quarta-feira, 31 de maio de 2006

O “tom” dos blogues - 21

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A memória começou por ser invisível e mitológica para depois incorporar nessa ficcionalidade acumulada um tom épico e historiográfico. Reinava esta grande crónica do mundo, quando as próteses modernas entraram em acção: de um lado, a ideia científica de história (a partir de meados de setecentos, por exemplo com Vico) e, do outro, os primeiros museus, os arquivos e sobretudo o artefacto fotográfico.
A domesticação do passado, ao sabor de arbitrariedades várias, acabaria por transformar as mais diversas próteses na representação de mundos “objectivos” ao longo de oitocentos e de novecentos. A novidade da rede consiste, hoje em dia, entre muitas outras coisas, na desapropriação dos dados (dos factos passados) e na possibilidade da sua permanente e instantânea actualização (melhor: da sua virtualização).
O que quer dizer que vivemos num mundo bipartido: por um lado, mergulhado numa espécie amnésia colectiva (por via da deificação da actualidade, do agora-aqui e da insaciada devoração do presente em prejuízo dos antigos futuros de ouro); por outro lado, mergulhado num interminável banco de dados susceptível de actualização imediata e simultânea a partir de uma progressiva disseminação dos controlos (uma espécie de simulacro da ubiquidade que foi tão amada na infância do cinema).
Posto este contexto, pergunta-se: qual é o lugar da memória na migração expressiva que os blogues estão hoje a percorrer? Por um lado, a de um instável enquadramento que se agencia, situação a situação, sem grelhas muito bem definidas; por outro lado, a de uma narrativa que vive de uma intensidade diária e que se cruza com um ‘horizonte de interesse’ fulminante e ‘em diagonal’.
Isto significa, por um lado, que a organização cenográfica da memória – que Kant fez corresponder à ideia de “Darstellung” para traduzir o cariz encenado da objectividade” (CFJ,& 59/B255) – se está a transformar numa amálgama de ‘apresentações’ desprovida de qualquer ancoragem. A memória passeia-se, na actualidade blogosférica, entre as metáforas da flutuação, do leme e do catavento. Para além disso, à moda nominalista, a memória esvai-se numa leitura enviesada que apenas faz conjunto a partir da omnipresença de posts discretos, concretos e quase sempre actuais.
Isto significa ainda que a convergência de interesses entre o imediatismo quotidiano dos posts e o seu horizonte instantâneo de leitura é, de algum modo, homológica ao que se passa na nossa mente, pelo menos ao nível do “si-autobiográfico” e da “consciência alargada” (para recorrer a termos caros a Damásio). No fundo, tudo se passa como se a interacção proporcionada pela rede se traduzisse por uma tentativa de aproximação aos nossos próprios esquemas neuronais e fisiológicos. No meu livro Músicas da Consciência (2002), escrito em diálogo com O Sentimento de Si (1999) de A. Damásio (ambos da Europa-América), entre muitos outros aspectos, foram inventariados os dois primeiros níveis da consciência onde as imagens – na sua maioria não actualizáveis pela mente - ainda não coabitam com a memória (o “proto-si”, de um lado, e a “consciência” e o “si” nucleares, do outro). É somente no terceiro nível que as imagens actuais (mas já imagens de imagens, tal como nos pixels) e os complexos bancos de dados da mente acabam por interagir com uma velocidade estonteante: dez mil para um é a escala que se interpõe entre a realidade comunicacional verificada nos circuitos que ligam os neurónios e a realidade da primeira representação correspondente (e que está ininterruptamente, a cada segundo, a emergir através da “consciência nuclear”). O que torna possível este “grande filme do cérebro” - que é a consciência alargada – é a capacidade “de aprender e, consequentemente, de reter miríades de experiências previamente conhecidas através da consciência nuclear” e ainda a capacidade “de reactivar esses registos de tal modo que, enquanto objectos,” acabam por ser compreendidos como algo que pertence a quem os processou.
Nos posts, esta operação de simultânea enunciação, apropriação e montagem (onde interagem o registo ‘sempre actual’ dos posts e o dispositivo casuístico que funciona como enquadramento e memória para a leitura) determina o instantanismo do ‘género’ neófito. Sobrará ainda o arquivo, é verdade: esse destino de viagem exótico, cujo sentido resulta tanto do acaso como do capricho do navegador solitário.
Não se pode, pois, dizer que a memória se tenha exilado da blogosfera. Mas, com toda a certeza que se tornou numa extraordinária personagem mitológica do nosso tempo, cuja presença obedece à metáfora do “incessante estilhaço”. Como é possível pensar que a história da expressão blogosférica (que se está a fazer agora pelos seus próprios passos) não é uma questão proeminente?

