quarta-feira, 31 de dezembro de 2003

A todos desejo um grande 2004!


Baco por Caravaggio (Loggia)

Até para o ano e uma óptima travessia. Luís Carmelo.
Agradecimentos

ao Contra a Corrente, à Bomba Inteligente e ao Almocreve das Petas pelo lugar que nos atribuem no ano dos blogues, o 2003.
Desaparecimento


Yale University

Há em Hopper um desaparecimento. Como se as formas tivessem resistido à edificação e, ainda assim, conspirassem algures, mas muito ao longe do alcance do mundo formado e possível. É aí, nessa recôndita travessia sem lugares, que a encenação hopperiana adquire um nome, uma fachada e um modo de ser tão silencioso quanto próximo.
Universo moral - 2

Anteontem, dia 29/12/2003, Souto Moura precisava acerca do processo Casa Pia: "o segredo de justiça não terminou" com a dedução da acusação. Ontem, foi ver os jornais, a televisão, os debates e o rosto das notícias. Com a maior das naturalidades, tudo e todos falavam de tudo, como se o livro se tivesse definitivamente aberto diante dos olhos extasiados de todos nós. Pela minha parte, sem pruridos ou pudores, prefiro não me pronunciar acerca da cascata revelatória. Apenas creio que, em termos exclusivamente políticos, Ferro Rodrigues devia retirar de vez as ilações que parecem agora ser cristalinas.

terça-feira, 30 de dezembro de 2003

A polémica do utente

Segui com interesse a mini-polémica entre o Abrupto e a Causa Nossa sobre a pertinência e as conotações do uso da palavra "utente". O que estará em causa na nota de Pacheco Pereira, provavelmente sem grande clarificação do próprio autor, é o facto de certos requisitos de linguagem, nos últimos trinta anos, terem construído mundos, adequando-se assim a diversas micro-comunidades de interesse (político, sindical, económico, etc). O mecanismo, mais semiótico do que propriamente semântico, procedeu sobretudo por ratio difficilis (o que ocorre quando não existe um tipo expressivo preformado para certos conteúdos subitamente emergentes) e criou um novíssimo aparato de linguagem que permitiu grande parte das discussões do pós-25 de Abril, bem como legitimou a identificação das palavras de ordem dos sectores emergentes que enunciavam os seus mundos, pela primeira vez, numa comunidade ainda à produra de um perfil democrático. É aí que a reconfiguração do uso da palavra "utente" adquire um novo nexo, embora, e sempre, dentro de contextos previsíveis e entretanto já sistematizados e codificados pela máquina social (daí a facilidade dos exemplos que Vital Moreira ostenta no seu contra-texto). Mas, a par da palavra "utente", poder-se-iam apontar muitas outras palavras que, no seu conjunto e diversidade, contribuíram para reedificar os mundos imaginários a partir dos quais e nos quais hoje em dia nos entendemos, concordando, discordando, discorrendo. Seria interessante elaborar uma lista desse tipo de lexemas (trabalhadores, processo, iniciativa, massas, empreendedores, auditoria, empresários, comissão, para além de um leque ilimitado de siglas, etc.)
Universo moral

Eis como o blogue de Brendan O´neill descreve a "masturbação moral" que, no ocidente, sucedeu à captura de Saddam Hussein:

Since Saddam climbed out of his spider-hole and into the custody of US troops, we have read thousands of words about Iraq - it's the 'end of an era', we are told, the 'shadow of Saddam' has finally being lifted, the Iraqi people's eyes have been opened to their 'liberation', and so on.
But I would like to turn our focus back to the West for a moment, and ask: what kind of people define their moral universe by the capture of a dirty, bedraggled has-been dictator down a stinking hole in Tikrit?


(Atenção rapaziada mais novinha: isto é puro sarcasmo e nada tem a ver com a dicotomia boa-má notícia que parece ter sido imputada à dita captura)
Esperanças

O meu colega das semióticas, José Augusto Mourão, fez acompanhar as suas simpáticas boas festas da homilia de Natal por ele escrita. Não resisto a publicar três extractos desse texto pelo seu brilho discursivo e teórico:

1.Num dos seus últimos escritos, A imutabilidade de Deus (1851), Kierkegaard fala de um “viandante que se queda ao pé de uma montanha enorme, impossível de escalar”. Os seus desejos e aspirações, a sua alma, visam as alturas, mas a montanha continua diante dele, imóvel, impossível de escalar. Pode o viandante chegar aos setenta anos: a montanha erguer-se-á ainda diante dele imutável, inacessível. Mil anos pasassem e a montanha continuaria imóvel e já mortos quantos tentaram escalá-la. A montanha inacessível e imutável é de facto, Deus. Esta será uma das últimas vezes em que um grande pensador vê Deus como o imutável e o eterno, em contraposição com a mutabilidade e a volubilidade do mundo.
2.Os teólogos dizem-nos que Deus é um ser atemporal que é infinito, omnisciente e omnipotente porque Ele é todo o ser,e toda a existência está contida nele. Não sabemos o que dizemos. Não sabemos o que significa existir fora do tempo, conter todo o passado e todo o futuro na existência presente. Não sabemos o que significa ser omnipotente, senão metaforicamente – o pantocrator grego que alude ao governante ou senhor de todas as coisas é mais fácil de conceber do que o seu equivalente latino omnipotens. Não sabemos o que é criar o mundo de nada. Tão pouco o que é ser omnisciente, nem o que é a Santíssima Trindade ou que coisa possa ser identificada de essência e existência.
5.Na nossa civilização tudo se tornou uma questão de fé. Vivemos na fé enquanto estamos na terra. “Fé” significa “fidúcia”. Fiamo-nos no guia quando não sabemos os caminhos; ter fé é um não ver e um não saber. Paulo di-lo: fiamo-nos nas coisas que não aparecem (non apparentium). Onde aparece a salvação é que está o perigo. Até a missão do Tirano que o homem democrático acalenta é “espiritual”: fazer do cosmo uma cidade, de todos os lugares um espaço, de todas as convicções a convicção sobre a eficácia da Técnica e de toda a fé uma só ética. O Anticristo “erit in omnibus subdole placidus” não é o oposto de Cristo, mas o seu símil. Quer trazer ao homem a sua paz, convencê-lo disso e encadeá-lo. É o ídolo da providência que o homem democrático adora: adorará aqueles que dispõem da força desta fé. Servirão aqueles que afirmam poder produzi-la, que saberão magicamente mostrar-lhes que a paz (segurança. Protecção, tutela) está em seu poder. O seu rosto será placidus, a sua violência não se exprimirá com guerra, mesmo “justa”, mas com a divinização das obras. E as obras parecem divinas quando possam produzir o Último (Cacciari, 1997: 128).


Há dias em que a esperança sabe violar o apertado vale do sentido. É então que me sinto mais agnóstico do que ateu, mais poeta do que morfeu, mais inquieto do que camafeu. E, no entanto, é nessas alturas que insisto em partilhar a esperança. Talvez a esperança dos cépticos, mas, de qualquer modo, a esperança.
Desarrumação

Ao fundo, umas luminárias brevíssimas a decomporem o negrume sem perfil e sem contornos que o arvoredo desenha de par a par na esquadria da janela, onde as cortinas abertas desenham um vale invertido em folhos assim como a graça com que se inscreve na noite a longevidade do verbo esquecer.
Balanço

No penúltimo dia do ano surge a tentação do balanço. As imagens que a mais ligeira tentação seleccionaria para a arena habitual são de todos já conhecidas (Iraque, Casa Pia, etc., etc.). Ficam, no entanto, por lembrar todas as outras que jamais conseguirão registar o seu próprio apagamento. Mas são elas que tornaram possível o edifício do ano.
Vejamos os 365 dias e 6 horas de 2003 como uma arquitectura que se foi desdobrando e ampliando em processo, através de linhas e pontos que, ao mesmo tempo, se definiam e se excluíam. Nesses milhões de segundos sem rosto, sem encanto e sem história (os tais que lançaram as linhas de força mas que não as corporizaram) reside a força do ano. De todos os anos. Ou de qualquer duração em que a entrega excedeu a tentação de um balanço.
Um corpo respira o invisível e denota o palpável com olhos que apenas dão conta do sentido.
Fora do vale por onde corre o sentido há outras imagens, há outras guerras, há outras prisões, há outras expansões. É por isso que a boa literatura deve cheirar, aqui e ali, a desarrumação. A aparente desperdício. A puro lapso.
Oxalá eu chegue um dia a essa outra falha.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2003

Instante

E há um instante, nada mais do que o retinir perfeitamente indistinto que me chega de longe, um instante breve, portanto, em que chego a admirar-me de estar aqui. À mesa, sentado, com a quase certeza de que me cruzei com qualquer coisa. É assim também a respiração.
Acusações vs Suspensões

Em minha opinião, devia tê-lo feito há meses. Recorrendo às próprias palavras de Paulo Pedroso, teria ganho imenso tempo e oportunidade política ao "preservar o Parlamento e o PS dos efeitos colaterais de difamação". Parece-me claro e óbvio.
Para Já

Estou a ler o Boa Tarde Às Coisas Aqui Em Baixo e creio que o jogo entre as descontinuidades discursivas, a polifonia explícita e o poder das imagens tão próprio do António Lobo Antunes já foi melhor no Manual e no Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura. Não sei, falta-me ainda devorar mais de metade. Para já é o que há a dizer. E é pouco. O ideal, nestes casos, é mesmo o silêncio. Pelo menos, quando é possível silenciar a exaltação. O que nem sempre é fácil.
De regresso - 2

Estou de volta após breve passagem pelos mares do (nosso) sul. Por agora fica o registo de chegada: nuvens avermelhadas, densas, a transbordar no coração da terra incerta que ficou por lavrar. É esta a janela, é este o olhar de chegada. De lado, ficará a avidez das palavras. Vou dar-lhes tempo para que aflorem para além do mosto e das mil bases que lhe terão filtrado a viagem. Um rosto é sempre o reflexo de um langor muito antigo. Quase sempre adiado. A maior parte das vezes esquecido. Perdido. Nuvens densas, avermelhadas, é esta a janela. É esta a casa de regresso. Inventemos mundos.

