segunda-feira, 23 de março de 2009

A era da 'Laranja Mecânica'

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Nas últimas décadas, os pontos de referência deixaram de ser fixos para se transformarem em fios-de-prumo ao vento. Os valores bem inscritos num horizonte de vida - foi essa ainda a minha educação em casa, na rua e nas escolas - deram repentinamente origem a uma pintura gestual ao jeito de Pollock. Um aceno radical de traços e cores que esvaziou comportamentos, representações e modos estáveis de comunicar. O tempo real, a performance pura, o individualismo, a simplificação digital e o narcisismo entraram em cena como se não houvesse, hoje em dia, lugar para o passado ou para o futuro. Apenas presente. Um presente com assomos de eternidade, feito para corpos eternamente jovens e para muitas outras crenças simuladas e ilusórias do género.
Não me queixo, confesso. Prefiro uma sociedade livre, aberta e desideologizada a uma sociedade de dogmas onde a democracia não passe de um armário institucional fechado a sete chaves. Contudo, há extremos que começam a ameaçar, no nosso tempo, a liberdade. Até porque o que define a liberdade é a consciência dos limites que ela mesmo impõe. Um dos sinais dessa ameaça é a banalização: uma espécie de 'vale tudo' independentemente das consequências que possa gerar. Com efeito, quando se descobre que há no Magalhães uma sequência crassa de erros (mais ao nível do significado do que do domínio apenas sintáctico ou ortográfico), o impacto público é o de uma gargalhada - que vale pela exclamação "Ah... este país!" - e, logo a seguir, o do esquecimento. O presente em que vivemos, ininterruptamente construído por imagens que nascem e morrem (como pixels), dita que assim seja.
A carruagem passa e tudo se banaliza. Sem excepção. Na esfera política (veja-se o modo frugal como as derrapagens financeiras são relativadas por altos responsáveis), na esfera judicial (veja-se como o 'tempo' da justiça não passa de simples objecto de análise), na esfera mediática (veja-se como o recente concurso Zon-Tele5 decorreu), na esfera educativa (atente-se a que é que realmente correspondem os conteúdos das "Novas Oportunidades") ou na esfera financeira (veja-se o modo como são tratados aqueles que andaram a brincar, ao longo dos anos, com o dinheiro dos outros).
Na Laranja Mecânica, Kubrick foi um profeta deste nosso tempo. No filme de 1971, o tédio e a indiferença a qualquer tipo de ética levava a matar como se se bebesse um copo de água. A alegoria está hoje presente em todas as séries de televisão, mas também - e isso é que é grave - no âmago da nossa própria vida real. Outro dia, fui acordado a meio da noite por um estranho ruído e consegui ainda chegar a tempo de espreitar pela janela o que se passava na rua. Um grupo de estudantes universitários dava pontapés nos vidros da minha loja. Por prazer incontrolado. Estilo Laranja Mecânica. Por tédio, impotência ou espírito de performance pura. Sem lugar para o sentido. Por amor ao tempo real do acontecimento. Qual é o problema, afinal, de... dar chutos numa montra de vidro temperado?