchester saberão o que fazer.

terça-feira, 28 de agosto de 2007

Pré-publicações - 48

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Joëlle Ghazarian, Cântico do Crime, Quasi, Famalicão, 2007.
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Pré-publicação:
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de O Nadador Nu
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"Depois foi um grande silêncio, porque em toda a palavra está o silêncio dessa palavra e cada silêncio fulgura no centro da ameaça da sua palavra – como um buraco dentro de um buraco, no ouro dentro do ouro.
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Como transmitir-lhes força, pôr as mãos no idioma, forçar as tripas, como assobiar nos seus sacos quentes, transmitir o segredo? Como apagar a linguagem transe de conteúdo insaciável e infinito de que o nosso corpo é o lugar circunscrito, mundo escrito dolorosamente (mas num fogo suave) nas faixas de seda saídas do âmago das bestas plenas? Ou será preciso que a mão se suavize para que a frase seja fina como a seda que de súbito se rasgasse pela força de um nome derradeiro?
Nesta confusão, o brilho da linha verbal, poderosamente atada a um universo marmóreo, cosendo os órgãos da frase de carne, é um meio subtil de transferir a violência da vida para uma unidade mental de significações. Sim, para encontrar o ouro é preciso perdidamente e ordenadamente virar as palavras em todos os sentidos, para dar à luz a sua matéria orgânica vital. Por esta inspiração da língua e dos órgãos confundidos em todo um corpo tenso, apto aos segredos e às delicadas subtilezas da terra, o enigma materno talvez então lhes seja transmitido.
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– É tão leve o esperma antes de se tornar espesso, murmura Macha quase involuntariamente. Tira de mim, escultor, a tua palavra encharcada de baba que deveria ser um canto encantatório, uma ventania do corpo. Deixa de obturar as aberturas da nossa carne. Ele afasta-se para a parede que contemplava a sua brancura ao fundo.
Ela espreguiça-se, por fim, devagar. Desde há horas, centrada na cama, os seus gestos tinham-se esquecido:
– Estou deitada e os lençóis flúem e refluem nesta ressaca sob o ar arqueado. Os lençóis reluzem como se eu tivesse tomado veneno.
Ele contempla-a a mexer nas palavras dos seus membros, a organizá-las no espaço deste espaço, a estabelecer-lhes movimentos de rotação e translação umas com as outras, criando-se nele de novo uma tensão que evita a fuga completa da vida interior, tensão que Macha sente."
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Cotovia, Gradiva, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Presciência

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Estou a ler um romance cuja efígie matricial, por assim dizer, imaginei há uns anos. Na Primavera de 2002, mais propriamente. Ou seja: o que eu imaginei era diferente, claro, mas a traça, a história, alguns propósitos e até cambiantes, para além do tratamento de informação (do mundo árabe, por exemplo) não andariam muito longe. Trata-se de O Terrorista de John Updike (2007). Não chego aos calcanhares do senhor, como é evidente. Mas a sensação de estar a ler uma espécie de Déja Vu deixa-me, no mínimo, estupefacto. Já muitas vezes tive a sensação do Ovo de Colombo, ou seja, de desejar ilimitadamente ter escrito romances que vou lendo, mas confesso-me imaculado e virgem nesta nova sensação de niilismo que tem como base uma estanha presciência imaginativa.

Águas

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Há muitas vezes um certo paralelismo entre surpresa e felicidade. Um momento de felicidade é sempre, de alguma maneira, um efeito de surpresa. A inversa não é tão verdadeira, embora a consciência de um hiato feliz traga quase sempre a surpresa por perto. Águas do mesmo lago.

Coisas da bola

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Como bom amante de futebol nunca vejo um FCP-Sporting. O importante é que empatem e que se dêem particularmente mal um com o outro. Mas, depois de ter lido os jornais, já percebi que o resultado foi fruto de cena. As habituais cenas das Antas.

