domingo, 7 de dezembro de 2003

Fotografiando - Dez Histórias de Cristais
Terceira


(Nos próximos dias, deixo-vos dez Histórias de fotografiar)



No interior do retábulo mecânico, a luz penetra por ínvios canais até atingir o local onde o vidro conflui com a memória do polimento. É nessa altura que a luz, branca e inclinada como Vermeer a pintou, se estende e acama na rede de minúsculos sais, de onde emergirão vestígios da paisagem por onde antes passou. São memórias de orvalho, é uma erva fina que já foi muito verde; ou é ainda a mancha de um canavial a perder-se com alguma aflição, entre as nuvens carregadas e densas do fim de Outono.

Aí, nesse recôndito vão de todos os sortilégios, esbate-se agora o olhar encandeado, talvez hipnotizado com a imagem do corpo invertido que a vida pôs a levitar diante de si. A vida na Holanda do século XVII tinha destas coisas. Eram feitiços experimentais a sonhar com a génese da fotografia.

Por trás, no cenário levantado para essas figuras subitamente imobilizadas, a natureza, já quase adormecida, torna-se numa simples lava, também inerte e luminosa. O quadro sugere então um tríptico, um leque de traços divididos, o gesto a esbater-se em três partes iguais, acabando, aqui e ali, por ceder face ao enigma do horizonte ainda longínquo, para já não falar do estigma incerto do seu inquieto contorno.

A fotografia, mais tarde, haveria de carregar consigo esta mesma perturbação, a sua voyance, afinal.