sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
O Natal
O Natal é uma era que passei a não gostar. Para mim, era ideal saltar de 20 para 27 de Dezembro num balão e, talvez, na companhia de René Clair. No meio do encanto hipnótico das crianças (único Natal que tem sentido), as famílias entram em estado de choque e as estatísticas dizem que os divórcios, as zangas intestinas e as desavenças (expostas ou guardadas a sete chaves) se tornam, de um momento para o outro, em vendaval. Este aspecto carnavalesco, que tanto toca a ilusão das cores como a sangria doméstica, é disfarçado pela música de cravo que ornamenta as nossas praças. Enfim, eu posso refugiar-me e sorrir. Há quem prefira entrar no baile com a devida venda nos olhos. A cada um a sua liberdade. Seja como for, a ironia diz-nos que o Natal sabe bem à lareira, que chegam mensagens cordatas via mail, FB ou sms, que há doces, que há redescobertas do passado (ir de bicicleta ao musgo), que há presentes. Que há surpresas. Tudo isso é verdade, mas tenho a sensação de que seria ainda melhor se nos deixassem realmente em paz. Eu disse "paz"?
terça-feira, 21 de dezembro de 2010
A amizade é uma estética
A amizade é uma estética. Na morte de Carlos Pinto Coelho.
A amizade é um culto que se traduz através de uma crença que não tem nome. Um culto que se move e que está nos olhos de quem sabe protagonizar a amizade. Não há um centro na amizade, nem há um programa para a amizade. Ser-se amigo é dizer a intimidade sem filosofia e confidenciar o nome dos deuses sem qualquer deus por perto. Uma espécie de estética profunda, ainda que sem necessidade de arte.
Quando o dizer da amizade joga profundamente na vida, é verdade que se chega a tornar num dizer quase invisível. Tão transparente que mal se deslinda. Passa a ser um dizer oculto. Basta-nos o estar lá. O aparecer, ou tão-só o revelar-se de quando em quando. Mas quando o móbil da amizade desaparece – a morte, sim a morte! –, salta de imediato aos olhos esse dizer espesso de amigo e toda a sua relevância feita de matéria concreta.
O problema é já não poder entrar no escritório para dizer a quem já lá não está: “Mas por que raio é que morreste, meu grande sacana?”. Eu gosto dos verões a escaldar com o Carlos Pinto Coelho a chegar à minha casa de camisola branca e com uma garrafa de JB debaixo do braço. A Clara sorria e sabia perfeitamente que o mundo ali se reiniciava. Sim: como se a máquina do mundo tivesse bloqueado e fosse nossa tarefa, agora, reiniciar tudo de novo. É isso a amizade: um dom que existe para gerar outros dons.
O José M. Rodrigues fotografava os pequenos logros, os grandes acasos e os folhos do cortinado onde esvoaçavam palavras em forma de leque. O Carlos mostrava as suas paisagens de África como se fossem chão a respirar virgindade. A Fátima e a Isabel cantavam. O Alberto dizia o Régio que depois engrenava em uníssono. A Clara abria as papoilas como se o limoeiro do pátio estalasse à procura da sua sombra. E havia muitos outros nomes a fazer coisas que incendiavam o nada: esse planeta onde a poiesis da vida é coisa sagrada.
Era disso que eu gostava e é sobre isso que vale a pena escrever numa morte. Porque morrer é uma casa enorme sem geografia. Um aceno amputado. Um adeus que diz 'vem cá'. Ainda que a viagem literalmente continue: há-de ser verão e a linha de Mora, desalojada e erma, voltará um dia a ser fotografada. E há ainda o Harry´s Bar semeado entre xisto algarvio e umas oliveiras insanes que brotam da terra onde menos se espera. Como o maracujá da Madeira a bordo do gin tónico. Ou a minha trapista a bater o coração.
E pronto. Eu tinha que escrever em Évora por causa da morte de um amigo que ajudei a trazer para cá. Não que eu esteja em paz em Évora. Mas há deveres que são como a chuva. Estão muito para além da intriga menor e do juízo das narrativas de porcelana. Molham e fazem do corpo um mar que se revolta com a extrema mansidão das estatuetas. Eu hoje vou subir ao meu terraço e vou olhar para o fundo. No limiar do continente, vou voltar a segredar-lhe – sou muito chato! – que a amizade é um culto que se traduz através de uma crença que não tem nome.
A amizade é um culto que se traduz através de uma crença que não tem nome. Um culto que se move e que está nos olhos de quem sabe protagonizar a amizade. Não há um centro na amizade, nem há um programa para a amizade. Ser-se amigo é dizer a intimidade sem filosofia e confidenciar o nome dos deuses sem qualquer deus por perto. Uma espécie de estética profunda, ainda que sem necessidade de arte.
Quando o dizer da amizade joga profundamente na vida, é verdade que se chega a tornar num dizer quase invisível. Tão transparente que mal se deslinda. Passa a ser um dizer oculto. Basta-nos o estar lá. O aparecer, ou tão-só o revelar-se de quando em quando. Mas quando o móbil da amizade desaparece – a morte, sim a morte! –, salta de imediato aos olhos esse dizer espesso de amigo e toda a sua relevância feita de matéria concreta.
O problema é já não poder entrar no escritório para dizer a quem já lá não está: “Mas por que raio é que morreste, meu grande sacana?”. Eu gosto dos verões a escaldar com o Carlos Pinto Coelho a chegar à minha casa de camisola branca e com uma garrafa de JB debaixo do braço. A Clara sorria e sabia perfeitamente que o mundo ali se reiniciava. Sim: como se a máquina do mundo tivesse bloqueado e fosse nossa tarefa, agora, reiniciar tudo de novo. É isso a amizade: um dom que existe para gerar outros dons.
O José M. Rodrigues fotografava os pequenos logros, os grandes acasos e os folhos do cortinado onde esvoaçavam palavras em forma de leque. O Carlos mostrava as suas paisagens de África como se fossem chão a respirar virgindade. A Fátima e a Isabel cantavam. O Alberto dizia o Régio que depois engrenava em uníssono. A Clara abria as papoilas como se o limoeiro do pátio estalasse à procura da sua sombra. E havia muitos outros nomes a fazer coisas que incendiavam o nada: esse planeta onde a poiesis da vida é coisa sagrada.
Era disso que eu gostava e é sobre isso que vale a pena escrever numa morte. Porque morrer é uma casa enorme sem geografia. Um aceno amputado. Um adeus que diz 'vem cá'. Ainda que a viagem literalmente continue: há-de ser verão e a linha de Mora, desalojada e erma, voltará um dia a ser fotografada. E há ainda o Harry´s Bar semeado entre xisto algarvio e umas oliveiras insanes que brotam da terra onde menos se espera. Como o maracujá da Madeira a bordo do gin tónico. Ou a minha trapista a bater o coração.
E pronto. Eu tinha que escrever em Évora por causa da morte de um amigo que ajudei a trazer para cá. Não que eu esteja em paz em Évora. Mas há deveres que são como a chuva. Estão muito para além da intriga menor e do juízo das narrativas de porcelana. Molham e fazem do corpo um mar que se revolta com a extrema mansidão das estatuetas. Eu hoje vou subir ao meu terraço e vou olhar para o fundo. No limiar do continente, vou voltar a segredar-lhe – sou muito chato! – que a amizade é um culto que se traduz através de uma crença que não tem nome.
quarta-feira, 19 de maio de 2010
O último romance de António Manuel Venda
O sorriso enigmático do javali é um livro sobre a intimidade. Laços chegados à experiência que torna a vida numa escola de pequenos gestos. O minúsculo toma muitas vezes conta da acção, também ela lida e relida através de um microcosmos caprichoso e ditado pela lei das muitas proximidades. Tudo nesta arena ficcional criada por António Manuel Venda é cúmplice, órgão com órgão, interrogando pistas, processos, revelações, o próprio sentido. O protagonista, um jovem baptizado cripticamente por “pequeno Tukie”, é o elo fundamental do argumento e o núcleo aventuroso a partir de onde a narrativa constantemente se reinicia. O que acontece por uma dúzia de vezes, desde o primeiro dos ‘incipits’ que cruza, de modo meteórico, o movimento de duas perdizes, a memória de uma garça, o olhar atento do protagonista e a terra da “Herdade do Convento” que se anuncia como geografia nevrálgica de todo o relato.
O pequeno Tukie testemunha, ao longo das doze estações deste ciclo ficcional, um conjunto de factos que resvalam, de modo súbito, de uma esfera normal e verosímil para uma outra, cuja identidade nunca se fecha ou declara. Aliás, é esse estado de metamorfose sempre em suspenso, ou de laboratório em contínua efabulação, que liga – repito intimamente – as doze histórias que compõem O sorriso enigmático do javali.
Existe realmente um pasmo de ‘media res’ – um enredo que respira fundo sem que se lhe conheça início ou fim precisos – que atravessa todos estes relatos, cuja simetria assenta mais na alegoria dos propósitos do que na ficção narrativa propriamente dita, enquanto agir que tende para o abismo de um clímax. Um pouco como no Émile de Rousseau, embora elevado ao maravilhoso, o quadro geral desenha, na boca de cena, o pequeno Tukie e o pai e, junto ao pano de fundo, o bebé, a mãe e os cães. Como, aliás, se sintetiza no final da décima história em jeito de concatenação fotográfica.
Mas o que concede a singularidade a este livro de António Manuel Venda é o modo delicado e enraizado (nos elementos puros) com que é posta em prática a metamorfose em suspenso que vai moldando cada uma das doze histórias. Se levarmos a cabo uma visita guiada a estas viragens que nunca desocultam completamente o seu rosto e o seu molde, apercebemo-nos de que são variadas, quer pela natureza dos seus agentes, quer ainda pelo deslumbramento e pelas quase aparições que sugerem.
Tudo se inicia pelo mistério da garça e da fotografia, em “1. Depois das perdizes paradas (pp.14/15), quando o que se vê e o que acontece se digladiam. Depois, é enunciada uma virtude nobre, o riso, que é imputada a um javali. Tal como na visão de Pirandello, a causa do riso parece estar no próprio motivo do riso. Ora leia-se: “Os dentes daquele javali, bem perigosos, parecendo afiados, dentes com restos de terra e ervas, esses dentes o pai do pequeno Tukie não sabia como classificar, mas esses dentes, junto com o focinho de javali, formavam uma espécie de sorriso” (“2. O sorriso enigmático do javali” – p.21). Na terceira história, surge uma gineta que “tinha uma motosserra no estômago” prestes a explodir (“3. Gina Gineta” – p. 31). Logo a seguir, em “4. A águia que subia” (pp. 42/43), aparece no céu uma bola ou bala de canhão que não passa afinal de uma águia. Tal como na quinta história, uma cobra aparece a voar como um gafanhoto ou um zangão (“5. Uma cobra para três corvos” – p. 49). A meio do livro, há espaço para um deputado a quem falta uma parte da cabeça (“6. O deputado das lebres extraterrestres” – pp. 58/59) e, também, para a quase ressurreição da gata Malhas (7. “Talvez a segunda vida” – p.69). Na oitava e nona histórias, as intermitências tomam conta do relato. É a borboleta que se materializa e desmaterializa ao mesmo tempo, em “8. A borboleta do imperador Ming” (p. 71), e era o lagarto que aparece e desaparece e que – já agora - também ri como o javali ( em “9. O lagarto da clave de sol” – p. 77 e p. 82). As duas histórias seguintes oscilam entre a magia e a singularidade. É o caso do ouriço “atrapalhado” que não se enrola diante do pequeno Tukie, em “10. Animal doméstico (p. 87”), e é o caso do texugo gordo que se comporta – imagine-se – como um cão, em “11. O texugo mais gordo do montado (p. 90”). A fechar a décima segunda história, surge ainda a rã que não era rã, mas que podia ter sido rooter ou parceira musical do lagarto que tinha a mania que era importante (12. “Uma rela” – p.100).
Todo o relato coloca face a face o pequeno Tukie – por vezes também a mãe – e o seu pai. É, pois, sobretudo à boca de cena que a interpretação de todo este milagre natural é expiado. Sob o olhar mais presente do que atento das personagens a quem foram confiadas as efígies do pano de fundo. Curiosamente, a figura da iniciação é quase sempre substituída por uma outra que não se confunde nem com a parábola, nem com a passividade de um perceptor à Émile de Rousseau. Em O sorriso enigmático do javali de António Manuel Venda, é a ambiguidade das respostas do pai (ou ocasionalmente da mãe) e, por vezes, a própria aura do irrespondível que tomam conta da cena. Acaba por ser este o modo de a narrativa melhor relevar e até significar uma metamorfose que jamais se aclara e que jamais se consuma. A eficácia da ambiguidade criada é óbvia, já que é por causa dela que se cria, ao longo das doze histórias, um espaço – ininterruptamente aberto (é esse o nome do enigma que dá nome ao livro) – que acaba por ser povoado pelo sortilégio, pelo fascínio e pelo encantamento.