domingo, 26 de agosto de 2007

O rio

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Tive diversíssimos encontros, episódios e solilóquios com, ou por causa do Eduardo Prado Coelho. Ficarão guardados. Não me apetece agora referir nenhum deles. Apenas uma lembrança menor e numerológica: fez ontem precisamente três anos que cumpri os meus cinquenta de idade. E nesse dia, por coincidência, quase à hora da festa que dei na minha casa de Évora, o Eduardo apareceu a deambular cruzando-se com a minha surpresa e queixando-se sobretudo do calor e de tudo o que "remetesse para o excesso". Desde esse momento até ao último dia da sua vida decorreram três anos certos e impiedosos. E por que se põe a gente (sempre) a dar coerência a coisas sem qualquer importância (como diria Kermode)? Talvez para reservar o que apenas pertence à nossa reserva mais íntima. Já seria, essa, uma boa razão. Sobretudo quando a inevitabilidade do panegírico invade todos - ou quase todos - os textos que hoje fazem transbordar o desmedido rio dos media.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Truman Capote

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Acabo de ler um romance caracterizado como "precoce" que, de facto, viria a ser escrito e rescrito pelo seu autor durante anos e anos, mas jamais publicado. Esse primeiríssimo texto romanesco de Truman Capote, iniciado em 1943, foi descoberto (no passeio!) pelo porteiro do prédio de Brooklyn que o escritor abandonaria mais de duas décadas depois. Travessia de Verão é o nome deste romance póstumo de Capote que a Dom Quixote fez aparecer entre nós na Primavera passada. Não tendo podido fazer a pré-publicação, devo, no entanto, referir que o material tem imenso vigor, alimentando-se, numa história simples mas particularmente eficaz, do impacto do imponderável. Sem recortes judicativos, uma menina da alta novaiorquina e um vigilante de um parque de estacionamento desafiam a fixidez do mundo e antecipam, no desenlace, a alquimia do "muro" criada por Paul Auster em A Música do Acaso através da figuração da Ponte Queensboro. A ler. E a reler.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Episódios e Meteoros - 45

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(crónica publicada desde hoje no Expresso Online)
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O Terreiro dos segredos
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As arcadas, a abertura do espaço, o arco da Regeneração e as colunas voltadas para o rio definem o equilíbrio e a geometria mais modelares que conheço numa Praça. Se há forma e corpo para uma ideia de Iluminismo, misturado ainda por cima com a perdição de uma beleza em suspenso, é aqui que a encontramos. Neste locus da ordem e da delicadeza de contornos que é a Praça do Comércio existe uma memória do antigo Terreiro que era avermelhado, cheio de varandas contíguas e desalinhadas, permeável apenas às marés, ao grande torreão do Paço e ao ímpeto mercantil da lendária Rua Nova.
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Depois precipitou-se a tragédia e, à ondulação irregular da Ribeira das Naus, sucedeu a nitidez, a definição e o rigor das formas. Ao centro da actual Praça, D. José I aspira à idealidade de um centro e, para sugerir essa demanda meio imaginária, o cavalo de bronze levanta, com imprevista leveza, uma das suas patas. Na Praça, entre a visível nuvem do comedimento, há muito mais sortilégios do que se possa supor. Desde os acenos em matéria de Ode do Café Martinho da Arcada até ao cais do Sul-Sudeste bordejam mistérios, vogas marítimas e maresias mitológicas. Para Cesário, o absurdo desejo de sofrer provém desta beleza por decantar, algo veneziana, cheia de mistérios, sempre a rorronar por baixo da pele de tanta aparente geometria.
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Desde a cadência bachiana dos arcos até à música silenciosa que de noite nos empresta o amarelado das luzes, vagueiam sigilos, silhuetas imersas pela vertigem pessoana, alaridos de paquete ou navio galgando o grande rio das Tágides. A Praça do Comércio é uma imensa história por contar. Ampla como um salão de baile sem fim, só dali se tornam visíveis os anjos de Ulisses, quando abrem as asas em direcção ao mais antigo dos impérios: o das obras imperfeitas. É o metro adiado, são estacas lamacentas, é o dinheiro perdido, são colunas apeadas e é a estação ferroviária deglutida pela voragem. Até quando?
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Sempre nos habituámos a ver os poetas prestar contas. Nem que tais contas fossem malditas, ou tão onerosas quanto o nosso desemprego pessoano: essa quase desistência que convida ao laxismo e à alarve aceitação de todas as pragas. Ao que nunca realmente nos habituámos foi a ter que saber, parcela a parcela, nome a nome, ministro a ministro, qual o destino do numerário. Quais as responsabilidades e quais os montantes. O episódio, relembremo-lo, teve lugar há mais de sete anos. Mais precisamente a 9 de Junho do ano 2000.

