segunda-feira, 31 de outubro de 2005

Dado à luz hoje mesmo


Breve, após o parto poético: o site pessoal foi hoje actualizado e, dentro de pouco tempo, o respectivo “Fórum” vai ser remodelado (a propósito: ver texto do poeta Rui Costa, autor de A Nuvem Prateada das Pessoas Graves - Ed. Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2005 -, justamente no “Fórum”). Já agora: hoje, tal como ontem – ver em baixo -, o folhetim do Miniscente volta a ter ares catalães.

Novas do final de Outubro


(Trent Parke, 1999)

1 - O tribunal constitucional é afinal um parlamento multicultural: seis votos do PSD e um do PCP ditaram a mais esperada sentença da semana.
2 – Fanny Ardent esteve em Lisboa e continua muito bem conservada.
3 – Na família PSD aparece cada vez mais a crítica demolidora e voraz a Sócrates, como se fosse impossível reconhecer que se estão hoje a levar a cabo algumas reformas que o PSD, a seu tempo, deveria ter ousado realizar.
4 – Para pôr a matemática em dia, vem aí o “Número Festival” - 6º Festival Internacional de Multimédia, Filme e Música de Lisboa (de 4 a 13 de Novembro).
5 – A campanha eleitoral parece um cortejo com um único fim em vista. Alegre diverte-se teluricamente com a arrogância alheia (para além do mais... já abriu a caça!), Soares troca tintas e fantasmas, Cavaco persiste tão confiante quanto altivo e tenso, enquanto Louçã mantém a sotaina retórica e o senhor do PCP repete a liturgia que já ninguém ouve. E eu a ver, de longe. Que bom não me reconhecer, desta vez, em nenhum dos candidatos!
6 – Braga Gonçalves entrou no fantástico e sacralizado mundo dos escritores.
7 – O Lusitano de Évora é a equipa com mais pontos em toda a terceira divisão nacional.
8 – Tudo isto em nome da chuva e da mudança de hora. Novos tempos de recolhimento, novo alento outonal, nova vaga de paixão pelas rosas de Novembro que reluzem no pátio que ladeia o meu.
9 - O que se passará, neste momento preciso, em Nova Orleães? (e o que é que se poderá pensar ao dizer que uma notícia, a certa altura, deixa de ser notícia?)

Folhetim

O Trevo de Abel – Episódio 17
Segunda Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Olho para o espelho, após horas de anestesia e algum repouso. Tenho os lábios mais espessos, a face mais estreita, o olhar mais saliente, a testa aparentemente mais ovóide e larga. Olho e torno a olhar. Há algo a mais e tudo a menos. Já não existe, porém, qualquer espanto, nem consternação, nem história. A minha vida acabara, o funeral realizava-se ainda em Campo de Ourique, quando, de modo imperscrutável e enigmático, surgi sentado, ao mesmíssimo tempo, num banco do Jardim da Estrela. Como pude eu ter estado simultaneamente em dois lugares, num já morto, noutro ainda e sempre vivo? Não sei. Restou-me fugir com medo que alguém me reconhecesse como ressuscitado, bruxo esventrado ou fantasma maldito. Eu, cantor famoso e apresentador de programas de Tv! Agora, nesta antecâmara da metamorfose do corpo, olho e volto a olhar-me ao espelho e revejo o que já não sou e sobretudo o que voltei a ser. Decido, mais uma vez, esquecer todo o passado e enveredo por nova vida. Desvendar sinais e persistir. Haja o que houver.
Até que, por trás, de bata azulada, surgiu uma das enfermeiras desta que é a clínica de cirurgia plástica mais afamada de toda a Península Ibérica. Olho insistentemente o espelho e encaro-a. Tem cabelos louros e é alta, bonita. Sorri. Que estou muito bem, bonito, pareço outro, - Ainda hei-de ir passear consigo para lhe mostrar o cais de Barceloneta. Daqui a duas horas já não vai sentir nada, vai ver. Durante a anestesia, sabe, dizia coisas estranhas. Nós, catalães, entendemos o Português muito bem. Sonhou de um modo tão profundo que falava como se fosse um poeta. Dizia que já ia na segunda vida e que nunca mais podia voltar atrás. Que não ia ter saudades de mais nada e que voltava a partir. Chegou a tratar-me pelo meu próprio nome, o que levou os médicos e as outras enfermeiras a pensarem que já nos conhecíamos. Intuições muito particulares! Que mal tem, não é assim? Não se importe, pois eu sou uma mulher descontraída. Está só, eu entendo; vê-se logo que deve querer a companhia habitual dos que aqui acorrem. Olhe, a esta clínica vem cá ter de tudo. Actores americanos, gente do jet set internacional, cantores arménios, polacos e italianos, políticos na reforma e mais não digo para não comprometer terceiros. Mas com a sua determinação e sossego vi pouca gente, garanto-lhe. E o senhor tem um óptimo coração, mesmo fora do normal; resistiu a tudo sem problemas e esta sua recuperação é coisa nunca vista. Não, não, não me responda; agradeço-lhe que não fale por agora. Mais tarde, logo ao fim da tarde, já poderá dizer o que quiser e comer, viajar, tudo. Tudo.
Rodei a cadeira e voltei a ver o meu rosto no espelho pela segunda vez. A enfermeira apareceu então sentada à minha frente e, com as pernas à volta da cadeira móvel, retirou-me com vagar algumas das ligaduras mais pequenas que me protegiam o pescoço, as orelhas, os extremos da testa. Sorria sempre e ia acrescentando: Isto é como o Caim e o Abel. O primeiro matou o segundo por pura inveja. Se Deus tivesse dado mais atenção ao Caim, se calhar, era o Abel o primeiro dos assassinos. Aqui nesta casa, entram muitos Abéis e saem ainda mais Caíns; doutras vezes, entram Caíns e saem alguns Abéis. Tudo depende da reacção ao pós-operatório. Se não se chegam a habituar ao novo visual, nunca matam como deve ser o Abel que já foram; se gostam dele, tornam-se Caíns para sempre. Qual é o seu caso? Diga sem falar. E Adão levantou dois dedos no ar, optando pelo segundo dos casos e, portanto, mostrando a si próprio que se tornaria Caim para sempre. Foi nesse momento, pensou, que redescobriu o seu novo nome. Deixaria de ser José Adão Ulisses Ferreira para passar a ser apenas Caim Ulisses. Amanhã, quando procurar quem lhe forje papéis já Adão sabe o que declarar. A verdade é que uma nova coisa, nesta vida, precisa também de um novo nome.
A enfermeira está de pé, apoiada à ombreira da porta, e ainda não saiu da sala. Volto a vê-la pelo espelho e ela sorri. Chama-se Sara e parece a Sharon Stone nas maçãs do rosto, nos braços, na silhueta geral. Não me poupa olhares e eu pergunto-me se ela será assim com todos os pacientes. Talvez sim. Dois dias mais tarde, encostei-me aos varões metálicos da varanda e olhei-a a nadar sozinha na imensa piscina. Um fio de seda vermelho deixava suspensas pequenas bandeiras azuis de forma triangular. Um calor espesso, quente e húmido. O corpo de Sara flutuando, fundeando, de braços abertos ou unidos em anel translúcido, puro, antigo. Sobre o azul desvanecido onde luzem membros, espáduas e dedos em movimento. Vejo-a de cima e, por trás das vidraças, surge o casario da cidade, plátanos fascinados pela penumbra, aves discretas nos braços de metal oitocentista. Sara chega ao fundo da piscina, agarra-se depois às bóias e faz-me adeus quase em câmara lenta. Respondo-lhe e abro também os braços. Que não posso ainda entrar na água, quereria eu dizer. Ela ri-se, sorri, inclina o rosto para a água. Talvez a querer dizer que sim e que não, que importaria isso agora! Que maravilha… como o tempo se dilui, às vezes, em pasmo perfeito.
Um dia depois, encontrámo-nos no Hotel Oriente e, quando ultrapassámos o gato em corrida pelo corredor, entrámos no quarto. Bebemos cola e sumo de pêssego, fechámos os cortinados e dissemos um ao outro que era agora. E parecia até ter sido a primeira vez para ela, dada a cor do sangue que atestava a dádiva da sua própria iniciação, ali. Doava-mo a mim, generosamente, seu parceiro apenas de dois ou três dias. E porquê? Inquiria eu. Sara respondia que não sabia, mas abraçava-me, sufocava-me com braços gigantes, quais hastes apagando-se na réstia de luz que a janela entreaberta nos concedia. Era apenas o período, dizia; era apenas o signo do Zodíaco mensal e dos amores mais perfeitos, acrescentava. Um milagre, respondi eu, cheio de felicidade incompreensível, misteriosa. Disse-lhe que do passado não contaria nada e pedi-lhe que fizesse o mesmo. Ela não respondeu, mas passou com a palma da mão muito aberta no meu rosto, expiando a abnegação amorosa, espiando o reencontro sem explicação e a inaudita voragem.
Disse-me que, quando me viu na clínica, desvendou no meu olhar qualquer coisa que nunca antes havia visto. Era como se eu brotasse de longe para a plena sedução da vida; era como se eu nascesse para a tentação irremediável de viver; era como se eu avisasse quem me olhasse da imensa e indefinida alegria a partilhar; era como se não acordasse apenas de uma cirurgia, mas sim de um paraíso ilibado de qualquer espécie de angústia ou de mal. Sara apontou para mim e concluiu - Não resisti a seguir-te no dia seguinte. Por isso, decidi aparecer no teu hotel e logo saímos ao café do Liceu, rodeados de travestis, actores, escritores e chulos encartados. Por isso me ri durante essa noite e me senti aparentemente transtornada. Por isso te convidei a aparecer na piscina na tarde de Sexta. Por isso aqui estava, agora mesmo, neste Domingo de primórdios e prelúdios inenarráveis. Ouvi-a até ao fim e, ao mesmo tempo, sem querer, revi-me no espelho do armário; tinha, de facto, os lábios mais espessos, a face mais estreita, o olhar mais saliente, a testa aparentemente mais ovóide e larga. Este era eu, o Caim que apenas Sara conhecera e talvez tivesse amado, quem sabe? Até agora mais ninguém podia ter existido para mim, decidi.
Só nessa noite o mordomo de ares orientais deu a Caim os papéis que foram pagos a peso de ouro. Neles, Caim aparecia já com a nova face, inscrita quer em passaporte português, quer em espanhol, para além das cartas de condução, do cartão de contribuinte e mais uns dois ou três secundários. José Adão morrera finalmente nas letras do seu nome. Agora urgia voltar a Lisboa para procurar dinheiro num cofre que tinha mantido escondido, sob o soalho, na casa azul da Rua Marquês de Tomar. A maleta que trouxera carregada com notas de dólares e de marcos estava a acabar-se; a operação fora, de facto, uma fortuna. E depois, depois, que fazer à vida? Perguntava-se o nosso homem, a sós, sentado numa das esplanadas da Praça da Catalunha, enquanto esperava, já mais calmo, pela sua novíssima e endiabrada Sharon Stone.
Apenas uma semana após a operação, Caim convidou Sara a visitar Lisboa. Disse que conhecia mal a cidade. Mas queria mostrar-lha. A enfermeira respondeu-lhe que, com ele, iria até ao fim do mundo se fosse preciso; uma paixão assim nunca havia ela conhecido, dizia. Caim empalidecia com tanta apressada sorte, mas não conseguia conter, de quando em quando, gestos e palavras rudes que nunca antes conhecera em si. Será que com o nome, também mudam as coisas? Perguntava-se em sigilo total. Sara vestiu-se como uma verdadeira Stone e sentou-se ao lado de Caim no avião da Portugália. Um ar de suspense e estranho fulgor percorria este ambiente sepulcral de bancos azulados, hospedeiras e bagagens de mão arrumadas à pressa. Pela primeira vez, Caim olhava para os passageiros e comissários de bordo portugueses sem medo que o reconhecessem como o velho Adão que já fora. Os motores começam agora a trabalhar e a máquina faz-se à pista, acelera e roça depois o primeiro ar entre poços de ar e o rubor agitado das nuvens. Com a mesma ternura dos inícios do casamento com Luísa, Caim colocou, por momentos, a mão sobre a mão de Sara e sentiu em vão uma vontade indomável de cantar opereta ou zarzuela.
A viagem foi serena, calma, deslizando sobre nuvens compridas de formato barroco, maciças como patas de cisne, leques de crisálida, casulos de algodão. A foz do Tejo, encurtando as reentradas do Seixal, surgiu pouco depois e a aterragem, sôfrega e algo ventosa, foi de voo rasante à arquitectura informe da nova Lisboa. Sara nunca havia estado na cidade de Cesário e Pessoa e, por isso mesmo, mostrava-se deslumbrada, ávida por percorrer uma nova experiência. Por seu lado, Caim não foi capaz de disfarçar um halo afectado e aturdido, quando deu de caras com um imenso cartaz que ostentava ainda o rosto de Adão. Pouco depois, o táxi conduziu o jovem casal ao Hotel Internacional, aconselhado pelo mordomo de traços orientais da capital catalã. Parecia o intróito a uma nova vida, cheia de surpresas, horizontes e fôlegos. Ou não quisesse Sara dizer deserto em Árabe.