A ambiguidade é gerada de formas díspares. Ou adiando uma resposta clara, o que acontece, por exemplo, em “Gina Gineta” (“Ficaria para depois o esclarecimento daquela dúvida…”) e em “Uma rela” (“O pai do pequeno Tukie achou que não era altura de explicar que não se tratava de uma rã mas sim de uma rela)”. Ou referindo explicitamente o conforto de não ter que clarificar, como acontece em “A borboleta do imperador Ming”: “São mentirosos porque…/ Foi então que parou, decidido a não dar explicações que o mais certo seria originarem perguntas mais difíceis”. Ou ainda admitindo simples possibilidades, veja-se: “O pequeno Tukie insistiu, e o pai acabou por ceder um pouco. Se calhar o lagarto era deficiente, tinha nascido assim…” (O lagarto da clave de sol). Por vezes, a ambiguidade decorre do cariz irrespondível que perpassa as situações, como é o caso de “O texugo mais gordo do montado” (“– É um texugo, não é?!/ – perguntou o pequeno Tukie/ E a mãe disse que sim, hesitante. Ela já nem sabia bem”) e de “A águia que subia”: “Sabes que pássaros são, mãe?/ A mãe disse-lhe que não, que iam tão alto que nem se atrevia a arriscar uma espécie” (A águia que subia). Outras vezes, a ambiguidade resulta do facto de se deixar simplesmente “no ar” o questionamento: “– Ri de quê?! – perguntou o pequeno Tukie./ Nem era uma pergunta para o pai, nem para o javali. Era apenas uma pergunta que deixava no ar” (O sorriso enigmático do javali).
Em todos estes casos, que devolvem abertura intencional ao “’Porquê’ Habitual” referido na penúltima linha do livro, uma certa imobilidade – nada altiva, sublinhe-se – assiste ao galopante vaivém entre o cosmorfismo e o antropmorfismo que constrói toda a malha discursiva. Em “Uma cobra para três corvos”, quando o narrador regista – “E ele, o pai, devia dizer que não, com firmeza, mas tal como não conseguia mexer-se também não conseguia falar” –, mais do que precisar os perigos do hipnotismo de uma cobra, acaba sobretudo por definir o tom que celebra toda a estratégia narrativa de O sorriso enigmático do javali: um ‘ser ou não ser’ terno, aberto à tentação do inverosímil, pautado pela inocência da dúvida e sustentado por um espaço de feitiço que vai entretendo a realidade como se esta tivesse a invisibilidade do mito.
Como se o casulo nunca se abrisse à borboleta e essa permanência extraordinária fosse a matéria de onde se teria extraído toda a ciência telúrica deste livro que, complementarmente, também escapa à definição de géneros. Romance? Contos? Novela fragmentária? Que interessa isso! Ao fim e ao cabo, trata-se da mesmíssima ambiguidade que se esconderá no gáudio – espero – do leitor, demasiado educado ao percorrer o coração das tramas e ao adicionar-lhes desenlaces que adora imaginar (e com os quais dá sentido à vida).
Concluamos com uma opinião pessoal. O sorriso enigmático do javali de António Manuel Venda é um “Livro de Horas” – como se designava na Idade Média o misto de iluminuras, salmos, orações e textos muito variados – , enunciando-se sadiamente liberto de referências pesadas, ungido de simplicidade e acabando por fundir ou confundir o relato com a liturgia da vida, ou não fosse boa parte do narrado, quase de certeza, de teor biográfico… aparecendo o narrador pelo buraco da agulha um pouco mal escondido, aliás em coerência plena com a arquitectura da própria obra.
O pequeno Tukie testemunha, ao longo das doze estações deste ciclo ficcional, um conjunto de factos que resvalam, de modo súbito, de uma esfera normal e verosímil para uma outra, cuja identidade nunca se fecha ou declara. Aliás, é esse estado de metamorfose sempre em suspenso, ou de laboratório em contínua efabulação, que liga – repito intimamente – as doze histórias que compõem O sorriso enigmático do javali.
Existe realmente um pasmo de ‘media res’ – um enredo que respira fundo sem que se lhe conheça início ou fim precisos – que atravessa todos estes relatos, cuja simetria assenta mais na alegoria dos propósitos do que na ficção narrativa propriamente dita, enquanto agir que tende para o abismo de um clímax. Um pouco como no Émile de Rousseau, embora elevado ao maravilhoso, o quadro geral desenha, na boca de cena, o pequeno Tukie e o pai e, junto ao pano de fundo, o bebé, a mãe e os cães. Como, aliás, se sintetiza no final da décima história em jeito de concatenação fotográfica.
Mas o que concede a singularidade a este livro de António Manuel Venda é o modo delicado e enraizado (nos elementos puros) com que é posta em prática a metamorfose em suspenso que vai moldando cada uma das doze histórias. Se levarmos a cabo uma visita guiada a estas viragens que nunca desocultam completamente o seu rosto e o seu molde, apercebemo-nos de que são variadas, quer pela natureza dos seus agentes, quer ainda pelo deslumbramento e pelas quase aparições que sugerem.
Tudo se inicia pelo mistério da garça e da fotografia, em “1. Depois das perdizes paradas (pp.14/15), quando o que se vê e o que acontece se digladiam. Depois, é enunciada uma virtude nobre, o riso, que é imputada a um javali. Tal como na visão de Pirandello, a causa do riso parece estar no próprio motivo do riso. Ora leia-se: “Os dentes daquele javali, bem perigosos, parecendo afiados, dentes com restos de terra e ervas, esses dentes o pai do pequeno Tukie não sabia como classificar, mas esses dentes, junto com o focinho de javali, formavam uma espécie de sorriso” (“2. O sorriso enigmático do javali” – p.21). Na terceira história, surge uma gineta que “tinha uma motosserra no estômago” prestes a explodir (“3. Gina Gineta” – p. 31). Logo a seguir, em “4. A águia que subia” (pp. 42/43), aparece no céu uma bola ou bala de canhão que não passa afinal de uma águia. Tal como na quinta história, uma cobra aparece a voar como um gafanhoto ou um zangão (“5. Uma cobra para três corvos” – p. 49). A meio do livro, há espaço para um deputado a quem falta uma parte da cabeça (“6. O deputado das lebres extraterrestres” – pp. 58/59) e, também, para a quase ressurreição da gata Malhas (7. “Talvez a segunda vida” – p.69). Na oitava e nona histórias, as intermitências tomam conta do relato. É a borboleta que se materializa e desmaterializa ao mesmo tempo, em “8. A borboleta do imperador Ming” (p. 71), e era o lagarto que aparece e desaparece e que – já agora - também ri como o javali ( em “9. O lagarto da clave de sol” – p. 77 e p. 82). As duas histórias seguintes oscilam entre a magia e a singularidade. É o caso do ouriço “atrapalhado” que não se enrola diante do pequeno Tukie, em “10. Animal doméstico (p. 87”), e é o caso do texugo gordo que se comporta – imagine-se – como um cão, em “11. O texugo mais gordo do montado (p. 90”). A fechar a décima segunda história, surge ainda a rã que não era rã, mas que podia ter sido rooter ou parceira musical do lagarto que tinha a mania que era importante (12. “Uma rela” – p.100).
Todo o relato coloca face a face o pequeno Tukie – por vezes também a mãe – e o seu pai. É, pois, sobretudo à boca de cena que a interpretação de todo este milagre natural é expiado. Sob o olhar mais presente do que atento das personagens a quem foram confiadas as efígies do pano de fundo. Curiosamente, a figura da iniciação é quase sempre substituída por uma outra que não se confunde nem com a parábola, nem com a passividade de um perceptor à Émile de Rousseau. Em O sorriso enigmático do javali de António Manuel Venda, é a ambiguidade das respostas do pai (ou ocasionalmente da mãe) e, por vezes, a própria aura do irrespondível que tomam conta da cena. Acaba por ser este o modo de a narrativa melhor relevar e até significar uma metamorfose que jamais se aclara e que jamais se consuma. A eficácia da ambiguidade criada é óbvia, já que é por causa dela que se cria, ao longo das doze histórias, um espaço – ininterruptamente aberto (é esse o nome do enigma que dá nome ao livro) – que acaba por ser povoado pelo sortilégio, pelo fascínio e pelo encantamento.
A ambiguidade é gerada de formas díspares. Ou adiando uma resposta clara, o que acontece, por exemplo, em “Gina Gineta” (“Ficaria para depois o esclarecimento daquela dúvida…”) e em “Uma rela” (“O pai do pequeno Tukie achou que não era altura de explicar que não se tratava de uma rã mas sim de uma rela)”. Ou referindo explicitamente o conforto de não ter que clarificar, como acontece em “A borboleta do imperador Ming”: “São mentirosos porque…/ Foi então que parou, decidido a não dar explicações que o mais certo seria originarem perguntas mais difíceis”. Ou ainda admitindo simples possibilidades, veja-se: “O pequeno Tukie insistiu, e o pai acabou por ceder um pouco. Se calhar o lagarto era deficiente, tinha nascido assim…” (O lagarto da clave de sol). Por vezes, a ambiguidade decorre do cariz irrespondível que perpassa as situações, como é o caso de “O texugo mais gordo do montado” (“– É um texugo, não é?!/ – perguntou o pequeno Tukie/ E a mãe disse que sim, hesitante. Ela já nem sabia bem”) e de “A águia que subia”: “Sabes que pássaros são, mãe?/ A mãe disse-lhe que não, que iam tão alto que nem se atrevia a arriscar uma espécie” (A águia que subia). Outras vezes, a ambiguidade resulta do facto de se deixar simplesmente “no ar” o questionamento: “– Ri de quê?! – perguntou o pequeno Tukie./ Nem era uma pergunta para o pai, nem para o javali. Era apenas uma pergunta que deixava no ar” (O sorriso enigmático do javali).
Em todos estes casos, que devolvem abertura intencional ao “’Porquê’ Habitual” referido na penúltima linha do livro, uma certa imobilidade – nada altiva, sublinhe-se – assiste ao galopante vaivém entre o cosmorfismo e o antropmorfismo que constrói toda a malha discursiva. Em “Uma cobra para três corvos”, quando o narrador regista – “E ele, o pai, devia dizer que não, com firmeza, mas tal como não conseguia mexer-se também não conseguia falar” –, mais do que precisar os perigos do hipnotismo de uma cobra, acaba sobretudo por definir o tom que celebra toda a estratégia narrativa de O sorriso enigmático do javali: um ‘ser ou não ser’ terno, aberto à tentação do inverosímil, pautado pela inocência da dúvida e sustentado por um espaço de feitiço que vai entretendo a realidade como se esta tivesse a invisibilidade do mito.
Como se o casulo nunca se abrisse à borboleta e essa permanência extraordinária fosse a matéria de onde se teria extraído toda a ciência telúrica deste livro que, complementarmente, também escapa à definição de géneros. Romance? Contos? Novela fragmentária? Que interessa isso! Ao fim e ao cabo, trata-se da mesmíssima ambiguidade que se esconderá no gáudio – espero – do leitor, demasiado educado ao percorrer o coração das tramas e ao adicionar-lhes desenlaces que adora imaginar (e com os quais dá sentido à vida).
Concluamos com uma opinião pessoal. O sorriso enigmático do javali de António Manuel Venda é um “Livro de Horas” – como se designava na Idade Média o misto de iluminuras, salmos, orações e textos muito variados – , enunciando-se sadiamente liberto de referências pesadas, ungido de simplicidade e acabando por fundir ou confundir o relato com a liturgia da vida, ou não fosse boa parte do narrado, quase de certeza, de teor biográfico… aparecendo o narrador pelo buraco da agulha um pouco mal escondido, aliás em coerência plena com a arquitectura da própria obra.
quarta-feira, 5 de maio de 2010
Renovação ou melancolia sebástica?
INET
Em primeiro lugar: o mundo está a mudar muito rapidamente e os valores que eram taxativos, certos, quase imutáveis, atravessando e marcando ideologicamente as sociedades, deixaram de ter influência decisiva. A partir da última década do século XX foi despontando, contra a inércia da geração a que pertenço (nasci em 1954), um mundo muito mais livre que se afastou das cartilhas rígidas. Este novo mundo, apesar das crises que são rostos habituais do nosso tempo, é muito melhor e bem mais sadio do que aquele que fez jus à Guerra Fria.
Vivemos, de facto, num mundo bem menos assente em cartilhas e mais problemático e mais aberto. É um mundo que adoptou o instantanismo tecnológico e que estreitou o espaço e o tempo do planeta. É um mundo talvez demasiado relativador e mediático, mas menos nostálgico e dogmático. É um mundo a que Alegre intimamente nunca pertenceu e a que, no fundo, não pertence. Este mundo, naturalmente, também não é o de Cavaco. Poucos são os políticos com espessura que representam o nosso mundo actual de modo positivo, criativo e estimulante. Crise profunda, a da politica, certamente. E não apenas em Portugal.
Estou convicto de que Alegre não incorpora um mundo aberto à iniciativa sem fim, de que a rede é, afinal, uma excelente metáfora. E é por isso que nos crê a todos como afundados. Ou perto disso. O pensamento sinceramente trágico de Alegre admite que a ausência de valores taxativos, previsíveis e capazes de marcar ideologicamente a sociedade significa, só por si, ausência de ética. E é por isso que se apresenta como campeador da ética. Uma espécie de PRD com gravata e barba anteriana: como se a ética fosse o imaginário de uma coutada própria a verberar-se poeticamente. Uma renovação destas precisava, talvez, o mundo do futebol. Não um país.