De regresso - 1

De regresso a casa, tinha quase setenta mensagens na caixa de correio electrónico. Agradeço a todos as palavras generosas, o calor, a amizade, a entreajuda e o resto. O mundo, por vezes, é uma caixa de surpresas. Não é?

terça-feira, 23 de dezembro de 2003

Bom Natal



Inventemos mundos nestes dias de pausa. Boas festas a todos! O Miniscente pára durante uns dias. Poucos. Voltaremos ainda em 2003 e recarregaremos as baterias para o ano novo de 2004. Até já e sinceros votos de felicidade.
Inverno, dia 1

Põe-se o sol. No limiar do horizonte a vista transforma-se num magma aceso. Depois escurece e a noite anuncia-se através da uma nova densidade. No vidro da janela reaparece a humidade, essa linguagem filigrânica que diz o coração da água em silêncio. É nestas alturas que a espera se torna presença. E o que é agora actual passa a ocupar o espaço passado e um certo porvir talvez idealizado. Deste modo discreto, quase que passamos despercebidamente sob o zénite do solstício. Como se navegássemos lentamente sob a veneziana ponte dos suspiros. Saudemo-los. Estou longe do quotidiano e deixo-me inebriar pelas imagens que rasgam a terra. Até porque amanhã o sortilégio da vida voltará a celebrar outra vez a luz.
Quase Natal - 3

Uma das características destes dias que antecedem a noite de 24 de Dezembro é a perda de pé, o stress, a correria e o lado mais desavindo da euforia. Barrico-me em casa e olho em frente. Há um sol prodigioso a alimentar esta crisálida, esta paragem, esta suspensão, este pausa, este limar de arestas sem destino.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2003

Quase Natal - 2

Luzes ao longe e o perfil esfumado da encosta por onde descem carros muito lentamente. São as ruas despovoadas depois da euforia. Fios eléctricos que acendem e apagam no meio da voragem agora suspensa. São músicas com sabor a açafrão doce. Manequins em ritmo diáfano e o fumo das castanhas ao fundo do túnel. E, no meio deste alinhamento de montras e cabines telefónicas vazias, há sempre uma motorizada a rodopiar nas margens do silêncio. Fantasmas de barrete vermelho, barbas de esferovite e néons em forma estrelada. É natal e, talvez por isso, a memória entregue a si própria a máscara que lhe confere surpresas. E é então que o lume se acende e atinge as nuvens mais altas. São imagens distantes, perfeitas, ateadas pela dádiva, ou pelo encantamento sem razão. E, mesmo assim, vivas. Vivas e presentes como o imenso limoeiro ao fundo do quintal.
É aproveitar para suspender o quotidiano e pensar. Pensar sem objecto, Sem finalidade. Até amanhã.

domingo, 21 de dezembro de 2003

Quase Natal - 1

Aproxima-se o Natal e o ritmo blogosférico está a descer e vai descer ainda mais. Inevitavelmente. E ainda bem. Aproveitarei decerto o balanço mais pausado, mas, para já, não farei ainda qualquer intervalo. Cada coisa a seu tempo. Noites calmas, lume aceso, os astros em repouso e a grande esfera em deambulações muito lentas e silenciosas.
É aproveitar o ritmo para descansar.

sábado, 20 de dezembro de 2003

Da cultura


MIM, Buenos Aires

Havia uma exaltação centrada e musculada na política cultural à António Ferro, aliás na linha das políticas culturais soviéticas. Com menos dose de propaganda, porque assentes já numa matriz democrática, as políticas de Malraux continuaram, no entanto, apostadas no fechamento, agora em torno da figura dos centros culturais e do seu culto irradiador (como se a arte fosse a nova expressão de um deus inelutavelmente perdido).
O que sobrará a estes espectros que chegam até nós, hoje em dia?
Porventura, a ideia (recente) de património, físico e imaginário, bem como o estímulo descentrado, democrático e transversal à criação contemporânea e aos seus públicos variados.
Estou em crer que as actividades que se designam dentro do chamado espaço cultural, na escala de uma economia em que o deve e o haver deverá exceder a noção de saldo, estão inevitavelmente dependentes, como muitas outras, de orçamentos, privados e públicos, que lhes são alheios.
Seja como for, é um facto que a actual esteticização do mundo comunicacional (na publicidade, no design, no cibermundo, na auto-referencialidade dos média, etc.) convive com uma mediania global cada vez mais distante de uma ideia de exaltação musculada. Neste cenário de fluxos, o espaço da cultura deixou de estar preso às delimitações e fronteiras que o tornavam visível e existente no século XX.
Muito do discurso actual sobre a cultura continua a misturar o(s) pano(s) de fundo do século passado com a pura descrição descentrada das actividades designadas como culturais, tais como elas hoje se processam e se tornam visíveis (sem as contextualizar devidamente).
Esta desvio óptico, ou esta falha de perspectiva, está na origem de muita errância discursiva sobre o tema da cultura.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2003

Monovisão - 3


John Gibbons

Se o pensamento não se desdobrasse, tudo voltaria outra vez a não existir. Até mesmo a fragilidade dos dogmas.
Monovisão - 2

Também eu aprendi imenso com Faulkner. Com tantos Faulkners! Mas reduzir a vida ao clic dos mestres, ou dos heróis, isso não.
Artes e Mistérios

O Pedro Mexia assinou n' O Independente da semana passada um artigo com o título "A política das artes (1)". Li-o com natural interesse e aguardei a continuação esta semana, tendo em vista até um possível comentário crítico. Não é que folheei a edição de hoje do jornal e... nada! Que coisas teria ele escrito?
68 em 2003

No Desejo Casar assisto a uma revolta feminina contra a publicidade. Por amor de Deus, deixem-nos ver os últimos filmes com o António Silva que ainda restam! Ou querem acabar com tudo de uma vez?
O ano do regresso do fingidor

E eis como o nosso Avatar descobre que Mourinho é afinal o mais recente heterónimo de Fernando Pessoa.
Último Pathos de Outono

Avistar de novo a alvenaria à chuva. E momentos depois, a palmeira com ar meloso e tímido a responder à extrema brevidade do vento. Uma chaminé a transbordar de fumo e a manhã fresca a confessar que agora tudo desliza no sentido de uma grande ficção. É esse o mistério da imobilidade. Sei que pouco tempo passou e logo recomeçou a chover. Com vagar. E eu a ver a alvenaria sob águas lentas, a palmeira mais agitada e a cortina já fechada a dizer que era tudo fantasia. Assim tivesse sido.
Mundanidades - 2

À compreensão do outro que consegue excluir o imediatismo precipitado de um juízo pode chamar-se compaixão (uma espécie de suspensão fenomenológica aplicada ao face a face mais imprevisto do quotidiano). Este tipo de procedimento acolhe a humildade e convoca o temporário alheamento das paixões próprias. Por vezes é, ou seria, mais necessário do que a exaltação do génio mais brilhante. Não confundir com o desinteresse (da estética de kant), ou com a inibição de quem observa o mundo; trata-se antes de uma atitude activa face ao outro que não implica a alienação face ao mundo corrente. A compaixão exige, nesta linha de ideias, um desdobrar de vários planos ou olhares. É isso que a torna difícil, pouco praticável, distante. Infelizmente. A mundanidade seria mais rica se este tipo de inteligência (meio ofuscada) - que é a compaixão - fosse mais abundante. Decerto que contribuiria para arrepiar caminho às monovisões, aos exclusivismos doutrinários e aos fechamentos esquerda/direita.
Mundanidades - 1

Neste tempo, fazem-se os famosos balanços do ano. Tenho ouvido dizer - no Fórum TSF - que este é um ano para esquecer. Tenho ouvido dizer que 2003 só foi tragédia: incêndios, guerra, pedofilia, crise económica, etc. E eu digo que as pessoas gostam muito de apocalipses domésticos, gostam de fingir que o esquecimento não é a nossa condição mais normal, gostam de se ver a si próprias como as personagens do ano. Neste tempo de quase Natal, tudo parece querer resvalar para o patético.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2003

Zéfiro

Os campos alagados, o canavial aflito e os sobreiros ao fundo quase já esquecidos da promessa do sol. Há ainda um acorde, coisa breve que nos segreda a idade dos muros. Chove muito lá fora, mas eu sei que o pranto há-de ser um dia a felicidade da terra.
Pérolas

O blogue Viver todos os dias cansa faz eco da comunidade de leitores da Câmara Municipal de Cascais, orientada por José Fanha, e de uma famosa lista de livros posta à disposição de quem nela colabora onde figuram, entre outras, duas obras. A primeira, "O Ano da Morte" do autor Ricardo Reis e a segunda, "Persiguição", de autor anónimo. O povo bem diz que não há duas sem três.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2003

Aventuras do musgo

Lembro-me de ir de bicicleta à procura de musgo. Olhos presos no horizonte, luvas, colinas e sombras de animais, plátanos aventurosos, ribeiras esguias e ramos despidos ao fim da tarde. Um vulto a atravessar duas a três galáxias apenas para entender um cheiro único e sem sentido. Não havia qualquer porta nesse reino. Juro. Ainda lá estou. Nesse deambular. Deslumbrado. Juro.
Limbos quotidianos

A espessura do tempo. Um bloco entre o olhar e tudo aquilo que se imaginou mais alto. Asas de anjos ou a simples noite, quando nos avisa que não é ainda tempo de roseiras. E, no entanto, o ar quente a subir pelas fachadas, a escalar pelas varandas vazias, a penetrar nos terraços intensos e brancos. No fundo, é a leveza da cidade a sobrevoar as suas próprias nuvens.
Dir-se-ia: Ceci n´est pas le temps.
E hoje?