domingo, 30 de outubro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel – Episódio 16
Segunda Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Percorro os corredores do hotel, depois de abandonar a sala de jantar. Sobre a alcatifa sombria surge um gato gordo, elegante e de ar selvagem. Sigo-o, por trás da sua imponência infantil e, à medida que arrola as orelhas na minha direcção, percebo que inevitavelmente me conduz a algum lado. Com ou sem intenção, o certo é que, ao virar para o hall, dou de caras com uma espécie de mordomo de traços orientais. Redescubro em mim uma desmedida coragem e é ali mesmo, sem mais, enquanto o felino ainda continua a sua marcha, impassível, que lhe pergunto pela clínica. O mordomo reconheceu-me e parecia esperar-me há séculos. De modo tácito, prático e confidente, explicou-me os detalhes logísticos que eu procurava. Deu-me mesmo a escolher entre várias hipóteses, conforme o meu desejo e opção. Paguei-lhe bem, é verdade. Passados minutos, saído do hotel, vejo-me a deambular pelas Ramblas, perto do desenho que Miró mandou estampar no empedrado da Plaça Boqueria. Deixo o Liceu para trás e sigo para norte pela Rambla das Flores e pela Rambla dos Pássaros onde o desmedido vozear parece substitui os antigos halos da universidade setecentista. Barcelona tem, entre estas surpresas e uma memória antiga e áurea, a alegria e o sortilégio em suspenso do Mediterrâneo; uma qualquer genialidade a pairar no ar; uma leveza, enfim, que não é funesta, nem perturbante.
Há paz nesta cidade, ou melhor, o exacto alívio de quem saiu da morte para a vida sem o poder explicar e sobretudo sem ter que o fazer. Nas estátuas de Gargallo reflecte-se esse recomeço, esse brilho ou devir inicial. Adão, ou talvez já não seja Adão, mas seja como for... o nosso personagem (que, jura o narrador, é exactamente o mesmo) olha encantado para as formas de alazão, trazidas ao ser nas paredes claras do Palácio da Virreina, e conclui que assim é. Uma nova vida aqui começa. Tudo lho diz: os brilhos das fachadas, os acrobatas da dança, os chilenos que cantam condores ao alto; o fogo assoprado por homens-ginetes, as coristas de capa cor de âmbar, as aves florais de Santa Maria de Pi; os sapatos longilíneos das grandes montras, o ocre quase rosa das varandas e, por fim, até a multidão silenciosa e trémula que agora se esboça na Avenida do Portal de l´Angel. Tudo lho diz, de facto. Adão compra uma mala de couro, um casaco comprido e novas camisas; troca os óculos escuros por uns novos, sem aros e de hastes com leve luminescência violeta. De táxi, segue sorridente pelas áleas do Passeig de Gràcia, ao longo das casas talhadas pela imaginação orgânica de Gaudí, até que, por momentos, deixa cair a cabeça e dormita. Exausto, talvez pela glória do novo alvor da vida, talvez por não conseguir fechar o arco deixado em aberto pelo inexplicável. A luz recorta agora a vidraça fugidia dos sucessivos cafés e, pela frente, os candeeiros públicos fundem-se com a forma retorcida da suave pedra catalã. Pedra diáfana onde fundeiam, rápidos, os pneus do táxi amarelado e negro, a bordo do qual o ainda Adão dorme, dorme, dorme, antes de a curta viagem se consumar algures em Pedralbes:

E o barulho do carro subitamente em foguetão se tornou. Para que céu iria eu? Ninguém respondeu do outro lado. Mas que lado seria esse que se esconde e escondia por trás da luz que as pedras esbranquiçadas do prédio então reflectiram? Que viagem translúcida no comboio da estratosfera era essa que me fez aterrar, de repente, no rio arenoso e espesso cheio de piratas e mirones? Que artista era eu diante do ecrã de televisão, curvo e efémero, tal como os ciprestes inclinados do Cemitério dos Prazeres ao vento? Que Ramblas são estas que escalam entre o porto de abrigo e a vida a renascer no olho vendado e taurino de Pedro Domeque? Que sonho liso derrama a memória dos que me perseguiram com candeias de luz e cera? Que muro é este por onde escorre uma água acastanhada, cheia de fel e aroma de nardo, perto do qual voltei a nascer após a morte do grão-duque, ou do gato felpudo do Hotel Oriente? Que dia é este que sucede a perpétua noite onde já não há tempo, mas apenas brilho e terra mole feita de calor e nada? Todas estas perguntas... fazia-as um ratinho branco, de papillon de seda e cetim, ao nosso Adão que nem já o próprio nome sabia. E, coitado, o ainda Adão, ao espelho, parecia jazer obsessivamente diante do seu rosto sem imagem, sem cor, sem mesmo dispor do tal calor a saber a nada e a ele próprio. E porquê? Ninguém respondia ao ratinho, ou àquele simulacro de gente, agora deitado diante das delícias dos limbos incertos que existem, por vezes, debaixo das marés vivas de Marte. Onde estaria a vida, de facto? Em Banguecoque? De que seria feita? Pensava aquele homem sem face que, no entanto, sentia a força do calor e do frio, mas não o seu excesso; pensava aquele ratinho diante de uma ventoinha de brisa celeste que lhe afastava as golas da casaca de cetim, seda e penugem de anjo. Sim, de que seria feita a vida de que fora apeado Adão - essa mesma vida que o mantinha vivo numa cidade de nome Barcelona? Que casas são estas, retorcidas e dobradas como corpos de moluscos e barbatanas anfíbias, que se espalham pelo desvairado céu que sucedeu à outra vida? Que dia é este, senhores etíopes, em que perdi a voz e o néctar ou o fulgor de sentir, enquanto falava... ao chegar de novo à vida? Cantarei ainda?

E foi nessa altura, quando a voz do sonho parecia abruptamente frouxa e frágil, que Adão quase de imprevisto acordou. O taxista virara-se para trás e tinha-o de facto acordado, mas, ao mesmo tempo, sorria, eufórico, apontando com gáudio e orgulho para longe - Olhe, é nesta direcção que fica a Sagrada Família! Tem que lá ir! É português, não é? - Foi como se acordasse mais uma vez, diante da insistente voz do taxista, e, sem qualquer apelo, foi mesmo como se tivesse reencarnado a vida, o sentido, a magia incompleta de voltar a ser. Até porque há coisas que não se digerem de um momento para o outro, num breve ápice. Terei dormido? Perguntou para si em silêncio, face ao taxista que continuava virado para trás, a dois terços, com a grossa palma da mão virada para o ar. Adão escancara a íris, distende as pupilas e afasta da cara os novos óculos. Com renovada respiração, olha então por cima dos quarteirões geométricos que se estendem na direcção da imensa València. Encara agora o taxista, volta a sorrir como dantes e revê-se no vidro, de perfil, no interior abafado do vidro da janela do mercedes. Afinal sempre estou vivo, mas serei eu ainda o Adão? Que horas serão? Por que não chego eu nunca mais à clínica? - Pensou. Até que finalmente, após um lento e contracenado sorriso, respondeu que sim, que haveria de visitar a Sagrada Família. Por que não? A vida também é um perpétuo reacordar.
A força das pálpebras sobre os olhos parece massiva, desmesurada. Ao longe, - a voz balbuciante do taxista, as alucinogénicas ondas de La Pedrera, o zigurate salmão da Casa Amatler; o arame enrolado do topo da Fundação Tàpies, os vasos das águas furtadas da Casa Comalat, para além do secreto pouso de aves brancas com olhos esguios e parados, imóveis, ancoradas com garras muito fixas nos amplos torreões da Mansão dos Punxes. Barcelona tem, de facto, a serenidade e a lisura das avenidas que nunca conheceram, em vida, colinas e precipícios abruptos que se abatessem sobre rios, mares e marés. Em Barcelona, respira-se e volta a viver-se com o empenho criador da épica mediterrânica, repetiu-o a voz fina e misteriosa que parece segredar no ouvido deste futuro marinheiro que já se chamou Adão. Mas, por outro lado, em Barcelona, as pedras edificaram-se ao sabor do vento, foram moldadas por mãos oblongas, elípticas e circulares. O sonho aterrou aqui, imune, na vida plana e fecundada para os heróis sem rosto. Quem serei eu? Pergunta o nosso homem, agora à procura de nome e da famosa clínica de Pedralbes. O taxista entrou na maior das avenidas, a Diagonal. São quilómetros de vida, após o resto. É esperança, ao longo de copas e copas de árvores muito vivas e sempre verdes, com frutos de prata e ínvias florestas de palma e mirra. Barcelona é talvez apenas uma dança para suprir a dor dos que se autoflageram no limbo da paixão negra da vida.
Os semáforos seguem-se. A via é recta, longa, prolongada. Depois da avenida virá o futuro, pensei. Faltará pouco. Ouço dizer que o Barça vai ser outra vez campeão. Os quarteirões têm uma forma esférica particular - ou globular - de descrever um ângulo recto. Há carrinhos de bebé, cães guiados por trelas de trinta metros e mais. Nuvens altas e janelas abertas nos últimos andares destas casas compactas, bastas de imaginação e calor. Nunca imaginei tanto torpor e desejo misturados numa só cidade. Barcelona tinha que ser o lugar do destino prescrito para tal demanda e tarefa. Deixo de ser o que sempre fui para passar a ser, dentro de pouco tempo, o que nunca julguei vir a ser. As praças sucedem-se: Francese Macià, Reina Maria Cristina e finalmente Pio XII. Até que o táxi meteu pela Rua Menendez Pelayo e, finalmente, sob um verdadeiro manto de cimento, foi possível desvendar a cave onde apareciam escritas as letras que nomeavam a clínica anunciada. O tempo chegara. Saí, agradeci e paguei. Garanto que hei-de visitar a Sagrada Família, repeti. O taxista agradeceu, enterrou o boné pelos caracóis abundantes e foi à vida. Para sempre. Apertei a minha mala contra o peito, subi as escadas e bati à campainha, após algum compasso de espera. É tempo de decisões, de riscos, de identidades forjadas ou reais. Qual é, afinal, a diferença? Nem Deus provavelmente o saberá.
Talvez o orvalho da madrugada de amanhã o reconheça.

