quinta-feira, 11 de novembro de 2004

A morte de Arafat

Arafat morreu hoje, após vários dias em que a sua morte foi sendo anunciada e sempre protelada. Poderá mesmo dizer-se que Arafat morreu há já algum tempo (estou certo disso), mas que apenas agora as emoções mais opostas se puderam expressar através de um calculado efeito em diferido, ou em câmara lenta.
Para mim, Arafat foi um resistente de outro tempo que acabou por contribuir para o reconhecimento e consciência de pertença a uma nação. E, no entanto, fê-lo e protagonizou-o amiúde do pior modo e sem ter em conta outros horizontes vitais da história.
Depois das várias guerras defensivas que Israel soube vencer em plena guerra-fria, Arafat desenvolveu um sentido (ou um clímax) singular de progressiva vitimização que acabou por marcar posição na cena internacional. Os jogos Olímpicos de Munique, a fase dos sucessivos desvios de aviões e o terrorismo selectivo precederam a primeira guerra aberta - em 1982 - contra as organizações palestinas, cujo fim último era (e continua a ser em muitas franjas) o aniquilamento do estado de Israel e a não aceitação da sua existência, enquanto tal.
Essa guerra levou o exército israelita a Beirute e ditou a passagem de Arafat para Tunes. Onze anos depois, em 1993, o acumulado clima de radicalização daria subitamente origem a uma tentativa fulminante e corajosa de paz. Mas os extremismos de uma segunda geração (a primeira intifada iniciou-se em 1986) acabariam, com os anos, por condenar a tentativa ao fracasso, embora sempre reatada e neutralizada, pelas mais diversas vias. Adiante-se a este facto a grande viragem de 09/11/2001 que viria contribuir decisivamente para que o terrorismo generalizasse as formas suicidárias de terror mais indiscriminado.
Durantes estas últimas décadas, Arafat nunca se predispôs a imaginar um desígnio estratégico de cariz democrático. Durante estas últimas décadas, Arafat foi sempre o símbolo das várias intifadas e, ao mesmo tempo, o arauto de um espírito revolucionário que dificilmente deixou de pactuar com as alas mais radicalizadas.
Em certo sentido, Sharon constituiu um elo de convergência com estas atitudes de fractura, embora sempre legitimado, refira-se, pelo sufrágio universal e pela inelutável defesa dos seus face às novas formas e normas de terror global.
A vitimização - elemento sensível do universo judaico-cristão - e algum escorço de anti-semitismo têm sido particularmente permeáveis ao politicamente correcto que filtra as abordagens dominantes dos opinion makers ocidentais. Essa permeabilidade tende hoje (no dia de hoje) a confundir Arafat com um herói mitológico, do mesmo modo que Che Guevara foi de algum modo beatificado, nos anos 60 e 70, em pleno ocidente democrático.
É verdade que Arafat morreu e que toda a nação palestiniana chora: uma nação com direito a terra e a um estado. Mas não nos esqueçamos do holocausto e do grito de vitória universal que uniu as esquerdas e as direitas do planeta, aquando da fundação do estado de Israel.
A memória é curta, traiçoeira e excessivamente selectiva.
Pode ser que o cenário de crise saído da perpétua crise do Médio-Oriente venha a proporcionar, a prazo e aos vários actores em cena nesta região sacrificada, um horizonte de convívio entre estados, povos, tradições e religiões. Para tal, seria necessário dissuadir e demover o espírito revolucionário de que Arafat foi e é símbolo. Para tal, seria necessário negociar o respeito e a aceitação mútuos. Para tal, seria necessário acabar com todas as formas de terror. Uma meta quase impossível, dir-se-á. Ou, pelo menos, um desafio do “tamanho do mundo”, como diria Torga.
Uma política de renovada concertação entre o ocidente e os estados moderados do Médio-Oriente pode ser um factor de peso nesta estratégia. Tentemos ser optimistas neste momento de súbita mudança.