Toda a aparição de Alegre é almofadada, afectada, própria de quem ostenta um ceptro invisível. Ao invés de uma imagem política renovada - o PR em Portugal é essencialmente um símbolo que pressupõe capacidade de decisão -, Alegre propõe antes uma efígie política de nobreza sobre um plinto composto pelo mármore poético.
O candidato a PR discursa com um tom declamatório e pausado. Trata a linguagem, não como uma ferramenta para anunciar o verbo político e um leque de mensagens concretas e mobilizadoras, mas como uma linguagem que fala acerca da linguagem. Um registo que se move à volta de si próprio, com óptimo ritmo, boa gradação e uma certa proximidade da rima. Mas, de qualquer modo, um tom proclamatório que pede emprestado ao Parnaso a prosódica para a política. Eficaz para cintilar em corações românticos ou para preencher os vazios de quem não entende - ou não aceita - o mundo em que vivemos.
Um tom exaltante para jovens saudosos, sebásticos de 68 e ideólogos desempregados. Mas uma renovação às avessas, certamente.
Alegre apresentou-se em Ponta Delgada como o candidato da renovação. Foi essa palavra - a "renovação" - que melhor tentou traduzir a essência da sua candidatura. Contudo, para o bem ou para o mal, Alegre é um candidato muito pouco renovador.
Em primeiro lugar: o mundo está a mudar muito rapidamente e os valores que eram taxativos, certos, quase imutáveis, atravessando e marcando ideologicamente as sociedades, deixaram de ter influência decisiva. A partir da última década do século XX foi despontando, contra a inércia da geração a que pertenço (nasci em 1954), um mundo muito mais livre que se afastou das cartilhas rígidas. Este novo mundo, apesar das crises que são rostos habituais do nosso tempo, é muito melhor e bem mais sadio do que aquele que fez jus à Guerra Fria.
Vivemos, de facto, num mundo bem menos assente em cartilhas e mais problemático e mais aberto. É um mundo que adoptou o instantanismo tecnológico e que estreitou o espaço e o tempo do planeta. É um mundo talvez demasiado relativador e mediático, mas menos nostálgico e dogmático. É um mundo a que Alegre intimamente nunca pertenceu e a que, no fundo, não pertence. Este mundo, naturalmente, também não é o de Cavaco. Poucos são os políticos com espessura que representam o nosso mundo actual de modo positivo, criativo e estimulante. Crise profunda, a da politica, certamente. E não apenas em Portugal.
Estou convicto de que Alegre não incorpora um mundo aberto à iniciativa sem fim, de que a rede é, afinal, uma excelente metáfora. E é por isso que nos crê a todos como afundados. Ou perto disso. O pensamento sinceramente trágico de Alegre admite que a ausência de valores taxativos, previsíveis e capazes de marcar ideologicamente a sociedade significa, só por si, ausência de ética. E é por isso que se apresenta como campeador da ética. Uma espécie de PRD com gravata e barba anteriana: como se a ética fosse o imaginário de uma coutada própria a verberar-se poeticamente. Uma renovação destas precisava, talvez, o mundo do futebol. Não um país.
Toda a aparição de Alegre é almofadada, afectada, própria de quem ostenta um ceptro invisível. Ao invés de uma imagem política renovada - o PR em Portugal é essencialmente um símbolo que pressupõe capacidade de decisão -, Alegre propõe antes uma efígie política de nobreza sobre um plinto composto pelo mármore poético.
O candidato a PR discursa com um tom declamatório e pausado. Trata a linguagem, não como uma ferramenta para anunciar o verbo político e um leque de mensagens concretas e mobilizadoras, mas como uma linguagem que fala acerca da linguagem. Um registo que se move à volta de si próprio, com óptimo ritmo, boa gradação e uma certa proximidade da rima. Mas, de qualquer modo, um tom proclamatório que pede emprestado ao Parnaso a prosódica para a política. Eficaz para cintilar em corações românticos ou para preencher os vazios de quem não entende - ou não aceita - o mundo em que vivemos.
Um tom exaltante para jovens saudosos, sebásticos de 68 e ideólogos desempregados. Mas uma renovação às avessas, certamente.
quarta-feira, 7 de abril de 2010
O anátema da Maria da Fonte
O estado moderno só encontrou a sua "plenitude com a aparição de uma nova religião: o nacionalismo". A frase à Monsieur de La Palice é de um jovem investigador da Complutense, Julio Galán, e encontrei-a, há minutos, numa citação que fiz num texto já com cinco anos de idade.
Não posso estar mais de acordo, até porque nunca fui nacionalista.
Aquilo que a nação veio traduzir, no final de setecentos, não se esvai nem se expande por se ser ou não nacionalista. É irrelevante, até porque o que estava em causa era a percepção e o reconhecimento da existência de uma 'alma colectiva'. O mesmo se poderia dizer das grandes teleologias da esquerda de meados de oitocentos. Ao fim e ao cabo, todas elas visavam a superação de obstáculos que a teoria definia com a clareza e a lógica de um microscópio.
Eis duas religiões da modernidade: uma tradicionalmente mais conotada com a direita, embora originalmente bastante jacobina: a nação; outra tradicionalmente mais conotada com a esquerda, embora originalmente de direita (a avaliar pela matriz do Leviatã de Hobbes, por exemplo).
Confusões interessantes como as que se revelam pela boca do generoso povo dos fóruns radiofónicos da manhã que sabiamente analisa o nosso dia-a-dia. Hoje, as bandeiras vermelhas e amarelas de Valença foram tema. A explosão tomou conta da cena e houve quem visse o fim do mundo nessas duas cores quentes e tauromáquicas, assim como houve brados sindicalistas que registaram a bonomia e a excelência da causa.
É caso para dizer que a racionalidade é uma espécie de lapso no meio do turbilhão. Nem direitas, nem esquerdas, nem muito menos os nacionalismos explicarão seja o que for, se os motivos da luta se confundirem com os de uma religião. Quando a 'alma colectiva' se sente ferida - o pretexto pode ser o centro de saúde ou qualquer outro -, não há voz que se deixe perceber: o grito e o ritual substituem-na sem cessar, dando assim sentido à perda que não se pode nem quer aceitar.
O governo saberá tudo isto. Duvido é que saiba lidar com tudo isto.
A prática já demonstrou que a engenharia social, por mais correcta e lógica que seja, depara sempre com o anátema da "Maria da Fonte", capaz por si só de fazer cair ministros e alimentar crises governamentais ou mesmo de regime.
É uma das muitas fragilidades da democracia, afinal um preço que todos pagamos para vivermos civilizadamente e com alguma decência.
quarta-feira, 31 de março de 2010
Design: uma revolução em curso
Quando hoje em dia olhamos com atenção à nossa volta, não é difícil percebermos de imediato como o design se entranhou na nossa vida. Tudo, de facto, aparece incorporado e moldado pelo design: os jornais que lemos, as cadeiras em que nos sentamos, as imagens que pululam nos sites e outdoors, os sapatos com que andamos ou as malas e sacos onde guardamos as nossas coisas.
O design resolve problemas, atrai a estética até ao nosso corpo e parece conferir ao mundo que nos rodeia, objecto a objecto, uma espécie de pulsação. Esta omnipresença do design tornou-se tão comum que acaba por misturar um fio de surpresa – quando nos concentramos na sua presença – com a mais elementar constatação do óbvio.
A quase invisibilidade do design é um dos aspectos mais fascinantes do seu triunfo no nosso dia-a-dia. Ao envolver-nos, o design preserva a maior das discrições mas garante um novo tipo de bem-estar. Nos últimos trinta anos, muita coisa aconteceu para que tivéssemos chegado a este vaivém de pulsações entre nós e os objectos que nos vestem, transportam ou acomodam.
Dois breves exemplos. O primeiro, já um clássico, deu pelo nome de “Lateral Thinking” (E. de Bono, 1970) e baseou-se na oposição entre a arrumação “vertical” da mente (sistema de “construção de padrões”) e as mensagens cujos formatos a conseguissem pôr em causa. As imagens “Benetton” dos anos noventa – hoje vulgarizadíssimas – constituíram um bom exemplo deste tipo de desmontagem, na medida em que obrigavam a suspender a padronização habitual da mente. O segundo exemplo tem apenas cinco anos e apareceu por via das ideias de Lindstrom (“Brand Sense”, 2005) que estão agora a invadir o mercado sob o signo dos designs sensoriais: “saborear”, “cheirar”, “tactear”, para além dos mais clássicos “ouvir” e “ver” (Damásio acrescentar-lhes-ia certamente a variante “somatossensorial”).
Estas duas formas visuais de atenção realçam, de modos diversos, a característica mais emblemática do design actual: fazer do presente um território realizável e crível capaz de incorporar as nossas emoções e não um “mero trânsito”, como pretendiam os místicos medievais ou os ideólogos oitocentistas.
Os designs contemporâneos estão, pois, a estimular a migração dos nossos processos mentais e sensoriais, transformando o espaço público num complexo orgânico onde a nossa carne, as nossas pulsões e impulsos se revêem como se agissem no seu espaço mais íntimo.
O design chegou para mudar a nossa vida. Ele é a maior revolução do nosso tempo.
terça-feira, 30 de março de 2010
PNETdesign começa a 31 de Março
PRESS RELEASE
O PNETdesign estará online a 31 de Março.
O novo site da rede PNET, o PNETdesign, abre as suas portas no último dia de Março. Durante o mês de Abril, a cobertura do Salone de Milão (14/4 a 19/4) está já na agenda. O painel de cronistas é variado e reflecte as várias esferas de produção, criação e gestão do design em Portugal e no mundo, atravessando campos de actividade que articulam o mercado, a educação, os eventos, o branding, o ciberdesign, o design gráfico e, também, a opinião.
Para além do editor, Luís Carmelo, e do administrador da rede, Eng. Vítor Coelho da Silva, colaboram no PNETdesign, desde o seu primeiro dia, Sara Goldchmit, Mário Anastácio Santos, António Nunes Pereira, Helena Souto, Eduardo Côrte-Real, José Bártolo, Eduarda Margarido, Humberto Moreira, Márcia Novais, João Palla, Maria João Eloy, Martim Lapa, Ana Mestre, Pedro Marques, Sílvia Rosado, Miguel Fernandes e Diego A. Bartolomeu.
Além de desejar dar conta do meio do design, o site PNETdesign pretende promover um observatório do mercado do design (eventos, feiras, destaques), dar voz aos agentes e protagonistas do meio do design, destacar a actividade do design na rede (blogues e sites), sublinhar o papel das marcas de design em Portugal e acompanhar as modalidades contemporâneas da gestão do design.
As componentes do site PNETdesign são os seguintes: Ponto de fuga (notas editoriais), Brandestaque (espaço de realce para uma marca, com ênfase para os seus criadores, atributos, posicionamento, representação e oferta no mercado), MicroQues (entrevistas a designers, representantes de marcas, donos de lojas, curadores, críticos, gestores, industriais e estilistas; modelo sucinto e adequado à rede), EDesign (nota sobre casos interessantes ao nível do ensino e investigação projectuais do design), Design do design (Selecção crítica e comentada de sites e publicações sobre design), Breves (rubrica regular de informação), OpCron (espaço privilegiado de opinião e crónica), Ergomanias (relações corpo-design), Criadores (destaque de peças de design no Header do site) e Doodleday (secção projectual destinada à edição de desenhos).
UP (Revista da TAP)/ ESAD (Escola Superior de Design de Matosinhos)/ IADE- Creative University, Lisboa/ Alquimia da Cor (Escola De Design do Porto)/ UAL (Universidade Autónoma de Lisboa)/ SAAL (Alfena, Porto)/ Herdade da Matinha/ EXPONOR-CERANOR/Parli/ Viplanos/ChiadoDesign/EscritaCriativaOnline.com/ PNETliteratura
segunda-feira, 29 de março de 2010
Os alarmes do país literário
No dia em que Maria Helena da Rocha Pereira foi anunciada como a – aliás justíssima – vencedora do Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores, a jurada Teresa Martins Marques enalteceu a carreira da ensaísta, sublinhando a importância e a pertinência do prémio, devido, entre outros factores, ao facto de vivermos “…num tempo em que somos marcados pela literatura light”.
O argumento seria secundado, nesse mesmo dia, curiosamente um chuvoso 8 de Março, na rádio, pela voz do próprio presidente da APE, o escritor José Manuel Mendes.
Em Julho do ano passado, Pedro Mexia escreveu uma interessante crónica no Público acerca de um livro de Fátima Lopes e, na circunstância, referiu o grande impacto da literatura light – e das suas derivadas – através de um curioso contraste: “Fátima Lopes, uma apresentadora de televisão, vendeu quase cem mil exemplares; já as obras do mais recente Prémio Camões nem se encontram nas livrarias”. “O mercado editorial é o que é: uma grande biblioteca fútil”.
Já este ano, a propósito do Prémio Universidade de Coimbra 2010, atribuído ao escritor Almeida Faria e ao cineasta Pedro Costa, o reitor da centenária instituição explicou o sentido e o critério das escolhas como tendo a sua origem numa real necessidade de justiça. O objectivo foi, pois, o de “repor alguma justiça quanto à exposição pública dos premiados”, devido ao facto de “a nossa sociedade” ser “muito ingrata com os nossos artistas. Esta é mais uma tentativa que fazemos para aumentar a notoriedade de nomes importantes da nossa cultura”.