Dia baço, luz coada e longínqua, passos silenciosos, o motor do carro a trabalhar e já a percorrer a autoestrada em forma de fole. Sobre os postes da electricidade vêem-se ninhos improváveis, sombras imprevistas, laranjais sob a forma de música. Mas qual?
Hoje, tem a sua origem em Giovanni Pergolese e chega-me através de formas que subitamente se alinham, mas sem norte, sem metas, sem qualquer finalidade (Quando corpus morietur do Stabat Mater). Bom dia.
Quer receber um extra?

Recebi agora mesmo um aviso na caixa de correio, proveniente de Adel Sidarus e de Rúben Lima, a alertar para um extra que fará decerto algum jeito e que tem a sua origem numa prepotenciazinha da PT. Leia-se então a mensagem:

A Portugal Telecom devolve o dinheiro da taxa de activação a quem apresentar as facturas dos 12 meses de 1999. Quem tiver ainda em casa essas facturas pode, portanto, apresentá-las na PT (entregar apenas as fotocópias), juntamente com uma fotocópia do B.I. do titular da respectiva conta de telefone. Pode fazê-lo até ao fim do ano e, por sua vez, a empresa devolverá o dinheiro em Janeiro de 2004.

Mãos à obra!

terça-feira, 16 de dezembro de 2003

Presságio

E a densidade com que as luzes se diluem na frente dos meus olhos. Faróis nocturnos, árvores em silhueta, a rádio ao longe, seria Bach? Não, era apenas uma placa cheia de dísticos. Inúmeras frases e tons. A névoa dilui a memória e atrai a distância, o inacessível. Sorrio e é quase já o último dia de 2003 em que dou aulas. Ao fundo da sala, o lume a pegar, a subir pela música que afinal era de Bach. Estava prometido. Há muito.
Frases Felizes - 32

"Qualquer ditador que se preze morre pelas suas convicções. Conquista o seu lugar na História. Morre em nome daquilo em que acreditou e se bateu em vida. Morre em nome do seu povo. É a última coisa que faz por ele -- e portanto fá-lo." (O Vento Lá Fora)
Pergunta

Dia de brumas. Dia de viagem entre bancos de nevoeiro e turbulências da memória. O que nos pergunta um dia destes?
Polémica sobre o modo de encarar a TV (Sloterdijk, episódio 2) / Actualizado



A provocatória mas interessante teoria de P. Sloterdijk já começou a ter reacções.
Deixamos aqui quatro que chegaram à caixa de correio do Miniscente.
Diz Pedro N do Ruminações Digitais:

Concordo com aquela tira do Calvin onde ele se pergunta se Marx tinha razão quando afirmou que a religião é o ópio do povo e a TV, em jeito de resposta, pensa: "Marx ainda não tinha visto nada". Nesse sentido, não creio que ela
seja igual ligada ou desligada. É um meio extremamente poderoso de comunicação das massas, que infelizmente reflecte-se (e faz-se reflectir) demasiado nas mesmas. Em relação à tranquilidade o comentário é capaz de ter razão... mas é uma tranquilidade demasiado parecida a um calmante para o meu gosto (não
meditação mas esquecimento).


Por sua vez, Mário Filipe Pires do Retorta afirma:

Caro Luis, eu encaro-a de modo um pouco diferente (visão dinossáurica a carregar......). Reduzir a tv à mera produção de imagens aparentemente desprovidas de significado, utilizadas sómente como bálsamo cerebral, apaziguador de transmissões neuronais demasiado perturbadoras, é querer negar a utilidade educativa do meio. Sei que falar das capacidades educativas da televisão pode fazer sorrir alguns e rebolar de riso outros, mas apesar de todos os usos soporíferos que a televisão evidencia, e que constituem 99,9% da programação comercial actual, ela também pode contribuir e muito para difundir visões não conformistas da sociedade.

Do Brasil, a Ângela do blogue Palavras Cruzadas - Histórias da Índia Ursa Sentada, manifesta a seguinte opinião:

Concordo que, muitas vezes, os fatos na TV são transformados apenas em imagens, perdendo seu aspecto de acontecimentos concretos. Exatamente porque a TV mistura a realidade com a fantasia. Por isso, a TV já foi diversas vezes considerada uma forma de alienação. A pessoa que assiste pode ignorar ou alterar o significado das imagens transmitidas a seu gosto. Mesmo as notícias sofrem a roupagem da mídia e podem ser recebidas de formas variadas pelo espectador. Mas essa "liberdade" da pessoa que assiste também pode representar uma espécie de aprisionamento na ilusão.

Por fim, Manuel Cabeça do blogue Crónicas do Deserto, enviou o seguinte texto:

Em resultado do desafio do Luís, apresento (alguma) vantagem em relação àqueles que já o comentaram e aceitaram. A pergunta é provocadora e, numa primeira instância, levar-nos-ia a concordar, a aceitar o carácter pretensamente "redentor", simples, da imagem.
Quando muitas vezes afirmamos, algo convencidos da nossa certeza, que uma imagem vale mais que mil palavras. Mas provocar é bonito, pensar é-o ainda mais.
Tenho que admitir que, em alguns pormenores, a televisão é o mediador entre a minha pessoa e o mundo. É ela que me traz o movimento das imagens, o som das palavras e, por vezes, a cor dos sentimentos. É também ela que me indica posições, ajuda a construir uma opinião. Mas é também ela que induz a confundir opinião pública com a opinião visionada, confunde, propositadamente (?), a árvore com a floresta. Me encanta e engana. Como afirma o Mário Filipe "ela também pode contribuir e muito para difundir visões não conformistas da sociedade".
Provavelmente estaremos a valorizar o objecto em detrimento do sujeito e, nesta perspectiva, há que recentrar a questão, atribuir o lugar preponderante ao sujeito e questionar sobre o que pretendemos da televisão, o que queremos ela seja e transmita, qual o seu contributo na formação de uma opinião crítica ou no embaraço da ignorância?
Fiquemos-nos por aqui e aguardemos por outros desenvolvimentos


Continuaremos à espera de mais reacções.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2003

Concordam com este modo de encarar a TV?


tv gazeta POLÉMICA

P. Sloterdijk afirmou, no livro de entrevistas Ensaio sobre a Intoxicação Voluntária (conversas com Carlos Oliveira), aquilo que eu penso ser a mais original e verdadeira teoria dos média:

(finalmente), “na televisão, a história da redenção da humanidade chega ao seu termo” (...) “a televisão informa-nos sobre o facto de, no fundo, tudo ser apenas imagens” (...) “Qual a diferença entre um televisor ligado e um televisor desligado ?” (...)“não há diferença nenhuma, é só ritmo, tam-tam, som-pausa, ligado-desligado, é o mundo tal como o conhecemos. Olhar, não olhar, acontecimento, não acontecimento, imagens, não imagens” (...) “A televisão é a última técnica de meditação da humanidade na era que se segue às altas religiões regionais” (...) “Este (redentor), a televisão, é o primeiro que nos deixa realmente livres” (...) “os indivíduos querem que os deixem em paz; e esta tranquilidade é uma coisa que agora podem ter de uma vez por todas”.

Concordam?
Parabéns

Soube pelo blogue O Companheiro Secreto que José Tolentino Mendonça faz hoje anos. Parabéns. É, nos últimos anos, um dos meus poetas preferidos. E apetece até perguntar:

Reencontrarei ainda
a expressão distraída que me deixava
a um passo daquilo quem nem hoje sei?
(Atalhos, Baldios)
Já era tempo

de sabermos qual vai ser a reforma da RTP.
Euro

Sabiam que, na sua origem mitológica, o Euro, filho de Eos e de Astreu, mais não é do que o vento de sudoeste?
Agora entendo melhor a palavra convergência. Sem esquecer a vaga de gripes e outros males que por aí andam.

domingo, 14 de dezembro de 2003

Pum Pum

Repare-se no teor dos argumentos a que Augusto M. Seabra hoje recorre, no Público, para discordar de um artigo de Helena Matos sobre a atribuição de bolsas a escritores, publicado no mesmo jornal (e que mereceu a concordância crítica do Miniscente no post "Incompreensões face à rede"):

È a mesma lógica de Matos, a "colunista instantânea" vinda não se sabe de onde, mas cumprindo proverbialmente a função de "arrependida" e homofóbica com láurea (perdão, agora já sabemos algo: é biógrafa de Salazar).

O acento grave no verbo ser é fidedigno. Mas não se compare a natureza pura de uma gralha com tanta e tão descabida violência.
Contraditórios interessantes

António Barreto assevera hoje, no Público, que "a crise de confiança, sorrateira, furtiva, invade a vida social". Na passada Sexta-feira, numa curta entrevista sobre Eça, publicada em O Independente, Maria Filomena Mónica (premiada, na semana passada, com a Frase Feliz do Miniscente) afirmava não querer "saber da auto-confiança dos portugueses".
Instantâneo domingueiro

Mal tento avançar, com algum cuidado, para a barricada das compras de natal e eis que deparo por todo o lado com o açucarado livro de Laurinda Alves. Prefiro as velinhas e os fios plásticos a acender e a apagar.