terça-feira, 30 de maio de 2006

O "tom" dos blogues - 20

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A influência da blogosfera no mundo é intensa, embora não seja a quantidade que o determina (a desmedida taxa de criação de blogues) mas antes o impacto em públicos com influência e poder de decisão. Daí que a adaptação das linguagens tradicionais ao novo meio blogosférico acabe inevitavelmente por reflectir esta tremenda pressão.
As linguagens escritas sempre se adaptaram a meios que pressupunham uma clara distância entre as circunstâncias de enunciação e os mecanismos de representação. O que é novo neste pulsar específico da rede - que é ocupado pelo mundo dos blogues - é o facto dessas circunstâncias e mecanismos se terem subitamente confinado a um mesmo tipo de tempo real. A vertigem que está em curso impõe assim sobre a linguagem que se exprime nos blogues moldes apertadíssimos, embora informes, às vezes quase invisíveis e sem grandes referências (seria interessante saber o que se passa com as línguas que dominam a blogosfera global, nomeadamente o Japonês e o Mandarim). Mas desde o momento em que a linguagem de um blogue se torna na linguagem de uma polémica que se cola aos poderes (e aí se intertextualiza), a malha expressiva desse blogue tende a reconverter-se, a recompor-se ou a reformatar-se sem ambiguidades (geralmente através de uma esquematização visual e temática que é sempre acompanhada por ingredientes do meio: a paródia, a deslinearização das remissões, o cariz elíptico, o recorte do fragmento, etc.).
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De acordo com um estudo do “Forrester Research”, limitado aos EUA, apenas 6% dos utilizadores da internet lêem blogues. Um outro estudo bastante recente, encomendado pela “Jupiter Research”, concluiu que a blogosfera, apesar do número relativamente baixo de leitores de que dispõe, acaba por ter uma influência razoável e até desproporcionada (“disproportionately large influence") na sociedade. Quer isto dizer que a influência dos blogues não se mede realmente pela quantidade, mas antes pelos públicos-alvo que cirúrgica e diariamente atinge.
O estudo feito para a “Jupiter Research” demonstra ainda que os utilizadores activos da internet constituem uma parte insignificante do total de utilizadores da internet, embora os meios ao seu alcance (posicionamento autorial, circulação de dados, propagação em rede, etc.) estejam a contribuir para condicionar as discussões no espaço público e mesmo para criar impactos comprovados nos hábitos dos consumidores (o caso da “AOL Music” aparece aqui como um exemplo fulgurante). Julian Smith, analista publicitário e um dos autores do estudo, afirmou a propósito ao Guardian (no passado dia 18 de Abril): "The strongest part of their influence (blogs) is on the media: If something online suddenly becomes a story in the local press, then it matters."
Embora o estudo divulgado pela “Jupiter Research” se concentre na Europa, é verdade que este tipo de constatação é clara no caso dos EUA, onde um leque variado de blogues de natureza sobretudo política - Instapundit, Daily Kos, ThinkProgress, Wonkette, Captain's Quarters, e RedState - tem uma poderosa influência na mediação pública, sobretudo por criar agenda (“breaking stories”) e difundir intensamente temas e discussões que os “mainstream media” acabam por não desenvolver ou até “ignorar”. Apesar deste tipo de blogues ficar aquém da audiência dos média tradicionais, não deixam, no entanto, de ser objecto de leitura atenta por parte de pessoas com autoridade no espaço público e com efectiva capacidade de decisão. Este novo paradigma de influência que está a ser gerado pela rede tem, além do mais, uma óbvia tendência para aumentar, como escreveu Tom Regan (“The CSM”): “According to an April 2006 report by the Pew Internet and American Life Project, 88% of 18- to-29-year-olds in the U.S. now go online, and 84% of 30- to 49-year-olds do so. The influence of the Internet is only going to increase”.
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Muitos blogues que não têm estas características de impacto público imediato levam a cabo uma luta sagaz e permanente para tentar articular forma e matéria, ou seja, para inventar (e criar) uma conformidade entre a inscrição diária e a nova matéria de que é feito o meio subitamente colocado à disposição de milhões de cidadãos de todo o mundo. Este percurso expressivo global (e variadamente local), de que não me tenho cansado de salientar a importância na comunicabilidade contemporânea, constitui um aspecto decisivo dos destinos pessoalizados, e não apenas processados, que ocupam a rede.
Tendo como certo que a net vai continuar a crescer e que os blogues são, nessa inevitável onda de crescimento, uma das linhas de fuga mais activas e influentes, é normal que as expressões e codificações que se estão neste momento a redescobrir venham a dar à mediação pública mundializada novos rostos e novos formatos (hoje imprevisíveis).
Esperemos mais uma década e estou certo de que esta profecia se tornará em realidade.

O encanto dos "mortinhos"


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Troquei o episódio de ontem por um jantar num terraço com vista para Monsanto: ganhar fôlego para continuar a minixcêntrica actividade metatextual.
Terei perdido muita coisa?
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P.S. - Muito, muito obrigado à Sarah (ver comentários) e à Charlotte (ganda cena!).

segunda-feira, 29 de maio de 2006

O “tom” dos blogues – 19

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Nada de complicar: os blogues somos nós mesmos. Nos blogues, há vozes, há corpos que se movem, há coisas que se dizem e há sobretudo a enunciação de um fôlego bastante variado que percorre o novo organismo (não orgânico) da rede.
O que torna os blogues num painel de análise fascinante e complexo é o facto de, neste novíssimo dispositivo, os pontos de vista se deslocarem de maneira incessante, independentemente das nossas escolhas (como se as bocas de cena de muitos teatros se sobrepusessem e nós fôssemos, ao mesmo tempo, actores, encenadores, pontos, cenógrafos e espectadores). Esta mobilidade é verificável em qualquer blogue, devido sobretudo à infindável circulação de dados, mas também à recontextualização ininterrupta que é própria do meio.
É verdade que o fluxo global de imagens - em termos mais gerais - tende a escapar à interpretação, pelo simples facto de ser particularmente difícil adaptar as ferramentas verbais tradicionais à cadeia ininterrupta que aparece em tempo real nos terminais digitais do nosso dia a dia (e que são extensões ou próteses do corpo: na publicidade, nos objectos estéticos ou da cultura material e em todo o design do mundo).
O mesmo acontece, à sua escala, nos blogues: a uma nova realidade criada, estão-se na actualidade a adaptar, em tempo record, escritas específicas e formas de interpretação adequadas. Eis a razão por que a procura expressiva que acontece diariamente na blogosfera (o “tom”) se está a desenvolver quer a nível do texto, quer ainda - numa segunda vaga bem mais lenta - a nível do metatexto.
Na rede nada culmina e tudo se processa, já que nela não existem pontos nevrálgicos ou zonas de clímax. O que surge, logo se remove e reconverte. A narrativa criada pelos blogues – e por outros processos de micro-narrativa em rede - é um tipo de narrativa que, talvez pela primeira vez, não necessita de uma retórica baseada em analepses e prolepses (flash-backs e antecipações): o que conta é o registo que acompanha a mais pura imobilização do instante. O que cativa é a duração, a iminência imediata, o 'estar lá'. É como se o oceano blogosférico fosse composto por âncoras móveis que saltam de interface em interface, associando sempre o heterogéneo ao heterogéneo. É como se, em Faulkner, Caddy fosse sempre Quentin e Quentin fosse sempre Caddy: um puro jogo de simultânea pertença e inscrição.
Com os blogues, está-se hoje a assistir a uma revolução silenciosa mas profunda dos tipos expressivos e das suas gramáticas. Apesar da rapidez das mudanças que se operam no mundo, a verdade é que esta imensa ruptura comunicacional só virá a ser devidamente entendida daqui a alguns anos, tal é a sua singularíssima fertilidade (basta lembrar que, em todo o planeta, se estão a criar 80.000 blogues por dia!).

