sábado, 27 de novembro de 2004

O interface nacional

Haverá esquerda e haverá direita, é verdade. Para mim, essa discussão, embora nobre, tende, hoje em dia, para uma certa voga esterilizadora. Sobretudo porque não reflecte os embates múltiplos e as posições singularizadas que se agenciam no mundo contemporâneo, nas suas mais variadas escalas.
Desde que o universo bipartido e vertical da guerra-fria se esboroou que, num mesmo movimento, se foram diluindo os quadros doutrinários que tutelavam posições, muitas vezes independentemente da racionalidade e da pertinência exigida por cada caso concreto. Era a luta movida pelo espírito de corpo. Era a linguagem do bardo contra a linguagem do outro bardo, sem que a realidade, pelo meio, interferisse ou fosse acautelada e, em primeiro lugar, devidamente cuidada.
Felizmente, o ambiente finissecular abriu a democracia para uma nova noção de espaço público hipertecnológico, tendencialmente liberto da excessiva redoma doutrinal. Essa abertura é histórica e culmina uma caminhada bastante culturalizada, porque, desde logo, intimamente ligada ao devir do Ocidente após o século XVIII. Bem sei que a banalização do mal - refiro-me sobretudo ao terrorismo - também entrou recentemente na ordem do dia, na medida em que se foram esvaindo, com notória celeridade, as barreiras mentais que separavam secularmente o segno do não-segno (palavra que, na Idade Média, significava “tudo aquilo que escapa à ordem natural das coisas”). Se tal não tivesse acontecido não havia, em alguns sectores da nossa sociedade, tanta relativação face ao hiper-terrorismo (é curioso que o líder parlamentar do partido liberal holandês - VVD -, o senhor Jozias van Aartsen, tenha ontem criticado o governo holandês pela sua relativa contemporização face ao terrorismo).
Seja como for, em princípio, o ambiente de abertura é sempre positivo, embora, no reverso, acabe por atrair para o interior dos seus sistemas elementos de caos que pululam nos intervalos entre as várias ordens que convivem e determinam posições e multiplicidades. É esse o mundo em que vivemos e é nessa complexidade que o primado da dicotomia esquerda-direita se me revela, hoje em dia, no mínimo, inerte e desajustada.
Contudo, observo atentamente a existência de meios que forçam e vincam o “ser de esquerda” e o “ser de direita” como modalidade essencialmente afirmativa.
Não é o caso do partido comunista, pois o que aí domina é a esteticização esotérica e redundante da linguagem, ou seja, “os trabalhadores” para o PCP significam os “trabalhadores para o PCP” e pouco mais. Não há grande relação entre a realidade pragmática e as palavras de ordem intrínsecas e “inclinadamente consensualizadas” que ilustram a metafísica comunista.
Já grande parte dos manifestos do Bloco de Esquerda (e dos seus activos blogueadores), dos acenos nostálgicos de Manuel Alegre, das determinações organicistas de Vasco Rato (e dos seus co-blogueadores de O Acidental) e do inadequado ênfase algo ressentido de Portas delineiam essa modalidade expressiva.
No fundo, estamos a falar das margens do sistema e das dobras que, de algum modo, se auto-exilam à abertura que, na nossa periférica terra, tenderia e tende sempre para um inevitável mimetismo. Daí que, à direita, nestes sectores mais estriados, haja alguma permeabilidade aos nacionalismos e outro tanto de desconfiança em relação à Europa. Daí que, à esquerda, nestes sectores mais estriados, haja permeabilidade à autofagia (o inimigo é sempre o Ocidente) e uma grande desconfiança face a tudo o que soe a América.
Este jogo quase simétrico documenta bem a necessidade de criação de barreiras, muitas vezes imaginárias, onde dantes existiam quadros doutrinários fixos. Por outro lado, este jogo de posições ilude a real dimensão do nosso país e desfoca a intensidade do puzzle global contemporâneo.
Muito deste jogo é pura linguagem para consumo descartável. Grande parte do que ouvimos e lemos passa por aqui. É este o interface que mais facilmente se torna visível. E, no entanto, ele tem a sua origem numa extrema minoria.
Também isso é o que permite e deseja uma sociedade aberta.
Perversão?
Talvez.