sábado, 29 de outubro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel – Episódio 15
Segunda Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Depois de abrir a porta e suspirar aliviado, Adão dirigiu-se ao quarto. A gaveta, o dinheiro, a pressa, o tempo, o próprio suor acompanhou a descompassada azáfama e quase precipitação do ressuscitado. Afinal não é apenas Cristo, como lhe haviam dito na santa catequese e ouvira falar, solene, à amante do avô - a cabeleireira gordinha, dotada de farto bigode e pernas alquebradas, rugosas. Ao abrir a porta do quarto, Adão colocou o pé sobre o tapete e, de repente, sentiu que deslizava sobre os frios e lisos mosaicos que cobrem o chão desta casa deserta da Bica. Qual tapete rolante, voador, em brasa, andarilho, próprio de casa de amante que já fugiu. De braços no ar, a tentar suster o equilíbrio, a vertigem ou o abismo que sempre visita estes breves instantes, a verdade é que Adão acabou por estatelar-se, caindo com o corpo todo em cima de um dos antebraços. Por elementar fortuna, nada partiu ou quebrou. Segundo milagre, de facto, neste dia de apuros e recatos de uma alma incendiada.
Depois do que hoje já vivera, levado pelo espanto mais imprevisto, limitava-se agora a rever-se neste tumultuoso inchaço entre punho e cotovelo que, por sinal, mais parecia uma espécie de monte-de-vénus adornado por leve penugem. Que mais iria acontecer a Adão? De momento, aproveitando a posição horizontal, condoído, o nosso homem limitou-se a abrir a última gaveta do móvel que lhe apareceu, por sortilégio da queda, diante dos próprios olhos. Abriu-a finalmente e dela retirou o cofre que abriu com a chave. De dentro, surgiu a maleta desejada, recheada de notas de cem dólares e de marcos e mais marcos. Após o choque da queda que sucedera ao estado de alarme, Adão pôs-se de imediato a correr, desvairado, lunático, desesperado mesmo... e meteu-se num táxi em direcção a Badajoz, Espanha, fosse para onde fosse; era o início da longa e possível fuga para o mundo. Ou, pelo menos, para o outro mundo que não o da sua própria morte estranhamente já vivida.
Em plena auto-estrada, por alturas de Vendas Novas - assim escrevera um dos seus tios na animada geografia lusa do antigo manual da 4ª classe - Adão voltou a lembrar-se de tudo o que lhe havia acontecido nessa manhã. Lembrava que o funeral estaria a correr e, como é natural, doutra coisa não se falava: era a rádio, a Tv, as pessoas cabisbaixas, os títulos de toda a imprensa e dos portais da internet; as bandeiras a meia haste, o presidente interrompendo o pós-operatório para anunciar condolências, o sol esmaecido, o céu acinzentado; a cidade de Lisboa deserdada de si, infortunada, inconsolada sobretudo. E eu, revelava-se Adão, silencioso mas bizarramente deleitoso, ali sentado num dos bancos da entrada do Jardim da Estrela... no que foi e será, para sempre, o maior estremecimento e calafrio de toda a minha vida. O que perguntei a mim próprio, naquele preciso instante, foi apenas isto: como poderia eu ir naquele caixão, num funeral nacional, a caminho dos Prazeres e, ao mesmo tempo, estar também ali, sentado, paralelo à morte e em estado de plena vida? Como é que eu podia ter passado de morto convicto e com óbito já passado a um ser vivo que, subitamente e sem explicação alguma, celeste ou profana, aparecia sentado num banco de jardim e ainda por cima do jardim dito da Estrela?
Se alguém, nesse instante mágico, tivesse olhado para aquele banco de jardim tinha dado conta de uma verdadeira aparição, tal como Méliès, no início do cinema, experimentara. Poder-me-iam ter santificado; a mim e aos que me tivessem olhado, claro. E teria tido direito a estátua de bronze, porventura equestre, com aura circular e auréola na quadratura; e teria tido direito a peregrinações, relíquias, espinhos, incensos, rimas, velas, lendas, rezas e tudo o mais que é próprio de um alumbrado sem explicação. Pois é precisamente da metamorfose impossível, raiz de todo o inexplicável, que é feito o mistério. E eu, este morto subitamente vivo, tornar-me-ia, por força dos feitiços e encantamentos da vida, num verdadeiro fruto do mistério e do insondável, enfim, da mestria pura. Mas como ninguém reparou nessa minha indecifrável aparição, que não eu, mais não pensei, na altura, senão em fugir. Palavra!
Um verdadeiro pânico bateu-me à porta do corpo, do espírito, da alma profunda e incendiada que se arvorava e crescia em mim com uma dor insuportável, imensa. Que é uma dor de alma, afinal? Não sei. Apenas me lembro que nesse breve momento de ressurreição, chamemos-lhe assim sem qualquer medo - e de novo me aparece a cara da cabeleireira agitando os túmidos e lânguidos seios entre a baça escuridão do barroco da Sé -, nesse momento de ressurreição, dizia, quando subitamente abri os olhos, vi tudo à minha volta filtrado por uma cor avermelhada. Naquela tarde do meu próprio funeral - repito - o céu surgiu a meus olhos, por cima do banco do Jardim da Estrela onde me sentava, todo avermelhado e lilás escurecido. De um lado ao outro do horizonte, sobre as águas do rio, nas praças, cais, avenidas e miradouros; coando o ar sobre telhados, reflectindo-se na calçada ou caldeando as finas poeiras do Verão, uma imensa aurora boreal parecia despontar outra vez. Pelo menos, era assim que eu voltava a ver estranhamente a vida. Naquela tarde ímpar, uma inexplicável vermelhidão cobria, de facto, a cidade de Lisboa que a minha vista pôde vislumbrar. A admiração mais profunda invadiu-me, tomou conta de mim, devo confessar. Cheguei a pensar que aquilo era vestígio do antigo sangue vertido pela inquisição alfacinha, ou simples reflexo das nuvens migratórias de insectos do Atlas canicular e abrasador.
Quando me consegui levantar do banco do jardim, eu próprio era o pasmo que, em sigilo e mergulhado num mar de tormentas, gemia calado sob o atónito olhar dos lisboetas que, sem me reconhecerem, comigo se cruzavam. Na própria sombra, ao andar, sentia o perfil do assombramento e do medo mais óbvio. Comprei, de imediato, uns óculos escuros e espelhados numa banca de senegaleses, perto do coreto da Estrela e, com o olhar vertido sobre o brilho agoirento do basalto, decidi ir a casa da minha desafortunada e desaparecida Arlete para repescar o dinheiro que aí, há muito, guardara no cofre. Após esse rápido lance e a aparatosa queda que o acompanhou, fugir tornou-se no verbo que, de vez, me inundou a chama e a desalentada estupefacção em que me encontrava. Sem mais, ali ia eu, agora, de táxi, cruzando o arvoredo do Alentejo, de Oeste a Leste, já cheio de saudades dos rosmaninhos de Lisboa, do alto do Adamastor e sobretudo da vida que havia vivido sob o nome de Adão. Quem era eu neste momento?
No assento do carro, tentava refugiar-me dos olhares do taxista pelo retrovisor. Por outro lado, os óculos cobriam-me quase meia face e neles apenas se evidenciava, a toda a largura, um espesso espelho onde se reflectia tudo o que o curioso do chauffer teria diante dos olhos: bermas, candeeiros, áreas de serviço, indicações de trânsito e nuvens rasteiras deitadas num céu azul instável e sempre imprevisível. Para disfarçar, ia a sorrir, a sacudir o rosto, a premir os lábios para os lados, bocejando o mais que podia. Foi deste modo, entre trejeitos e acrobacias não muito estudadas, que vi cruzar os sobreirais da Serra d´Ossa, os mármores de Estremoz, as Linhas de Elvas e, por fim, os verdes campos do Caia. Só na Praça dos Conquistadores, já em Badajoz, depois de ter cortado o fio umbilical português, é que sosseguei. No entanto, por quase apenas me limitar a ouvir a língua de Camões nas ruas da cidade, logo decidi correr em direcção à estação e aí comprei, de imediato, um bilhete para o primeiro comboio com destino a Madrid. E foi assim que atravessei a noite toda em viagem como se, através da desconhecida história da minha vida, eu me aventurasse agora nas malhas de um destino decerto muito pouco predestinado.
No mesmo compartimento viajou comigo desde Trujillo um homem gordo, baixo e de pêra serena. Dir-se-ia um Sancho Pança acamado em silêncio de pedra, mas predisposto a ser invadido por palavras pias e solenes. Perguntei-lhe pela vida como se, com isso, quisesse entender o novo mundo em que me movia. O Alonso era fogueteiro e pirotécnico ao mesmo tempo e morava em viagem, de feira em feira, de pueblo em pueblo. Sorria e com a sua voz empastelada e rouca dos Ducados contou-me tudo acerca da arte de disparar um belo foguete nas romarias e festejos da estepe ibérica. Disse-me que se transfigurava sempre que rogava aos céus o dom do fogo de artifício, pois era essa a sua missão última na vida, sabia-o desde as calendas mais remotas. Quando lhe perguntei o que queria dizer com a palavra transfiguração, disse-me que, no êxtase do seu trabalho, algo nele se alumiava, qual vela ou archote secreto sem os quais não conseguia viver ou sonhar. Por isso era nómada, errante, ambulante visionário e amante de Teresa de Ávila e do Amancio de outros tempos, destemido, mas calmo, seguro de si. Não tinha casa, nem pouso e conhecia mal muita gente, bem quase ninguém. Quando me acenou em Atocha, na hora da despedida, percebi que havia nele algo de mim. Limitara-me sabiamente a ouvi-lo ao longo de mais de duas horas, mas agora sabia o que fazer. Sabia perfeitamente o que fazer.
Era como se o fogo de artifício se tivesse acendido dentro de mim e não nos céus do Alonso. Percebi que eu próprio era um ser em chamas, um ser incomum, talvez, e demasiado inquieto. Ao longo da Gran Via, decidi esquecer a minha antiga vida o mais possível. Assim fiz, de bocadillo na mão e com a outra já presa à correia de apoio do metro que me levava para Chamartin. No fundo, sabia, há muito tempo, que as melhores clínicas de cirurgia plástica se escondiam algures no sul da Diagonal de Barcelona. Para lá continuei a minha longa viagem, tentando sentir-me no momento primeiro e inicial de uma nova e futura vida. Tinha o dinheiro suficiente e o saber mínimo para tal.
Tinha que me esconder. Tinha que me refugiar da incompreensão do mundo, é certo. Tinha que seguir em frente até aos limites que o destino me concedesse.
Foi, animado deste espírito, que vi um touro imenso da Domeque a empoleirar-se numa montanha com os cornos e os testículos vermelhos.
Foi, animado deste espírito, que vi Saragoça a dançar num horizonte meio glacial, meio púrpura, perdida no meio das terras proféticas aragonesas.

sexta-feira, 28 de outubro de 2005

Novas do Folhetim

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Começa amanhã a segunda parte do Folhetim, O Trevo de Abel, baseado no meu romance homónimo. Dizem os críticos, domésticos e sobretudo os outros, que é agora, após a gestação inicial dos primeiros 14 capítulos, que a história levanta de facto voo. Eu, por mim, limito-me a ver passar as páginas como se tudo se resumisse a um filme em bruto à procura de diferentes e novas montagens. O que já não é mau. Portanto, reatando o fio à meada: restam ainda mais 14 capítulos na segunda parte do Folhetim e outros tantos na terceira. Quanto aos leitores que se queixam da extensão dos capítulos, eu apenas posso limitar-me a dizer: paciência!

O livro da Sílvia


No próxima semana vai ser lançado entre nós "por favor, um blues" da autoria de Sílvia Chueire. Penso que ela não poderá vir do Rio de Janeiro até cá. Mas valerá a pena mesmo assim passar pela Lello, no Porto, no próximo dia 4, pelas 18 h.

Bloggers brasileiros e o referendo

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"A campanha do SIM foi uma campanha hipócrita, politicamente correta, manipulada pela TV Globo e seus “artistas da fome” de enganar o povo. Contudo, com tudo, não levaram desta vez.“O poder está na ponta do fuzil”, dizia o camarada Mao. Logo, cadê o meu? Abraccionne do aly do Letteri Café.
3
2
"Olá, Luís! Eu votei NÃO no Referendo do desarmamento porque o Governo brasileiro deixou claro que não ia desarmar os bandidos. Como você já deve saber, o tráfico de drogas é grande no Brasil. No Rio de Janeiro, por exemplo, há muitas favelas e todas elas são comandadas por traficantes. Eles possuem um arsenal de armas pesadas que nem a polícia tem. De onde vêm essas armas? Está claro que são compradas clandestinamente. Por isso, para mim, a proposta de desarmamento seria praticamente ineficaz. Não foi por acaso que a maior parte dos brasileiros votou no NÃO. Abraços! Angela."
4
3
Quanto ao referendo votei "sim". Parece-me que a pergunta r foi mal redigida e tornou-se pouco inteligível para a maioria da população . E a defesa do "não" parecia-se demasiado com a defesa mais reacionária americana dos que são a favor das armas, além de estar apoiada pela direita mais radical do país.Usarem-se palavras como livre arbítrio, liberdade, e outras de tão granade importância quando de uma arma só pode vir uma bala em direção ao outro, é absolutamente contrário à liberdade, à civilidade.
A proibição de comercialização de armas de fogo no Brasil a não ser sob rígidas condições não visava diretamente o combate ao crime organizado,latrocínios e etc. Tratava-se de diminuir a facilidade de aquisição de uma arma pelo cidadão comum, de diminuir as mortes por querelas domésticas, o roubo destas armas por criminosos, o uso da arma por um cidadão despreparado e amedrontado. Enfim. Perdemos todos, o país, a população. Ganhamos por outro lado a concretização de um espaço importante e democrático onde a população pode interferir diretamente nas coisas e responsabilizar-se. Creio que o crescimento é mesmo assim , percalços, passos adiante e atrás, aprendizado. Perdoe esta resposta escrita assim, às pressas.