domingo, 28 de maio de 2006

sábado, 27 de maio de 2006

O "tom" dos blogues - 18

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Depois de ter analisado as regras prescritas por Alexandre Soares Silva e por José Pacheco Pereira, passo hoje a analisar e a comentar as “dez leis fundamentais” desenvolvidas por João Pereira Coutinho e publicadas no Semanário Expresso, a 23/08/2005. Não se trata desta vez de uma codificação que incida na blogosfera, embora a conivência profunda do autor com o universo dos blogues – aliás praticada através de uma ostensiva travessia de planos no seu próprio blogue – acabe por remeter esta breve mas estimulante enunciação de regras para o campo contemporâneo das coabitações que superam géneros delimitados. Poder-se-á dizer que se trata de uma compilação de regras que cruza diversos limiares da blogosfera (a tentação respira sempre à superfície) e que acaba por ter importância na prospecção expressiva (o “tom”) que se vem tecendo, há pelos menos três anos, neste novíssimo meio da rede.
Deixo em primeiro lugar o todo das regras e passo depois à análise, ponto por ponto, como aconteceu nos casos precedentes:
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“A arte da crónica (Expresso, 23/7/2005)
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“Recebo convite para escrever texto longo sobre «a crónica». A coisa destina-se a estudantes de jornalismo. Óptimo. Mas, por favor, não é preciso gastar tempo nem palavras. A arte resume-se em dez leis fundamentais. Primeiro: a crónica não é um género jornalistico; a crónica é um género literário. Segundo: a crónica pode partir da realidade mas, não raras vezes, a crónica cria a sua própria realidade. Terceiro: a crónica não é análise nem comentário; a crónica é confissão e hipérbole. Quarto: a crónica não pretende formar ou influenciar; a crónica deve entreter e, se possível, opinar. Quinto: a crónica não vive da especialização; a crónica vive da diversidade. Sexto: a crónica vale pelo estilo e pela substância; em caso de conflito, sacrifique-se a substância. Sétimo: a crónica não pondera opiniões contrárias à sua; a crónica pondera apenas uma opinião que seja contrária às outras. Oitavo: a crónica não está certa ou errada; a crónica, como diria Wilde, está apenas bem escrita ou mal escrita. Nono: a crónica é pessoal; a crónica é um prolongamento do ego. Décimo: a crónica deve ser tão fácil de ler como de esquecer.”
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Primeiro: a crónica não é um género jornalistico; a crónica é um género literário.”
A crónica começa por ser definida sem quaisquer hesitações, como parte de uma tradição reconhecível: a literária. A complementar e a idealizar o sentido de pertença surge a substância do “género”, essa gramática cromática à Mondrian que subitamente se esvaiu e esbateu no oceano dos blogues.
De facto, onde nas crónicas há ligações perigosas entre a gesta marítima e a miniatura do coral, alimentadas por aquele prazer lento que dá a ver o fundo das águas através das nuvens (“uma pessoa deixa de oferecer chocolates, flores e serenatas e é logo um fascista nos jornais”), há nos blogues uma errática migração de espécies que se confunde com os reflexos do mar tempestuoso.
Onde nas crónicas há imagens de confissão que valem pelo fôlego encapelado da frase (“o meu sonho mais profundo, e mais inconfessado, e mais inconfessável, é ser um dia o Prof. Higgins em "My Fair Lady”), há nos blogues um vinhedo fértil mas selvagem à procura de uma imagem que se adeque ao espelho instantanista.
Onde nas crónicas há hiatos de verdade e algum espaço para sustentar arquitecturas sólidas e até frases feitas (“Eu gosto de clichês. Existe sempre na frase feita um fundo de verdade que deve ser escutado e respeitado.”), há nos blogues peregrinações incertas e cruzadas à procura de sentido, assim como clichês e mais clichês que não sabem sequer que se amam a si próprios.
Quer isto dizer que a crónica pode sonhar com o género, ou melhor, pode partilhar o sonho de ter casa própria com os juros que são próprios da transitoriedade (uma caravana e não tanto uma moradia, portanto). Já os blogues sobrevivem a toda essa longínqua genealogia e estão a reatar o nomadismo que parece um dia ter precedido a escrita (só que o fazem através, precisamente, da escrita e à procura de um novo sentido – de um tom – para esse gesto).
Segundo: a crónica pode partir da realidade mas, não raras vezes, a crónica cria a sua própria realidade.”
Ora aqui está um princípio da poética: o que separa o texto instrumental e indexical do texto poético é a sua radical autonomia face à realidade. Menino crescido, ele, o texto poético, vale por si e pela realidade que cria. Por isso, o texto poético é - ao mesmo tempo - mensagem e objecto. Pela mesma razão, o texto poético contém em si os referentes que o fazem sorrir e que ditam emoção a quem nele deita a doçura do olhar. Ora, relendo a segunda regra, a crónica “pode” partir da realidade (não necessariamente, segundo JPC), embora acabe também, quase sempre, por criar a sua própria realidade. Quer isto dizer que a crónica se lê e relê, sem que o leitor precise sequer de procurar aves e remos no rio para a compreender. Os remos, as margens, as aves e até o pescador são já carne e brilho da própria crónica.
Nos blogues, não há lei alguma que consiga traduzir esta segunda de JPC (a tradução é um ofício de metabolismos e não uma súbita ilusão à Muybridge). A instrumentalidade, o horror ao vazio e o lúdico dominam as hostes na blogosfera, embora a rede não chegue a criar para o mise en scène dos posts aquele pano de fundo estável que é próprio do universo off-line (mesmo da crónica que, no papel, fragmento a fragmento, ainda vai criando os seus próprios e inomeados planetas).