A ingratidão da sociedade diante dos seus artistas e escritores de maior qualidade parece aliar-se à “biblioteca fútil” que cada vez mais caracteriza o “nosso mercado editorial”. Uma tal cadeia de factos tem levado os jurados dos nossos prémios mais prestigiados a enfatizarem a urgência de o país culto se demarcar a ferros desta atmosfera crescentemente “marcada” pelas expressões “light”.
Dir-se-ia que o país literário anda alarmado e quase entrincheirado diante de uma terrível ameaça que, na falta de mais adequada designação, é definida pela leveza ligeira do mundo “light”. Ronald Augusto sintetizou, há alguns meses na Sibila**, esta omnipotência da mediania de modo revelador: “O mercado canoniza uma forma média de literatura que pode ser representada por um estilo a meio caminho da fórmula publicitária e do literário em tom pastel. Esta literatura light, que qualquer indivíduo pode “acessar”, é tão canônica quanto à mobilidade social o possa permitir. O escritor canonizado será aquele cujo perfil se revelar mais apto a conquistar a melhor fatia do bolo durante o maior tempo possível. De resto, o mercado dinamizado amplia tanto as chances de sobrevivência, quanto de aniquilamento do nosso grande pequeno literato. Por fim, ao manter o debate “literário” em nível de atacado, o mercado, ele mesmo, é que acaba por se canonizar.”
Dir-se-ia, para não marcar este sucessivo vestígio contemporâneo de nódoas com lições de moral, que ainda um belo se vai acabar por cumprir a profecia de João de Miranda m.. Ora leia-se: “… o meu amigo gameiro ganhou o prémio literário joão de miranda m., vencedor do prémio joão tordo de literatura, que ganhou o prémio josé saramago de literatura, vencedor do prémio nobel de literatura que ganhou o prémio bertha kinsky da literatura. O meu amigo santosilva é candidato ao prémio gameiro de literatura…”.
O humor é, ao fim e ao cabo, a face mais duradoura dos grandes abismos. E a justiça – essa sonhada equidade – será sempre alheia à profundidade da falésia e ao impacto da vertigem. Nada mais resta aos nossos melhores escritores e a todos nós, portanto, do que trabalhar. Trabalhar muito. Para que novos e bons livros apareçam e tranquilizem o mais inexorável dos vícios da existência. Deixem, pois, que as distracções e o entretenimento se distraiam e se entretenham à vontade! Que a redundância viva feliz na casa que é, afinal, a sua.
(no PNETliteratura hoje)
terça-feira, 23 de março de 2010
Guia de Conceitos Básicos de Nuno Júdice
Recebi de Nuno Júdice o seu último livro, Guia de conceitos básicos (D. Quixote, Março, 2010). Li-o, no primeiro domingo solar de Março, como se lê qualquer livro de poemas: percorrendo a paisagem que é sempre feita de nós invisíveis, de labirintos (“falta sempre/ alguma coisa que ficou no princípio”), de epifanias (“E o rosto divino apaga-se contra o vidro/ da memória”), de analogias (“a luz do sol escorrer por entre/ as folhas, como se fosse água”), de estações variadas (“para montar armadilhas aos pássaros”) e sobretudo das manhãs que obrigam à “precisão de traço/ que os dedos inscrevem em cada sílaba”.
A leitura desta paisagem acabou por revelar-se chã e cativante: uma linguagem do dia-a-dia que não perde nunca o resplendor do luar. Uma leitura criada pelo ritmo escorreito que procura a sua matéria própria. Uma leitura que se deixa povoar por figuras luminosas: Júpiter, Vénus, várias infantas, Orestes e até o “rosto escondido pela trepadeira/ que (…) ocupa a imaginação”. Uma leitura que sugere e deriva tal como avança: com vagar e com o olhar procurando sempre outro e outro olhar: “Os que vivem devagar desenham/os seus passos no chão para onde não olham”. Um olhar feito da matéria que o fio dos poemas procurará.
Percorrer a paisagem de um livro de poesia – que se lê pela primeira vez – é pressentir a silenciosa redenção que o terá originado. Porque a poesia nasce desse devir que não tem nome, nem forma, nem desígnio. Por vezes, basta o súbito fulgor de uma imagem para acender a razão de ser de toda essa paisagem. É o que acontece, como prefiguração, no final do poema “Ressaca”, quando há ímpetos e sombras que voam “nas paredes, num sopro de gestos, formando uma procissão/ que procura o altar e um desejo sonâmbulo”.
Guia de conceitos básicos de Nuno Júdice fecha com o poema homónimo. Trata-se de uma ininterrupta injunção que descola com ironia e que ancora com cartografia certa: “Use o poema para elaborar uma estratégia/ de sobrevivência no mapa da sua vida”. Trata-se sobretudo de um remate certeiro ou de uma verdadeira cartilha “para que poema/ e vida coincidam”. Citemos duas passagens que, nesse “Guia”, intertextualizam fragmentos de linguagem ‘tech’: “Recorra/ aos dispositivos de imagem, sabendo que/ ela lhe dará um acesso rápido aos recursos/ da alma” e “Se precisar de/ substituir os sentimentos cansados/ da existência, reinstale o desejo/ no painel do corpo”.
Os termos deslizam com súbita intermitência: “dispositivos”, “painel”, “instalar”, programar ou tão-só reiniciar. De facto, a leitura que antes sugeria e derivava, no seu luar de língua viva e chã, acaba por despertar com um brilho que se anuncia paródico, reatando, apesar de tudo, as silhuetas do “desejo sonâmbulo”. E termina assim este interessantíssimo “Guia”, aclarando definitivamente as suas margens: “Escolha uma superfície/ plana: e deslize o seu olhar pelo/ estuário da estrofe” (…) “Verifique/ (…) se todas as opções estão disponíveis: e/ descubra a data e a hora em que o sonho/ se converte em realidade, para que poema/ e vida coincidam.”.
A história de uma conversão, numa palavra. Não necessariamente do sonho para a vida, porque o poema ao dizer “sonho” e ao dizer “vida”, está-nos sobretudo a dar conta da matéria da (sua) poiesis, ou seja: de uma linguagem que se reinventa a si mesma à imagem da (imperscrutável) matéria do olhar.
A leitura desta paisagem acabou por revelar-se chã e cativante: uma linguagem do dia-a-dia que não perde nunca o resplendor do luar. Uma leitura criada pelo ritmo escorreito que procura a sua matéria própria. Uma leitura que se deixa povoar por figuras luminosas: Júpiter, Vénus, várias infantas, Orestes e até o “rosto escondido pela trepadeira/ que (…) ocupa a imaginação”. Uma leitura que sugere e deriva tal como avança: com vagar e com o olhar procurando sempre outro e outro olhar: “Os que vivem devagar desenham/os seus passos no chão para onde não olham”. Um olhar feito da matéria que o fio dos poemas procurará.
Percorrer a paisagem de um livro de poesia – que se lê pela primeira vez – é pressentir a silenciosa redenção que o terá originado. Porque a poesia nasce desse devir que não tem nome, nem forma, nem desígnio. Por vezes, basta o súbito fulgor de uma imagem para acender a razão de ser de toda essa paisagem. É o que acontece, como prefiguração, no final do poema “Ressaca”, quando há ímpetos e sombras que voam “nas paredes, num sopro de gestos, formando uma procissão/ que procura o altar e um desejo sonâmbulo”.
Guia de conceitos básicos de Nuno Júdice fecha com o poema homónimo. Trata-se de uma ininterrupta injunção que descola com ironia e que ancora com cartografia certa: “Use o poema para elaborar uma estratégia/ de sobrevivência no mapa da sua vida”. Trata-se sobretudo de um remate certeiro ou de uma verdadeira cartilha “para que poema/ e vida coincidam”. Citemos duas passagens que, nesse “Guia”, intertextualizam fragmentos de linguagem ‘tech’: “Recorra/ aos dispositivos de imagem, sabendo que/ ela lhe dará um acesso rápido aos recursos/ da alma” e “Se precisar de/ substituir os sentimentos cansados/ da existência, reinstale o desejo/ no painel do corpo”.
Os termos deslizam com súbita intermitência: “dispositivos”, “painel”, “instalar”, programar ou tão-só reiniciar. De facto, a leitura que antes sugeria e derivava, no seu luar de língua viva e chã, acaba por despertar com um brilho que se anuncia paródico, reatando, apesar de tudo, as silhuetas do “desejo sonâmbulo”. E termina assim este interessantíssimo “Guia”, aclarando definitivamente as suas margens: “Escolha uma superfície/ plana: e deslize o seu olhar pelo/ estuário da estrofe” (…) “Verifique/ (…) se todas as opções estão disponíveis: e/ descubra a data e a hora em que o sonho/ se converte em realidade, para que poema/ e vida coincidam.”.
A história de uma conversão, numa palavra. Não necessariamente do sonho para a vida, porque o poema ao dizer “sonho” e ao dizer “vida”, está-nos sobretudo a dar conta da matéria da (sua) poiesis, ou seja: de uma linguagem que se reinventa a si mesma à imagem da (imperscrutável) matéria do olhar.
terça-feira, 16 de março de 2010
Mafra pós-Saramago
Foi em Mafra, no início dos anos oitenta, que Saramago levantou voo. E fê-lo à imagem de uma personagem que ele próprio criou nesse romance/memorial que acabou por posicionar o convento local como peça do nosso imaginário e não apenas como exemplo do barroco lusitano (próprio para receber Putin).
No passado fim-de-semana, nem Putin, nem Saramago, nem a sua diva voadora por lá se encontraram. Mas podiam ter ungido com as suas bênçãos o último remoque de Santana Lopes. De facto, quem não se sente não é filho de boa gente e Santana, ainda a tentar libertar-se do despedimento do primeiro de Dezembro de 2004, não podia deixar de fazer o que fez: como foi atacadíssimo pelos seus pares estando em S. Bento, jamais idêntico precipício se poderia vir a repetir.
Daí que, apesar das opiniões veementemente contrárias dos três actuais candidatos à liderança (foi o que expressaram às televisões após a conclusão do conclave), a reunião de Mafra tenha aprovado a inacreditável resolução da "rolha".
Ninguém poderá proclamar em vão o santo nome do PSD e do seu líder máximo 60 dias antes do voto. Agora imagine-se que o impropério acontece no sexagésimo primeiro dia? A questão e o debate possível em torno dela fazem lembrar o referendo do aborto (é "crime" ao fim de que... semana?).
Numerar os dias e as semanas para incendiar os ânimos e lançar coimas como se lançam dardos é sinal de delírio. No mínimo! Mesmo sem jogadores chineses na formação, Mafra cumpriu (copiosamente) esse fulgor único. Assinale-se a proeza.
(hoje no Expresso)
sábado, 13 de março de 2010
Quando o risível procura bigode
Chega a ser delicioso auscultar os filósofos que se entretêm com a filosofia do futebol, de que Rui Santos é Wittgenstein e de que Rui Moreira é uma espécie de pragmático William James.
A discussão em torno do desporto, em Portugal, é matéria que mereceria mais estudos. O futebol, por exemplo, foi criando ao longo dos anos um verdadeiro 'establishment' (paralelo ao da classe política) que se manifesta com grande impacto nos media, para além de desenvolver alteridades e rituais necessários à sua conservação e de municiar um abundante mercado (de que nunca se separa bem o que é invisível do que o não é).
O peso deste 'establishment' é hoje muito maior do que era há um quarto de século e é muitíssimo maior do que era no 'tempo da outra senhora'. A tendência é claramente crescente. Repita-se: não do espectáculo, do peso das camisolas ou dos afectos espontâneos pelo génio da bola, mas do 'establishment': essa amálgama de dirigentes, estruturas e vozes cruzadas que contracenam com um mercado (aparentemente) sem fundo e com uma aparição omnipresente nos media.
O modo como estes factos se revelam noutros países europeus não será muito diferente, mas creio que há especificidades portuguesas. Uma delas é o número de jornais e de programas de televisão por habitante (a contrastar com o esvaziamento da larga maioria dos estádios); outra é a proporção com que as abordagens do futebol - à imagem da Grécia, de alguma Espanha ou Itália - se propagam no espaço público. Haverá neste gáudio que as pessoas adoram (bem sentadinhas nos seus sofás) alguma psicanálise que 'serve' de modo profícuo a filosofia pátria.
Não gosto de dar lições de 'dever ser' ou de "ética", como agora se diz nas "Comissões" de redundância parlamentar, e não sou admirador das doutrinas políticas que o fazem. As pessoas devem ter o que gostam, desde que não ameacem as liberdades de terceiros. E por vezes chega a ser delicioso auscultar os filósofos que se entretêm com a filosofia do futebol, de que Rui Santos é Wittgenstein e de que Rui Moreira é uma espécie de pragmático William James.
De todos os programas de televisão que se dedicam ao "fenómeno do futebol" há um que se destaca em meu entender: o "Mais Futebol" que vai para o ar no serão das sextas-feiras na TVI24. É o único que carbura o tema com humor - desde logo pela apresentação cativante de Cláudia Lopes -, é o único que não faz esquematicamente coincidir o painel com partidos/clubes e é ainda o único que tem rubricas de sadia dessacralização da coisa futebolística (a "Bola na barra", por exemplo). Além do mais, foi apenas neste programa que ouvi argumentos de compreensão do que se passou no recente Portugal-China, realizado em Coimbra.
