sábado, 10 de janeiro de 2004

Pathos de Inverno - II

O céu recobre agora esta estranha alma de Janeiro com o mesmo cor-de-rosa que entrevi, um dia, nas margens salícolas do sul do Mar Morto. Foi-se o prodígio do dia, é verdade, mas, a pouco e pouco, o universo próximo da noite vai toldando a imensa roda da natureza com estes torrões liquefeitos, com esta textura crepuscular à procura de uma música possível, com esta diluída imagem do deserto do Neguev já sem fim. Para a frente, fica a viagem que apenas acabará no limiar do Mar Vemelho, justamente onde o gorgolhar do firmamento confina com o ardor mais terráqueo que há na obscura noite. É essa a travessia que é confiada a este olhar sereno de fim de tarde, quando o rosa de há pouco já se transformou no violeta fenício que abraça para sempre a desmedida vista dos altos de Haifa. É dela que me sinto refém, afinal; é dela, dessa felicidade efémera e saudosa, que me sinto finalmente pródigo filho. Mas fidelíssimo. Tão ou mais fiel do que as cegonhas que pousam, aos pares, nos cedros selvagens que ligam os caminhos de Évora a Monsaraz.