A Cara de Saddam - 2


O Capital

Define-se conceito empírico pelo produto de uma memória de semelhanças. Dixi.
A cara de Saddam


CNN

Prefiro remar contra a euforia que está hoje a assaltar os espíritos por causa da inesperada captura de Saddam. Em termos psicológicos será bom para o que se passa no terreno, mas os grandes desafios continuam de pé.
Sobra, entre os holofones da notícia, a cara de Saddam. Um rosto desavindo com o tempo que por ele passou, um retrato impassível e já vestígio da sua própria fragilidade, um fantasma profundo a tentar apropriar-se do seu perfil, um anti-herói que é símbolo afinal de uma era sem causas, o narrador silencioso de uma miríade de terror, mas não nos esqueçamos jamais que é a cara de um homem.
O ocidente tem agora a oportunidade de mostrar ao mundo o que deve ser a racionalidade da justiça.

sábado, 13 de dezembro de 2003

Confusões - 2

Nuno Guerreiro do blogue Rua da Judiaria refere-se ao nosso post "Confusões" e prova que o uso dos símbolos religiosos tem uma motivação que resiste a conjunturas imediatistas. As leis restritivas que tendem a elidi-los arriscam-se, por isso mesmo, a transformar-se em sementes de intolerância. Vejamos uma parte importante da contribuição de Nuno Guerreiro:

Para um rapaz judeu oriundo de uma família ortodoxa “praticante” – e ortodoxos são a esmagadora maioria dos judeus que vivem fora dos Estados Unidos, incluindo os portugueses – usar o kippah é uma obrigação. É um mandamento. Do ponto de vista bíblico, apenas aos sacerdotes do Templo (Kohanim) era requerido que cobrissem a cabeça. Mas o uso de kippot tornou um costume obrigatório que os homens judeus cumprem há quase 2 mil anos. A própria Halakhah (a Lei Judaica) diz: “é proibido andar quatro cúbitos sem cobrir a cabeça.”
No chamado mundo ocidental é costume descobrir a cabeça em sinal de respeito. No judaísmo, cobrir a cabeça é um sinal de respeito. O Talmude sustenta que o propósito do uso de kippot é funcionar como uma recordação constante que Deus está “sobre nós” (Tratado Kiddushin 31a). Acções externas criam consciência interna e o uso de algo simbólico e tangível “sobre nós” reflecte nos homens judeus o sentimento interior de respeito por Deus.


Como já referi, uma coisa são os símbolos religiosos, outra coisa o seu uso. Confundir ambos os planos é cair numa tentação perigosa que poderá pôr em causa, a prazo, a diversidade, a pluralidade, a tolerância e a liberdade nas democracias do ocidente.
Cidade aberta

Uma aluna minha, a Daria, uma italiana que está em Portugal a estudar no quadro das permutas Erasmus, escreve para o Miniscente dando conta do seu regresso a Roma:

ROMA A DICEMBRE (come la vede una "fuoriuscita") Anche Roma e' tutta impacchettata nell'ineludibile, sfarzosa, malinconica atmosfera natalizia. Le luminarie, le decorazioni impeccabili, le 200 copie di Babbo Natale distribuite per tutti i quartieri: tutto rimanda, inevitabilmente, al Natale. Il cielo pesa sulla citta' come un coperchio grigio, piuttosto inespressivo; il freddo e' pungente fino a sfiorare l'insopportabile. Roma a dicembre e' un continuo brulicare di macchine e di gente, di claxon insistenti e di vociare acceso. E' estrema, grande, e' una citta' che ti cattura definitivamente mentre continua a confonderti. E' esattamente come l'avevo lasciata , come la immaginavo , come mi capitava di sognarla.

Obrigado pela colaboração.
Desilusão

Helena Matos volta a levantar hoje uma questão sobre a qual eu já escrevi há algum tempo: a desilusão nacional. Foca dois eixos principais, o primeiro diz respeito ao universo cristão activo e enquadra os desiludidos com a laicização progressiva do mundo ocidental. É algo não propriamente português, mas que tem, por cá, efeitos reais em algumas elites. O segundo eixo diz respeito ao universo dos desiludidos da esquerda (face ao marxismo, face ao establishment criado nas últimas décadas, face às medianias globais, face a muita coisa, e daí também também a amargura e as indecisões que atravessam o vasto e disperso sector). É algo também não propriamente português, mas que tem, por cá, efeitos muitos maiores do que noutros países da Europa ocidental onde tais acepipes já foram há muito digeridos.
Estou em crer que o espectro central da nossa política é dominado por esta desilusão mais ou menos articulada.
A falta de fé ou de crença está a subsumir-se a esta invisível, involuntária e desiludida indigestão.
Enquanto o país sonhar tendo com base modelos abstractos doutros tempos, o mal vai continuar.
Não falta um projecto para o nosso país. Faltam vários. Mas todos eles terão de cruzar-se com a qualidade, o rigor, a iniciativa e a fuga ao desmedido peso da inércia.
Ministros invisíveis em anáfora

Esse bem estar perceptivo que mal se vê (T. Gouveia)
esse desalinho cujo silêncio se esquarteja (F. Lopes)
esse mutismo sigiloso que na seiva fenece (P. Roseta)
esse oculto e distante revolver de águas (A. Theias)
esse verbo canavial que cobre ferrovias (C. Rodrigues)
esse vendaval que nenhum vento levou (C. Cardona)
esse ondular sereno da velada retoma (C. Tavares)
Razões de ser

Uma coisa é a acção outra coisa é o que se diz acerca dessa acção. Neste ABC filosófico, José Pacheco Pereira e Pedro Santana Lopes ocupam posições antagónicas: o primeiro pensa que a acção governativa é que interessa, o segundo pensa que o que se comunica acerca dessa acção é que interessa. Mas este problema - que é um problema da era dos fluxos comunicacionais - aparece hoje igualmente reflectido na cândida esfera da ciência. Diz Martin Rees, em entrevista ao Público de hoje, que se admira com a publicidade dada a João Magueijo, já que "ele é apenas uma das muitas pessoas que estão a trabalhar nisso" (i.e., na área da velocidade da luz).
É como se fosse um pecado agir e não divulgar, ou, na inversa, apenas divulgar e não agir.
É como se houvesse um desacerto inevitável entre ambas as esferas, a do agir e a das linguagens.
O que liga ambas é uma antiga ansiedade que, hoje em dia, nas condições de celeridade e instantaneidade tecnológica em que vivemos, tende a tornar-se patológica. Porque ambas têm a tendência perversa de vir um dia a misturar-se. O discurso do futuro pautar-se-á, possivelmente, nesta medida, por uma fusão singular entre realidade e ficção.
E nessa altura o que Santana, Pacheco e Rees hoje afirmam deixará de ter qualquer razão de ser.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2003

EPC vs turkey

Eis como a teoria do peru metonímico, defendida por Eduardo Prado Coelho, encontra eco até no Easterblogg:

AND ABOUT THAT FAKE TURKEY: The "decorative turkey" in George W. Bush's hands in the Thanksgiving pictures from Baghdad should in fact make people angry. Hundreds of American dead, thousands of Iraqi dead, and the White House is staging phony photos on Iraqi soil? The occupation of Iraq may be justified, but White House use of the war as a political prop is becoming unseemly. And think: somebody had to fly a fake turkey to Iraq. Voters are not stupid; this sort of thing may backfire on Bush.

Eles lêem o BdE(II)!

Salut



Nada tenho contra um sistema de dupla maioria, tal como é delineado pelo actual projecto de constituição europeia, i.e., 50% dos países e mais de 60% da população, como critério plausível de decisão. O que me intriga não é este tipo engenhoso e ecléctico de arquitecturas e soluções.
O que me intriga é imaginar que a simples consagração de um texto possa vir a salvar a Europa dos novos embates e processos de concertação em que está inevitavelmente envolvida e de que não se pode furtar.
Feitas as devidas diferenças, há qualquer coisa aqui, sinceramente, que me faz lembrar a imagem móvel e fotogénica de Arthur Neville Chamberlain a aterrar em Londres exibindo na mão um texto que antes havia assinado algures a sul da Alemanha. Lagarto, lagarto.
Confusões

Por França e Itália debate-se a questão da ostensão dos símbolos religiosos. Para muitos que os utilizam, eles nem correspondem àquilo que o ocidente quer dizer quando diz "símbolos religiosos". Sobretudo porque há culturas que não encontraram, na sua história, a diferença entre o sagrado e o profano. Sobretudo porque muitos desses símbolos são apenas modos declarados de separação entre visões do mundo. Sobretudo porque muitos desses símbolos são formas afirmativas de um pretenso território inviolável.
No uso destes símbolos reside de facto uma ostensão que se vira contra maiorias, quer a do país de acolhimento, quer, muitas vezes, a da sua origem real. É no tipo de uso e não nos símbolos, eles mesmos, que está o problema. De qualquer modo, ao proibir-se o uso já se estão, por arrastamento, a proibir os símbolos. E é essa confusão de planos que pode chegar a ser fatal para uma Europa que se quer tolerante e firme. Até porque a firmeza não é exequível com medidas restritivas e jacobinas que, no fundo, confundem as ameaças reais com as ameaças provenientes de signos ostensivos.
Mais valia a um país como a França, nos momentos-chave, ter outro tipo de atitudes. Não é assim?
Colunite

O Guerra e Pás anda fascinado com as colunas. Não pára de falar de colunas. Já descobriu que o templo tem de 100 a 120 colunas. Descreveu-as uma a uma, sem cessar. Com um espírito minucioso admirável. Mas esqueceu-se da coluna das colunas: a vertebral. É essa que mais vai rareando num certo espectro central da nossa pequena política melosa onde tudo acaba sempre bem.
Brilho