Revisitations

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E depois, quando o sol nasce, não há nada melhor do que dizer suavemente "Good Morning Sirrr". Trata-se de um novíssimo blogue de Ana Bezelga, uma vídeo-artista e uma prestidigitadora de parties, templates e "pandemias visuais". Passe por lá. Promete. Os registos iminentes e vincadamente actuais equivalem muitas vezes à longa marcha da contemplação. Só muito mais tarde, anos e anos depois, é que se percebe que há iluminações assim.

Desígnios do Irão

Não fica nada bem a um tipo luminar, presidente de um país com tradições, e ainda por cima sabendo nós que arca com o significativo e líquido nome de "Mahmoud Ahmadinejad", vir dizer em público - ou terá sido em privado? - que Israel deveria ser "apagado do mapa". Depois não se diga que o povo não tem razão, quando segreda, com voz pouco sinuosa, que "para grandes males, há sempre grandes remédios".

Sabe bem

Sabe tão bem estar completamente de fora da actual campanha eleitoral. Sabe tão bem não pertencer ao desmedido grasnar do voto útil. Sabe tão bem, por fim, olhar o mar e ver nele apenas uma ociosa tenda sem quaisquer milagres.

Sol de Outubro

É sempre bom ver abrir uma livraria por baixo da nossa própria casa. Chama-se Casa dos Livros. Espero que tenha longa vida.

Folhetim

O Trevo de Abel – Episódio 14
Primeira Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Naquele dia - lembrava Abel -, as nuvens pareciam elevar-se com feições espantosas. Eram formas diluídas, férteis, sem contornos fixos a quererem transmitir a quem as lesse o que não cabia nas palavras, nos gestos, nos olhares mais comuns. E, no entanto, como interpretar um tal tecto do mundo? Com que leis? No Rossio, em Lisboa, diante do Nicola, uma multidão, mais ou menos alheia ao facto, acotovelava-se e detinha-se junto aos quiosques. Os jornais exibiam, já em grandes letras e com poucas variações, a mesma notícia. O dia era de trovoada iminente, de grande humidade, de calores anormais para a época. Não, não era dia de todos os santos, nem de incêndio anunciado, nem era tão pouco dia de tourada no Terreiro da Ribeira das Naus. Era uma Terça-feira normalíssima, mas carregada, densa, impiedosa. Depois, num repente cheio de relâmpagos, choveu, choveu, choveu e a cidade pareceu subitamente aliviar. Os jornais repetiam todos o mesmo, ou seja, que o cidadão José Adão Ulisses Ferreira, mais conhecido pelo Adão Ferreira do inenarrável programa ‘Limões e Biliões’, tinha acabado de entrar em coma.

E foi com a chegada dos jornais da tarde que se soube, por fim, da morte de Adão. A televisão, em comunicado lacónico, já o havia divulgado no fim da manhã. A cidade parou. Para os lados da Estrela, convergiram milhares e milhares de pessoas. Soube-se, num ápice, que o corpo iria ficar em câmara ardente na Basílica que D. Maria I mandara construir como gratidão pelo nascimento do seu filho José.

Entre o hospital militar, o jardim da Estrela e os caminhos que conduzem à Lapa, a Campo de Ourique ou ao Tejo, uma multidão passou a entoar, desde o início da tarde, a música do ‘Limões e Biliões’. Era a gratidão dos portugueses por aquele que se tornara na figura mais emblemática de toda a nação. Só ao fim da tarde, a chuva parou e o calor foi diminuindo, a pouco e pouco. No ar, as nuvens enovelavam-se e pareciam sugerir formas animais, seios prodigiosos, monstros da neve, crateras distantes, crustáceos colossais, fadários do fim do mundo. Há décadas que Portugal e Lisboa não conheciam um ajuntamento como este. Há décadas. Era uma espécie de silenciosa revolução, misturada com fé e evocação. Era uma espécie de prece, misturada com fervor e reconhecimento. Era de facto impressionante olhar, a partir do zimbório da Basílica, para a confluência de ruas em torno das áleas do imenso jardim, igualmente enxameadas de gente e mais gente. Tágides e gente. Um mole humano sem fim.

Abel saiu da estação e levou o grupo até ao pontão da Doca de Abrigo, penetrando na neblina húmida da barra que as ninfas, a memória dos nautas e os sete lemes de Ulisses haviam tecido para as noites de confissão exemplar como esta. Atrás, os doze, como se se entregassem ao milagre de uma súbita transfiguração, ouviam a história, detalhe a detalhe, ponto por ponto.

Ao fundo, junto ao barco a remos abandonado, pequenas cordas ao vento reproduziam o marejar inquieto das águas. Breves ondas a congeminar os reflexos de uma lua quase ausente.

A seu tempo, verão por que é que eu, neste momento, me chamo Abel. Para já, a história que vos tenho estado a contar é a de José Adão Ulisses Ferreira. Que também sou eu, juro-vos. Não tenham medo, porque é essa a verdade.

No meio da água quase negra do Tejo, passa agora um barco comprido de cabine rasa, clara, rasgada por três janelas iguais. Uma pequena luz espalha-se por esse tríptico frágil como se três estrelas a sós cintilassem num firmamento de breu total. Os treze escutam em silêncio. Os treze olham em silêncio. É noite fechada, noite de Tágides. O barco passa a uns dez metros do pontão da doca, alivia os motores e parece rumorejar, ou borbotar ainda mais lentamente do que há segundos. Alguém anda depois na ponte até à proa com uma lanterna na mão. É alguém que fica parado a olhar-nos durante muito tempo. Não podia ser nenhum de nós, é evidente. É um desconhecido que entra pela neblina húmida da barra, entre ninfas e memórias invisíveis. Se um de nós pudesse ser, ao mesmo tempo, aquele que nos olha e nós próprios, esta vida de certeza que seria diferente, pensou Isabel, mas não o disse. Depois, enigmático e sigiloso, o barco comprido de cabine rasa e rasgada prosseguiu o seu caminho. Já ao longe, Isabel viu claramente a mão do homem no ar. Uma saudação quase insondável. É noite fechada. Noite de Tágides. E a mesma Isabel, virando-se para Abel, perguntou: e você, Abel, acredita que a fronteira entre a vida e a morte pertence ao mistério?

O imenso funeral subiu lentamente até ao início da Ferreira Borges e virou depois, à esquerda, em direcção aos Prazeres. Ciprestes sobre o Tejo, foz de miragens e ventos na derradeira encosta, miragem da cidade exposta ao crepúsculo perpétuo. E, no entanto, os Prazeres, os Prazeres, sempre os Prazeres. Durante mais de oito horas de caminho vagaroso, entre paragens sucessivas e manifestações meio histéricas, a gigantesca comitiva bateu palmas, acenou com lenços de todas as cores e cantou. Era a persistente melodia do genérico do ‘Limões e Biliões’ que se propagava neste Campo de Ourique, transformado no labirinto de um imenso cortejo. Eram milhares e milhares de vozes a entoar esta espécie de novo hino, como se fosse um murmúrio ancestral há muito conhecido por todos. Eram milhares e milhares de vozes diluindo-se numa ladainha geral que parecia fazer deste povo uma verdade, um desígnio, um desejo enigmático ou encoberto. Era um sentimento íntimo, ocidental e atlântico que se manifestava na solene despedida a um homem de nome José Adão Ulisses Ferreira.

E todos pensavam que ele tinha, de facto, morrido.

Abel voltou a fitar o rosto límpido de Isabel e disse que não podia responder. Que não sabia. No entanto, se esses milhares de pessoas soubessem o que realmente se passou, talvez não tivessem levado tão longe o inebriado desafio colectivo de que todos se lembram, e de que eu era sobretudo o pretexto. Isabel continuou a olhar para a réstia última de luz daquele barco fantasma que, entre o breu absoluto do Tejo, se perdia agora na sua própria escuridão.

E Abel a repetir que não se esquecessem da frase inicial, a primeira.

E Júlia que não era capaz de deixar de ouvir aquela música de cordas, como se fosse uma ventura que lhe chegava de muito longe. Com toda a fortuna e magia desta capital do mundo. E voltou a pensar, como se fosse pensamento seu: Se Alexandria, no curso da história, exportou em viagens um saber anteriormente escrito, já Lisboa, nas navegações que segredou ao mundo, apenas terá legado a aventura e a experiência errantes do seu próprio e misterioso destino. Por isso, Lisboa estará ainda toda por escrever e por cantar, talvez sob o delicado véu dos seus ecos nocturnos, das suas procissões e cortejos, dos seus encontros e revelações prestidigitados. Dessas vertigens, uma sobressaiu a que se chamou fado e às outras duas, tal como às cabeças de Janus, chamaram Cesário e Pessoa. Essas vertigens são também a voz que se adensa sobre o gravitas da finisterra total, onde as migrações do mundo se acamaram e o infinito mar da memória, o mito, desenhou a matéria-prima para futuros poemas e visões.

O sapateiro Palmeirim olhou então para Júlia e entendeu o sorriso, talvez mesmo o gáudio; a raiz mais polida e reluzente do olhar, numa palavra. Disse, como que a finalizar: - Por agora disso não me curo eu, porque a mim basta-me saber que eu o quero mais que todos os do mundo. Assim fora Lisboa... e assim seríamos, hoje ainda, o coração do mesmo mundo!
Acredite nisso menina Júlia que é mesmo verdade!

Apesar dos enigmas do sapateiro, a verdade é que o mais complicado de toda a confissão de Adão, Ulisses e Abel estava ainda por vir.

quinta-feira, 27 de outubro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel - Episódio 13
Primeira Parte: O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Foi um tempo assustador. O próprio concurso ‘Limões e Biliões’ começou a ter quebras, por causa dos lapsos de memória que subitamente me invadiam. Lembro-me que me enchia de vontade, mas, quando as luzes se acendiam diante do meu rosto, confesso que só já descansava no fim, quando a música do genérico anunciava o termo do programa. Até então acontecia precisamente o contrário, porque, como é evidente, eu vivia com um gozo magistral aquelas cinco horas, entre as oito da noite e a uma da manhã. Sentia-me uma espécie de rei do firmamento e sentia-o com confiança, com convicção. Agora, de repente, tudo mudara.

Foi um tempo devastador. Em casa, durante as longas noites, a minha governanta assustava-se, entrava em pânico, tentava ajudar-me. Meio a dormir, meio acordado, dizia ela, eu deambulava pela casa e dizia coisas que nem lembravam ao diabo. Falava com a voz de outras pessoas, recitava de cor páginas de livros que nunca lera, imitava o som de animais exóticos. E, de manhã, quando acordava, lembro-me que o tecto do quarto parecia ficar avermelhado e, de imediato, eu era invadido por dores de cabeça monumentais, por visões de fogo e sobretudo por um estado de excesso que nem eu próprio era capaz de traduzir, de explicar, de compreender. Como o clochard Isaías disse, um dia, já mais tarde, eu era sempre o mesmo e um outro, e isso era coisa que se via nas olheiras, na curva dos olhos, na ponta dos dedos. Foi um tempo assustador, repito.

