terça-feira, 27 de janeiro de 2004

Não, não, Abrupto!

Gosto muito de acompanhar a escrita do José Pacheco Pereira. Nem sempre concordo com as suas opiniões, sobretudo quando, aqui e ali, escapa ao criticismo aberto em benefício de algum verosímil menos adequado. Nem sempre tal acontece em matéria política. Ainda ontem, criticava JPP o clima de "masturbação da dor" que havia atravessado Portugal. Não vou, agora e aqui, contrariar a argumentação de JPP através dos efeitos de banalização da esfera privada que passaram gradativamente, nos últimos anos, a intrometer-se na agenda, ou seja, no, dantes, estriado alinhamento mediático de factos públicos (seleccionados sem ingenuidade, como é sabido). Esta contra-argumentação, secundada sem reservas por inúmeras correntes do pensamento contemporâneo (dispenso a sua citação), bastaria para pôr em causa alguma recusa por parte de JPP em analisar, de modo plausível, o que é uma realidade, ainda que dela (eu e ele, seguramente) nos possamos distanciar, sobretudo nos efeitos-limite que suscita diariamente. Agora o que não pode JPP é projectar a sua aversão face ao futebol - tão maniqueísta como a dos seus fans mais apaniguados - para exigir uma "tristeza reservada" quando o que esteve em causa, no triste caso de Fehér, foi, precisamente, a imprevista catarse em directo, a incomum tragédia convivida ao vivo, a improvável dor pressentida e partilhada quase em directo. Eu próprio que vi o jogo e que sou adepto do Benfica (mas não fanático primário) vivi este facto com o pudor possível, confesso, mas não pude, como é evidente, cercear a normalíssima perturbação que me invadiu e ainda invade. No seu post, JPP fala a partir de uma frieza marciana, elevada a gelo cristalizado lá no alto da sua torre de marfim de onde o futebol e outras coisas menores da vida não passam de meros dislates de mortais sem profundidade nem génio (hiperbolizo?). O amor de JPP pela mitologia - que eu partilho - poderia ajudá-lo a compreender que a vida é bem mais vasta e rica do que tudo aquilo que possa motivar qualquer desinteresse (no sentido kantiano do termo) e menosprezo pelo que não gostamos. A cascata mediática pode desagradar, mas tem justificação noticiosa por escapar ao campo do vaticinável; tem justificação simbólica por se enquadrar numa escala de significação onde a paixão e as pulsões agem como pura hierofania; tem justificação ao nível da activação dos próprios fluxos mediáticos e tem ainda justificação ao nível do sentimento do Outro (aquele que JPP não supõe senão no quadro de uma ilimitada reserva, algo calvinista, diga-se).