Este jogo de treino da selecção teve ingredientes novos a que o 'establishment' reagiu do mesmo modo que os políticos reagem a contratempos terríveis (estilo... "Afinal o PM não falou verdade no parlamento!"). O facto de parte razoável da assistência ter proposto uma interacção menos estadista/clubista com o desenrolar do jogo feriu realmente grande parte do 'establishment' (os dirigentes lamentaram-se ao nível de uma quase 'traição nacional'). No fundo, os cartazes pediam uma selecção com bigode e os Olés celebravam, ao modo dos dadaístas, uma castiça China que atrapalhava os heróis nacionais (ainda sem bigode). Este modo irónico e sadio de ver futebol e de apelar à diversão com o futebol constituiu um sintoma novo.
A Coimbra que filtrou, em 1969, o Maio de 68 parecia ter voltado a acordar da sua letargia. Não para o velho Tomás, mas para a nova carcaça da nossa vida pública: o 'establishment' do futebol. É bom que haja um "Mais Futebol" e é bom que haja a Coimbra que soube tirar partido do que, também, deve ser a performance do futebol!
Hoje no Expresso
quinta-feira, 11 de março de 2010
Mau hálito político ou má sina?
O país da Expo foi um país frondoso, pelo menos por cima do tapete. Toda a década de noventa, a primeira que vivi em Portugal depois de um longa estada no estrangeiro, significou crescimento, recuperação e sobretudo mentalidade positiva. A "geração rasca", a crise da ponte 25 Abril, já no final do cavaquismo, e as diversões em torno do Padre Frederico em nada se comparam com o que realmente havia de ficar para a história: a Expo, a descoberta das TVs privadas (e de um novo tipo de pluralismo) e a importância crescente da tecnologia no dia-a-dia.
O nosso 09/11 foi prenunciado pelo pântano de Guterres que, depois, mergulharia nas águas paradas do Caso Casa Pia. Era a primeira vez que o país se via (massificada e mediaticamente) ao espelho, como se o precipício se abrisse e concordasse em género e número com a governação. Um apocalipse lento. Em 2004, Sampaio cortou a direito e, fora da formatação dos media clássicos, os blogues desenhavam uma nova contracorrente da afirmação pública. Provavelmente, foi esse o esteio mais sadio e livre da década.
A segunda metade destes últimos dez anos trouxe até nós o hábito socrático. A "História" tornou-se repentinamente num dia-a-dia conhecido, a que não faltou a maioria absoluta de 2005 - em muito esculpida pela deserção de Durão e pelo animatógrafo de Santana - e a psicanálise tecnológica. Mas o "Subprime" e a crise dos mercados acabariam por fragilizar e fazer ruir o trabalho de casa desse governo (em 2007, o défice descera realmente abaixo dos 3%). Os muitos falsetes e sombras da personalidade de Sócrates (licenciatura, projectos, Freeport, etc.) contracenaram, de repente, com casos como os do BCP e BPN. À esquerda e à direita, passe a ligeireza do esquematismo, o dedo acusador cruzou direcções e sulcou destinos pouco saudáveis. Era a entrada em cena da fase em que estamos a viver e que é caracterizada pelo profundo "mau hálito político".
E assim chegámos, no ano passado, a um novo parlamento a clamar por equilíbrio num país que o havia, entretanto, perdido. De repente, aquilo que o caso Casa Pia significara para o pasmo dos portugueses passou a ser revestido pelo tom judicioso (e de alguma vingança mútua) das comissões de inquérito do nosso Parlamento. Ética, TVI e outros tópicos congregam hoje grande parte do que se diz e do que se fala. Tal como aconteceu em 2003-2004, regressámos agora às águas paradas dos novos casos Casa Pia e às governações liofilizadas que folgam - fazem questão disso! - em acompanhá-las. Será esta a nossa sina?
(hoje no Expresso)
terça-feira, 9 de março de 2010
Benfica: a marca, o mito e o mais
O Benfica é, em Portugal, muito mais do que um simples clube. E é-o, em muita medida também, fora de portas. Basta ter vivido uns anos fora do país para o compreender.
Sem que necessite de saudosismos ou de um ininterrupto apelo da história, a identidade do Benfica reactualiza-se no dia-a-dia de modo perene, mesmo durante os ciclos desportivamente menos rentáveis. Ao fim e ao cabo, o Benfica corresponde - como dirão os teóricos da publicidade e do "branding" - a um caso singularíssimo de marca, edificado entre o imaginário comunitário do "core" e a autenticidade do património. Um caso em que a marca e o mito confluem.
Creio que a especificidade deste factor dita um outro que acaba por marcar, de modo indelével, o desporto entre nós: em Portugal, existe o Benfica de um lado e, do outro lado, todos os outros clubes. Mesmo os outros grandes clubes. Esta é uma realidade muitas vezes metaforizada (ou parodiada) pela famosa galáxia dos "seis milhões". Mas as metáforas, até no campo dos provérbios e dos ditados populares, falam sempre verdade. Daí as fricções, os afectos, as emoções superlativas, as euforias e os muitos contrapontos que a marca e o mito Benfica inelutavelmente criam. No seu território e nos alheios.
Vejamos: o Sporting é um grande clube e o Porto um clube grande. O segundo mais circunscrito do que o primeiro. Sociologicamente, o SCP tem uma índole bem mais nacional do que o FCP, apesar de, nas últimas décadas, os sucessos desportivos terem sido mais azuis do que verdes.
Mas o que diferencia estes dois clubes do Benfica é que o Benfica, sendo um clube, não é, de facto, apenas um clube. Aliás o SCP e o FCP são - e foram sempre - os primeiros a confirmarem esse facto, mesmo durante os tempos em que o devir desportivo do Benfica não foi o melhor. E isso porque as identidades do SCP e do FCP, sobretudo deste último, se têm construído, ao longo dos anos, como referência ao Benfica. Uma referência essencialmente antinómica.
Pinto da Costa inventou, desde os anos setenta, esse registo que passa pela afirmação da identidade através de um discurso "Contra". Não uma afirmação genuína e positiva, mas antes a enunciação de um processo de crescimento feito a pensar no Benfica e nele obsessivamente referenciado. Também o SCP não tem conseguido, ao longo dos anos, dissociar-se do chamado princípio dos vasos comunicantes da Segunda Circular. Daí que as crises verde e brancas contenham sempre algo que poderíamos designar por 'imagem contrastante'. O discurso do cirurgião Eduardo Barroso é das melhores psicanálises a este respeito.
FCP e SCP sempre enfatizaram e valorizaram, a seu modo, o Benfica. E assim o fizeram e fazem, porque a realidade a tal os condiciona. Um pouco como a luta centenária da Pepsi contra a Coca.
O Benfica tem com o país um pacto profundo. Uma panóplia vastíssima de reconhecimento, uma dimensão - rara entre nós até pela escala - que une o pragmatismo da marca à transparência do mito. Para o melhor e para o pior assim é. Benfiquistas e não benfiquistas partilham esta espécie de "coração independente" a que apenas os artistas e os poetas - eventualmente - saberão dar forma.
(Hoje no Expresso)
segunda-feira, 8 de março de 2010
Marcelo conventual
Marcelo é um doce. Há anos e anos que tem a melhor comunicação à sua disposição. Há anos e anos que marca, em boa medida, o tempo político em Portugal.
Filomena Mónica tem toda a razão nesta 'Questão Marcelo'. Com efeito, mesmo para quem vive afastado da televisão, o "professor" é uma verdadeira ilha nas condicionadas e previsíveis verves da nossa praça.
Marcelo conhece a capoeira toda e, ainda que não seja totalmente livre, sabe que palavras suas a mais ou a menos não lhe causarão aquelas feridas que são próprias de um pequeno mundo onde tudo e todos se conhecem.
Há quem diga que o Marcelo segrega maldade com tons amenos de baunilha. Há quem diga que Marcelo concatena ideias e imagens com mais chama do que um processador Fujitsu.
E o que dizer da intensidade das suas leituras e das associações rápidas de nomes, atributos e notas? ~
as eleições para a liderança do PSD, há, neste momento, uma evidência geral: todos os três candidatos parecem integrar o argumento de O Homem Invisível. Não o original de H. G. Wells, mas um outro que possibilita que o público consiga ver, através da invisibilidade de Aguiar Branco, Passos Coelho e Rangel, o único protagonista real na eleição: Marcelo Rebelo de Sousa.
Se Marcelo avança ou não avança, ninguém sabe.
Ao longo desta semana, ir-se-á desvendar o clímax do novo argumento do O Homem Invisível. Jardim e Menezes - olha quem! - já anteviram uma parte significativa das filmagens. Mas a rodagem de um filme é sempre um caminho tortuoso e cheio de potenciais contratempos.
Marcelo é um doce. Um típico doce português, algo conventual. Há anos e anos que respira nas nossas casas. Há anos e anos que sopra a lenta fogueira da nossa labareda política. Há anos e anos que todos lhe auguram o altar maior do poder.
Mas ninguém se esquece que Marcelo conta já duas derrotas políticas de fundo no seu CV: já claudicou como líder do PSD e já claudicou como candidato à mais importante autarquia do país. A penumbra convive com a luz, mas também convive - e de que modo - com a sombra.
Hoje no Expresso
sábado, 6 de março de 2010
Sacralização do livro
A imprensa de ontem tratou com carinho da destruição em massa de livros. O caso surgiu associado a uma editora que não carece de publicidade. A ministra da cultura recorreu ao termo "massacre" para descrever a situação e um dos senadores do nosso espírito mais ou menos desprevenido, Manuel Alegre, confessou-se "triste". O cenário não deixa de ser patético. Com todo o respeito pelos estados de alma próprios e alheios.
O clímax ressoou nas quase mitológicas palavras de Gabriela Canavilhas, quando referiu que a "importância do livro ultrapassa a noção de mercadoria". É um facto que herdamos culturalmente uma visão sagrada do livro. A ministra terá, pois, toda a razão. Confessemo-lo.
Em Ezequiel (3,1), o profeta ingere um rolo escrito que é imune aos sentidos e à impureza dos humanos e recebe depois ordens para comunicar o sentido dessas letras junto à "Casa de Israel" (3,4). O Apocalipse canónico do Novo Testamento apresenta-se como o duplo terreno de um Livro celeste, recebido por João através de um anjo intermediário (Ap 5,1). Na variante islâmica, a revelação é traduzida pelo "Tanzíl" (5,52) que remete para a ideia de 'descida do céu' do Livro eterno e único (a raiz do verbo "descer" é precisamente /NZL/).
Enfim, uma mercadoria não tem alma mas o livro, esse, seguramente tem. Aliás, basta ir ao grande banco do estado para aferirmos dos resultados de uma recente campanha de recuperação de livros usados. Eles ali estão a dormir nos seus escaparates, entregues ao desinteresse e à impaciência dos clientes e aforradores, muitas vezes carregadinhos e pó e de irremediável solidão. Não era melhor fazer aquilo por que, hoje em dia, mais se clama que é... a reciclagem? Sim, ser-se íntimo das causas do ambiente. E ser-se, em primeiro lugar, racional.
Num mercado em que a produção de livro é a todos os títulos irracional, quase um livro por hora, o que se poderia esperar? Que as empresas se endividassem com milhares de metros quadrados de armazéns apenas por causa de Ezequiel, João ou Maomé? Creio que não. Quem tem uma empresa sabe o que significa a palavra despesa. O que acontece bem menos nos corredores do estado e sobretudo na arejada brisa das mentes que herdam, desde finais de setecentos, o impoluto selo de "intelectual".
As pessoas lêem se lhes apetece, quando precisam e se gostam. A liberdade vive por cima e nos antípodas das cinzas das inquisições. De qualquer modo, o consumo de livros é, hoje em dia, desproporcionado face aos níveis de leitura. Ao mercado cabe resolver os desajustes e irracionalidades por si criados. De paternalismo e 'descidas do céu' - sem força da gravidade a animar a parada - está o inferno cheio.
(hoje no Expresso)
sexta-feira, 5 de março de 2010
Variantes portuguesas do kitsch
Sempre que tento escutar o verbo e a linha política de Passos Coelho, há algo de anómalo que me atropela a compreensão. É que não consigo reter absolutamente nada.
Desde meados dos anos oitenta que retenho o que Kundera escreveu acerca do kitsch. Há coisas que a memória guarda, outras não. O primeiro de Maio soviético ou a música de fundo de um restaurante de luxo (suíço) eram exemplos romanescos que o autor dava para explicar essas simetrias açucaradas, onde tudo aparecia arrumadinho, sem pó, nem grandes distracções.
Um dia destes, vi um episódio do CSI Miami e não consegui deixar de estranhar a fisionomia das agentes policiais. E logo me lembrei de Kundera. São realmente esbeltas, bonitas e portadoras daquele appeal que é mais comum nas modelos pré-anoréxicas ou nas divas que não se entretêm em excesso com nicotina, coca e outros explosivos. De facto, as polícias e investigadoras do CSI Miami são umas ninfas dos mares dos trópicos, mas, convenhamos, totalmente irreais em qualquer esquadra do planeta.
Kundera tê-las-ia colocado de bandeira com foice e martelo na mão a atravessar as ditosas sombras do Kremlin. Kundera tê-las-ia colocado a levitar sob os estuques de um restaurante suíço de eleição, onde o sussurrar da sedução contracena com o langor de uns violinos em tons rosa.
