terça-feira, 30 de dezembro de 2003

Balanço

No penúltimo dia do ano surge a tentação do balanço. As imagens que a mais ligeira tentação seleccionaria para a arena habitual são de todos já conhecidas (Iraque, Casa Pia, etc., etc.). Ficam, no entanto, por lembrar todas as outras que jamais conseguirão registar o seu próprio apagamento. Mas são elas que tornaram possível o edifício do ano.
Vejamos os 365 dias e 6 horas de 2003 como uma arquitectura que se foi desdobrando e ampliando em processo, através de linhas e pontos que, ao mesmo tempo, se definiam e se excluíam. Nesses milhões de segundos sem rosto, sem encanto e sem história (os tais que lançaram as linhas de força mas que não as corporizaram) reside a força do ano. De todos os anos. Ou de qualquer duração em que a entrega excedeu a tentação de um balanço.
Um corpo respira o invisível e denota o palpável com olhos que apenas dão conta do sentido.
Fora do vale por onde corre o sentido há outras imagens, há outras guerras, há outras prisões, há outras expansões. É por isso que a boa literatura deve cheirar, aqui e ali, a desarrumação. A aparente desperdício. A puro lapso.
Oxalá eu chegue um dia a essa outra falha.