Até que me puseram a andar da televisão e o público, em massa, protestou nas ruas.
Fizessem o que fizessem, eu era de facto uma pessoa amada, querida mas solitária, furiosamente solitária, doente.
Eu era uma pessoa que me estava a dividir, que estava entrar em profunda metamorfose (se soubessem o resto!).

Júlia sorriu, nesse preciso instante, e disse, apontando para o ar, que era a Suite número 2 em D menor, BWV, 1008, prelúdio. O quê? Isto, ouçam, este violoncelo. É do Sebastião e é tão volátil e frágil como o nevoeiro, não é? O professor de comunicação abriu a boca toda, mostrou os caninos, o palato, o vestígio do caril a levitar na faringe e disse que não percebia qual era a relação. O nevoeiro apenas comunica a impaciência, respondeu Júlia a mexer no cabelo, nas trancinhas, no laço da blusa, enquanto Abel, alheio a músicas e a poesias dessas, continua ainda a lembrar-se, pela calada, que, naquele tempo, já não dizia coisa com coisa, nem recebia a filha, nem quase reconhecia a Luísa, se a visse.

E foi na manhã de hoje, sentado num banco do Campo Grande, que Abel pressentiu e percebeu tudo. Não, não era hoje ainda o DIA D; esse viria amanhã, ainda podia esperar. Não sabia como, mas era o que lhe dizia uma intuição profunda, escrita há muito na pele, no saber mais íntimo e, mesmo assim, indefinido. Foi essa espécie de estranha persuasão que terá conduzido Abel, perto do fim da tarde, à Rua do Alecrim e ao fortuito encontro com Zorba, numa esplanada recôndita. Era uma intuição que lhe advinha dos tempos mais difíceis, vividos em Banguecoque, Barcelona e mesmo em Lisboa. Abel não conseguia descrever o que lhe tinha acontecido entre tantas fronteiras e vidas, mas dispunha-se agora a ir até ao fim. Tinha a noite toda pela frente para o contar.

Até agora, limitara-se a começar a história.

Lisboa é uma cidade que se acalma nas vésperas dos grandes dias com este. Sempre assim foi. Abel tinha pela frente algumas horas, uma noite, e, talvez por isso, olhou em frente (com um misto de espanto e tranquilidade) para as luzes esfumadas de um comboio que dava agora mesmo entrada na grande gare quase vazia do Cais do Sodré.

Não, não tenho medo de o confessar, a verdade é que me transformei, sem mais, sem explicações, num homem doente, num monstro a que fora concedido o presságio ou o agoiro da metamorfose, da mudança inexplicável. Com efeito, eu sentia que algo estava em mutação acelarada dentro de mim. Na carne, nos fluidos, nos eflúvios, nos sentimentos e até nos repentes com que me maravilhava ou atemorizava fosse com o que fosse.

Sentia-me afligido por frequentes apertos nas costas, no peito, nos músculos. Corria pela casa, dizia coisas sem sentido e, durante a sesta, vagueava com ares de sonâmbulo e delirava, ensandecido, de manhã à noite. Foi um tempo assustador.

Assistia assim, na intimidade, ao destronar de um mito. O meu. E via-me, a pouco e pouco, lentamente, a cair, a cair, a cair, sem ajuda nenhuma de ninguém.

Foi um tempo de estupefacção. Tentei chamar a Arlete para junto de mim, mas já não a consegui sequer encontrar. Diziam-me - mas seria verdade? - que tinha abandonado a casa da Bica, de um momento para o outro. Mas com quem? Tê-la-iam levado para os Rebolares ou para os alternes de Espanha, ou do norte?

Como eu, às vezes, sentia saudades das tournées que tinha feito, há uns anos, como mero cantor pimba! Antes tivesse continuado a ser um bom fadista e um zeloso empregado dos Seguros!

E houve um dia em que soube que a Luísa tinha passado a viver com um tipo ligado à construção civil; uma espécie de pato bravo, um novo rico, mas que se serviu do meu dinheiro para levantar uma mansão em Cascais. Jurei vingar-me, mas era coisa vã, dita entre mim e os lençóis, entre o delírio e a raiva, entre o paradoxo e a memória às vezes um pouco perdida.

A neblina nocturna invade neste momento os vidros das carruagens. Continuam alinhadas, atrás umas das outras, até aos confins do poente nocturno. Um comboio chegou e outro acabou de partir para Oeiras. Saltam alguns passageiros e o antigo cinematógrafo podia reiniciar aqui a sua vida. Diante do grupo dos doze e de Abel.

E Abel voltou a olhar para os olhos de Isabel, como se navegasse em sangue do mesmo sangue, e repôs um ar carinhoso, oculto, condoído, talvez raro. A compaixão é, porventura, a incompleta tradução dessa saudade que é poder ser-se um outro, num momento de quase nitidez. Isabel tinha os olhos muito brilhantes, da cor do céu iluminado pelo estuário e pelas estrelas do oceano. Isabel queria saber. Isabel avançou ao lado de Lopamudra de Vidarbha, de sari flutuando no ar, e correu ao lado das carruagens vazias e alinhadas. Isabel parou e olhou para trás, sondando o grupo expectante, admirado. Voltou a sorrir, também a sós, e pensou que as respostas, fossem quais fossem, seriam sempre simples sonhos dos homens. E depois? O que aconteceu?

Abel olhou para o relógio, viu as horas e terá chegado a pensar que a noite era afinal breve. Como tudo na vida. Mas, de qualquer modo, estaria ainda toda por acontecer.

O que falta explicar é de longe o mais complicado. Será que me irão acreditar? E Isabel voltou a correr ao lado de Lopamudra de Vidarbha e perdeu-se por trás das carruagens vazias e alinhadas.

E Abel lembrou-se daquele dia em que a sua amante e amada catalã, a Sara, também correu, correu, correu, numa noite de calor escaldante, para nunca mais voltar.

Será que me vão acreditar?

quarta-feira, 26 de outubro de 2005

Euforia vs. disforia

Hoje em dia, os média cumprem o antiquíssimo efeito da tragédia: expiam o mal e a negatividade. Fazem-no involuntariamente, sobretudo porque as meta-ocorrências (ficcionalidades baseadas em factos reais) se autonomizam face a quem as cria e enuncia. Os textos publicitários, por sua lado, cumprem a função inversa (a da euforia e do optimum leibniziano), já que, ao enaltecerem produtos e marcas, acabam por transpor as suas mensagens para quadros ficcionais, narrativos e mitológicos a que ninguém dispensa a respectiva partilha.

Ruído

Não se pode levar a sério quem está sempre a favor de uma greve, só porque se trata de uma greve. Não se pode levar a sério quem está sempre contra uma greve, só porque se trata de uma greve. Estas posturas existem.

Folhetim

O Trevo de Abel - Episódio 12
Primeira Parte: O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Uma hora depois, terá sido provavelmente a sede e o cansaço que conduziu a breve narração de Abel às portas do British Bar. É profundo e clássico este local do Cais do Sodré, escurecido que é por madeiras de mogno sobrevoadas pela ventoinha da imortalidade. A encarnar a figura de anfitrião, Abel, no íntimo sempre à espera do cerco policial, sempre a viver uma espécie de último momento da vida, agora que já se expôs sem limites ao mundo dos vivos, abriu a porta do bar com toda a ligeireza do universo e convidou os doze a instalarem-se o mais possível junto da entrada.

Numa destas mesas a dar para a montra, dizia, e sublinhava-o com ar provocatório, sentavam-se muitas vezes os embaixadores da Alemanha e da Inglaterra, em plena Segunda Grande Guerra Mundial. Entretinham-se a jogar bridge e xadrez, imagine-se. Pelo menos, isto eram as histórias que ouvi por aqui muitas vezes contar, coisas que se diziam, exclamava Abel com ar subitamente pasmado, lembrando-se ainda tão bem do que se passara de manhã, quando Leonor descobriu tudo e depois... deve ter corrido para o hospital à procura do médico e da polícia, e eu, pensava Abel, a meter-me no carro e a fugir sem direcção, até Alverca, até ao Campo Grande... sem nada, e agora, agora, a contar tudo, tudo, mesmo tudo a esta gente que parece confiar em mim como se nos conhecêssemos há um século. Porquê eu?

Aliás, continuou Abel, este bar e o antigo Nina eram, em Lisboa, o epicentro favorito da espionagem germanófila e aliada. Por aqui, devem ter-se vivido ambientes parecidos aos do Casablanca. Sorrisos.

Zorba, atento aos pasmos mais silenciosos, sorriu finalmente de soslaio e como que a interromper o alocutário, adiantou: Ó Abel, sabe que eu vi isso? Você ouviu contar, mas eu vi. Vi com os meus próprios olhos. Lembro-me como se fosse hoje de ver esses dois senhores, aí mesmo, junto à janela, nessa mesa, sob uma grande nuvem, uma imensa fumarada de charutos e, claro, rodeados por todo o tipo de espiões que então existiam, com e sem suspensórios, de óculos ou de chapéu, de bengala ou com botas pretas de cabedal, de gabardina escura ou até de papillon.

Mas Abel continuou, sem se perturbar, quase ignorando a desdita. A antiguidade.

Foi aqui que eu, pela primeira vez, após dois anos de sucesso do ‘Limões e Biliões’, senti no peito um ardor muito parecido com o que sentira antes de ter sido operado. Lembro-me que, por não querer sequer imaginar que podia estar outra vez mal de saúde, paguei várias rodadas de cerveja numa noite histórica. Aqueles senhores de camisa branca, se soubessem quem eu sou, se me pudessem ou conseguissem reconhecer, lembrar-se-iam de certeza.

Lá fora, na rua, para além das janelas do British, Lisboa entorna-se nos caminhos da noite. Passam corpos altivos, mortificados, rápidos; rostos a rodopiar a loucura, olhares rarefeitos e mudos, carros de patrulha, sirenes, rebates e repiques. São sons desencontrados que propagam a ameaça, o desconcerto. De qualquer modo, Lisboa sempre encarou os seus heróis mais antigos com nostalgia e também com alguma generosidade. E o que pensará, hoje à noite, Luísa de tudo isto?

Abel cala-se por momentos e devolve o sorriso de pasmo na direcção de Isabel que tem a face vermelha, picotada de sardas, como que a captar os mil mistérios e sortilégios que se adivinham na sua própria história.
Depois de rever mil interrogações na vidraça fosca do bar, prosseguiu Abel:

O British foi o bar que mais frequentei durante o auge dos ‘Limões e Biliões’. Era nestas cadeiras de napa vermelha que eu acabava por me esquecer de ir para casa, para o tormento, para o reencontro das angústias, dos medos, de todos os tremores. E o facto de ter aqui sentido mais um aviso (a mão no coração, como se a culpa morasse num gesto que tem esse nome) até nem terá sido o mais importante. E Abel boceja, pasma, aceita a cigarrilha, o favor, o lume, mas é, outra vez, invadido pela memória súbita, inaudita, cada vez mais omnipresente. Tentadora.

Era como se, depois da fuga desta manhã, depois de ter suado e temido o pior, Abel tivesse decidido, num dos bancos de jardim do Campo Grande, que já tanto fazia que o apanhassem, que o prendessem, ou que o deitassem na pedra de mármore de uma faculdade de medicina para que se estudasse o fenómeno, o sortilégio,

o tal mistério.

A verdade é que, um mês depois desse aviso, dizia o acossado, numa noite de lua nova, a Arlete teve que me levar a correr para o Hospital Particular. Foi um acaso eu estar com ela, porque, com o andar do tempo, ia-a perdendo de vista. Na minha vida, confesse-se, fui perdendo muita coisa de vista, como se uma fuga para a frente me afastasse, a todo o momento, do curso do meu próprio destino. Havia em mim esse frémito, essa tentação secreta, apesar da doença; apesar da ameaça que, no meu íntimo, eu já sentia de... não poder continuar a deliciar o país com o ‘Limões e Biliões’.