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

A culpa

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Acabei hoje o breve e último romance de McEwan, Na Praia de Chesil (entre nós, como os anteriores, publicado pela Gradiva). Uma história de amor, uma geração, um percurso em fuga de si mesmo. A certa altura, já perto do final, em jeito de analepse, a mãe (Violet) da protagonista (Florence) interpela o protagonista (Edward), perguntando-lhe se "não seríamos (nós) sempre levados pela história e pelas nossas naturezas dominadas pela culpa, a sonhar com o aniquilamento?". A frase, curiosamente, encerra uma preocupação central de todos os livros de Agustina.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Livros a vir

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O segundo volume do meu Manual de Escrita Criativa sai já no início do próximo Outono (Publicações Europa-América). Trata-se do guião do "Nível Avançado" dos Laboratórios de Escrita Criativa que tenho regido no Instituto Camões. Igualmente na rentrée, a Magna Editora tomará em mãos a publicação de um ensaio que escrevi sobre a blogosfera: A Expressão na rede - o caso dos blogues. O livro tem como ponto partida a reflexão levada a cabo no Miniscente, em 2006, sob o título "O tom dos blogues".

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Trancas no portão! (act.)

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Um bando de idiotas invadiu uma propriedade e a coisa está a fazer notícia ao jeito de performance do Festival do Sudoeste. Eu que vou, muito em breve, plantar umas nogueiras transgénicas num terreno que tenho (algures) no Alentejo... tenho que me pôr a pau.
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P.S. - De facto, o Afonso merece que lhe seja sublinhado o "esforço"! (lincar tudo o que se escreveu sobre o assunto é, no mínimo, obra).

O belo monstro

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Sempre que a semana se inicia, confesso que sinto uma ausência. Das poucas que, de tão invisíveis, se tornam em ausências. O país ainda há-de lembrar-se de Vasco Pulido Valente. Não dele, porventura (nem tão-pouco o conheço pessoalmente), mas daquilo que o próprio vai radiografando nas suas preciosas crónicas. Geralmente, posts e crónicas apenas apostam no escárnio fácil; desta feita, deixem-me pôr a mesa com uma toalha nova. E justa.

Aristocracia

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Não vendi as minhas (poucas) acções, nem me senti aliviado com o regresso do senhor Camacho. Enfim, questões demasiado sérias para estar aqui a discutir em público.

domingo, 19 de agosto de 2007

Beer (act.)

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Excelente texto do Francisco hoje na Pública. Tema: a cerveja. Às vezes, é possível entrar nas biografias alheias tornando-as nossas. Que saudades daquele Bellevue Hotel! Parece que foi hoje.
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P.S. - por acaso, rematei a noite de ontem com uma ruiva ("Old Speckled Hen") com sabor a malte: uma paixão breve, amarga e levemente frutada como é próprio de uma Fine Ale.

Mengele em Paris

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E aqui pode ler-se a história de um estranho encontro, em Paris, com o chefe da polícia de São Paulo. É a minha crónica da passada semana (Expresso Online).

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Out

Sete dias fora do país sem ter uma nota mínima do que nele se passará. Fantástico.

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Vórtice

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Não é por ter acabado de ler o editorial de José Manuel Fernandes, mas garanto que, de cada vez que me lembro do caso Maddie, ocorre-me sempre uma célebre conferência de imprensa dada pela Polícia Judiciária em Portimão. Dava um bom início de romance: um inspector com ar seco de Boliqueime, prostrado em frente de uma secretária estilo escola primária do Estado Novo, literalmente afogado por jornalistas e folhas de papel que, de repente, começaram a aspirar o estrado, o estuque, as notícias, a prosódica e até o móbil do crime. Um vórtice prodigioso. Adorava revê-lo no RTP-Memória.