O solstício à porta e o sol a apascentar com surpresa o olhar. Falta-me sair de casa e poder comer um arenque cru, ou, pelo menos, respirar uma luz mais enviesada, mais transversal, mais deitada. No Verão prefiro o afoguear, o alongar tórrido dos fenos, os muros esvaídos com saudades do deserto. Mas, por hoje, fique a cor nítida, límpida e fulgurante.
Clones e auras

Andam aí uns manifestos à solta que apelam à clonagem na blogosfera. É verdade, a coisa até já tinha começado com tentativas suaves há algum tempo, mas, mais recentemente, vi mesmo dois desses clones (pobrezinhos, sem humor nenhum e, num caso, com a grafia toda esfacelada). Seja como for, essa malta desempregada e com imensa motivação para a vida pode imitar templates, textos, linques, tudo. Mas há uma coisa que não poderão copiar: o nome. Felizmente, há sempre uma aura que sobra ao reproductível (se o Benjamin soubesse!).

quinta-feira, 11 de dezembro de 2003

We are the champions

Diz o Joel que mantém "a presunção autista de que a literatura é, de todas as artes, aquilo em que somos globalmente melhores. Nós, os portugueses." Eu acho que é no Código Corporativo (então não é que me pus a ouvir a audição que teve hoje lugar na Comissão Parlamentar de Cultura e...)
Aborto

Ó Manuel, estamos de acordo. Mas não querer desenvolver o tema, por haver "muitos mais bem informados" para escrever, quase que retira o acordo.
Em Português

Para explicar uma coisa não é preciso que ela exista. Basta saber escrever, falar, ou tão-só ter alguns portugueses em frente. Não é assim MK?
Encore en Français

Muito falada agora no Terras do Nunca, Jane Birkin lembra-nos o tempo em que blogar era suspirar sem rede.
JGH

Uma antiga aluna minha traduzida na língua de Pascal e ainda por cima acerca de O Meu Pipi. D´abord, uma honra.
Monovisão

Das coisas que mais me irritam é o proceder por monovisão. Ou seja, o alinhamento fantasmático numa dada linha que exclui todas as outras e que se adapta sempre, nos factos em agenda, à posição única possível e adequada. Só se lê dentro dessa monovisão, só se interpreta dentro dessa monovisão, só se convive dentro dessa monovisão. E tudo se faz para que as muralhas de segurança que delimitam esse espaço monovisionador não se movam um só milímetro. Uma inteligência assim nunca saberá ter humor, nem nunca estará em condições para discutir, polemizar ou imaginar-se na rede (mesmo que já lá esteja).
Errância

A ver agora o sol a descer sobre as nespereiras e eu a pensar que já vivi este momento com alguma saudade. Mas quando?
All you need (actualizado)

Agora aqui que ninguém nos ouve, confesso, caro Avatar, que irei, no meu próximo romance, tornar a (minha fantasmática e simpática imagem da) Margarida numa personagem que se encanta com uma história (terrível) que testemunha na sua vizinhança.
Já comecei a escrevinhar. Comecei por colocá-la à janela a olhar para a rua e assim experimentei ouvi-la. Tem voz doce, pensa com rapidez, é ágil, gosta de ritmos certos e tem um apetite energético pela estrelada Bong Girl que sairia da sua teia ficcional para abraçar a radical autonomia de uma escrita colorida. Gosto dela sinceramente e vou continuar a persegui-la na minha imaginação, encerrando-a entre dois triângulos - não amorosos -, dos quais vai ser preciso audácia e inteligência para sair. Acho que tem toda a pinta para o fazer (até estranho, já agora, o radicalismo do nosso Dicionário).
Repito, gosto dela e farto-me de rir com os escritores a sério que com ela se arreliam (é curioso que a tentação de imaginar um tribunal coloca a Margarida, de um só lance, no injusto e pouco recatado banco da ré)
Já agora, isto do romance é mesmo verdade!
P.S. - Hoje, Quinta-feira, aproveitando a ausência de aulas, escrevi mais umas páginas. Já criei uma jovem personagem que se apaixona por um romance da Dália - assim se chama a escritora - de que se dá a conhecer umas sete a oito imaginárias páginas (tudo invenção e tudo passado numa viagem à Grécia). Ah Ah, Uh Uh .
O aproveitamento da rede

Na simpática resposta que a Bomba ontem me dirigiu, diz-se a certa altura que "a blogosfera pode ser mais bem aproveitada por pessoas que não estão interessadas em revelarem nada delas próprias, mesmo quando assinam com o nome completo, ou por escritores que pretendem experimentar novas coreografias".
Sobre este último ponto, cem por cento de acordo, mas apenas numa dimensão experimental (draft for drafts). De resto, creio que as coreografias tradicionais, no caso da literatura, não se irão facilmente deslocar dos seus centros quase inevitáveis. Mesmo que, a pouco e pouco, a literatura deixe de se subsumir a grandes códigos - o que tem sido hábito nos dois últimos séculos - e se individualize mais radicalmente na sua própria e livre ficcionalidade, não penso que abandone os suportes que a constituíram (e constituem). Ou seja, escrever um texto estético para um livro vai continuar a ser um desejo do escritor e do seu auditório por muito bom tempo.
Sobre o primeiro ponto, penso que "o revelar-se algo de si próprio" é sempre a tarefa da linguagem, até porque ela não se quer apenas instrumental, mas antes e sobretudo construtora de mundos (foi isto que os Turns da segunda metade do século XX nos ensinaram). Esses mundos são complexos (são como as "opiniões", ou como o "quem" que as profere), mas remetem sempre, ainda que na sua fluidez mais impenetrável, para quem os enuncia. A auto-referencialidade, ou a esteticização da nossa interpretação, tende muitas vezes a sobrepor-se à ilusão de referentes físicos, claros e seguros. É por isso que, na capilaridade múltipla e rica da rede, o jogo do que se diz (e do que não se diz) se amalgama de um modo muito mais criativo do que no tradicional fechamento off-line.
Como se vê, dentro do meu leque de cepticismos, continuo algo optimista.
Viagens OFF em dispositivo ON

Quando o Causa Nossa apareceu, pensou-se que o debate em rede ia ganhar novos blogueadores de real interesse. Era óbvio que tal se pudesse pensar. A comunidade blogosférica lincou então o novo blogue e pressentiu-se claramente uma certa expectativa. Passado o tempo do pioneirismo, eu diria que, de algum modo, a montanha pariu um rato. Sobretudo porque o novo blogue, para além de ter criado um único "outbound link", apenas parece querer manter o diálogo no seu próprio seio.
Porventura, os seus membros ainda não se terão apercebido que estão em rede, entre muitos e muitos outros blogues. De facto, para muitos cronistas que têm vivido apenas do registo off-line, no quadro de um processo normal e afirmativo de opinião e de individuação, o mundo dos blogues continua a ser uma espécie de desacerto, um corpo estranho, ou uma maquinação mais ou menos simplista (e caricatural) que, de quando em quando, perturba a sua capacidade tradicional de iniciativa e agenda. Por vezes, arriscam-se a assemelhar-se, sem darem por isso, a um Tertuliano, ou a um Cassiano, que defendiam, no seu tempo, a existência de um inapelável fosso entre a "Scriptura" (o corpus de textos sagrados) e a "litteratura" (corpus de textos pagãos, seculares, coloquiais). Deixemo-nos, pois, de mundos fechados! Vamos lá blogar, lincar e cruzar vozes! Todos o desejamos!
A Viagem da Blogosfera - 3

Diz Alexandre Monteiro em relação ao meu post Viagem na Blogosfera - 2 : "Resta saber o que haverá de tão fracturante a dizer ou seja, resta saber quem sobrevive à voragem da mediania e quem morre na praia da monotonia."
Eu devo dizer que a mediania é, em grande parte, a vida em que todos vivemos. Pelo menos eu acho que não irei nunca viver num desses paraísos imaginados, aqui e ali, por alguma humanidade. Restar-me-á saber escapar à mediania e, naturalmente, também, à rotina e à cansativa repetição dos gestos. Mas isso implica que o desdobrar do que se diz e do que não se diz, na blogosfera, consiga estar em sintonia com a abertura do próprio dispositivo que a rede nos proporciona. Aproveitar essa potencialidade, ou não, that´s the real point. É, aliás, o que tenho reafirmado nos últimos posts sobre o tema (e que promete ainda fazer correr alguma tinta).

quarta-feira, 10 de dezembro de 2003

A viagem da blogosfera - 2

Acerca do post de ontem, escreve o Crónicas do Deserto: a "autonomização terá de ser relativamente a algo ou alguém, uma vez que as autonomias se jogam entre as heteronímias e as independências."
De facto, a identidade do discurso na rede (e não só) apenas tem razão de ser em permanente diálogo com o que a desequilibra. Ou não fosse uma identidade uma amálgama de blocos que deslizam dentro de certas balizas. Espera-se, no caso da blogosfera, que o blogueador não iniba, ainda que involuntariamente, esse deslizar. Só assim a multiplicidade das suas vozes assegurará a riqueza plena que a escrita em fragmento (que também é esta) suscita. A Bomba, entre muitos outros blogues, encontrou naturalmente este desencontrar entre o quotidiano e a reflexão, entre o eu-delirante e o eu-questionador, embora, ontem, tenha chegado a confessar que a blogosfera pode acabar se a fusão com o quotidiano se tornar insustentável. Mas não é essa falta de sustentabilidade o desafio desta escrita das escritas em rede?
Por outras palavras: uma escrita livre e pessoal, fragmentária e aberta, fortemente intertextual e contaminada, dissociada de um suporte que a tornasse num organismo centrado, tendencialmente estático e alérgica ao interactivo não é, em si, um desafio à própria ordem dominante do quotidiano?
Creio sinceramente que sim.

terça-feira, 9 de dezembro de 2003

Fotografiando - Dez Histórias de Cristais
Sexta História


(Durante alguns dias, continuo a publicar Histórias de Fotografiar)




O retrato terá sido uma das primeiras euforias da turbulenta história da fotografia, sobretudo porque, nos inícios, o registo do rosto chegou a resultar de uma simples aparição algo imprevista (Carjat, Nadar!).
Toldos ao vento.
Antes da entrada em cena do manipulador Disderi.