E o que é que detectaram nesse hospital? Não sei, mas os médicos ficaram perturbados e encheram-me de comprimidos e análises. Passei o tempo nas tumbas claustrofóbicas das ressonâncias magnéticas, tacs e outras detestáveis torturas modernas. Emagreci, perdi cabelo e fiquei, para sempre, com esta tendência para avermelhar os olhos quando menos se espera, qual bruxo, arcebispo ou carniceiro doutras eras. Fosse como fosse, na televisão tudo isto não passou despercebido. E o facto é que, dois meses depois, o programa voltava a reduzir-se ao seu formato original de concurso e, à noite, sozinho, meio saneado, meio exilado, na solidão do meu palácio, eu muitas vezes delirava, falava alto, padecia de diabólicas insónias; enfim, parecia dominado por uma tormenta. Mas qual?

Eu já não era o mesmo. Tinha deixado, de vez, para trás o meu clímax, o cume do meu sucesso. O que me esperaria agora?

terça-feira, 25 de outubro de 2005

Novas de Terça


Chien-Chi Chang (1998)
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1- Um deslumbrante banco de nevoeiro a enovelar a suspensão da ponte sobre o Tejo.

2- A resposta pública do amigo Avatar ao meu mail privado que não era para ser entendido como "demolidor", antes sim como convite para partilhar aquela estreita ponte que liga céu, inferno e sobretudo amizade.

3- A segunda parte do folhetim em curso, O Trevo de Abel, iniciar-se-á no próximo sábado.

4 - Mensagem telefónica da Europa-América a confidenciar que A Novíssima Poesia Portuguesa e a Expressão Estética Contemporânea estará nas livrarias na próxima Sexta-feira. Só espero que a revisão de provas tenha sido impecavelmente cumprida! (prefácio publicado no meu site pessoal)

5 - Uma gaivota solitária a cruzar os céus de Campo de Ourique.

6 - Por fim, já abriu a "Mnemosfera" no meu site pessoal (premir primeiro em "Esferas"):

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Cá vou eu, naquele tempo (esta foi na Primavera de 1984), entre várias dezenas de imagens que remetem sempre para si mesmas. E nada mais.

Folhetim

O Trevo de Abel – Episódio 11
Primeira Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Foi já perto das luzes foscas do Corpo Santo que Abel terminou o relato desta sua súbita, monstruosa e ocultada solidão, como se fosse desterro, exílio ou coisa malévola tudo aquilo que sentia sempre que saía de cena, da ribalta viva, do manto pouco diáfano dos holofotes televisivos.

Talvez isso já fosse prenúncio de que algo muito grave estaria por acontecer. A minha avó que Deus tem, continuava Abel, sempre me avisou que eu nascera através de um parto invulgar, único, verdadeiramente predestinado a grandes feitos. Mas quais? Perguntava-me eu, naquele tempo, sempre que atravessava os longos corredores do meu palácio cheios de espelhos, móveis eclécticos, estuques dourados, jardins escarpados, piscinas de água quente, salas circulares e varandas que pareciam ser de marfim. E talvez porque a minha turva consciência me ditasse sentenças estranhas, decidi, um dia, doar à minha ex-mulher uma quantia de dinheiro exorbitante.

A partir desse momento, passei a ver a minha filha uma vez por semana, mas sentia como uma evidência total que não tinha qualquer vocação para pai. Perguntava-me porquê. Tudo isto me induzia à fatalidade, à perda de confiança, à descrença.

De repente, tudo deixou de ter brilho para mim. Nem mesmo a Arlete, vestida de plástico vermelho e azul e dando-me, ao de leve, com o chicote de linho ou de chita nas costas. Nem mesmo a Arlete, nos dias em que a mandava sentar toda nua no banco de jardim que tinha instalado na sala. Nem mesmo a Arlete com o espanador a tentar despertar-me para secretos e novos prazeres. Nada.

E os treze pararam, de repente, em silêncio absoluto, perto da esquina do antigo Hotel Atlântico. Pareciam estátuas consumidas pela erupção vulcânica, brancos na face, imóveis no gesto, chamejantes no olhar. Era como se uma bátega de água gelada tivesse caído no arco-íris mais belo e cintilante da confissão da vida. Uma desilusão profunda e logo visível: era o sapateiro Palmeirim, desapontado com as fraquezas desveladas por Abel; era Zorba, consternado, a abanar a cabeça e a acarinhar Isabel. Era Lopamudra de Vidarbha e o pai a evocarem, por mera consolação, a grande personagem de Dharmaputra que, no final do Mahabharata, se transfigura e passa a ser um verdadeiro Deus liberto do medo e da fúria. E era Abel, também imóvel, a tentar responder, a tentar explicar, a tentar argumentar, com voz húmida, que tudo isso acontecera noutro tempo, ou seja, quando os heróis e os deuses andavam de mão dada pela memória do mundo.

E Abel de repente riu muito alto e repetiu que eram coisas que já lá vão. Que já lá iam. Se soubessem o que depois se passou!

E Zorba, aflito, temerário, ao pressentir aquela mudança, aquela gargalhada enigmática e vazia, aquelas palavras repentinas (que irá ele agora dizer?)

Uns metros à frente, era outra televisão gigante a inundar o círculo de homens apeados sobre o passeio, sobre a calçada quente, expectantes, atentos à voz do locutor que repetia, em voz off, de modo enérgico, decidido e grave –

...que o médico legista tinha razão. Que o cidadão fugitivo não era mesmo deste mundo, que se confirmava, que se tratava de um indivíduo que tinha aparecido depois de morto por variadas vezes, que após a exumação tudo parecia dar certo com aquilo que os jornais do Cairo tinham descrito. Que... e agora?

Podia lá a gente imaginar que um pobre de um etíope, ainda por cima chamado Prestes, viesse agora dizer uma coisa daquelas a um jornal egípcio. Como se um português pudesse ser assim desmascarado, como se Portugal fosse um país das bananas ou de demónios fáceis; e assim continuavam, barrigudos de cerveja e de tradição, lado a lado, frente a frente, perto da igreja, a lucubrarem, a falarem alto com aquele sotaque cheio de sibilantes dilatadas e de deixas alfacinhas...

E Zorba ainda a auscultá-los, de longe, num rodopio indisfarçável e aflito.

Por fim, como se fosse coisa programada, o grupo dos treze deu entrada na Igreja do Corpo Santo para descansar um pouco, para retemperar energias; fora proposta de Abel.
Se há Igreja aberta a esta hora, só o é por velório - disse o Senhor Gouveia. Seja como for, nos bancos de trás, há imensos lugares livres. Mais à frente, desenha-se na escuridão um grupo de carpideiras do tempo antigo, quase descalças, a ciciarem breves murmúrios, sussurros e lengalengas que mais parecem fragatas ao vento a fazerem lembrar aqueles dias ancestrais em que o Tejo e Lisboa ainda eram carne da mesma carne, coração do mesmo corpo.

E foi então que Abel fechou os olhos muito lentamente, arrastando para o fundo das órbitas a visão daquelas mulheres dilaceradas, transformadas em animais míticos, deitadas na sua retina como frutos em relvado molhado, brilhante; a remoinharem, enrolando-se como a luz sobre um novelo de lã; refulgindo em bolas de gelo, novelos de velame, nuvens da foz do grande rio da saudade. Abel fechou de vez os olhos, encostou para trás a cabeça sem dar por isso, e, como todos os outros, dormiu; terá dormido a justa conta de duas horas. Sonho sobre sonho, na última noite da sua vida. E Abel viu cores avermelhadas, gigantes, rodeando uma sala oval, aberta para o espaço. Mas que espaço exíguo seria esse?

Era um espaço do tamanho de muitas constelações, imenso. De costas para si, sobre um lindíssimo monte-de-vénus, Abel parecia distinguir a silhueta negra de um corpo feminino que, depois, se despia lentamente. Era Sara, era Leonor, era Luísa, ou ninguém? Talvez apenas uma voz, vinda do vazio interestelar, a perguntar se era menino ou monstro. Monstro ou menina. O vulto ria alto, um riso de fortúnio e fortuna. Depois, num ápice de maldição, tudo aquilo se fez em chamas e, das cinzas, surgiu o tal prado muito verde, encostado a um rio brilhante e viscoso, na margem do qual um pastor ainda conseguia sorrir diante do trevo iluminado pelas três folhas. E disse-lhe o pastor: Tinham-te dado a ver, desde o início, essas três luzes; a primeira esfumou-se rapidamente em chamas muito altas; a segunda tinha-te possuído o corpo, mas não a aventura e, por fim, a terceira, quer queiras, quer não, há-de ter-te feito o corpo e a alma para sempre aziagos. Dito isto, o pastor desapareceu e, em seu lugar, ressurgiu o enorme lobo de dentes de marfim que, talvez, devido ao olhar fervoroso de Abel, logo se pôs em fuga através dos matos e arvoredos daquela campina inóspita perto de Barcelona. Naquele tempo, diz o feitiço do sonho, que se atravessava a campina até à praia do Tejo em três horas, sobre um arrolado de troncos e alguns panos de pele de Banguecoque. Foi por aí que Ulisses conheceu Abel e dele retirou o nome, sob o olhar matriarcal de Marieva, sua mãe, e Maria Alba, mulher fundadora e sua avó. Até que um ciclone e dois terramotos varreram a grandeza do estuário, por duas vezes, em cada sete mil anos. Mas a tribo subsistiu sempre. Virada para o oceano da vida e para o derradeiro rio do silêncio. Quando Abel parecia regressar à posição de feto, dentro de uma redoma fechada e iluminada por cores boreais, deu então um enorme grito que fez eco em toda a igreja do Corpo Santo.

Acordou assim Abel e, sem querer, pregou um imenso susto às velhas ovarinas que persistiam na sua continuada ladainha. Com o coro destas e com o protesto dos familiares do morto, todos os restantes doze acabaram por acordar e, de uma só leva, saíram para o exterior.

Iniciava-se agora a noite fechada e derradeira. E, mais acima, nas traseiras da Vítor Cordon, sobre um renque de janelas ogivais e sombrias, entre malvas, alecrins e manjeronas, o corvo negro voltou outra vez a pousar.

domingo, 23 de outubro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel – Episódio 10
Primeira Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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E os treze atravessaram a Praça de S. Paulo, em diagonal. No meio, surge o chafariz com as quatro bicas do paraíso, capazes de, por si só, suportar o breve obelisco que alguém coroou com um globo armilar. E o taxista, encostado à esquina a falar para as amazonas da noite, a dizer-lhes que o gajo andava a monte e a fingir que também era taxista como ele; que isto está tudo virado ao avesso, que já não há ordem, que o governo não tem mão nos bandidos, que é coisa de droga, que é coisa do outro mundo. Anda o diabo à solta.

Naquele tempo, insistia Abel, as putas eram preciosas sereias de Vénus que, hoje em dia, a heroína e outros óleos mortais desfizeram em farrapos humanos. Naquele tempo. E uma das amazonas de Lisboa, desdentada e purificada por anéis de banho de ouro, lá ia dizendo que, em tempos idos, tinha trabalhado para o Caim, para a Espanhola, para os Coimbras... e que podia afiançar que era tudo boa gente, que não eram bandidos, não senhora, que não eram diabos nenhuns, não senhora. Por que andaria agora meia cidade atrás dele? Porquê?

E dizia ainda a Amazona que um clochard a quem chamavam profeta Isaías (o tal que percorria o Mercado da Ribeira com a sua minúscula liteira de cães) insinuava, delatava, espalhava o terror com palavras venenosas. Dizia Isaías a quem o ouvisse que Abel há muito que tinha sido denunciado pelas muitas pragas que ele próprio difundira em toda a zona dos Remolares e de Porto Brandão; dizia Isaías que Abel havia sido visto em diferentes sítios e vidas, o que era diabólico e herege, tal como agora testemunhavam egípcios e etíopes na CNN. E a Amazona apontava de longe e ria. A boca desdentada, as varizes de plátano, o decote desleitado. Tem cuidado, tem cuidado, dizia.

E o grupo entrou no amplo Mercado. Tal como nos tempos em que este espaço ainda não dispunha de tectos gigantes e renovados, os gritos das floristas pareciam ecoar, destemido, o velho pregão dos mil perfumes, faros e olores:

São cravos, papoilas de Outono, roseiras de chá; albardeiras, papalvos de túnis, camélias; hortênsias, malvas dos jardins, calendárias; sabugueiros de água, amores-perfeitos, alamandras cheirosas; roseiras de ouriça, flores de defunto, laranjas da terra; hortelãs silvestres, pimpinelas menores, hidranjas; camarinhas, jardas, rosmanos; gomís, jarros, ervas da ribeira; hortelãs, jararacas, jasmineiros; begónias, cristas de galo, malmequeres e bem-me-queres; juncos, flores de freixo, penélopes; calêndulas, três-marias, buganvílias; ervas mouras, sempre vivas, rosas puras.