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Episódios e Meteoros - 43

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(crónica publicada desde hoje no Expresso Online)
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O (novo) estilo império
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Há dias em que apetece dissolver o passado, à imagem do que acontece àquelas aspirinas que desaparecem na água em menos de dez segundos. Bem sei que, ao longo dos anos, nos vamos transformando em novas pessoas. É verdade.
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Lembro-me, há quarenta anos, de passar as férias grandes na Praia da Rocha (o meu pai, à noite, estacionava o carro junto à fortaleza com desmedida facilidade). Lembro-me, há trinta anos, de concluir o meu primeiro ano lectivo como professor e de ter tentado, pela primeira e última vez, a bizarra arte do campismo. Lembro-me, há vinte anos, de andar a escrever o meu terceiro romance na Palmstraat sob imensa compulsão estival, lusitana e casamenteira. Lembro-me, há dez anos, de ter passado um Agosto ateniense com tal guião que teria dado um grande romance, se eu tivesse um décimo do génio de Lawrence Durrell.
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Lembro-me, hoje de manhã, de ter colocado na máquina de fazer sumos a Praia da Rocha de 1967, a tenda de campismo comprada em Badajoz em 1977, as folhas escritas na “Brother” em 1987 (do que viria a ser o No Princípio era Veneza) e ainda as varandas noctívagas que, em 1997, acenaram aos deuses gregos de Vouliagmeni. Resultado: uma aspirina dissolvida. Em pó. Dando ao presente – a este momento concreto – o estatuto de império. Como se apenas existisse o dia de hoje. Como se aquilo que mais me apetecesse fosse o que afinal acontece. Agora e aqui. Tão-só isso. Como eu percebo o Duchamp!
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Ainda acerca desta iminência do presente: a doença infantil do comunismo era, há anos, uma brincadeira para sonhadores que não distinguiam a barbárie das miragens. Se não viam a primeira, é porque se ofuscavam com a hipnose da segunda. Ou se acaso a segunda os inebriava é porque a primeira não lhes passava assim tanto ao lado. Enfim, o que sobra de tudo isso, hoje em dia, já não é muita coisa. Felizmente. Mas há uma outra doença infantil que passou a fazer moda, nos últimos anos: a febre da instantaneidade. Estar “On” e existir, estar visível num ecrã e existir, estar na rede e respirar. Tudo isso ou a morte. O que já foi “Vitória ou morte, Venceremos!” é hoje “Aparecer ou morte, Salvemo-nos!”.
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Como eu agora percebo que Duchamp, no nosso tempo, pouco mais seria do que um episódio de feira. E há-os ainda em quantidade (e subsidiados): como franguinhos a assar em directo, ou como aspirinas dissolvidas no copo. Em directo. Diante dos meus e dos vossos olhos. Sem miragens. “É assim”: Um império liofilizado, que sucederá ao reino do queijo fresco, onde apenas aquilo que é de hoje tem direito ao ser. E, sobretudo, se e quando se dá a ver. Com muita audiência. Nem que seja um macaquinho. Ou um puro idiota.

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Jogos que já lá vão

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Quando eu era pequeno, abundava nos areais do país um famoso prego. Não, não se tratava de uma iguaria: esse prego tinha mais de vinte centímetros de altura e fora concebido para dar mil reviravoltas no ar até caprichosamente se espetar na areia. O jogo do prego era um jogo familiar e de verão e apelava à habilidade, ao ritmo e à ponderação. A destreza da minha mãe colocava-a como vencedora face a tudo e a todos nos Agostos da Nazaré, da Figueira ou de S. Pedro de Moel. Tal como o pião de extremidade metálica e pontiaguda, este brinquedo para todas as idades desapareceu do mapa. O que antes era um prazer da intimidade e da comunicação familiares (um "dispositivo" na linguagem de Oakeshott) é hoje uma heresia da UE. Mais uma. De facto, do mundo dos objectos ao dos simulacros e do mundo dos prazeres do corpo ao da instantaneidade hipnótica, tudo se passou num ápice. E o sol continua a brilhar para todos nós.