Terceiro: a crónica não é análise nem comentário; a crónica é confissão e hipérbole.”
Uma confissão vale pelo que retém de vacilação, de dramaturgia fantasmática, de surpreendente. Geralmente, há confissão quando se imagina que até a via láctea nos pode segredar alguma coisa. A confissão é coisa sincopada, incorpórea, rápida e aparece como um remate meio imprevisto: “Chega. Melhor ficar por aqui. Ou, então, simplesmente afirmar: "esquerda" ou "direita" perdem alguma da sua autoridade absoluta em confronto com a realidade da história”. A hipérbole, esse exagero que amarra o universo à curva da trepadeira do pátio, faz parte do fosso e do silêncio que sucedem à confissão. Está lá como antes estiveram os rochedos fantásticos e os mostrengos nas viagens marítimas, ou nos iluminados blogues de Montaigne. Está lá como antes estiveram as batalhas celestiais em textos medievais onde os lobos se transformavam em fontes de água doce. Está lá como antes Eisenstein terá imaginado o sangue da montagem inventado por Griffith.
Nos blogues, o comentário excede muitas vezes o requinte da confissão, do mesmo modo que a alma excede o corpo no desmesurado território da adolescência. Nos blogues, a hipérbole não tem tempo para amadurecer os ramos onde deveria crescer. Nos blogues, a sofreguidão tem outros prazeres mais perversos, menos delongados, mas mais luarentos: improvisa, despe-se em directo ou corta excessivamente a direito, antes ainda de se confessar (tal como no calvinismo militante).
Quarto: a crónica não pretende formar ou influenciar; a crónica deve entreter e, se possível, opinar.”
Felizmente, quer a regra, quer o procedimento blogosférico estão a milhas do paródico mito do “grande educador”. A cortina foi recolhida há muito e os rostos deíficos refluíram na direcção do palco, subitamente cheio – de par a par - com todo o tipo de pregões. É grande a confusão contemporânea e é por isso que as formas e os moldes se procuram e se oferecem como se a descoberta fosse um regresso ao idílio dos primórdios: “Parto finalmente do Termini e, duas horas depois, a noite cai em Nápoles. Não tenciono convencer ninguém da certeira sabedoria de Stendhal. Digo apenas que Nápoles, na sua pobreza, no seu caos, na sua tangível violência, é uma dádiva de Deus aos Homens para que estes não sintam saudades do Paraíso.”
Não podia haver melhor parábola: o caos da deriva transformado num pranto quase elegíaco. A quarta regra de JPC desdobra-se depois e clarifica o ‘que fazer’: “opinar” como possibilidade, “entreter” como condição. Eis um interessante princípio. O lúdico aparece assim com particular evidência, ele que é hoje a mascarilha veneziana do que antes foi o carregado céu do dever (face a todas as doxas).
Também a errância dos posts parece ter perdido de vista a graça dos deuses, as regras axiais, os valores e as instituições, para se dedicar a uma jardinagem sem limites. Este ócio sem amanhã luz igualmente na especiaria mais cuidada (e lenta) da crónica: “DAVID LODGE escreveu em tempos um pequeno conto onde narrava a história de um vagabundo que decidiu nunca mais sair da cama. Deixou-se simplesmente ficar. Perdeu emprego. Mulher. Filhos. Saúde. Só pelo prazer de estar. MEU DEUS. Eu sou esse vagabundo.”
Com efeito, na blogosfera também pouco se influencia e quase nada se forma. A contigência respira outros ares. E quando a blogosfera opina, há sempre sina matreira no ar: debate a meio, entrecortado, fugaz, tal como a miragem colada ao lapso da memória. Melhor ainda é o modo, por vezes obsessivo, como a blogosfera se entretém: tal como o anunciado “dever” da crónica, assim é o fruto de vários sabores – às vezes de raros saberes - dos blogues.
Quinto: a crónica não vive da especialização; a crónica vive da diversidade.”
Mais uma respiração comum entre a regra da crónica e a alma dos blogues (o metatexto adpata-se ao texto por mimetismo – afectos, dir-se-á -, mas não deixa de ser metatexto).
A comunidade (“being-in-common”) é hoje em dia um conceito interessante e é definido pelo semiótico australiano Alec McHoul como: “course of activity recognizable for its directionality”. Não é o território ou a língua que une o que coopera no novo design do mundo: é a consecução de uma prática (surfar na net, bronzear-se nas praias, ser fã de uma série televisiva, partilhar a noite, viajar, etc.). O que une a crónica colorida, ecléctica e pouco pesada à miscelânia e diversidade que tipifica os blogues é o excurso, a prospecção, a caminhada que não teme a ausência de desenlaces ou conclusões: “(…) De lado. De pino. Podem ser lidas devagar. Depressa. Aos bochechos. Mas sem ordem. Porque as verdadeiras conversas não obedecem a nada, excepto à vontade - de quem as faz e de quem as ouve. Demos graças a Deus pela maravilhosa utilidade das coisas verdadeiramente inúteis”. Há um ‘media res’ que transpira na diversidade destas crónicas e nos cavaleiros andantes que se enunciam em blogues: num e noutro, os personagens são os do Quijote, porque não sabem de onde vêm nem para onde vão. Mas iluminam as suas galáxias comuns.
Sexto: a crónica vale pelo estilo e pela substância; em caso de conflito, sacrifique-se a substância.”
Creio que, nesta regra, a linguagem é mais de conotação platónica do que aristotélica. Temos aqui mais a ‘essência da coisa’ e não, como escreveu Hjelmslev no século passado, uma “estruturação específica do sentido” através de formas sempre actuais, tal como acontece na metáfora da nuvem observada a partir dos olhos de Hamlet. Seja como for, interessa mais à sexta regra de JPC o modo singular, vincado e desejadamente exclusivo da escrita do que aquilo que, na ciência dos vinhos, é o espectro encorpado. É preferível o vitral à cena que se repete. É preferível o nome à moda que se reduplica. É preferível a aura à matriz removida (Benjamin sorriria com o aceno). Nos blogues, por seu lado, mais do que estilo há procura expressiva, mais do que substância há culto do diverso (e do fragmento de sentidos), mais do que singularidade tácita há sobretudo tentativa de adequação da linguagem ao novo meio (a tão falada pesquisa do “tom”).