Mas não se pense que este espectro perfectível e envernizado é coisa apenas de encenação revolucionária, de time out ou de filmes policiais. Não, nada disso. O nosso Sócrates adora esse ambiente de brilhos bem cerzidos. Desde que nos governa, há já cinco anos, que não esconde o seu amor por salas onde a penumbra se harmoniza com um power point, devidamente enquadrado com figurações tecnológicas e uma plateia sentadinha, silenciosa e sagaz na sua nata capacidade de escutar a voz - diz-se sedosa - do PM.
Kundera tê-lo-ia, muito provavelmente, sentado num dos Labs do CSI e teria colocado a bandeira vermelha na bandeja de um restaurante de Genebra para rever o sorriso do cordato comensal. Quem sabe? Saberá, talvez, Passos Coelho que parece enveredar pela mesma saga. Com efeito, sempre que tento escutar o verbo e a linha política de Passos Coelho, há algo de anómalo que me atropela a compreensão. É que não consigo reter absolutamente nada. De Rangel, ainda capto algo sobre educação e de Aguiar Branco ainda capto algo ligado à prosódica, ou seja, ao tom de voz. Mas em Passos Coelho o que se capta é essencialmente uma variante (talvez regional) do kitsch.
Trata-se de uma concordância em género e número entre a pose, o recorte da frase, o listar do casaco e o fio mais ou menos ritmado de cada período. É o que fica: uma disposição em que a imagem aparece sempre muito centrada, nada desfocada, sem perturbações ou redundâncias. Passos Coelho não tem os dotes oratórios de Nemésio, mas consegue, sem power points, tecnologias e verves sedosas, quase o mesmo efeito a que Sócrates sofisticadamente nos habituou. Quando Passos Coelho fala, a compreensão aloja-se num sótão vizinho, exila-se, dissipa-se. Fica à mostra apenas aquilo que Kundera mais gostaria de ter visto: o peso e a leveza apaixonados um pelo outro, anulando-se um ao outro, numa alquimia da qual não restaria mais nada. Nadinha.
(hoje no Expresso)
quinta-feira, 4 de março de 2010
O futebol e a nação das quinas
Quando era criança, era comum ler ou ouvir dizer "Tudo pela Nação". O pregão era levado muito a sério. O que eu, na altura, não sabia é que o conceito - de Nação - vinha do século XVIII e tinha traduzido, de início, a alma vivida por uma comunidade e reflectida na língua, nas tradições e sobretudo numa espécie de voz partilhada de modo quase místico. Certos apaniguados de Salazar, ele nem tanto, adoravam encenar um certo misticismo milenar. Como se Portugal fosse a esperança do mundo.
Na segunda metade do século XX a cultura foi-se emancipando da era das civilizações e a Nação foi sendo silenciada ou referida com novos sentidos bem mais prosaicos. O 25 de Abril redescobriu por cá a República - porventura de modo excessivo, quando o que necessitámos era de democracia e liberdade - e quase remeteu a Nação (bem menos o atributo "nacional") a epíteto reaccionário. Recentemente, o ciclone global gerou novas tensões e a Nação, já tão desmobilizada e desacreditada, passou a reaparecer em actividades que simulam a épica sem o ser. É o caso do futebol.
A nossa senhora de Scolari e a euforia verde e vermelha de 2004 corresponderam a um novo tipo de Nação: um frémito colectivo sem grandes precedentes, ou tão-só uma espécie de uníssono expressionista pronto a ser galvanizado pelos fantasmas da bola. Pouco depois do 11 de Setembro, acreditou-se, de facto, em terras lusitanas, na Renascença de Scolari e na sua novíssima Nação como alternativas possíveis ao desaire (o pântano guterrista, a Casa Pia, a fuga de Durão, a epifania Santana Lopes, os eufemismos da justiça e os muitos casos Sócrates). O fenómeno floresceu até acabar, como tudo na vida, por esvaziar.
O jogo de ontem contra a China foi a grande prova disso mesmo. O público deleitou-se a assobiar a "Nação das Quinas", enquanto ia gritando "Olés" aos tímidos avanços da grande fábrica do mundo. Ainda por cima com duas grandes penalidades que ficaram por marcar. O carisma salvífico de Queiroz, mais propício a lances de aeroporto do que a ecos proféticos à Frederico Barbarossa, dissolveu-se no frio coimbrão. E nesse esvair dos heróis, a bola parecia um meteorito perdido e sem direcção. Um verdadeiro peso.
Confesso que raramente vibrei com a selecção "nacional". Talvez por isso tenha achado graça, ontem, à Questão Coimbrã.
(hoje no Expresso)
quarta-feira, 3 de março de 2010
Christopher Hitchens e o Oceano Atlântico
Vivemos ao sabor da contingência. Se Christopher Hitchens não tivesse estado em Portugal, não teríamos falado de ateísmo. Trata-se de um procedimento mais geral e bem português: somos anfitriões com dons especulares. E, neste caso, a primeira pessoa do plural apenas refere uma mão cheia de pessoas, porque as demais têm mais que fazer a atravessar a ponte, a ir ao hiper ou a atrair a si um oceano qualquer de calorias.
Mas o ateísmo tem que se lhe diga, porque postula um mundo sem deus (ou sem deuses), quando deus (ou os deuses) corresponde a uma das imagens fulcrais com que o homem soube, um dia, traduzir a sua experiência, os seus medos - como tão bem explicou Blumenberg - a sua inquietação e sobretudo o fruto da sua impotência no planeta. É fácil ser saramaguês (a expressão é literária e tem origem em Eugénio Lisboa) e profundamente matérico e repetir o que os semióticos soletram de cátedra, ou seja: que tudo o que se passa na crença dos humanos é fruto da cultura que incorporam e das imagens que, ao longo do tempo, nela se acamam.
Somos falados através de imagens, ritos, ruminações e repetições prosaicas. Mais do que falar, somos falados - e pensados - através de linguagens e mil e uma regras, a maior parte delas voláteis e pouco eficazes (tal como a miríade de imagens que compõe o "proto-si", explicado por Damásio em O Sentimento de Si).
O ser humano habita uma espécie de voz passiva, pretensamente amiga do ambiente (das leis da natureza), mas propensa a equívocos e a solavancos do espírito. Negar deus (ou os deuses) é o mesmo que negar o Oceano Atlântico: ele está lá, no flagrante do olhar de cada um de nós, Tal como está deus (ou os deuses) na impiedosa sucessão de marés vivas com que sempre catapultou o olhar profundo dos humanos. Confesso-o eu que nem sou crente.
Hoje no Expresso
terça-feira, 2 de março de 2010
Accionistas da nossa preguiça?
Daniel Oliveira , com o generoso empenho que se lhe conhece de querer desinflamar os males do mundo através de uma justiça quase pura e sem remoques, tem tendência a criar um adversário que simboliza a fonte de todos os males e um conjunto tácito de razões que explicam os aromas do inferno. Nada de mal neste modo de criar diagnósticos. A melhor ficção passeia-se por oposições fixas, guerras entre mundos antagónicos, efabulações carregadas de névoa e redenção. Nada a dizer, pois então.
No seu mais recente texto "Segurança é desemprego, trabalhador é explorador", Daniel Oliveira refere um estudo da OCDE que aponta Portugal como "o país com menor mobilidade social" e conclui, no final do segundo parágrafo, que, segundo os maus da fita ("os nossos liberais de algibeira"), o facto se fica a dever à "sobrevivência de alguns trabalhadores "privilegiados" que ainda têm direitos". Como se em Portugal existisse uma tentação liberal com poder, importância e tradição e como se alguém desejasse com afinco, determinação e sentido último de vida retirar os direitos a quem trabalha.
Não creio que esta fasquia pressuponha um critério sereno (o adjectivo é cordato!). Pressuporá um ambiente manifestatário e alegórico, cheio de curiosos "hossanas" ao norte da Europa (hoje uma sombra do que era, quando vivi na Holanda... nos anos oitenta) e de 'unhas de fora' face a tudo o que seja anglo-saxónico. O sul da Europa, coitado, esse, cheio de maus exemplos, é que estraga tudo. E se ligarmos a Grécia a Portugal a coisa dá choque. De qualquer modo, à parte alguns esquematismos, creio que a falta de mobilidade é muito mais uma questão "cultural" (explicação francesa, dir-se-á) que se poderia sintetizar através do facto de termos sempre sido (secularmente) accionistas da nossa própria preguiça e da nossa falta de iniciativa.
Explico melhor: para um bom português, interessa muito menos o risco de criar uma pequena empresa que proponha um serviço inovador e útil (só criei a minha depois dos cinquenta anos...) do que tentar entrar - através de uma suave e ancestral 'dança com lobos' - em algum lado que "dê segurança" (numa repartição, num politécnico, numa câmara municipal ou num esquema familiarmente assistido). Modos de sobrevivência particularmente estáveis que tanto valem para a filha de um ministro (o que disse eu?) como para o mais incauto morador da Madragoa ou do concelho de Góis. Era verdadeiro o axioma de Vico que referia, na sua Scienza Nuova de 1725, terem as "ideias uniformes, nascidas entre povos que não se conhecem, um fundo comum de verdade".
segunda-feira, 1 de março de 2010
Jardim vs. jardins
Todos sabemos que a catarse das antigas tragédias gregas corresponde hoje à função dos media, do mesmo modo que o discurso épico corresponde hoje à função dos discursos persuasivos, seja o publicitário, o das omnipresentes RPs e sobretudo os registos políticos do poder. Ora, quando vemos lado a lado Jardim e Sócrates, o que estamos a ver é o súbito casamento entre estes dois universos aparentemente irreconciliáveis. Um abismo que apenas se tornou possível, devido ao modo como a tragédia da natureza (sem coro nem libertação) acabou por atrair o 'ter que ser' sorridente da reconstrução. Da avassaladora torrente de lama à quase utópica Festa da Flor; da noite em que as ruas do Funchal conheceram o inferno às asas de anjo agora partilhadas por Sócrates e Jardim. Quem diria? Qualquer mortal, desde que não banhado pela ilusão que hoje constrói, de lés a lés, a própria natureza do mundo em que vivemos.
Corrente
Atmosfera quente na Póvoa. O calor de Inverno, temperado pela ameaça iminente de temporal. Nesta maresia de afectos se reencontram escritores há onze anos. Outros há menos tempo. Pelos corredores e passos perdidos passeiam-se jornalistas, editores, farejadores e olheiros da coisa literária. Diz que disse, ambiente cordial, conhecimentos rápidos. Um tempo quase fora do tempo. Bastante público, muitos lançamentos, alardes sigilosos. As mesas herdaram o prazer da palavra. E a névoa do que não se disse invadiu outras constelações. Por isso, houve – e há – sempre muito bar, muita confissão e muita noite. Elevadores de sonho. Foi assim na minha fugaz passagem pelo Corrente d´Escritas.
ee
P.S. - Já tenho um blogue com entrevistas (sobretudo) acerca de escrita criativa: aqui.
sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010
A cultura da alarvice papal
O segundo golo do FCP contra o Arsenal, na passada quarta-feira, dia 17 de Fevereiro, é a imagem nítida do estilo que, décadas após décadas, se foi desenvolvendo no clube. Não é apenas uma questão do clube, nem da inocência do árbitro que – circunstancialmente – validou a jogada (Wenger, na altura, foi civilizado e limitou-se a dizer que a cena foi “risível”). O lance implica a esperteza, o ‘ver-se-dá’, a tentação do truquezinho, ou seja: uma espécie de ‘vale tudo’ que funciona como tufão sempre a tentar escapar às regras (sejam elas quais forem: éticas ou as outras). Nem sempre bate certo, mas, dentro das nossas cândidas fronteiras, tem dado um resultadão. Há várias décadas. E o curioso é que há empresas, políticos populistas e até alguns media que adoram este tipo de alarvice papal. É uma parte do nosso país a carburar no seu melhor.
segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010
Um cenário lavado
Luís Amado é uma boa solução. Qualquer alma equilibrada o imaginará, mesmo antes de saber do jantar pré-carnavalesco que envolveu o presidenciável Gama, o próprio Amado e o ministro das finanças, Teixeira dos Santos. Todos os calendários e todo o juízo do mundo aconselham à não realização de eleições. Sócrates, ao sair, levará consigo várias imagens. Dar-nos-á, portanto, a imagem de uma procissão com outros santos, com outros andores, com outras preces e com outras promessas. Dar-nos-á quase uma nova religião, numa palavra. O cenário ficará subitamente lavado. Amado tem silhueta de príncipe discreto e pouco terá que mexer na composição do governo. Trata-se de manter um bom técnico nas finanças – é o topo a que Teixeira dos Santos pode aspirar – e de cortar os vestígios da “calhandrice” (os nomes têm algo de comum: Silva Pereira e Augusto Santos Silva). Trata-se de desligar as conexões e os holofotes virados para jornalistas conhecidos, para Alcochete e para a intriga das escutas. Trata-se de repor a palavra liberdade que o velho PS anunciava em 1974. Trata-se de pôr em marcha o PEC. E trata-se sobretudo de respirar fundo e de tentar falar para além do horizonte da perpétua crise. Não é, pois, preciso qualquer moção de censura; o que é preciso é cortar a direito o cenário do circo a que se chegou. A solução parece óbvia. E razoável.
sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010
Evolucionismo resolve!
e
O excesso de linguagem romântica - mesmo quando se diz o que não se pode dizer - tem afinal raízes em Darwin. As "pressões evolucionistas" que estão por trás das nossas perdições são as mesmas que fazem desta fotografia um leque de cores a que não se consegue, para o bem ou para o mal, ser indiferente. Um pouco como o (esgotado) Sol de hoje.
quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010
Liberdade
É sempre sadio sair à rua para afirmar a liberdade. Sobretudo se o objecto é apenas a liberdade e nenhum desses redundantes acenos instrumentais que tornam a mais importante palavra do mundo em pura banalização. Parece ser o que hoje está em causa. Mesmo que surja em cena apenas um único manifestante.