Pouco tempo passou até que essa euforia acabasse por se transformar na viva denúncia de poetas, já que a memória, agora, passava a ser arrumada pela voluntariedade da razão. Baudelaire não terá sido, de facto, o único a dizê-lo.

Mas fê-lo com o fulgor do tempo ausente e prematuro. Fê-lo para adivinhar o tempo em que não viveu. Por paradoxo, talvez. É desse absurdo quase-perfeito que a fotografia acabaria, aqui e ali, por renascer. Ainda que entregando-se à impiedade cruel do seu enigma. Ou não fosse essa, em última instância, a sua natureza. A sua vertigem. O seu justo nome, afinal.

A vida torna-se, portanto, numa presença, já e sempre, adiada no que ela mesmo re-presenta. A vida, ela mesma, uma foto-grafia ?
Pedra de toque



Embora Gustavo Bueno não seja muito bem visto na Academia de Oviedo, concordo com ele na equivalência que estabeleceu entre a invenção (moderna) da "Cultura" e a "Graça de Deus" pré-moderna.
Li o seu livro, El Mito de la Cultura, no ano em que saiu (1996, Editora Prensa Ibérica, Barcelona) e tentei eu próprio levar até às últimas consequências alguns dados aí reflectidos, em 1999, nas Órbitas da Modernidade (ensaio que apenas viria a evoluir de sebenta para livro, já este ano, pela mão da Editora Mareantes).
Vem tudo isto a propósito dos Prós e Contras de ontem na RTP-1. Para além da deficiente mediação da jornalista de serviço, o que saltou à vista no debate foi a fraquíssima prestação pessoal e sobretudo política do ministro Pedro Roseta.
Houve momentos em que o sentimento pouco nobre da piedade me invadiu diante da sua incapacidade instantânea de decisão, diante da sua falta de convicção e diante da ausência de trunfos e objectivos políticos claros.
Não creio que a questão da cultura (e das suas ilusões e “expectativas”), quer no campo patrimonial, quer no campo da criação contemporânea, quer ainda na dimensão mais pragmática da política de públicos, possa ser apanágio para idealidades desencontradas entre esquerdas e direitas. Sê-lo-á apenas numa determinada margem simbólica. Onde a questão da cultura se torna mais vulnerável e polemizável é no confornto com o tipo de mundo em que vamos vivendo nas últimas duas décadas. Sobretudo por se tratar, cada vez mais, de um mundo que é decisivamente mais propenso ao lúdico, mais ligado ao consumo, mais impregnado pelo agir dos fluxos, mais dado ao instantanismo anarrativo e mais virado para desafios da cordem do comunicacional e do artefactual tecnológico.
É nesta série de inflexões que o lugar da cultura, na sua relação com uma espécie de "fundamento da pessoa humana" (à Malraux) - na sequência dos fundamentos divinos que eram antes próprios da “Graça divina”, encontra o vórtice da crise que atravessa e que ontem (estranhamente) mal se sentiu ou pressentiu em todo o debate.
O próprio discurso de Carrilho assentou em três traves-mestras: os direitos (à cultura - e a cidadania singular que tal implica), o apego apelativo e, por fim, a estratégia edificadora (ligada ainda à fase das infra-estruturas, simbolizada pelo programa dos cineteatros provinciais e, naturalmente, pela especificidade do PORA). Ou seja, a eficiência do discurso político-cultural de Carrilho baseou-se no elemento jurídico (vigente), na urgência da visibilidade do produto cultural e ainda numa espécie de incontornável fontismo que, no fundo, corresponde às carências reais do país.
Mas, jamais em todo o debate, se tocou na pedra de toque da crise real por que passa e por que passará, gradativa e inevitavelmente, aquilo a que nos habituámos já secularmente a designar por “cultura”.
Foi esse, afinal, o culminar (ausente) de todo o pobre debate.
A viagem da blogosfera

Hoje, para chegar a Lisboa, vi-me sob um verdadeiro aquário de chuva. Mas não era constante. Aparecia e logo desaparecia. Ora afogava a atmosfera, ora dava a ver trechos de sol imprevisto. Uma melodia de ritmo quase imprevisível. Ou, se se preferir, a grande montagem alternada do quotidiano.
Por outras palavras ainda: a verdadeira comoção dos elementos.
Vem esta experiência banal e corrente a propósito de uma sinalização que tenho vindo a achar interessante e que regularmente ressurge nas letras do Aviz. Trata-se de um certo apresentar do blogueador, ou melhor, de uma dada cenografia com que o discurso do blogueador deixa à mostra, ou, muitas vezes, não deixa, aquilo que é a (sua) dimensão interior, questionadora, enigmática, patética, instável, comovedora, íntima ou espiritual.
Sei que este atentar ao atrito da alma profunda, ou ao digladiar dos universos mais interiores (e poéticos) é amiúde objecto de alguma castração e inibição. É essa a norma. É essa a regra geral. Normalmente, o blogueador e o seu discurso conformam-se com o registo do quotidiano, com a anotação do intertexto blogosférico, ou com o dar conta de factos que se subsumem ao chamado fluxo das agendas.
Há muito tempo, creio que em Agosto, que eu aqui escrevi que preferia de longe os blogues que criavam a sua própria agenda, o seu próprio pasmo, o seu próprio encantamento individualizado (em óbvia e necessária relação com o mundo que é o nosso, claro).
É evidente que não basta esta orientação autonomizada para que o blogueador passe a apresentar a sua intimidade mais positivamente frágil, porque questionadora e até pasmada face aos enigmas dos pequenos mundos e instantes. Muita da monovisão instalada na blogosfera (sobretudo jovem e baseada na previsibilidade político-judicativa) decorre desta autonomização que, sem dar por isso, acaba por obliterar o que há de mais fascinante numa escrita que se quer interactiva e aberta aos fragmentos e à dúvida do Outro: a sua intimidade mais positivamente frágil e questionadora.
Estou com o Franccisco nesta linha que acede ao outro pela interioridade que sabe e quer interrogar-se no quotidiano, alterando os registos (e o que estes mostram ou ocultam) do mesmo modo como hoje os terríveis aguaceiros e as generosas bonanças foram bons anfitriões da minha solitária viagem.
A blogosfera precisa de mais viagem (e de mais vertigem) que consiga cruzar os socalcos da evidência admirada. Num discurso que atravessa as terras de ninguém que o multiplicam e geram, seria normal que esta adequação entre o pranto profundo e a malha da enunciação se tornasse mais frequente.
Há, de facto, muito caminho e muita experiência ainda a percorrer nesta nossa casa sem perímetro que é a blogosfera.
Fotografiando - Dez Histórias de Cristais
Quinta


(Durante alguns dias, continuo a publicar Histórias de Fotografiar)



A aura é um manto que cobre e navega sobre tudo o que já foi esquecido, dizia o mago da luz, o alquimista. Prova provada de que representamos, de que somos actores de nós próprios, de que coreografamos o rosto diante do espelho de água da vida.

A aura, continuava o mago a sonhar em voz alta, é uma memória que foi ordenada, mas sem a vontade de uma razão que estivesse disposta a organizar o seu próprio mapa. É talvez uma película quase invisível, mas que se aproxima do olhar que aprendeu a olhar.

É até provável que a topografia do olhar só se contemple de fora do olhar e, por isso mesmo, o olhar se confunda com uma rede, com um movimento, com um rizoma, com um vaivém que se espalha, tal como as ervas, por dentro e por fora da paisagem. Em todo o lado, desordenado.

O olhar pertence ao fulgor das aves que já foram anjos e ao brilho das carroças incandescentes que já foram além da luz dos sete céus, há muitos, muitos séculos, movidas por cavalos de ouro e luz. Foi por isso que, naquele tempo, se desvelou a pura imaginação dos céus, ou a luz dita primeira, e, cá em baixo, à superfície da terra, como diz o mago, se desvelaram apenas os resíduos praticamente invisíveis da aura.

O filósofo concorda que a aura existe, embora seja absolutamente inefável e, até mesmo, infiel à razão. Pensa ele, o filósofo, que a aura é como uma candeia a deambular no amotinado magma das origens; como uma miragem a vaguear através da câmara-escura, através do óvulo da visão, através do nitrato de nada; ou, ainda, como um fogo-fátuo a navegar no oceano da simples reminiscência e a reflectir-se no vidro encurvado da infância.