O território do estilo terá que ser estável, chão, tradicional, como se fosse um autódromo há muito conhecido e onde é, portanto, possível conhecer e reconhecer o motor, fixar as curvas e adequar a longevidade da expressão ao asfalto. Nos blogues não há esquadria, nem perímetro, nem autódromo. O asfalto da blogosfera é o éter da rede. Por isso, o estilo é coisa para amanhã, para um amanhã ainda distante (mas coisa pouco utópica, já agora).
Sétimo: a crónica não pondera opiniões contrárias à sua; a crónica pondera apenas uma opinião que seja contrária às outras.”
A crónica parte de uma única via, parte de uma única portagem e pode pagar o preço do múltiplo desígnio e do múltiplo confronto que suscita. Mas desengane-se o contendor filosófico: a crónica voa com argumentos sumários, aforismos elegantes e imagens de iminência e não com aporias infindas, súmulas epistemológicos ou apologias ínvias. O tempo iluminista da crítica redentora é, na crónica de JPC, a simples janela de Vermeer por onde entra a luz de viés.
Nos blogues, a ventania cósmica é bem maior e o Iluminismo, para o bem e para o mal, já é parte da amnésia generalizada. Tal como vimos no post de anteontem anteontem (“O ‘tom’ dos blogues – 16), o tema do debate na blogosfera não tem fim, mas basta-se muitas vezes a alinhamentos fáceis, a previsibilidades elementares e a ponderações mínimas. Debater na blogosfera é muitas vezes navegar entre um spam opinativo e um oásis que pode assemelhar-se ao ‘core’ desta sétima regra. Mas em vez de ‘targets’ certos, temos quase sempre espelhos paralelos, imagens esquivas e enxertos endiabrados. Sign of times.
Oitavo: a crónica não está certa ou errada; a crónica, como diria Wilde, está apenas bem escrita ou mal escrita.”
Para além de todas as condições de verdade e aberta qb. ao limbo dos sentidos, esta oitava regra é coroada pelo mais axiomático, esquecido e intuitivo de todos os princípios: o bem e o mal. Escrever bem? Leia-se: A MINHA língua devia mirrar e apodrecer. Transformar-se em chama, ser consumida em breves minutos na mais atroz agonia - e cair para o lado, um pedaço de carvão a sinalizar a minha irremediável e tão humana fraqueza. Passei a vida a vergastar o cultura do ginásio. Hoje, frequento um por conselho médico e evidência física. Em três meses, engordei 12 quilos. Tudo bem, pensei, sou um sábio gordo e feliz, sentado num travesseiro de penas, a debitar sentenças sobre a vida, enquanto duas modelos nórdicas vão preparando bebidas no canto da sala. Coisa zen(…)”. É tudo.
Nono: a crónica é pessoal; a crónica é um prolongamento do ego.”
Claro, de novo o paradoxo da individuação (ver “ O ‘tom’ dos blogues – 8). Todos os ‘ismos’ do século passado foram apagando o sujeito: formalismos, estruturalismos, descontruccionismos e outras desestruturações estilo “pós pós pós”. Bons tempos em que o biografismo fazia jus a um texto, a partir da verve umbiguista do autor: ele que comia favas, ele que logo se demorava nas descrições da culinária; ele que pescava de norte a sul, ele que logo se entretinha a escrever ‘Os Pescadores’; ele que fugia da sua ilha, ele que logo nos alardeava a falar de um tipo errante e perdido - de manhã à noite - numa cidade de nóbeis. De um momento para o outro, também a rede passou a ser encarada como um palimpsesto síncrono de vozes “des-subjectivadas”, segundo a expressão dos cientistas comunicacionais.
Mas eis que, não menos de repente, tal como meteoros, os blogues surgiam para reatar a tradição e introduzir no esquema já viciado o paradoxo da individuação. No meio da morte do autor, vários autores, milhares de autores, miríades deles fizeram-se ouvir. Assim é também a insistência heróica da nona regra de JPC: “pessoal”, “ego”, pois então. E em plena conformidade, tal é a travessia de terrenos do autor, ele que se pôs a descobrir (infamemente) a blogosfera e, ao mesmo tempo, a explorar o arquipélago da crónica. Não se podia esperar outra coisa. Provas? Leia-se aqui a intensidade da primeira pessoa: “NÃO ME LIXEM. Os livros da vida não devem ser ditos em público com tamanho optimismo e insuportável facúndia. Por uma questão de pudor. De vergonha. Na cara. Seria bom. Seria bom dizer: os livros da minha vida são as tragédias de Shakespeare. Depois delas, tudo mudou. Sou um ser humano capaz de compreender a crueldade e a mentira, capaz de amar os homens e de perdoar a infâmia. Mas as coisas não são assim. Os livros da vida não existem para melhorar a vida. Au contraire: existem para a piorar. Irremediavelmente. São a projecção do que existe, para melhor ou pior. Mas em grande: ecrã panorâmico, dolby sorround, 16 por 9.”
Décimo: a crónica deve ser tão fácil de ler como de esquecer.”
É a regra mais parecida com essa figuração de rosto chamada post, não haja a mais pequena dúvida: a regra da pastilha elástica na boca do herói.
Deverá ser nessa suposição que ainda sobrevivem, entre nós, alguns dos últimos deuses e verdadeiros protagonistas da história, i.e., através do ídolo da permanente ‘actualização’.
Há, de facto, nas regras de JPC muita empatia com o que podiam ser esparsas regras de uma blogosfera ainda em crise expressiva (três anos e pouco de história é já tempo para ter aprendido a andar). As duas últimas regras são realmente contíguas, denotam a mesma atmosfera e o mesmo desprendimento. A defesa de uma facilidade que não é facilista, de uma clareza que não é afectação e de uma sinceridade que não se confunde com a parvoíce correcta que dá pelo nome de ‘transparência’.