A ruptura
A ruptura é uma palavra larga. Nela cabe tudo e por vezes nada. Que espaços há hoje para uma ruptura? Sim, a entrada na Europa, para quem se lembra do que era Portugal antes da Europa, foi uma ruptura. Mas o país continua a ser quase o mesmo, apesar dessa ruptura. O estadão não é, nem nunca foi uma invenção para expulsar o liberalismo das nossas costas. O estadão é o próprio país. Os portugueses sempre foram accionistas da sua pouca liberdade. E quem saiu do baralho nunca augurou, para si, nada de bom. Seja como for, a ruptura de Rangel é uma ruptura que acontece num texto. Um texto é sempre um episódio largo. Nele tudo se pode evocar. Até o negativo de um país. Ou um simples baralho de cartas desalinhado.
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010
Escutas de sempre
O problema é antigo. E aparece num célebre diálogo do Filebo:
e
“SÓCRATES — E, entre as virtudes, não é à sabedoria que a multidão se agarra de qualquer maneira e por isso se enche de querelas e de ilusões sobre as suas luzes?
PROTARCO — É incontestável.
SÓCRATES — Se chamarmos a este estado de alma um mal, a expressão será justa.
PROTARCO — Muito justa.”
e
A prosápia que tem a sua origem na ilusão (ou até na certeza) de algo que se julga ser ou deter desencadeia sempre, nos destinatários, um misto que é aceite como um jogo sem fim. Um jogo de onde a verdade e a não verdade se ausentam. Porque um jogo é isso mesmo: uma contenda baseada num diz que diz que disfarça, mas não oculta. Todos sabemos que o que se diz nas escutas tem verdade. Mas é sempre possível que essa verdade possa ser apresentada como o corpo da namorada do nosso melhor amigo: ou seja ‘aquilo’ para onde não se pode olhar. E ficamos a sorrir como o arcebispo a quem falaríamos dos lucros da paróquia.
e
“SÓCRATES — E, entre as virtudes, não é à sabedoria que a multidão se agarra de qualquer maneira e por isso se enche de querelas e de ilusões sobre as suas luzes?
PROTARCO — É incontestável.
SÓCRATES — Se chamarmos a este estado de alma um mal, a expressão será justa.
PROTARCO — Muito justa.”
e
A prosápia que tem a sua origem na ilusão (ou até na certeza) de algo que se julga ser ou deter desencadeia sempre, nos destinatários, um misto que é aceite como um jogo sem fim. Um jogo de onde a verdade e a não verdade se ausentam. Porque um jogo é isso mesmo: uma contenda baseada num diz que diz que disfarça, mas não oculta. Todos sabemos que o que se diz nas escutas tem verdade. Mas é sempre possível que essa verdade possa ser apresentada como o corpo da namorada do nosso melhor amigo: ou seja ‘aquilo’ para onde não se pode olhar. E ficamos a sorrir como o arcebispo a quem falaríamos dos lucros da paróquia.
quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010
Repto aos nossos jornalistas
O editor de ciência da Folha de S. Paulo e um repórter do mesmo jornal decidiram criar uma igreja. Fé? Não, nada disso. O objectivo dos jornalistas nada teve que ver com predilecções proféticas, nem como fragilidades existenciais, muito menos com pagamento de promessas. Não, o que Cláudio Ângelo e Rafael Garcia quiseram questionar, ao criar a sua própria igreja (designada “Igreja Heliocêntrica do Sagrado EvangÉlio” – assim mesmo), foi a razoabilidade da isenção de impostos às igrejas e o sentido da existência de “tantas regalias a grupos religiosos”.
É de salientar a grande facilidade com que uma ‘manobra’ destas pode ser realizada no Brasil. Burocracias à parte, é um facto que a lei não coloca condições de ordem teológica, nem tão-pouco exige a prova de um dado número mínimo de fiéis. De qualquer modo, com o registo da novíssima igreja, os jornalistas da Folha ficaram livres de um inusitado número de “Is” – para utilizar a económica expressão de Hélio Schwartsman (IR, IOF, IPVA, IPTU, ISS, ITR, etc.) – e os seus sacerdotes, logo que “ungidos”, se alguma vez o forem, ficarão automaticamente livres do serviço militar e sujeitos a requisitos penais especiais.
Em Portugal, a regulamentação da Concordata que data de 2004 parece (o verbo adequa-se) ter terminado com a isenção generalizada de impostos e de segurança social. De qualquer modo, o Artigo 26 (nº 3) da Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa fixa algumas isenções (imposto de selo, impostos sobre a transmissão de alguns bens, actos de instituição de fundações ou ainda, entre outras, actividades de solidariedade social e educação).
Já o artigo 27, na sua ambiguidade críptica, refere (no nº 1) que a “Conferência Episcopal Portuguesa pode exercer o direito de incluir a Igreja Católica no sistema de percepção de receitas fiscais previsto no direito português”, especificando-se, na continuação (no nº 2), que a “inclusão da Igreja Católica no sistema referido no número anterior pode ser objecto de acordo entre os competentes órgãos da República e as autoridades eclesiásticas competentes”.
Nada me move contra a igreja, como é evidente. A liberdade deve comandar o barco do novo século. Acima de todos os valores. Vai mesmo ser muito curioso ver as comemorações da República a falarem dos receituários de ouro, da ética maior e das ‘nobres’ ideias, porventura obliterando aquilo que foi o apanágio menor – ou mesmo rarefeito – do sistema: a liberdade.
Contudo, não deixa de ser curioso como, entre a abertura infinita à isenção, caso do Brasil, e a enigmática ‘quadratura do círculo’ tão habitual na Lusitânia, a fiscalidade se torna, deste modo, em tema tabu. Ou quase. Entendendo-se por tabu tudo aquilo que carece de explicação ou de sentido e que, por isso mesmo, é, por natureza, dir-se-á, avesso à inquirição, à pesquisa e à definição. É tabu o que vale por si próprio sem regra que o possa descrever, decifrar ou tecer. E sem que dele se deva falar.
É como se as religiões navegassem num mundo para além do ‘vil metal’, embora nele se funde muito do que alimenta as múltiplas actividades que levam a cabo. Acredito que uma aventura, como a de Cláudio Ângelo e Rafael Garcia, mas agora protagonizada, entre nós, por dois jornalistas do Expresso teria outros efeitos. Com toda a certeza interessantes. Fica o repto. Até porque é nos interstícios do sistema que ele melhor nos ilumina.
Fontes:
Folha:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/helioschwartsman/ult510u660688.shtml
Concordata:
http://www.agencia.ecclesia.pt/cgi-bin/noticia.pl?id=8896
É de salientar a grande facilidade com que uma ‘manobra’ destas pode ser realizada no Brasil. Burocracias à parte, é um facto que a lei não coloca condições de ordem teológica, nem tão-pouco exige a prova de um dado número mínimo de fiéis. De qualquer modo, com o registo da novíssima igreja, os jornalistas da Folha ficaram livres de um inusitado número de “Is” – para utilizar a económica expressão de Hélio Schwartsman (IR, IOF, IPVA, IPTU, ISS, ITR, etc.) – e os seus sacerdotes, logo que “ungidos”, se alguma vez o forem, ficarão automaticamente livres do serviço militar e sujeitos a requisitos penais especiais.
Em Portugal, a regulamentação da Concordata que data de 2004 parece (o verbo adequa-se) ter terminado com a isenção generalizada de impostos e de segurança social. De qualquer modo, o Artigo 26 (nº 3) da Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa fixa algumas isenções (imposto de selo, impostos sobre a transmissão de alguns bens, actos de instituição de fundações ou ainda, entre outras, actividades de solidariedade social e educação).
Já o artigo 27, na sua ambiguidade críptica, refere (no nº 1) que a “Conferência Episcopal Portuguesa pode exercer o direito de incluir a Igreja Católica no sistema de percepção de receitas fiscais previsto no direito português”, especificando-se, na continuação (no nº 2), que a “inclusão da Igreja Católica no sistema referido no número anterior pode ser objecto de acordo entre os competentes órgãos da República e as autoridades eclesiásticas competentes”.
Nada me move contra a igreja, como é evidente. A liberdade deve comandar o barco do novo século. Acima de todos os valores. Vai mesmo ser muito curioso ver as comemorações da República a falarem dos receituários de ouro, da ética maior e das ‘nobres’ ideias, porventura obliterando aquilo que foi o apanágio menor – ou mesmo rarefeito – do sistema: a liberdade.
Contudo, não deixa de ser curioso como, entre a abertura infinita à isenção, caso do Brasil, e a enigmática ‘quadratura do círculo’ tão habitual na Lusitânia, a fiscalidade se torna, deste modo, em tema tabu. Ou quase. Entendendo-se por tabu tudo aquilo que carece de explicação ou de sentido e que, por isso mesmo, é, por natureza, dir-se-á, avesso à inquirição, à pesquisa e à definição. É tabu o que vale por si próprio sem regra que o possa descrever, decifrar ou tecer. E sem que dele se deva falar.
É como se as religiões navegassem num mundo para além do ‘vil metal’, embora nele se funde muito do que alimenta as múltiplas actividades que levam a cabo. Acredito que uma aventura, como a de Cláudio Ângelo e Rafael Garcia, mas agora protagonizada, entre nós, por dois jornalistas do Expresso teria outros efeitos. Com toda a certeza interessantes. Fica o repto. Até porque é nos interstícios do sistema que ele melhor nos ilumina.
Fontes:
Folha:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/helioschwartsman/ult510u660688.shtml
Concordata:
http://www.agencia.ecclesia.pt/cgi-bin/noticia.pl?id=8896
segunda-feira, 25 de janeiro de 2010
O Isaías de Hemingway
Nunca entendi bem por que razão deu Hemingway o título “O Jardim do Éden” ao romance em que o escritor David Bourne contracena com a sua mulher Catherine e, a partir dos dois últimos terços do livro, com Mirita – a morena baixinha que “tinha o rosto brilhante e com boas cores”.
O “Livro Um” de O Jardim do Éden é passado num pequeno hotel de Le Grau du Roi, junto à respiração de Aigues Mortes na Camarga. O episódio que quase serve de ‘incipit’ alegórico à obra coloca em cena o jovem David a pescar um peixe quase maior que ele para gáudio de toda a terra de marinheiros e peixeiras. O “Livro Dois” conduz o aventuroso enredo para o Atlântico húmido de Hendaia e daí para uma breve incursão a Madrid. Todo a restante intriga – e os seus abismos finais – irradiam a partir da casa cor-de-rosa estilo provençal de La Napoule, a pouca distância de Cannes e Nice. O mar e as praias vazias acabam por fazer jus ao início do livro, embora a tranquilidade quase idílica da abertura acabe por contrastar com os “demónios” que se revelam – e de que maneira – no final.
O Éden estará sobretudo nos personagens figurados da obra e não nos que nela desfilam em carne e osso. Seja carrossel de bebidas que convida o leitor à ininterrupta saga dos mil sabores e odores – Valdepeñas, martinis, uísques, Haig Pinch, Fine à l´eau, absinto, Tio Pepe, Maquereau Vin Blanc, sem esquecer a Perrier Jouet; seja a permanente massa líquida do mar que contribui metaforicamente para que a trama instigue o leitor a um estado de iniciação sem fim. Ora leia-se: “Olhou para o mar e para as nuvens altas e reparou que os barcos de pesca se dirigiam lá longe para Oeste. Depois olhou para a rapariga, que dormia sobre a areia, que já estava seca e começava a levantar-se levemente devido ao vento” (LI,2). Este teor marítimo entretece um ininterrupto ‘pas de deux’ com as navegações do corpo: “Abraçou-a e as ondas levaram-nos./ Beijaram-se e ele disse: /– Tudo de nós foi levado pelo mar./– Temos de voltar. /– Vamos mergulhar mais uma vez abraçados” (LIII,16).
Os abismos da célebre história de Hemingway prendem-se com os dons da intimidade de David e Catherine e, num segundo momento, embora sempre a bordo de um limbo tão incerto quanto cordato, com o terceiro nó do triângulo amoroso: Marita. Mas há um abismo último, quase magnético, que marca o desenlace deste romance. Tudo se passa quando Catherine queima os manuscritos e os recortes de crítica dos livros de David Bourne. Nessa altura, o protagonista quase perde o seu apelo lúdico. A imagem do precipício dá o tom a esta parte final da obra: “(David) sentia-se completamente vazio. Era como ter dado uma curva numa estrada de montanha e depois a estrada desaparecer e só lá estar um precipício”. No capítulo seguinte, a ‘voz da consciência’ de David parece subitamente lógica e crua: “Tens três hipóteses. Tenta lembrar-te do que desapareceu e escrevê-lo de novo. Outra hipótese é escreveres uma nova. E a terceira é continuares com o raio da narrativa.”
