segunda-feira, 22 de novembro de 2004

A cidadania para além da indiferença

A comemoração do dia mundial da memória das vítimas da estrada, que decorreu no passado dia 21 de Novembro, foi impressionante e marcante. E não se pense que a adjectivação seja, neste caso, um detalhe retórico ou uma singularidade expressiva. Longe disso. Quem se deslocou a Évora apercebeu-se de que existe um novo movimento de cidadania que está a alargar a sua influência no país. Milhares de vozes ocultadas e reiteradamente silenciadas, nas suas histórias trágicas e pessoais, parecem agora ter despontado como se rompessem a redoma que sempre as fez sentir e perceber o abismo. Subitamente, estas vozes invisíveis e sem direito a rosto decidiram enfrentar em conjunto o pranto, a injustiça e a revolta demasiado contida.
No fundo, para além das múltiplas razões das mortes na estrada, o que também está em causa é o modo miserável com que o estado trata as vítimas e as suas famílias depois dos “acidentes”. Ainda que o estado sejamos todos nós e que a queixa seja um sentimento pouco nobre, a verdade é só um forte desafio de cidadania democrática poderá contribuir para alterar a pesada tradição que faz com que os nossos responsáveis ajam com tanta falta e falha de sentido. Como se pode compreender, por exemplo, que, num dia com um significado tão profundo, para além de autarcas, governadores civis, deputados e de um representante da Casa Civil da Presidência da República, não se tenha visto ninguém do governo na cerimónia?
Talvez uma enorme apatia acumulada, apenas disfarçada com a fachada das campanhas pré-estivais, possa, de algum modo, justificar uma tal negligência. E essa apatia tem uma história real que foi documentada de modo muito directo e vivo por alguns dos interlocutores da guerra civil rodoviária que se deslocaram a Évora. Existem três aspectos que salientaria:
É comum o Ministério Público não permitir o acesso aos veículos sinistrados ou, aqui e ali, dilatar perversamente as tramitações legais que a morte pressupõe, quando não interfere mesmo, de modo directo, nas escolhas dos advogados das famílias das vítimas (ou chega até a mover processos contra elas). O segredo de justiça, em muitas das ocorrências traduzidas pela palavra “acidente”, constitui um atropelo ao desejo mais elementar das famílias poderem viver um luto pacífico e sereno.
É comum que a tragédia tenda, não para a racionalidade de um apuramento de causas até às últimas consequências, mas sim para a persistente legitimação da natureza de “acidente”, como se tudo o que acontece nas nossas estradas, ou na vida, fosse motivado pelas circunstâncias, pelas contingências, pelo fado saloio e indígena ou pelo determinismo mais inimaginável. Para já não referir os enigmáticos enredamentos que se criam em torno de grande parte dos acidentes mais aparatosos que, por sua vez, se convertem amiúde numa espécie de pacto podre de silêncio e mutismo. E o que sobra, quase sempre, nestes casos abjectos, é o desconhecido e o nada que se devolvem, sem qualquer face ou nome, à inquietação questionadora que é natural nas famílias das vítimas.
É comum ainda a imensa indiferença das nossas autoridades para com o estado dos que sobrevivem à tragédia e que se encontram, portanto, do lado da vida, mas em condição de profundo e continuado trauma. A sobrevivência a situações limite atravessa Portugal de lés a lés como jamais aconteceu em qualquer guerra em que Portugal tenha estado envolvido. Um mundo nasce e um mundo morre em décimos de segundo e é por isso normal e legítimo que exista, entre nós, hoje em dia, um Secretário de Estado da Defesa e dos Antigos Combatentes. O que é menos normal é que os novíssimos combatentes da causa mais perdida de que há memória em Portugal tenham por parte de quem dirige o país um tão grande défice de atenção, de cuidado e de amparo.
É verdade que o estado é chamado a intervir em tudo e em nada, às vezes muito acima do que é ou seria necessário. Estou de acordo. Temos uma cultura de parca iniciativa e de desmedida lamúria. Mas neste caso, nesta murmurante e delongada tragédia que perpassa Portugal, está tudo ainda quase por fazer. Repito: o estado somos todos nós e compete a todos nós modificar o que há a modificar. O caderno reivindicativo apresentado em Évora, no passado dia 21 de Novembro, contempla soluções técnicas interessantes e muitas delas, desde logo, presencialmente, acatadas pelo Director Nacional de Saúde.
Pena é, mais uma vez, que o governo não tenha comparecido através de um dos seus membros, o que, quer se queira quer não, apenas revela uma imensa falta de empenho e de interesse face a uma das maiores epidemias que o país está, no dia a dia, a sofrer.