sexta-feira, 30 de janeiro de 2004

Tragédia do Esquecimento - 3

Para dissipar as dúvidas levantadas acerca das Noites de Cristal do início do século XVI que tiveram lugar em Lisboa (ver posts de 16/1), deixo aqui um testemunho publicado no blogue Rua da Judiaria que fala por si. Oxalá, daqui a dois anos, em 2006, o estado português saiba homenagear a parte mais esquecida do seu corpo nacional. Fazê-lo seria, para além de uma questão de justiça, sobretudo uma desafio vital para a nossa própria auto-imagem e orgulho próprio. Vamos, então, aos factos históricos:

O número de mortos resultantes do progrom de Lisboa, ocorrido em Abril de 1506, também não é certo, embora a maior parte das fontes e testemunhos da época apontem para cerca de quatro mil pessoas (cripto-judeus / cristãos-novos) chacinadas na sequência de motins antijudaicos incitados por frades dominicanos. No Rossio, contam Samuel Usque e Damião de Góis, o chão ficou “tapado com montanhas de corpos mutilados”. “Mais de quatro mil almas morreram(...)”, escreveu Samuel Usque em “Consolação às Tribulações de Israel” (1553).



“Von dem Christeliche / Streyt, kürtzlich geschehe / jm. M.CCCCC.vj Jar zu Lissbona / ein haubt stat in Portigal zwischen en christen und newen chri / sten oder juden , von wegen des gecreutzigisten [sic] got; reprodução a partir de cópia publicada pelo Hebrew Union College, Cincinnati, OH. O original, bastante raro, encontra-se na Houghton Library, Harvard University)”

Panfleto anónimo, impresso na Alemanha (presumivelmente poucos meses depois do massacre de Lisboa). O “progrom” de 1506 contra os judeus de Lisboa é descrito em detalhe e as matanças contadas ao pormenor. A gravura do frontispício mostra os corpos mutilados e envoltos em chamas de dois judeus portugueses, dois irmãos, os primeiros a morrer num massacre que vitimou mais de 4 mil pessoas.

Numa altura em que a Igeja Católica tem uma certa apetência em pedir perdão pelo passado, a oportunidade de 2006 tornar-se-ia no mínimo adequada. Mas o desafio seria - e creio que virá a ser - bem mais profundo: olharmo-nos de frente e encararmos finalmente o que somos, como fomos, em todas as suas facetas. Na multiplicidade histórica e mítica ainda por preencher e entender. Não há Idade de Ouro que não tenha reversos feridos. Mas tapar as feridas e ocultar o incómodo não é, nem pode ser próprio de uma cultura que fez da saudade um santuário de remissões vagas e místicas. Que o sonho e a lenda não sirvam para encobrir a dor. Encobrir não é viver; é mitificar e calar.
Fica, para já, o desafio proposto para 2006. Que acham?