Era um murmurinho de atoarda, um rumor de zumbidos, cristas vermelhas e cor de fogo que se tinham arriscado às ondas, um dia, para criar Lisboa. Eram trevos-vermelhos por todo o lado, rumores e presságios sem fim. E Júlia, às vezes, com algum medo de se aproximar de Abel, ou fosse ele quem fosse.

E Abel, longe desses abismos, agora repentinamente entusiasmado e a lembrar-se dos tempos em que comprara um palácio com trinta e duas divisões perto do Guincho, a lembrar-se dos tempos em que comprara a famosa mansão azul da Marquês de Tomar. Nessa altura, Abel tinha carros de todos os tipos, circulava pelos mupis, cartazes, revistas; pelos sítios da web, pelos autocolantes e sonhos de todos. Abel tinha a felicidade das oito da noite à uma da manhã; circulava de palco em palco, levantava a voz, os braços, o verbo imaculado e sucinto. Abel era um espectáculo sobre-humano, capaz de se reduzir às opiniões banais ou celestiais de cientistas, literatos ou comentadores da coisa pública, como era também capaz de libertar o mistério, de transformar bailarinas em fogo, música em desvario e delírio. Abel tinha, de facto, reconstruído um sentido para a vida de todos. Abel era a prova limite de que real e ficção, ficção e real, são dois lados da mesma folha de bambu, do mesmo firmamento da existência. Do mesmo nada.
Por todo o lado, os cidadãos recebiam a vida pelos mil ecrãs que deambulavam nos portáteis, nas televisões, nos carros; nos livros, nos porta-moedas electrónicos, nos telefones celulares e nos painéis urbanos de grande dimensão. Abel tornara-se no rosto da vida, na árvore da sabedoria, no herói inenarrável da nova Ítaca, onde a ilusão fugaz se impusera à rotina e se metamorfoseava no palco vivo da alegria, da conformidade, enfim, de uma nova e ainda inesperada razão do espírito. Abel era o futuro augurado, reminiscente, naquele tempo em que, sob o impetuoso coro de holofotes, todos os dias entrava em cena como se se revelasse através de um deslumbrante cometa azul e vermelho, oriundo de galáxias em expansão perpétua. Abel tornara-se no corpo da verdade e da ordem. Abel era o herói. Abel era o centro de todas atenções.

Abel era um homem feliz das oito à uma da manhã, mas depois, depois, limitava-se a entrever, contemplativo e lacónico, as muitas pinturas e esculturas do seu palácio solitário. Depois, depois, quase morria, esmorecia, calava para sempre o que, de facto, era.
Depois, depois, só ele sabia o vazio, o tremor, a tremenda ausência em que, de repente, após a operação, se reviu, noite após noite.

E, à volta, o mercado e todos a ouvirem a mensagem subitamente incrédula. As insónias, os desencantos, a descrença e a brusca impiedade noctívaga. Que se passaria?

Lisboa é, de facto, um berço recurvado sobre o mar interior que o rio resguarda e que o oceano aguarda como pura tentação - voltou Zorba a pensar no mais puro sigilo.
E pensava-o, enquanto observava o seu Abel a falar de frívolas fraquezas, de solidão, de desencantamento súbito, com tanta flor por todo o lado.

Já abriu

Já abriu o "Fórum" no meu novo site pessoal.

Amanhece

Subitamente o que está na agenda é o passeio de basalto branco, escorregadio, memorial. Um encontro entre idosas saídas da nocturnidade de Delvaux, o casal composto e simétrico lado a lado com o cachorro de trela alaranjada, um caixote do lixo desalinhado e restos de inscrições nas paredes: ainda consigo ler palavras como "Carter", "Torcida" e uma velada e quase apagada "NATO". Iniciais, grafos, perdições e a terrível suástica desfeita em quatro quadrados negros. O sol, por fim, desponta. Amanhece lentamente num bairro ocidental de Lisboa e o resto é tão frugal e efémero como a possível errância no labirinto.

Folhetim

O Trevo de Abel - Episódio 9
Primeira Parte: O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Lentamente, a cidade esvazia-se. Na televisão do velho café, esvaído ainda pelo cheiro a peixinhos da horta, o telejornal dá finalmente a ver o táxi abandonado na zona de Alverca. A câmara filma-o por baixo, por cima, entra no habitáculo e tenta auscultar os restos da presença do acossado. Um cabelo que fosse, um rasto, a chave da caixa de correio, alguns vincos demoníacos estampados no assento, uma flor fossilizada. Fosse o que fosse. Segundos depois, ainda sem montagem, lá aparece o médico da vila de Belas a premir o dedo indicador sobre o aro dos óculos. Ostenta cabelos brancos muito penteados e sobretudo uma voz pausada a descrever, com as mãos no ar, o tipo físico do homem e, talvez, quem sabe, os seus corninhos cor de cenoura, as luzes ígneas dos olhos, as barbatanas suspensas, as sobrancelhas de vime aparadas por sabre esguio, o bigode de Salvador Dali, enfim, o rosto algo demoníaco, ovóide e quase triangular, dizem. Monstros de um café já sem ninguém, à beira de desoras. Lisboa, ela mesma, a acossada.

Foi diante do sapateiro do Conde Barão que o grupo voltou a reagrupar-se. A televisão separara o grupo, dividira tudo. E como se fosse agora o próprio destino a admoestar e a falar por boca muito sua, disse então o sapateiro do alto da sua cadeira, com voz fina, quase feminina, quase inesperada: Tal como o profeta Isaías, também eu te conheço, Abel que outrora foste Caim. Falo-te dos tempos em que eu era fidalgo de porões, até que uma âncora me amputou a perna, em viagem entre os Açores e os baixos da Ria Formosa. Lembras-te? Foi essa a curta história da minha vida. Posso agora também acompanhar-vos? Abel sorriu com os lábios muito largos, larguíssimos, coisa de peixe do Bornéu - bem diferentes aliás dos que recebera no parto, em dia inóspito e raro de aurora boreal, à beira das Escadinhas da Praia. E disse que sim. Foi assim que de doze passou a treze o número dos que passaram a ouvir a terrível boa nova.
E Abel disse:

Ao fim de um ano de emissão, eu já era uma estrela a brilhar no firmamento, eu já era um verdadeiro mito nacional. Eu já era quase imortal. Quem não se lembra de mim?

Sei que, pelo menos, o senhor Gouveia, a Dona Joana e o Senhor Zorba já se aperceberam da minha história. Já mo segredaram ao ouvido. Mas há ainda muito por desvendar, por desocultar, asseguro-vos. Até porque sou vítima e não criminoso, acreditem-me!

Um dia, estava eu diante das câmaras, a correr entre os vários palcos, bailarinas e luzes, e, de súbito, uma dor imensa incendiou-me o peito. Compus a minha antiquíssima máscara, disfarcei, virei-me de costas e simulei a voz com o computador de bolso. Fez-se um grande intervalo, inventaram-se desculpas e creio que ninguém, ou quase ninguém, deve ter dado pela coisa. No mês seguinte, estava eu a apresentar o concurso internacional de jovens cantores no Pavilhão Atlântico, e eis que caí redondo no chão, animado por um bizarro fervor que parecia rebentar comigo, arrebatar-me. E, mais uma vez, na região do peito. Na altura, senti que me estava a ir deste mundo, que iria morrer, era coisa iminente. Nunca tinha tido aquilo.
E todos os prenúncios e expectativas que sentia desde que abandonara a família e os Seguros se pareciam agora esfumar.

Foi um frémito em todo o país. Um estremeção e um abalo dos antigos; desses que ungiam as naus à partida e as expiavam à entrada da barra. Entrei numa Terça-feira à noite no hospital de Santa Maria e lá fiquei internado durante dois meses. Uma multidão rodeava o hospital, já se lembram? De dia e noite. Quanto mais as notícias garantiam o sucesso da operação, mais o mistério parecia ensombrar os diagnósticos e os relatórios médicos. Aquilo era um autêntico embaraço, confesse-se, não apenas para mim e para a minha meteórica carreira, mas sobretudo para o que se dizia e não dizia a uma opinião pública sôfrega de novidade; ansiosa devido à minha ausência televisiva, carente da minha companhia omnipresente. Nunca os médicos me confessaram o que se passou naquela sala de operações, nunca. Talvez porque o embuste e o ardil são mais paralisantes do que o próprio tabu; talvez porque o medo e a fantasia superam, muitas vezes, a capacidade de transmitir a verdade pura e nua, se é que esta existe. Nunca o disseram, mas eu digo-vos.

O sapateiro Palmeirim parecia agora um nauta ou um apóstolo resignado à velha história. E Júlia e Isabel a imaginarem que tudo isto se deveria ter passado para dar voz ao silêncio da natureza insatisfeita. E qual foi a causa desse mal tão rápido e tão inexplicável? Inquiria Brihadratha, com uma voracidade evidente a dissimular o tremor, a raiva, a querer saber tudo.

Continuemos:
Estava eu a recuperar da minha grave doença, quase já curado, pronto a dar entrevistas e a regressar à televisão e eis que, um belo dia, me obrigam a assinar um texto onde se elidia completamente a verdade acerca do meu mal genuíno. Aceitei, mas apenas para poder sair do hospital e regressar rapidamente ao ‘Limões e Biliões’. Só pensavam em dinheiro, essa gente!

É a primeira vez que o vou contar em público. Faço-o, porque perdi completamente o medo. Haja o que houver, aconteça o que nos acontecer até ao dia de amanhã, o último.

O que se passava é que eu tinha dois corações. Sim, isso mesmo, eu tinha dois corações no mesmo corpo. Retiraram-me um deles. Mas, no fundo, sei-o hoje, isso era apenas um sintoma, ou um aviso, do que viria depois.
O nome do meu mal era o excesso, apenas isso.

sábado, 22 de outubro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel – Episódio 8
Primeira Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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No cruzamento com a Rua dos Poiais, Zorba acabou por convidar o grupo a entrar no restaurante indiano. O cheiro a lagosta com molho de caril inunda a entrada. É um pó de cor ocre amarelada, lasso, moído, envolvido por especiarias e dotes aventurosos. Os olhares afrodisíacos confundem-se com as finas transparências dos saris e com a visão celeste e púrpura que preenche o envidraçado do restaurante e uma música de laudas agudas e lentas.

Abel volta a beber chá (como fazia em Belas) e conta a quem o quiser ouvir, agora sem qualquer medo, que o concurso da BTP, o ‘Limões e Biliões’, fora exclusiva criação sua. Por cima, dizia - deixando os indianos atónitos e perplexos -, mandei sobrevoar o estúdio com um autêntico mar caleidoscópico de holofotes. Luz, muita luz, apenas luz. Depois, as bancadas tinham que comportar umas três mil pessoas de pé, efusivas, sempre aos saltos. Em frente das bancadas, surgiam os três palcos móveis que deslizavam sobre monocarris de aço. E Abel entusiasmado, mesmo desinibido, perdido por cem perdido por mil, a atropelar a voz, a denunciar-se:

Eu corria de palco em palco, tomava conhecimento em segundos do voto das audiências e, sempre a sorrir, espontaneamente, ia dizendo o que era imprevisível, mas adequado, mágico. E juro que não havia quase nada que não fosse previamente combinado. Fora sempre assim. Durante o programa, mudava de roupa umas sete vezes e, tal como um foguete - sempre adorei foguetes e fogos de artifícios - tinha que dar a impressão de ser um personagem ubíquo, omnipresente, uma espécie de divindade dividida entre vários corpos e um só espírito.

Por trás de mim, as imagens reais e virtuais faziam confluir dançarinas a levitar nos sete céus, nos cinco continentes do mundo e nas várias civilizações da história universal. Um primor. Perto do final, como consagração, eu cantava durante uma meia hora, na pele de Ezequiel, ou de Cesário Leme. A partir da terceira edição do concurso, passei a encarnar um terceiro heterónimo, o Areonte, que era uma espécie de cantor de Zarzuela à portuguesa, misturando a batida pimba com ritmos electrónicos, vestígios futuros de hip hop e alguns ecos líricos.