sexta-feira, 26 de maio de 2006

O "tom" dos blogues - 17

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Os meus editores costumam dizer que um livro dura um mês. Não será inteiramente verdade, embora no caso do romance a realidade não ande muito longe da prescrição. No caso do ensaio, por razões que se ligam a outras agendas que não apenas as do mercado do livro, a amplitude da vida tem-se alargado algo mais.
Na blogosfera, a figura da actualização vs. desactualização é fulgurante. É por isso que um post vive em diagonal ajustando-se à forma do olhar que a espaços o lê. O olhar cruza-o tal como o sol cruza o crepúsculo africano – é uma leitura pouco linear e nada plena – e apenas dura no espaço de várias passagens que são sempre, cada uma delas, processos, saltos, traços tracejantes e apressados. Na blogosfera, o olhar não vai para lado nenhum, não tem telos, nem meta; ele é sobretudo o movente, o augúrio fugidio e o andarilho que faz da existência um clique que gera e é sempre gerado por outro e outro clique. De alguma maneira, um post já morreu no momento em que se inscreve e é nesse instante-ápice de duração que a enunciação chega a brilhar. O que define a vida de um post é afinal a sua permanente actualização. Esta é a noção-chave da vida blogosférica, pelo menos do ponto de vista da expressão que nela diariamente se agencia.
Actualizar corresponde a uma fórmula, cujo significado recente remete para a ideia de tornar presente: é esse desafio de ‘antecipação’ que está realmente na base da expressão errática, vacilante, descontínua – e rica - da blogosfera. Hoje em dia, na rede, actualizar já não quer dizer ‘fazer passar da potência ao acto’ ou ‘realizar o que é potencial’, mas sim “refrescar”, omnipresentear ou tornar permanentemente visível todo o ilimitado leque de opções que se processam. Actualizar é virtualizar em cadeia, em cascata, em encadeamento ininterrupto. A palavra actualizada na blogosfera deixou de ser um eco de uma presença, ou um jogo de efígies que se propõe, para passar a ser uma espécie de arrebatamento febril que liga ‘presença-ausência’ e ‘ausência-presença’ a um empenho sôfrego e vital, na medida em que a actualização consiste na ‘tentação’ de um presente que está quase, a todo o momento, a chegar ao próprio coração do presente. Este arrebatamento instantanista - ou este novo tipo de tentação - derroga aquilo que exprime e exprime aquilo que derroga, tal como escreveu Peter Sloterdijk: “O que é de ontem é incessantemente desactualizado pela sua mobilidade; é a partir do próprio gesto de desactualização que é lançada a nova actualidade, para cair logo no projecto: uma transitoriedade expulsa a outra”.
Os efeitos deste fenómeno incessante de actualização vs. desactualização na adaptação da linguagem ao novíssimo meio blogosférico são abundantes e óbvios. Citaria os seguintes:
e
a) Os posts tendem a condensar informação e a concretizar-se através de um tipo expressivo muitas vezes elíptico.
b) Os posts descomprometem-se face a um texto genericamente orgânico e enunciam-se de modo solto e desagregado (como se desmontassem lógicas indeterminadas, mas consistentes).
c) Os posts compensam a sua brevidade através de remissões e ligações que se projectam (por precedência ou irradiação) noutros lugares da rede.
d) Os posts podem suceder-se ininterruptamente numa espécie de (nada pejorativa) ‘fuga para a frente’ contra a emergência sempre actual da desactualização (às vezes em regime irónico de estimulante count down).
e) Os posts tendem a visar, ao mesmo tempo, ‘targetsmuito variados, rentabilizando assim a compactação de dados que vão actualizando (e fazem-no, às vezes, com toda a piada e sem quaisquer links).
f) Os posts obedecem amiúde a rubricas e séries pré-definidas, de acordo com uma sintaxe de conteúdos que é prévia à própria transitoriedade do meio.
g) Os posts adoptam metalinguagens – textos acerca (da inscrição) de textos no blogger, ou noutros congéneres - tentando relativar a angústia face à derrogação permanente pressuposta pela actualização vs. desactualização.
h) Os posts alimentam-se de um contraditório elementar, mais reactivo e esquemático do que sustentado e argumentativo (mesmo no caso de “micro-causas”).
i) Os posts agenciam a agenda pública, seleccionando, filtrando e interpretando alguns dos seus dados.
j) Os posts recorrem a realidades icónicas, “googlando” imagens ou, mais raramente, criando condensações de natureza poética.
k) Os posts recorrem a realidades indexicais, dirigindo sucinta e regularmente a atenção para outros posts de outros blogues, ou a textos da ‘atmosfera’.
l) Os posts ancoram muitas vezes os ‘topics’ (aquilo de que se fala) a simples marcas adverbiais ou de remissão directa (exemplo : “ver aqui” ou “ver mais”).
m) Os posts subsumem-se amiúde à prática mais coloquial do correio: o convite.
n) Os posts alegorizam a vida de outros blogues.
o) Os posts, por vezes, convidam tão-só a clicar.
p) Os posts tendem a contrastar a síntese produtiva com uma abundante notação de fontes.
e
Reagindo à ameaça de contínua desactualização, os posts inscrevem-se assim numa modalidade de micro-narrativas do quotidiano que tornam a blogosfera num ‘pulsar’, cujas sequências visam em última análise a sua própria sobrevivência. Até porque o tempo da blogosfera não é precisamente o tempo da rede. Na rede há bancos de dados passivos, quase fixos, verdadeiras esculturas de webdesign errando entre a sua forma e os laços que, em todas as direcções, os prolongam e acolhem. Neste novo ‘gravitas’, muitos desses ‘sites’ estão imunes aos efeitos mais desgastantes da instantaneidade, na medida em que são parte programada de um processamento impessoal. Nos blogues, ao invés, a inscrição pessoalizada faz a forma e alimenta a substância: o corpo cresce e depura-se com a verocidade do ‘espírito de corpo’ a meio de uma guerra. A intimidade obsessiva da blogosfera é o seu sangue, ou seja: a sua capacidade para saber morrer e nascer ao mesmo tempo, todos os dias, em cada post, em cada ápice.