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Bancos e espectáculo

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Teria sentido abrir aqui na blogosfera uma ampla tribuna aos clientes (nós todos) dos bancos que operam em Portugal. Numa altura em que a encenação do outro lado do palco - administadores, accionistas, etc. - torna visível um paradoxal PREC (é esse o aparato mediático que conduz a tomadas de posição imaginárias), os clientes continuam a mendigar nos balcões ao sabor de (nem sempre pequenas) prepotências, intolerâncias e mal-entendidos. A minha própria história - e estou a pagar apenas um único empréstimo - já dava um livro. Quem sabe, um dia, se não dará mesmo.
Em termos mais gerais, a história não se fica pelo respeito às pequenas letras da lei, nem pela sedução diária no espaço público e muito menos pela incontida redenção do consumo. A história é invariavelmente um misto de falsidade e ilusão com (muitas) incompetências e pequenos poderes ao fundo. A história é, no seu desenlace, quase sempre, a de um relato anónimo e solitário que traduz a impotência do cliente.
O mercado deve ser encarado como uma coisa séria e, como tal, deve ser defendido. Parece-me óbvio que o mercado deverá sempre ter como base um equilíbrio de posições, de direitos e deveres repartidos e ainda uma ética recíproca de cumprimentos. Mas há muita gente no sistema bancário com mentalidade corporativa, tacanha e burocrática que não olha a meios para abusar da sua posição negocial. Daí que o cenário real seja bem mais unívoco. Para agravar esta situação de desnivelamento, a justiça é sempre demasiado cara para o cliente.
Para obviar a tais desproporções, creio que um provedor (dos direitos) dos clientes dos bancos não teria grande sentido; seria, ao fim e ao cabo, mais uma formalidade da actual tentação reguladora. Já a exposição pública de posições e o relato de simples histórias poderiam tornar-se mais eficazes (o recente exemplo das denúncias das juntas médicas na educação comprova-o). Fica o desafio. Um desafio que se adequa à natureza da blogosfera. Seja como for, reatarei o tema no início de Setembro. Toca-nos a todos: muito mais do que as imagens da Alfândega do Porto.

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Vistas da época

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Vista parcial do belo Rio Guadiana. Bem menos dócil do que os arrabaldes de Roterdão.

domingo, 5 de agosto de 2007

Divertimento

Sei que é brincadeira, mas agradeço ao Porta do Vento o "prémio EXCELÊNCIA BLOGUÍSTICA" atribuído ao Miniscente. É 0 verão, é o verão.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

De que se escreve o dia

LCA
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Enfim, não é todos os dias que alguém nos oferece um poema sobre a nossa própria casa. Parabéns, pois, ao Manuel Nunes:
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Trinta e dois versos para uma casa
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À Isabel
Ao Luís
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A casa conhece a lenta
respiração das muralhas,
o rumor de todos os dialectos
do antiquíssimo tempo.
Firma-se na sombra
das pedras,
no arrimo
da claridade dos muros,
e deixa-se prender
nos afectuosos garfos
da ameixoeira,
estendidos como braços
na direcção dos livros.
e
No pátio que a tarde atravessa
com a sua língua
de calma,
um inominado nume, saído
da penumbra de um templo,
passeia sobre os canteiros
de relva
por entre a previsível alegria
das crianças.
e
Enquanto o espírito sublime
de Argos, mítico cão de Ulisses,
carrega sob o nome sagrado
do próprio dono
a sede inclemente
de que se escreve o dia.
e
A casa é um lugar
onde se fala
o idioma fértil
dos afectos.