Quando o ‘Limões e Biliões’ fez seis meses - lembram-se? - passei eu mesmo a dar as notícias e acabaram com o telejornal das oito. Pode parecer absurdo, mas na altura não foi. As audiências eram já tão elevadas que foi mesmo necessário suprimir o noticiário. Deste modo, eu próprio me tornei no locutor, no jornalista, no meteorologista, no culturista, no desportista e assim por aí adiante. Eu próprio me tornei na imagem mágica da noite televisiva a entrar em quase todos os lares portugueses, ao mesmo tempo. Foi uma verdadeira maravilha, um prodígio, um milagre, lembram-se ainda? E Zorba a bater com a perna, nervoso, a reconhecer a trama e o perigo, o salmo e a sorte.

Não, ninguém telefonará para a polícia, porque o deslumbre é capaz de cegar o pânico, assim como espanto é capaz de cegar o assombro e o tremor, garanto. À saída do restaurante, fosse das mesas acólitas ou do balcão, fosse por fascínio ou talvez por contagiante feitiço, a verdade é que mais seis pessoas acabaram por se juntar à procissão confessional de Abel, o magno.

Eram eles um deputado alto e de pêra esbranquiçada, um professor de Comunicação do ISTPE; um casal de brasileiros arrebatados com a explanação e, por fim, dois dos indianos do próprio restaurante, o dono e a filha, arrastando-se num imenso sari.

Na rota do Boqueirão dos Duros, o destino traçou algumas das mais apertadas ruas de Lisboa. De braços abertos, é possível tocar nas duas fachadas opostas que sobem, como Babel, até à única memória comum que habitou estes lugares - a praia, as marés, o sobressalto; o vaivém da distância tornada legenda, fantasia, sereia em terra encarnada pelo olhar dos homens. O mar. Uma só linguagem, embora oclusa, esquecida, praticada apenas pelos poetas malditos; esses seres que enchem as últimas tabernas, ou que se encostam às paredes vulcânicas da Rua das Gaivotas, auscultando apenas o mistério; ou essas pitonisas vestidas de negro, de cabelos desgrenhados que, penduradas das janelas, sondam os seus demónios e anjos, tecendo acordes perfeitos e ínvios entre o bem e o mal, e doando a beleza perdida do corpo ao devir dos nautas. O mar. O prazer. A poção ancestral das cordas. Auroras boreais antigas. Um primor de bairro. O brilho da luz entornada entre o casario escuro, rosa castanho chocolate e a expectação e a maravilha e a intriga dos que decidiram, um dia, nesta Lisboa doutros tempos, escutar um homem efabulador e perigoso chamado Abel.

Mas, como é que era mesmo capaz de se desdobrar entre tantas personagens, fosse o Ezequiel, o Cesário Leme, ou o Areonte? Júlia sorri, enquanto dá largas ao timbre mais inaudito, à voz, como que a procurar o eco daquelas paredes tão próximas. Parecia um guincho, choro de gaivota, dedo de Ulisses a deslizar no vidro de uma sibila esférica da memória de Delfos.

Um som que patina entre janelas falantes e que depois sobe até ao brilho da tal estrela que brilha no fundo de um túnel de viagens míticas. À voz altiva do deputado, a menina indiana de sete braços, de nome Lopamudra, volta a insistir: e não confundia o que, às vezes, dizia? Zorba olhou para a filha e sorriu. Como é bela esta minha filha e como veio tão tarde, depois de tudo ter já acontecido. Dona Joana e o senhor Gouveia discutem os números do totoloto à porta da loja do portal azul bebé. Lá dentro, vende-se tudo, televisões em segunda mão, gravatas, bancas de cabeceira em mogno, lapidárias, borrachas, tudo. E Abel falou:

Acho que essa tendência de me multiplicar em muita coisa já nasceu comigo. Será coisa desta cidade? É verdade que confundo muitas das coisas que digo. Aliás, enquanto ainda aqui estou, juro que tento não confundir o que sou com o que digo. Se soubessem tudo aquilo por que passei nas últimas vinte e quatro horas!
Lá chegarei. Lá chegarei.
Dêem tempo ao tempo.

E a rádio ainda a dizer que o governo mandou a polícia intervir. E que tudo pode agora acontecer.
Há sirenes ao longe. Ameaças que andam no ar.
O mistério tem que desvendar-se. Até amanhã.

Enigma da semana

Há um lenço branco na frente de cada visionário, por mais cego ou irascível que seja.

Beja-me

Há um blogue em Beja chamado Beja-me. E esta?

sexta-feira, 21 de outubro de 2005

Em breve: Escrita Criativa on-line


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No meu site pessoal (http://luiscarmelo.net/) está a ser instalada uma plataforma que irá permitir a docência de cursos de Escrita Criativa on-line, área a que me encontro ligado há mais de uma década. Tenho a certeza de que muitos ex-alunos (e não só) encontrarão aqui o que têm procurado ao longo dos anos: a continuação de um projecto sempre inacabado e, por isso mesmo, estimulante e aliciante.
Avanço que vão ser disponibilizados, muito em breve, quatro tipos de cursos: um com a duração de treze semanas (que incluirá descrição, narração e poética) e outros três, mais curtos, com a duração de cinco semanas (dedicados, apenas, ou à descrição, ou à narração, ou à poética). Há muito que desejava complementar o ensino institucional (presencial ou em regime de @learnig) com uma plataforma deste tipo, ou seja, autónoma, pessoal e virada directamente para quem procura o meu método específico.
É evidente, caro blogger, que agradeço, mais uma vez, a difusão da iniciativa.
P.S. - Os cursos poderão iniciar-se já a partir de Novembro (basta consultar a secção "Escrita Criativa" no meu site pessoal).

Folhetim

O Trevo de Abel – Episódio 7
Primeira Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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A tragédia, às vezes, faz rir.

Em frente, sobre azulejos obsessivos, deslizam flores, rosas, azevinhos; parecem ondas levemente azuladas a dormir sobre o estuque branco onde, um dia, mãos delicadas souberam moldar as últimas varandas de ferro forjado. De tais prédios lúgubres e quase iguais, desprende-se um aroma a frutos saloios e alecrim. Tudo esfumado, diluído; erva-doce, nostálgica, no sopé das ruínas. A tragédia faz rir. Fará? Em Lisboa, a herança diz que o riso foi exportado para além-mar e que, por cá, apenas foi ficando o espectro de romeiros, desejados e cavaleiros heterónimos. Há muito. E a verdade é que, entre todas as cidades que Abel conheceu, Lisboa é a que lhe vai deixar mais saudades, quando amanhã partir deste mundo.

Isabel alheia-se dessas coisas mais pesadas e secretas, continua a sorrir, abre os lábios em câmara lenta e ouve a própria voz a dizer, a perguntar com toda leveza - E, por essa altura, quando assinou o contrato com a BT Pública, ia ainda visitar a sua mulher e a sua filha? Não tinha saudades delas? Isabel ainda a inquirir, como se fosse uma lufada de ar fresco a invadir os agoiros e maus presságios iminentes, neste dia de metamorfoses irreais.

Apenas a paixão pode consolar esta verdade antiga que levou uma cidade inteira a nascer para apenas se ocupar de todo o universo. Um mar de histórias e lendas silenciosas por contar. Passamos pelo ajardinado que bordeja a parte inferior da D. Carlos, berço de antiga praias; o fio dos eléctricos balbucia, tine, evoca antigos sons e pregões de amoladores e morangueiros e ovarinas. Lisboa é uma minúcia. Lisboa pertence aos olhares ainda despercebidos; aos detalhes filigrânicos, ao teor amarelado ou rosa das fachadas onde deslizam janelas estreitas, emolduradas por calcários e minúsculos vasos com tímidos jarros e malvas e alecrins. Às vezes, às vezes, continua Abel, para ser franco, ia até à creche. Gostava de pegar a criança ao colo. Sentir-lhe a verdade. Sempre era minha filha. Talvez fosse isso.

Isabel não entendeu lá muito bem as palavras de Abel, mas, talvez por compaixão, ainda continuou a fixar os seus olhos nos olhos muito vermelhos e cansados do acossado.

No outro lado da rua, o quiosque - a antiga tabacaria - fecha as portas. O dono aparece à porta e Dona Joana sorri encantada com a boa nova. Mas é o Sr. Gouveia, o pai da Tília! Ó avó, então eu vou lá chamá-lo, é que não estava a reconhecê-lo. Olha, Júlia, conta-lhe tudo e trá-lo, está bem? Como? Sim, sim, isso mesmo, trá-lo até aqui. Abençoado dia, abençoado dia, este! Continuou Dona Joana a balbuciar, no seu silêncio de suspiros e murmúrios longínquos.
Um amor, pensou Isabel.

E aquela primeira frase, como é possível uma coisa daquelas! De onde é que, afinal de contas, virá este Abel?

Júlia e o senhor Gouveia atravessam a rua, lentamente. O serão e depois a noite são ainda uma espera, uma vida inteira. É cedo. Haverá mesmo perigo? Pelo olhar de Isabel, a existência continua doce, dir-se-ia perpétua. O futuro é como se fosse hoje. De repente, Zorba olha em volta e conta-nos, um a um, para que não haja enganos. E já somos seis, meia dúzia perfeita.

Até que o eléctrico, amarelo quanto o açafrão puro das margens do deserto, desceu a rua e fez vibrar a campainha mitológica. Júlia entrevê os raquíticos dentes de ouro do condutor e ri-se sozinha, sem partilhar com mais ninguém a imagem, o circo, o breve espectáculo. A vida é essa ocultação.

Depois, o eléctrico há-de ter prosseguido o seu caminho até aos Prazeres. Aos Prazeres? Sim, aos Prazeres, e foi aí que o Senhor Gouveia disse, também entre dentes, que Abel lhe fazia lembrar o perigoso Caim da Rua das Flores. Pode lá agora ser uma coisa dessas! Zorba bate com as mãos nas costas de Abel e sorri. Pode lá agora ser! E é Isabel quem volta a olhar para os telhados, para os beirais. Para nada. Para disfarçar, talvez.

Não longe do Parlamento, ouvem-se já os carros da polícia. O medo invadiu de vez a cidade, tudo é possível hoje à noite. Dizem que vai ser uma noite terrível. E Zorba talvez a querer disfarçar o pânico, a leviandade de tudo o que subitamente parece já ter entendido. Mas com uma vida dessas, Abel, como é que a sua memória consegue ainda funcionar? De repente, o vento fustiga e a copa dos plátanos quase sugere a agitação em que Lisboa hoje mergulhou, após o noticiário das oito. Como se a natureza não quisesse calar a água, a brisa e o sangue ou até o temor de diabolismo que se respira na capital.

Zorba, entretanto, segreda mil coisas ao ouvido do senhor Gouveia que, solícito, retribui a gravidade com a sua testa comprida e com as suas mãos aveludadas de jesuíta barroco. Como se todas as histórias fossem uma viagem onde o que importa é o fim. Apenas o fim. Não, não é a vida que é trágica, é a vida transformada em viagem que o é, há-de Isabel pensar um dia. Mas falta ainda muito.

Antes de começar a descer a Rua de S. Bento, Abel pára e responde finalmente, de modo pausado, a Inês. A memória é sempre uma coisa estranha. Um labirinto sem direcções. Tantas vezes que eu misturo as minhas várias vidas! Mas há coisas que, para falar verdade, não sei ainda lá muito bem explicar. Foi tudo muito rápido, demasiadamente rápido. Vá lá, não tenham medo de me acompanhar nesta minha última confissão!

E Isabel a seguir com os olhos a insistência de tanta rapidez. É assim a empatia.

Quem sabe se, para Abel, o mundo é um bem?
Quem sabe se, para Abel, esta confissão, despojada e aberta, para além de sacrifício, não é antes um fruto desejado?

Interrogou ainda Isabel, em silêncio.
E quanto tempo terá ainda Abel para contar a sua história até ao fim? Quanto?