quinta-feira, 25 de maio de 2006

O "tom" dos blogues - 16

e
Depois de ter analisado as regras prescritas por Alexandre Soares Silva, passo hoje a analisar as “DEZ LEIS DO ABRUPTO SOBRE OS DEBATES NA BLOGOSFERA (Versão 2.0)”, publicadas a 2 de Março deste ano. As regras enunciadas na blogosfera, ou no limiar da blogosfera – caso das regras sobre o ‘género crónica’ de João P. Coutinho -, são de grande importância para o debate em torno da procura expressiva na blogosfera (ou, por outras palvras, da adequação da linguagem ao novo meio - o chamado “tom”).
Nestas regras o mais interessante é, desde logo, a conjectura. Elas não se apresentam, como “mandamentos” - ou como deduções que teriam sido aferidas de modo lógico -, nem como induções puramente casuísticas. O modo como são apresentadas remete de imediato para o seu cariz flexível (“Como todas as Leis dão origem a Excepções, que são elas próprias outras Leis que regulam as Excepções”) e irónico (elas “só podem ser formuladas de forma irónica, ou seja, absolutamente verdadeira”). Não o tipo de ironia vivamente paródica das regras de Alexandre Soares Silva, mas uma ironia contrastante que distancia a aparente frieza dos termos dos seus vários considerandos, “notas” e explicativos. É como se várias vozes fossem calcorreando a enunciação destas regras, num exercício de conjectura permanente (aquilo a que Peirce designou por abdução, esse “processo de formação de uma hipótese explicativa” que não se limita, nem apenas “a determinar um valor”, caso da indução, nem a “desenvolver as consequências necessárias de uma hipótese pura”, caso da dedução). Estas conjecturas sucessivas que vão explicando e fixando regras correspondem, ao fim e ao cabo, a um desígnio explícito, ou seja: “descrevem o modo como os debates na blogosfera se desenrolam”. Por outras palavras, são regras - ou simples “constatações” - que ilustram o modo como o discurso se dispõe e organiza sempre que o contraditório, a polémica e o debate se manifestam entre blogues. Deixado de lado o aspecto preambular, avancemos agora para o coração das regras (as "Leis”):
PRIMEIRA LEI DO ABRUPTO: Evitar discutir a Posição, procurar atacar a Contradição.”
Uma das fraquezas destas regras é a total ausência de exemplos. Até porque as regras são sempre modos de significar o que se comunica, através de correlações que associam aquilo que se diz (conteúdos) à expressão utilizada. Seja como for, é evidente que a fulanização militante é (quase sempre) um dado dos debates na blogosfera, acabando por reflectir a emergência da individualização no quadro da arena ‘des-subjectivada’ da rede (ver sobre o assunto, “O ‘tom’ dos blogues – 8”), numa posição cómoda que é de livre interacção e iniciativa, embora sem a contrapartida do escrutínio. A entrada em cena das enunciações mais variadas (a diferença de posicionamento e de reconhecimento públicos não dissuadem e até agravam a questão) é síncrona, simultânea e desenvolve de imediato um simulacro de concorrência sem quaisquer regras. Daí a dificuldade no debate em situar “contradições” próprias e em projectar quase exclusivamente no ‘outro’ o cerne dos paradoxos e das incoerências (entre blogues, o ‘outro’ é um espaço radical e ideal de afectos e por isso circula facilmente entre a grande empatia e os chamados “ódios de estimação”). A conclusão de JPP a este respeito é óbvia: só há comentários em número substancial, quando os posts contêm “ataques”. O que pressupõe uma rígida linearidade no modo como (dominantemente) se comentaria na blogosfera. Creio que, neste particular, por experiência própria, o número de excepções podia ser considerável e não tão extremado. No entanto, a pirataria sempre viveu em nome da sobrevivência e, no caso da blogosfera, dir-se-ia que vive contra a ‘desactualização’: está sempre lá, batendo-se contra a devoração do próprio tempo da rede.
SEGUNDA LEI DO ABRUPTO : A blogosfera é um lugar de fronteira, onde impera a "lei da selva" e o darwinismo social, logo a intensidade da zanga e da irritação na blogosfera é muito superior à da atmosfera.”
Nesta regra JPP descreve o modo como o féerico praticante das caixas de comentários (esses “Trolls com nick name”) se adapta ao meio. Ele é quase sempre um “anónimo” que desejaria ser “muito conhecido” e que age sobretudo nos blogues mais visitados. Os que não são considerados como ‘agentes de terror’, os chamados “curiosos-sérios” e “inocentes-úteis”, acabariam, com o tempo, por desaparecer, por criar blogues ou – renovando o caudal da espécie dominante – por aderir ao fluxo do vandalismo. É por isso que JPP afirma que a blogosfera não é um espaço simpático (“aprazível”) para “espíritos amáveis” e cordatos. Quanto ao “lugar de fronteira”, é interessante entender que é justamente a diluição de fronteiras entre limiares (público-privado, auditório-emissores, verdade-sentido, etc.) que melhor caracteriza a rede e que a transforma numa matéria sem ‘exterior’ e quase apenas composta por ‘linhas de fuga’. Por outras palavras: não há porto seguro, nem palácio dentro do amuralhado do castelo que sustenha a permanente e plural contaminação das expressões e poderes em jogo. A “zanga” na relação entre atmosfera e blogosfera, último ponto desta regra, espelha a adopção de regras que não têm em conta a perlocução (o impacto). Na atmosfera, o impacto é sempre escrutinado por mecanismos sociais bastante apertados, o que não acontece na rede e, mais concretamente, no (às vezes) familiar bairro blogosférico. Na blogosfera, a expressão acaba por ter em conta apenas a locução (o próprio acontecimento comunicacional) e a ilocução (o compromisso expressivo criado através da linguagem), mas quase se abstém de relevar a importância da perlocução (é aqui justamente que reluz a presença da “lei da selva”, i.e., na proliferação quase ilimitada, indeterminada e caótica de efeitos).
TERCEIRA LEI DO ABRUPTO : A esmagadora maioria dos temas, comentários, reacções, alinhamentos, posições é absolutamente previsível.”
Creio que esta regra corresponde a um acomodamento que é comum à atmosfera (a demarcação de campos como uma coisa dada e pouco ou nada sujeita ao dilema, à desestruturação e à dúvida). Contudo, a previsibilidade “absoluta” poderá ser excessiva. É claro que existem isotopias quase compulsivas (sobre o assunto, ver "O 'tom' dos blogues - 14"), mas a procura de sentido individual no novo meio faz com que na blogosfera a expressão se procure a si própria em diversas frentes. Este facto faz do uso da linguagem (não me refiro aos “trolls”, naturalmente) um campo rico e potencial que nem sempre coopera de modo adequado com a febre reactiva do alinhamento. Esta relativa deriva ou desfasamento também faz regra, porventura excepção, mas sempre a considerar.