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Episódios e Meteoros - 42

EBS
e
Cinematografias de verão
e
(crónica publicada desde hoje no Expresso Online)
e
Estou sentado numa cadeira de verga no terraço do Grande Hotel da Nazaré. Aponto em frente na direcção do mar. Já não lembro a minha voz. Nem a temperatura desse verão, nem o som que envolvia aquela única construção em altura que simulava ser uma falésia, ou um contraponto à ferradura santa do Sítio de que retenho apenas a redenção fotográfica. Estou nas nuvens e por trás, além dos meus pais e do meu irmão, está uma tia que guiava um taunus com o globo à frente, que administrava uma empresa de moagens e que escrevia poemas no Século Ilustrado sob pseudónimo. Talvez por tudo isso – a fotografia sugere-me um episódio do paraíso – se chamasse Tia Mar.
e
Corria a década de sessenta, antes ainda do mundial de Inglaterra. Não me lembro das altíssimas taxas de crescimento económico, nem do sabor das pêras que vinham de Alcobaça embrulhadas em perfume. As ondas lá em baixo, no areal, eram altas, certas e envolviam as sete saias das nazarenas que, destemidas, vendiam bolos, rendas e uns barquinhos de madeira pintados de azul e vermelho. Os banheiros – seres mitológicos vestidos de branco – agarravam nos miúdos que escapavam aos toldos e barracas e, de modo espartano, atravessavam-nos nas ondas como se fossem golfinhos de aço. Não se falava em Maios revolucionários e a guerra era tinta de marcianos numa caixa minúscula de O Século.
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Havia poucos turistas, uns tantos franceses com os seus daufines ou com um ou outro simca aronde para evocar a, então para mim desconhecida, nouvelle vague. Mas o meu olhar tinha seguramente a câmara na mão: era solto, selvagem e estava mergulhado numa inocência à Pierre le Fou. Uma inocência que não se via a si própria, porque se resumia a uma espécie de monólogo celeste em que a voz do pensamento e a voz do vivido ainda pactuavam em harmonia como nos tempos mais pródigos do cinematógrafo de Méliès.
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Há um tempo em que tudo bate certo. O verão herda esse percurso antigo, silenciando-o e, ao mesmo tempo, dando-o a beber com sofreguidão. Os extremos do verão terão aqui a sua génese: enquanto os corpos se sentem leves como as folhas de um limoeiro, a memória é invadida pela inexplicável tentação das esfinges que ecoa do passado. A minha Tia Mar continua no terraço, fuma um cigarro comprido e ri com ar de quem oferece champagne a toda a gente. Godard sorri abraçado aos banheiros. As nazarenas pousam a mão nas barbas de Méliès. O dono do daufine cumprimenta os meus pais. Ainda havia França. E o meu irmão olha para a rebentação agitada já a pensar em física quântica.
e
Eu, o quase encoberto, continuo sentado na cadeira de verga. No terraço olímpico da Nazaré.

Boas notícias do defeso

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Os quatro anos de Miniscente vão dar origem a três livros em papel. O plano abrange um ensaio sobre a expressão na rede, um outro ensaio (de natureza poética) sobre fotografia e ainda a antologia temática, naturalmente baseada numa selecção de posts do blogue. A trilogia aparecerá nas bancas no próximo Outono e, depois em 2008, na Primavera e outra vez no Outono. Não revelo ainda o nome da editora, mas confesso que as negociações foram rápidas, estimulantes e eficazes, tal como (nem sempre) acontece no futebol. Os três futuros livros já passaram nos exames médicos.

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Marcador de vidas (act.)

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Relembro, para começar, este breve excerto do prefácio que Luciana Stegagno Picchio escreveu para a segunda edição do meu romance No Princípio era Veneza (1990): “E é assim que o último desencontro de Antonioni e Maria, ele num quarto de hotel, em Milão, e ela numa cama distante, em Tel Aviv, parece simular a união ideal dos dois, embora agora a bordo de um sonho de olhos abertos, como se estivessem de novo juntos "sem sabê-lo, numa navegação ao sabor de uma miragem comum."
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Mas a paixão por Antonioni ganharia novos vínculos, quando vi e revi o Para Além das Nuvens, em 1996, (filme também dirigido por Wenders), tendo, em finais de Setembro desse mesmo ano, assistido a uma sessão com a presença do realizador em Montemor-o-Novo. Antonioni já não falava em público, mas a mulher fez as honras da casa, respondendo a todas as perguntas com muito entusiasmo, antes da projecção de um filme sobre a rodagem e os bastidores (behind the scenes) do Para Além das Nuvens. As quatro pequenas histórias (passadas em Ferrara, Portofino, Aix en Provence e Paris) de Para Além das Nuvens influenciar-me-iam depois na redacção de um conjunto de novelas que fui escrevendo, enquanto a lenta gestação do meu romance As Saudades do Mundo (1999) se ia fazendo. Essas novelas foram publicadas no DN-A ao longo do verão de 2001. Tudo ecos de Antonioni.
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Um grande autor é, portanto, muito mais do que um sábio e longo currículo; ele é sobretudo um activo marcador de vidas. De muitas vidas. Quase sempre incógnitas.
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P.S. - E o mais fascinante é descobrir o modo como o mesmo marcador de vidas se inscreveu um pouco por todo o lado. O caso de João Paulo Sousa é um desses universos que apenas hoje, naturalmente, é revelado.