Aura, essa bola de cristal que ainda nem é esfera e que já se sonha cristalina.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2003

Frases Felizes - 31


Open Democracy

"(...) herdeira da 'reformada' instituição pombalina, a Universidade continua a defender que pagar salários diferentes a diferentes professores é impossível. Em Portugal, um docente universitário é um funcionário público: tem uma carreira com graus, recebe um salário independentemente do que faz e, no final, para o consolar, o Estado dá-lhe uns tostões para o subsídio de almoço". (Maria Filomena Mónica)
Imparcialidades

Eis como, ao desenterrar uma realidade complexa entre várias outras possíveis (neste caso, a situação vivida actualmente no Afeganistão), a alegada objectividade dos jornalistas se converte em clara posição e indução políticas. E isto apesar da veracidade e gravidade do facto relatado.
Fotografiando - Dez Histórias de Cristais
Quarta


(Nos próximos dias, deixo-vos dez Histórias de fotografiar)



Era uma manhã quase cristalina e ainda se sentia a alvorada desenhada pelos raios em tons de carmesim ou anil a reflectirem-se como flores sanguíneas, espécie de amores-perfeitos ou arenárias avermelhadas, mas sem nome. Foi antes do grande astro despontar que a máquina pousou sobre o velho tripé e, de imediato, acabou por alvoraçar os pássaros. Em frente, uma nuvem a hibernar esse tom de vaga humidade que faz as sirenes, ao longe, silenciarem o spleen que é de tijolo ácido e fastio nas cidades da Holanda.

Atrás da imensa duna dos milagres, o dique era elevado e cobria o imenso aquário de olhos cuniformes, onde ainda adormeciam os sonhos dos peixes. Tudo se passava no coração da província de Haarlem e tinha rosto de mar tenebroso e ofuscado, como aquele que serviu para a primeira descoberta de Débussy: espaços agitados fluindo o mistério dos corais, o sussurro de algas mestras, o rumorejar de um sigilo quase indecifrável. Uns minutos depois, já o sol se levantava na grande esfera, vimos o corpo do fotógrafo a deitar-se sobre a máquina com a mesma precisão com que os pássaros se suspendiam na atmosfera sub-lunar. Como se fossem hastes muito delicadas que o tempo havia paralisado.

Foi nesse instante que os pássaros se voltaram a alvoraçar; talvez porque se ouviu de novo o mesmo estalido de há bocado; diziam que era um som compacto, derradeiro, um rumor do Éden. Foi nessa hora de murmúrios que o corpo do modelo acabou por saltar, como se quisesse chegar ao céu, tocar no súbito azul da esfera-mãe. E desse modo, nessa forma moldada por um tempo de barro, o modelo ficaria gravado em papel. Para sempre. Mais parecia um balão a levitar entre estrelas subterrâneas, a balancear entre mundos de claridade, a elevar-se por entre as mil luas da criação.

domingo, 7 de dezembro de 2003

Ainda a rede

Na rede tudo se atravessa e tudo está em curso, do mesmo modo que nada apela à finalidade, nem nada tende a fechar-se. Na rede tudo aparece a propagar-se e tudo é centro e periferia, do mesmo modo que nada é definitivo, nem nada se arquitecta como selado. Na rede respiram-se enunciações, registos e vozes à procura de discursos. É essa a sua maior riqueza.
Dança

Mikhail Rashkovsky

Ontem vi a Jo Stromgren Kompani (uma conhecida companhia de dança norueguesa). A partir da ideia de território inexplorado (a projecção inicial das aventuras de travessia do norte da Austrália e da Nova Guiné dão o mote à cena), os quatro bailarinos desenvolvem quadros que substancializam as tensões do corpo, pondo-o em ligação com um sincretismo de fundo, simbolizado pela língua oficial da Papua Nova Guiné, o Top Pisin, que, aliás, dá o nome ao espectáculo. Durante uma intensa hora de dança, o universo de sucessivas clivagens, a fractura permanente entre as situações criadas e o digladiar entre personagens sem rumo dialoga com sombras projectadas, com o minimalismo da cena e com alguma exiguidade rítmica. Em certos momentos, a ameaça de vazio chegou a atravessar o palco do Garcia de Resende. Mas houve também momentos de alguma exaltação. Fica o registo.

Novidade televista

Depois de ter comprado o phone video station, pude, pela primeira vez na vida, ouvir e ver, ao mesmo tempo, o destinatário de um telefonema (neste caso o meu irmão e família). Embora haja na imagem qualquer coisa entre o austronauta longínquo e o correspondente de guerra no Iraque, sempre se pressente alguma magia neste processo. E assim ganha raízes um novo membro do corpo teconógico que passa a percorrer os corredores da minha casa.
Fotografiando - Dez Histórias de Cristais
Terceira


(Nos próximos dias, deixo-vos dez Histórias de fotografiar)



No interior do retábulo mecânico, a luz penetra por ínvios canais até atingir o local onde o vidro conflui com a memória do polimento. É nessa altura que a luz, branca e inclinada como Vermeer a pintou, se estende e acama na rede de minúsculos sais, de onde emergirão vestígios da paisagem por onde antes passou. São memórias de orvalho, é uma erva fina que já foi muito verde; ou é ainda a mancha de um canavial a perder-se com alguma aflição, entre as nuvens carregadas e densas do fim de Outono.

Aí, nesse recôndito vão de todos os sortilégios, esbate-se agora o olhar encandeado, talvez hipnotizado com a imagem do corpo invertido que a vida pôs a levitar diante de si. A vida na Holanda do século XVII tinha destas coisas. Eram feitiços experimentais a sonhar com a génese da fotografia.

Por trás, no cenário levantado para essas figuras subitamente imobilizadas, a natureza, já quase adormecida, torna-se numa simples lava, também inerte e luminosa. O quadro sugere então um tríptico, um leque de traços divididos, o gesto a esbater-se em três partes iguais, acabando, aqui e ali, por ceder face ao enigma do horizonte ainda longínquo, para já não falar do estigma incerto do seu inquieto contorno.

A fotografia, mais tarde, haveria de carregar consigo esta mesma perturbação, a sua voyance, afinal.

sábado, 6 de dezembro de 2003

Início da tarde

Uma nesga de céu azul sob o manto escuro a ameaçar trovoada. Os citrinos a cintilar nos ramos das árvores ao vento. Uma cigana frágil de saia preta e cabelo alto que passa com todo o vagar em frente ao muro. A luz a desaparecer, as laranjas quase vermelhas, o muro outra vez solitário. Sombras de Calí­ope. É o iní­cio da tarde.
Os melhores

Decorre neste momento a votação para o 2003 Weblog Awards, organizado pelo Wizbangblog. Pode ir lá votar.
Incompreensões face à rede


Carmen Cisneros

Num artigo de opinião que hoje assina no Público, Helena Matos afirma: "Não sei se por causa do distanciamento inerente ao suporte "on line", se pelo anonimato ou ainda pela informalidade coloquial que caracteriza a linguagem de muitos deles, encontramos nos blogues considerandos que os seus autores dificilmente assinariam num página de jornal ou profeririam numa televisão".
Concordo no essencial com o que diz no seu artigo, após este preâmbulo. Mas, justamente, é no preâmbulo que Helena Matos mostra desconhecer a razão pela qual os blogues se pautam, ou podem pautar-se, por certos registos. Não é devido ao alegado "distanciamento" (face a quê?), "anonimato" (face a quem?) e "informalidade coloquial" (ela, muito mais uma consequência do que uma causa) que os blogues assinam o que assinam, independentemente do teor que os anima a escrever o que neles se escreve.
Aquilo que Helena Matos descreve por "distanciamento"/"anonimato"/"informalidade coloquial" mais não é do que um tipo particular de texto, ou de registo, que vive da e para a interacção imediata, instalando na sua enunciação uma lógica de rede, não se subtraindo a um código tão pesado e restritivo como o que gere o mundo off-line tradicional e, sobretudo, vivendo num regime mais desarticulado, figurado e aberto (o texto dos blogues nunca está acabado, nunca se rege pelo organicismo totalizante, ou por uma arquitectura em que toda a morfologia apareceria resolvida).
Para muitos cronistas que vivem apenas do registo off-line, no quadro de um processo afirmativo de opinião e de individuação, o mundo dos blogues continua a ser um desacerto, um corpo estranho, ou uma maquinação mais ou menos simplista (e caricatural) que, de quando em quando, estorva a sua capacidade tradicional de iniciativa e agenda.
Andam tão longe da rede omnipolitana em que vivemos que nem reparam como se assemelham, às vezes, a um Tertuliano, ou a um Cassiano, que defendiam, no seu tempo, a existência de um inapelável fosso entre a "Scriptura" (o corpus de textos sagrados) e a "litteratura" (corpus de textos pagãos, seculares, coloquiais).
Fotografiando - Dez Histórias de Cristais
Segunda


(Nos próximos dias, deixo-vos dez Histórias de fotografiar)



E um dia houve em que o fotógrafo descobriu que já não havia limite, nem periferia, nem enquadramento, mas apenas ilhas, segmentos isolados, detalhes estilhaçados pelo olhar. Era o dote enviado pela luz para um único casamento com o instante.

Agora já não existia um fundo preciso para clarificar. Ficava o borrão azulado, uma sebe pouco uniforme e a luz perdida na sua agitada voragem.

Agora já não havia horizonte, nem relevo, mas antes uma convulsão de linhas a desafiarem o sentido da proporção. Agora já não havia interior, nem exterior, mas apenas uma imagem híbrida onde, nas águas do rio mais profundo, sorria o rosto iluminado de Narciso.

Foi nessa altura que o relâmpago surgiu e, de repente, revelou-se, sem mais, a grande imagem no interior do retábulo. Era Narciso a ver e a assombrar-se com o que via nos extremos dessa conformação; era Narciso encantado pelos confins da sua própria efígie; era Narciso a maravilhar-se com a rotação da esfera.

