terça-feira, 7 de dezembro de 2004

O que é a viragem profética?
(extraído e resumido de um ensaio que sairá a público em 2005)

Nas várias culturas que se organizaram sob o pano de fundo da civilização do “Livro” (o mundo judaico, cristão e islâmico), a chamada civilização axial ou escatológica, foi sendo instituída uma espécie de ordem dicotómica que tendia claramente a separar a normalidade das coisas daquilo que, devido às mais variadas razões, se evadia dessa normalidade. Aliás, a palavra “segno” (não confundir com signo, nas suas várias acepções correntes), em finais do quattrocento e no século seguinte, traduzia precisamente a ideia do conjunto de alterações que se processava escapando-se ao “curso natural das coisas” (O.Niccoli, 1990, p.31).
Isto quer dizer que o diabo, as metamorfoses inexplicáveis, as excrescências evidenciadas pela natureza, os monstros que habitariam a periferia do planeta, os eventos imprevistos, os animais fabulosos que respiravam nos relatos de Preste João ou do imaginário trágico-marítimo integravam, cada um a seu modo, esse desmedido mundo do segno. No entanto, para que o segno pudesse existir e tornar-se reconhecível, independentemente da significação que lhe fosse atribuída, era necessária a existência de uma ordem muito bem ancorada que, por contraste, separasse o seu mundo do mundo definido como normal. Sem esse contraste, as bruxarias, os textos proféticos considerados anómalos, as apostasias, as arquitecturas desproporcionadas, as heresias e outros “horrores” jamais teriam sido perseguidos.
Curiosamente, o mundo utópico e o mundo ideológico, que desaguaram um e outro, com idades e naturezas diversas, no século XIX, acabaram por trazer consigo, no Ocidente cristão, a antiga marca das civilizações axiais e escatológicas. Só que, em vez de paraíso, convocaram a ideia de um igualitarismo terreno. Por outro lado, a natureza racional do dogma substituía o “Livro” divino, enquanto a luta “por um mundo melhor” passava a encarnar os exigentes preceitos da antiga fé.
Nesta novíssima geometria, o segno adquire novas formas, até porque a modernidade avança em cascata, mobilizando, a partir do fim do século XVIII, diversas autonomias, nomeadamente de natureza jurídica, científica, estética, mediática, ética, constitucional, social, clínica, etc. Mas em todas estas naturezas, em todos estes palcos subitamente libertos (ou deliberadamente ausentes) de uma tutela divina, a racionalidade moderna teve sempre tendência a instituir contrastes férreos entre a normalidade e a não-normalidade. Pode mesmo dizer-se que o segno acabou por persistir sendo o que sempre havia sido, mas agora luzindo de um modo lógico e tornando-se, por isso mesmo, peça de arremesso e móbil para a iniciativa.
Em cada uma das áreas de sociabilidade moderna, os contrários passam a digladiar-se ferozmente definindo mutuamente o campo do segno (nos sistemas políticos, nas modalidades jurídicas, na sucessão vertiginosa de vanguardas artísticas, no debate científico, etc.). Esta sistemática e violenta norma de oposições trouxe o segno para dentro da vida social e deixou, portanto, de o imaginar como um sinal divino vindo do alhures e cujas finalidades últimas escapariam à compreensão humana (era esta a explicação de Santo Agostinho para a existência de monstros e portenta).
Contudo, quer no mundo cristão pré-moderno, quer no mundo cristão moderno, verifica-se, ainda que com uma topografia claramente diversa, uma necessária separação entre segno e não-segno. Essa barreira une ambos os mundos, o pré-moderno e o moderno, o que acaba por ter como importantíssima consequência a não banalização do que vai escapando à ordem “natural” ou “normal” ou ainda “previsível” das coisas (o chamado segno).
Ora o que muda abruptamente no Ocidente no final do século XX e no início do século XXI é precisamente este aspecto. E essa mudança, por si, tem uma força histórica tremenda e, por isso mesmo, bastante silenciosa ainda hoje. A grande mudança dos últimos quinze anos ficou a dever-se a dois factos fundamentais: por um lado, à diluição e perda de eficácia das grandes referências pesadas e doutrinais de carácter ideológico e similares (o fenómeno atravessa diversificadas esferas e não se circunscreve ao esboroar da guerra-fria) e, por outro lado, à entrada em cena de uma globalização hipertecnológica associada a um novo tipo de espaço público aberto.