No capítulo XXX do Livro IV, a última destas três soluções – reforçada por alguma dose revelatória – acabará por dar sentido ao título do livro. Mas apenas se se partir do princípio que a guerra criativa é uma ‘coisa’ que coincide – saiba-se lá por que artes mágicas – com o paraíso. Leiamos esta parte final que é francamente significativa da conclusão adoptada por Hemingway: “David escrevia com firmeza e as frases que construíra antes apareceram-lhe à frente inteiras e completas, e escreveu-as, corrigindo-as e cortando-as como se estivesse a fazer uma correcção de provas. Não faltava nem uma frase e havia muitas que ele escrevia sem alterar, tal como lhe ocorriam”.
Nem Isaías – se alguma vezs tivesse existido – teria feito melhor!
O “Livro Um” de O Jardim do Éden é passado num pequeno hotel de Le Grau du Roi, junto à respiração de Aigues Mortes na Camarga. O episódio que quase serve de ‘incipit’ alegórico à obra coloca em cena o jovem David a pescar um peixe quase maior que ele para gáudio de toda a terra de marinheiros e peixeiras. O “Livro Dois” conduz o aventuroso enredo para o Atlântico húmido de Hendaia e daí para uma breve incursão a Madrid. Todo a restante intriga – e os seus abismos finais – irradiam a partir da casa cor-de-rosa estilo provençal de La Napoule, a pouca distância de Cannes e Nice. O mar e as praias vazias acabam por fazer jus ao início do livro, embora a tranquilidade quase idílica da abertura acabe por contrastar com os “demónios” que se revelam – e de que maneira – no final.
O Éden estará sobretudo nos personagens figurados da obra e não nos que nela desfilam em carne e osso. Seja carrossel de bebidas que convida o leitor à ininterrupta saga dos mil sabores e odores – Valdepeñas, martinis, uísques, Haig Pinch, Fine à l´eau, absinto, Tio Pepe, Maquereau Vin Blanc, sem esquecer a Perrier Jouet; seja a permanente massa líquida do mar que contribui metaforicamente para que a trama instigue o leitor a um estado de iniciação sem fim. Ora leia-se: “Olhou para o mar e para as nuvens altas e reparou que os barcos de pesca se dirigiam lá longe para Oeste. Depois olhou para a rapariga, que dormia sobre a areia, que já estava seca e começava a levantar-se levemente devido ao vento” (LI,2). Este teor marítimo entretece um ininterrupto ‘pas de deux’ com as navegações do corpo: “Abraçou-a e as ondas levaram-nos./ Beijaram-se e ele disse: /– Tudo de nós foi levado pelo mar./– Temos de voltar. /– Vamos mergulhar mais uma vez abraçados” (LIII,16).
Os abismos da célebre história de Hemingway prendem-se com os dons da intimidade de David e Catherine e, num segundo momento, embora sempre a bordo de um limbo tão incerto quanto cordato, com o terceiro nó do triângulo amoroso: Marita. Mas há um abismo último, quase magnético, que marca o desenlace deste romance. Tudo se passa quando Catherine queima os manuscritos e os recortes de crítica dos livros de David Bourne. Nessa altura, o protagonista quase perde o seu apelo lúdico. A imagem do precipício dá o tom a esta parte final da obra: “(David) sentia-se completamente vazio. Era como ter dado uma curva numa estrada de montanha e depois a estrada desaparecer e só lá estar um precipício”. No capítulo seguinte, a ‘voz da consciência’ de David parece subitamente lógica e crua: “Tens três hipóteses. Tenta lembrar-te do que desapareceu e escrevê-lo de novo. Outra hipótese é escreveres uma nova. E a terceira é continuares com o raio da narrativa.”
No capítulo XXX do Livro IV, a última destas três soluções – reforçada por alguma dose revelatória – acabará por dar sentido ao título do livro. Mas apenas se se partir do princípio que a guerra criativa é uma ‘coisa’ que coincide – saiba-se lá por que artes mágicas – com o paraíso. Leiamos esta parte final que é francamente significativa da conclusão adoptada por Hemingway: “David escrevia com firmeza e as frases que construíra antes apareceram-lhe à frente inteiras e completas, e escreveu-as, corrigindo-as e cortando-as como se estivesse a fazer uma correcção de provas. Não faltava nem uma frase e havia muitas que ele escrevia sem alterar, tal como lhe ocorriam”.
Nem Isaías – se alguma vezs tivesse existido – teria feito melhor!
domingo, 24 de janeiro de 2010
As três dimensões de Stendhal
Numa carta de Lawrence Durrel a Henry Miller, escrita em Belgrado, no mês de Janeiro de 1950 – faz agora precisamente sessenta anos –, Stendhal surgia como o prenúncio maior de uma desejada depuração narrativa: “Nos últimos dias tenho lido bastante Stendhal, cada vez mais convencido de que nas sua grandes novelas ele lançou os fundamentos lineares da ficção para os cinquenta anos que se lhe seguiram. O poder de criar uma personagem de três dimensões numa única frase e de deixar depois a acção revelar a personagem sem mais intervenções do autor”*. A citação parece ter sido feita de propósito para um curtíssimo conto de Truman Capote que, aliás, dá nome a um conhecido volume de contos – A Árvore da noite.
O conto de apenas treze páginas – a edição portuguesa** é, de facto, pitagoricamente metafórica – coloca na carruagem de um comboio (que tinha “assentos de pelúcia encarnada, coçada em parte, e madeiras cor de tinta de iodo”) uma jovem rapariga univesitária que regressa do funeral do tio. Passando pelo meio da multidão que enche de ponta a ponta a carruagem, Kay acaba por sentar-se em frente de um casal que ganha a vida a simular um ininterrupto funeral: ele, um surdo-mudo “com olhos de um azul sombrio”, metia-se num caixão de vidro e depois, perante o choro da assistência, ficava uma hora debaixo da terra (“uma coisa linda, com estrelas de prata pintadas na tampa” do esquife); ela, de pernas curtas e roliças e “chapéu com flores de silicone”, cantava os hinos apropriados, fazia o sermão e recolhia, claro está, o dinheiro do público… sedento de patética desgraça.
O conto, na sua economia radical, adequa-se às mil maravilhas ao princípio de autonomia descritiva evocado por Lawrence Durrel. A rapariga – de nome Kay –, a mulher e o homem surgem, com efeito, na brevíssima história, com a tridimensionalidade viva que parece suscitar uma narrativa sem fim e para a qual a conjectura do leitor projectará sempre novos desafios e possibilidades de intriga. Aliás, o final sublinha este poder de um baixo-relevo dinâmico que parece querer sugerir, por si só, toda uma bizarra mitografia: “E enquanto Kay o observava (ao homem), o rosto dele pareceu transbordar-se e recuar diante dela como uma rocha que desliza, redonda, para o mar. Envolveu-a toda uma lassidão suave, de que mal tinha consciência, quando a mulher lhe retirou a mala do braço e, amavelmente, lhe colocou o impermeável, tal uma mortalha, por cima da cabeça”.
Há mundos, na literatura, para os quais a realidade é um simulacro realmente menor.
*Daniel Gongalves (Org. e tradução), Lawrence Durrel – Henry Miller – Correspondência, Ulisseia, Lisboa, 1965, p. 289.
**Truman Capote, A Árvore da noite em A Árvore da noite, Livros do Brasil, Lisboa, s/d, pp.157-170 (tradução de Cabral do Nascimento).
O conto de apenas treze páginas – a edição portuguesa** é, de facto, pitagoricamente metafórica – coloca na carruagem de um comboio (que tinha “assentos de pelúcia encarnada, coçada em parte, e madeiras cor de tinta de iodo”) uma jovem rapariga univesitária que regressa do funeral do tio. Passando pelo meio da multidão que enche de ponta a ponta a carruagem, Kay acaba por sentar-se em frente de um casal que ganha a vida a simular um ininterrupto funeral: ele, um surdo-mudo “com olhos de um azul sombrio”, metia-se num caixão de vidro e depois, perante o choro da assistência, ficava uma hora debaixo da terra (“uma coisa linda, com estrelas de prata pintadas na tampa” do esquife); ela, de pernas curtas e roliças e “chapéu com flores de silicone”, cantava os hinos apropriados, fazia o sermão e recolhia, claro está, o dinheiro do público… sedento de patética desgraça.
O conto, na sua economia radical, adequa-se às mil maravilhas ao princípio de autonomia descritiva evocado por Lawrence Durrel. A rapariga – de nome Kay –, a mulher e o homem surgem, com efeito, na brevíssima história, com a tridimensionalidade viva que parece suscitar uma narrativa sem fim e para a qual a conjectura do leitor projectará sempre novos desafios e possibilidades de intriga. Aliás, o final sublinha este poder de um baixo-relevo dinâmico que parece querer sugerir, por si só, toda uma bizarra mitografia: “E enquanto Kay o observava (ao homem), o rosto dele pareceu transbordar-se e recuar diante dela como uma rocha que desliza, redonda, para o mar. Envolveu-a toda uma lassidão suave, de que mal tinha consciência, quando a mulher lhe retirou a mala do braço e, amavelmente, lhe colocou o impermeável, tal uma mortalha, por cima da cabeça”.
Há mundos, na literatura, para os quais a realidade é um simulacro realmente menor.
*Daniel Gongalves (Org. e tradução), Lawrence Durrel – Henry Miller – Correspondência, Ulisseia, Lisboa, 1965, p. 289.
**Truman Capote, A Árvore da noite em A Árvore da noite, Livros do Brasil, Lisboa, s/d, pp.157-170 (tradução de Cabral do Nascimento).
A literatura e o genou de Claire
Um homem vê uma mulher na igreja. Esse olhar excede a intensidade da neve de Clermont-Ferrand. Passará uma noite em casa dessa mulher, que se chama Maud, e o universo por ambos tacteado bastar-se-á ao peso da palavra. Um corpo chamado palavra. Antes, no mesmo filme, o protagonista – um católico que desafia a matemática e a revelação possível do ateísmo – discute com um marxista num café. Falam de Pascal, de probabilidades, de si próprios: rostos a preto e branco, poses deíficas, brilhos discretos. E fazem-no, com elegância, a bordo de uma imagem que existe, apenas porque o aparecer da palavra a vai gerando. É neste milagre que reside o génio de Rohmer, desaparecido há precisamente uma semana: desfiar o novelo de perguntas em torno da tentação imobilizadora da imagem que não é capaz de parar, apenas porque gira, porque é, ela mesma, uma imagem.
No cinema de Rohmer, a literatura aparece quase em estado puro. Como um glaciar sem nome. Se é que isso existe. Aparecerá, de certeza, fora de si mesma, como se o realizador tivesse descoberto o espelho perfeito que tornaria a literatura numa espécie de inofensiva Eurídice. Longe do mito, do sagrado, e, portanto, capaz de discorrer – cara a cara – com os muitos Orfeus que narrariam fábulas ou cantariam hinos prosaicos nas quatro estações de cada ano. Mas sobretudo no Inferno frio de Clermont-Ferrand.
É um facto que Rohmer colocou a força da palavra na essência e na textura de todas as suas obras. A intriga nunca passou, nos seus filmes, de um breve pretexto sempre pronto a encarnar o encadeamento do discurso, as metáforas e a perenidade possível do amor – ainda que platónico, iniciático ou inquiridor.
Não é por acaso que este “selvagem solitário” foi professor de literatura antes de se entregar à crítica cinematográfica (escreveu sobre obras de Hawks, Rossellini ou Renoir). Foi redactor da Gazette du cinéma e, entre 1957 e 1963, dos famosos Cahiers du cinéma. Fez estudos académicos sobre o expressionismo alemão, com ênfase para a ideia de espaço no Fausto de Murnau, e foi sempre um grande admirador de Alfred Hitchcock (chegou a assinar com Chabrol um livro sobre o realizador).
Le signe du Lion (1959) foi o seu primeiro filme, mas as mais emblemáticas obras de Rohmer apareceriam mais tarde. Foi o caso, sobretudo, de Ma nuit chez Maud, de 1969, e do mágico Le genou de Claire, do ano seguinte. Até ao ciclo dos fascinantes contos juvenis dos anos noventa (Primavera, 1990; Inverno, 1992; Verão, 1996 e Outono, 1998) e aos últimos filmes desta década (que não vi), Rohmer foi autor de mais uma dúzia de filmes e de um sem número de curtas, trabalhos para televisão e de documentários (com destaque para Ville Nouvelle, de 1975).
Em Le genou de Claire, um homem vive uma paixão rara, quase cirúrgica. Conhece uma jovem mulher chamada Claire e coloca a si próprio um objectivo maior do que as suas próprias forças: tocar, um dia, no joelho de Claire. E há-de consegui-lo, já no epílogo, numa pequena embarcação em que apenas ele e ela se encontram. Todo o mundo se reduz a este acto e a esta grandeza: os dedos que encontram o joelho de Claire. Desejo cumprido, paixão realizada. Grande motivo literário, este, sobretudo se revisto nos dias de hoje; neste nosso tempo ilimitadamente livre, mas, ao mesmo tempo, inquinado pelos terrores da correcção e por milhares de (por vezes indescritíveis) microfascismos.
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