Era talvez o primeiro eflúvio de uma longa iniciação. Um rito ancestral. A luz a perpetuar o corpo.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2003

Concordo

Há no Aviz um óptimo texto sobre o anti-semitismo. Vale a pena ler. Assino por baixo.
Sokurov - 2

Mãe e filho de Alexandr Sokurov é uma pietá onde o lado patético se anula, em benefício de uma compulsão que tende a superar a morte. Quer isto dizer que a leitura habitual das pietás - na arte ocidental, é claro -, marcada por uma excessiva irradiação do pathos sobre o próprio papel do mistério, é aqui claramente invertida. Neste seu filme, Sokurov constrói, não uma mãe que olha para o filho, mas sim um filho que olha para a mãe, após uma via dolorosa, de que são personagens fundamentais a paisagem, o abandono, a solidão, mas em primeiro lugar, o amor. Um amor original.
Sokurov

Vão à Retorta ver o Tributo à Mãe e Filho de Sokurov. Ouvi a banda sonora (que não é a do filme, todo ele de um silêncio impenetrável) e repeti-a até à exaustão. Parabéns. Deixo uma imagem do post (e do filme).

Fotografiando - Dez Histórias de Cristais
Primeira


(Nos próximos dez dias, deixo-vos outras tantas Histórias de fotografiar)

Estava como que imóvel, a concentrar sobre si a voyance, talvez o diferir de uma claridade subterrânea, longínqua. Como a lua do tártaro, sempre negra e hipnotizada pelo centro da terra, pelo cerne da escuridão.

Era assim que o velho esplendor percorria os poros da cartolina já removida pelo tempo. E, apesar de tudo, continuava comprometida com o brilho e com o sigilo que dera corpo ao retrato.

O movimento do corpo é sinuoso, denso, portador de relevo nos contornos, ou no limite por onde passa a imagem do sorriso que devolve ao seu próprio destino a secreta voyance. A magia da imobilidade.

Rosa de Atena, ocre e mármore nocturnos são cores da recôndita cartolina veneziana que mergulhou, há muito, na fatalidade da prata. Aquieta, absorta, deitada no halo quase perdido desse banho de eras, a concentrar sobre si a anamorfose do tempo e o holograma do espaço, a figura incrustrada naquele retrato dir-se-ia ainda a agir. A dançar. A ondear entre ciclos, vagas, vistas.

Ágil, mas estável, ela perdura como a mais antiga das múmias; como o mais polido sílex, como o capilar mais frondoso das origens.

Depois de esmagada nos cristais, a luz transforma-se na impressão do ilimitado, embora se conforme com a figura de um pranto, de uma última cena, de uma irremissível condenação. Aqui e agora, a vida com-destinada.
Merci

Tempo também para agredecer ao Modernizador, ao Viver Todos os Dias Cansa, ao Palavras Cruzadas (Ursa Sentada), ao SubRosa e à Retorta, a cada um de modo diferente, mas a todos pelas suas palavras de ânimo e de estímulo.
Insónia

Na insónia, há um túnel obscurecido que se forma. Subitamente. Vindo daquele tipo de surpresa que aparece nas paisagens sem fim. Praias, mares, planícies, estepes. E há que saber percorrê-lo como se não houvesse tempo. O que se pensa na insónia não é nunca da ordem da objectividade. É antes da ordem das súmulas indistintas, dos restos sem origem, dos vestígios do próprio presente que dão de si imagens sem quaisquer contornos. A insónia é uma passagem pesada, um sarcófago sem múmia, um canal sem Veneza à volta, um andante aventuroso sem cavaleiro, um Stabat Mater sem Vivaldi. Geralmente há pouca esperança na insónia. Mas sabe-se, apesar de tudo, que tudo irá continuar. Curioso é o facto de, na literatura, a insónia estar a condenada a ser um tema menor. Por que será meu caro Marcel?
Desejo

Tem sido uma semana de actividades concentradas, variadas, repetidas. E sempre a chover. A chover. Às vezes, face a certos ritmos e flutuações, fica mesmo tudo por dizer. É por isso que se escreve, para subsumir às possibilidades de cada momento um desejo longínquo que os atravessa.

Quase Inverno

Os limões sob chuva forte. As pedras quase em gelo a observarem o ceú sem cor. Sem palavra. E o destemido fantasma, tão esguio quanto a última labareda que sai do tronco de azinho, a escapar-se pelas chaminés. É assim o inverno.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2003

Aniversário

Hoje, o meu pai, José Geraldo Amaro Carmelo, faz oitenta anos.
Parabéns Pai!
Rua anónima

O brilho do sol na grande parede de zinco. Uma imagem rápida, brusca, quase acelerada. Motores ao longe. Por cima, os quatro círculos encantados. E ainda a telha escura a rodopiar o vestígio recente do brilho da chuva.
A luz inclinada a definir o volume do prédio, as varandas fechadas e o inacessível terraço. Por baixo, o telhado perdido entre musgos e a sombra muito lenta do gato. Dois olhos noctívagos a avançarem entre os quatro círculos metálicos que desenham a marca do stand. As montras de vidro espesso e o reflexo da multidão.
A parede de zinco como cenário para uma trama de Méliès, o telhado rasteiro como calhe para um travelling de Wenders. Os círculos da Audi como marketing olímpico a desafiar outros deuses. No cume do paraíso, ao centro, o gato é o imperador da cena. Na montra, de alto a baixo, o folclore das compras de natal.
É assim a rua mais anónima de Lisboa.

Penumbras matinais

Em frente, do outro lado da janela, vejo algumas laranjas espalhadas no chão. É uma talha luminosa que dança, passo a passo, uma espécie de Prelúdio de Villa-Lobos sobre um tapete persa à procura do seu voo. Entretanto, a chuva regressou e invadiu a toada demorada desta manhã de Dezembro. Ao fundo, os sobreiros já esqueceram a música que embalou a laranjeira e o breve passeio onde os frutos parecem esperar pela hora da rebentação.

terça-feira, 2 de dezembro de 2003

A luz da noite

No hemisfério da noite, tudo precede do caos. É por essa razão que a noite mitológica se terá deixado um dia envolver pelo seu irmão, Érebo, tendo-se assim tornado na mãe de Éter e de Hemera (i.e., do ar e da luz). Mas a noite acabou também por ser a mãe de muitos outros seres menos recomendáveis, todos eles habitantes de uma região chamada Hespéria que se dizia situada para além do Estreito de Gibraltar (na perspectiva do Mediterrâneo centro-oriental, claro). Curiosamente, este Ocidente que sempre se sonhou por trás das Colunas de Hércules, aparece na língua árabe traduzida pelo conceito de Gharb (o local onde o sol se põe). Ou não fosse a noite mitológica da margem norte do Mediterrâneo, entre outros atributos, a mãe da própria luz. Fica por explicar se a Atlântida que é revista em textos Platónicos - e que se situa no mesmo Extremo-Ocidente, embora já para além do Mare Nostrum - ainda pertence ao mundo apolíneo, ou se é irremediável parte do tártaro profundo, sombrio e esquecido.
Questão

Face a certos sites e a certas individualidades que, em princípio, entenderão muito bem a rede e o seu significado para a cidadania omnipolitana e contemporânea, pergunto: por que se diluem em grupo (se são definitivamente personalidades que apelam à clara individualização na vida off-line), ou por que se remetem apenas à inércia expositiva, sigilosa e silenciosa do seu próprio site (onde a convocação interactiva é prática e desejadamente nula)?
Fica por preencher o inabitável vazio da resposta.
Silêncio

Um problema no Blogger impede a blogosfera de respirar, nesta Terça-feira subitamente solar. Haja, pois, respeito pelo silêncio da rede. Qualquer dia procuro outro serviço para o Miniscente e deixo o Blogger. Essa é que é essa.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2003

Frases Felizes - 30

"A ignorância não produz felicidade. A ignorância limita, dilui diferenças, reduz opções, aproxima sentimentos. Da apatia à violência, do prazer à inveja, do desejo à satisfação do desejo. O conhecimento também não produz felicidade. Traça fronteiras e expande-as, intensifica tudo (o bom e o mau), permite a escolha dos caminhos possíveis e exige a responsabilidade dessa escolha. Ao limitar os desejos limita-nos, mas não limita os outros." (Ruminações Digitais)

E, à trigésima, a escolha F.F. - já referenciada na blogosfera - lá recaiu no tema da felicidade. Já não era sem tempo!
O primeiro livro português



Hoje é o dia da Restauração (dos tempos de liceu, lembro-me dos hinos e das fardas da mocidade e da cara do reitor eivada de quinto império e da minha família calipolense inflamada pelas lendas da primeira rainha seiscentista). Enfim, no dia que já foi uma espécie de 10 de Junho em segunda edição - até 1974 era assim - parece-me adequado dar atenção à notícia do primeiro livro impresso no nosso país (é o Rua da Judiaria que nos lembra o facto). Numa altura em que a tolerância estava a viver as suas últimas décadas - i.e. a tolerância entre comunidades diferenciadas que teve um auge no Califado de Córdova e que foi reatada, mais tarde, nas cortes ibéricas cristãs pós-Afonso X, incluindo D. Dinis - é interessante que o primeiro livro impresso em Portugal, saído "das oficinas tipográficas de D. Samuel Porteiro" (um judeu de Faro), no ano de 1487, tenha sido um Pentateuco editado em versão hebraica. "O único exemplar conhecido desta edição ainda em existência encontra-se na colecção permanente da British Library". Restaurado, ou não, Portugal sempre foi uma finisterra com várias origens e com uma idiossincrasia plural. As suas primeira letras atestam o facto. É bom não o esquecer.
Dezembro

As janelas aparecem invadidas, de alto a baixo, pela humidade. Nos vidros dançam amazonas, faunos recambolescos e duas belas estriges (que são mulheres com corpo de ave e patas recurvas). Olho em frente e é assim que entro em Dezembro. Puro cinema, sem montagem. A câmara na mão a percorrer o labirinto de Dédalo. Viva o solstício!