Os vários compostos de uma era que fora prenunciada como “pós-moderna” e policentrada criam rápida e progressivamente, em todo o Ocidente, o apagamento da antiquíssima barreira que sempre havia separado segno e não-segno. E, de um momento para o outro, em muito poucos anos, a verdade é que a relativação quase absoluta tende a incluir, na horizontalidade social pós-moderna, quer o que precede do segno quer o que precederia do não-segno. Mais: a separação entre um e o outro deixa mesmo de ser uma questão, um problema ou uma preocupação, da mesma maneira que a superação da divisão clássica entre real e ficcional aparece anunciada sob o desígnio da hiper-realidade.
A consequência mais importante desta grande mudança ainda em curso - o tempo de transição é quase nulo e a sua percepção é abismada - consiste na banalização daquilo que, secularmente, no Ocidente, sempre foi encarnado sob o manto do “mal”, ou, numa perspectiva menos simplista, do “segno”. A primeira vez que esta mudança efectiva nos entrou em casa - através do fluxo globalizado de imagens - foi no dia 11 de Setembro de 2001. O carácter extraordinário desse evento, para além das suas implicações políticas (que reputo de fundamentais), foi o facto de, ele mesmo, ter conduzido ao pasmo, à ambiguidade ou à tentação relativadora (houve mesmo, numa perspectiva neo-conceptual, quem lhe atribuísse conotações artísticas). Ainda hoje existe, em certos meios, a ideia de que o 11 de Setembro é aqui e ali “justificável”, ou é, “bem vistas as coisas”, uma deriva do “sistema”: ou é uma “vingança”, ou ainda uma “inevitável resposta” face aos factos A ou B produzidos no Ocidente (esta última é a explicação autofágica).
É este apagamento das barreiras que sempre separaram segno e não-segno que eu designo por viragem profética. É esta relativação imparável que eu designo por viragem profética. Ao exemplo nevrálgico do hiperterrorismo podíamos acrescentar o pressentido mundo das manipulações genéticas e ainda algumas das implicações do que hoje já se chama a “pós-humanidade” (assim como a diluição das próprias ideias-força que separam dever e não-dever, tolerância e não tolerância, democracia e não-democracia. etc.)
Jamais na história do Ocidente (e noutras culturas axiais - o caso do Islão é extraordinário, pois aí, salvo excepções pontuais e sempre superadas, nunca existiu um Iluminismo racionalizante), o segno deixou de ser um elemento individualizado, descodificado e bem reconhecível, independentemente da siginificação que lhe era imputada (essa é uma outra questão de natureza semiótica). Este facto novo está hoje em dia a traduzir-se na dissolução do segno no meio das mais variadas ordens que, de modo devorador, agenciam todos os dias factos e ocorrências que se processam à nossa volta através de imagens seriadas e mundializadas.
O terrorismo, hoje em dia, não é apenas uma ameaça. Ele é sobretudo um desenho quase invisível que atravessa os desenhos sobrepostos da nossa sociabilidade contemporânea. Ele é design a contracenar discretamente com o macro-design. O aspecto mais terrível do actual terrorismo é a ideia, no Ocidente, de que ele não existe, porque conviveria no mesmo horizonte aparente com outros factos cuja textura não seria afinal diversa. O terrorismo converter-se-ia, desta maneira, numa ocorrência entre as muitas outras ocorrências do quotidiano para o mais puro deleite e para a mais fatal das gargalhadas do cidadão ocidental, esse novíssimo guardador e curador global de imagens.
Daí, também, a propensão europeia para a imagem de uma grande Suíça neutral, pacífica no seio da qual o terror e o não-terror seriam uma espécie de irmãos gémeos federados, sem problemas, sem ambições e sem olhos para observar as perversas ausências de fronteiras que se criaram na sua própria casa.
É a esta indiferença indigente, é a esta cegueira involuntária - e, em última análise, auto-flageladora - que eu chamo a viragem profética.
The prophetic turn”, um dos sinais mais vitais dos nossos tempos.