sábado, 24 de janeiro de 2004

Memória a fio

Um dia hei-de regressar ao deserto. Atravessá-lo-ei de lés a lés e, de noite, voltarei a ver beduínos a rir na direcção do mar. Hei-de lembrar o atrito dos camelos quando a manhã descer nas margens do Mar Vermelho. Hei-de andar naqueles mercedes de nove lugares todos riscados por fora e a cheirarem a açafrão adocicado por dentro. Hei-de perceber a razão pela qual, em Dahab - que quer dizer ouro em Árabe - as palmeiras entravam pelo mar dentro, fosse maré alta ou fosse maré baixa. Hei-de voltar a escalar os morros que têm a cor ácida dos tijolos. Hei-de voltar a ver a poeira a desenhar a limpidez do ar e, por cima de tudo, no zénite solar, estou certo de que a grande sombra reaparecerá. E então cruzar-me-ei com o desejo de Vénus. Com o ímpeto da memória. Ou ainda com a desmedida mancha que faz do sorriso dos deuses o perfil mais querido das nossas próprias sombras.