“QUARTA LEI DO ABRUPTO : A blogosfera tem horror ao vazio.”
Referi-me a este facto no post anterior, embora na perspectiva de quem encara de fora e com estranheza a blogosfera. O caso aqui expresso é complementar e diz respeito à compulsão, ou à prática de fluxo no seio do mundo dos blogues (ver “O ‘tom’ dos blogues -14”). A provisoriedade e a obsessão, tal como JPP as considera, aliam uma característica da rede (o carácter simultaneamente efémero e perene estilo ‘pixel’) à euforia compulsiva da expressão onde confluem subitamente edição, autor, enunciação, crítica e toda a navegação sem géneros nem limites à vista. Há neste imenso e abrupto ‘abismo’ um fascínio pelo meio que se confunde com a adulação à linguagem própria do ‘blogger’. O resto são espectros e visões fantasmáticas do próprio agenciamento blogosférico: “egos”, “ids” e outro material desenterrado da potencialidade (quando o que era trazido à realidade decorria de uma actualização pontual e regrada) para a virtualidade (onde tudo parece estar subitamente à mostra e ao mesmo tempo). A “implosão” e o “cansaço” (associados ao ‘abre e fecha’ de blogues) acabam por constituir-se como simples cenografias de passagem no crescimento selvagem, desalinhado e inorgânico do novo meio. Num tempo em que a razão das vanguardas desapareceu (antecipar um futuro desalojando um presente), reaparece a aventura fáustica que faz da morte e da vida um vaivém intermitente, ou uma coabitação sem problemas (a “necrologia” do blogue enterrado e a fúria instantanista do novo blogue renascido). É a consecução de um velho sonho romântico que via no simular de uma infinita possibilidade de expressões uma vitória imensa do homem. Tal como Unamuno referiu, a “perda de fé na imortalidade da alma e na finalidade do universo” teve como símbolo maior o Doutor Fausto. Ei-lo de regresso, embora sem espessura literária, sem móbil e sem rosto. Apenas como mosto de uma poção mágica de que tudo e todos se parecem ter inabilmente apropriado. Trata-se, porventura, do novo-riquismo expressivo da blogosfera.
QUINTA LEI DO ABRUPTO : A blogosfera é a Aldeia dentro da Aldeia Global, todos são vizinhos, todos sabem tudo de todos, todos zelam activamente o cumprimento da regra principal da Aldeia: o igualitarismo tem que ser absoluto.”
Esta é das regras mais interessantes, já que constata a existência de uma ideia de “igualitarismo”, embora sem aura nem horizonte hipercodificado. Aqui já não há a voragem dos Fraticelli, do Pseudo-livro de Fiore, do Apocalipse taborita, dos textos de Ubertino de Casale e de Guilloche de Bordéus, dos milenarismos alemães do século XV, do movimento Hussita, de More, dos revolucionários Croquants e do Périgord, dos sans-coulotes e de todos os ideológos de oitocentos. Aqui a ausência de códigos fixos e centrados está na razão directa da simulação de um novo cristianismo original e próprio da instantaneidade tecnológica. Como se da fé fáustica renascida do novo ‘hic et nunc’ ressurgisse um ‘homem novo’ que imporia aos blogues mais singularizantes uma espécie de desapropriação dos meios de produção imaginativos e e, aqui e ali, expressivos. Daí a violência (é por isso que JPP se refere à parábola da “luta de classes”); e daí também o estilo vagamente expressionista - que recorre ao contraste entre a sombra e a luz - para traduzir a ideia de uma empatia intolerante porque obrigatória.
“SEXTA LEI DO ABRUPTO : Na blogosfera o lixo atrai o lixo.”
Mais uma vez, penso que não há exclusividade blogosférica nesta constatação. A genuinidade da atracção dos lixos consiste no princípio permanente e generalizado da reciclagem, descrito na “Quarta Lei”, do mesmo modo que a sobrevivência bacterial dos “Trolls” dita a concentração activa dos “lixos”, já também descrita na “Segunda Lei”. Passe a repetição que é própria na remissão intra-leis, é igualmente verdade que a falta de qualidade possa imputar-se à metáfora do “lixo”: há qualidade quando se coliga referência com audiência (ver “O ‘tom’ dos blogues – 12”). Se num blogue não se vislumbra nem audiência nem referência, então também não se verifica qualquer acumulação de lixo, mas tão-só desperdício.
“SÉTIMA LEI DO ABRUPTO : O tribalismo é a doença infantil da blogosfera.”
O subtexto desta regra remete para os extremismos e visa um tema muito interessante da procura expressiva (do“tom”) dos blogues: o seu espírito gregário e cooperativo. O sentido pode ser determinado pelo simples uso da linguagem, mas pode também inscrever-se no espírito de campanha. Um blogue é “um mundo inteiro a sós”, um fechamento-aberto enclausurado num silêncio glacial, embora com a consciência de que existe uma contiguidade (de vozes) quase sem fim à sua volta. Esta ‘cibercarne’ é o código náutico que garante ao novo guardador do leme, o blogger, a sua segurança mínima. Contudo, o método de conjectura (a abdução) parece-me aqui insuficiente para determinar a evolução na blogosfera, tal como JPP a descreve: do “amiguismo” para o “grupismo” e deste para o “tribalismo”. Sei que a trama é necessariamente figurada e que o “ataque em grupo” é a descrição alegórica da ‘teoria das cabalas’ (e das embuscadas) aplicada ao bairrismo da “Quinta Lei” (o ‘mise en abîme’ da “aldeia” da “aldeia” da “aldeia global”). Só que os ingredientes localistas (e linguístas) da blogosfera, apesar das suas “afinidades frágeis”, respiram e vivem num éter bem mais geral. A rede é a casa da blogosfera e, se a individualidade de um blogue está sujeita ao ‘abre e fecha’ da “Quarta Lei”, então os grupos e as tribos muito mais o estarão. Parece-me que a diluição dos perímetros é uma norma da rede bem mais vincada do que os laços cooperativos entre os nexos flutuantes da blogosfera.
OITAVA LEI DO ABRUPTO : O que vale na blogosfera tem que valer na atmosfera.”
Esta regra é o tema de “O ‘tom’ dos blogues – 15” e diz respeito à assimetria de olhares que atravessa a comunicabilidade contemporânea, sobretudo os meios clássicos e os novos meios da rede, entre eles a blogosfera. Há casos de recusa ostensiva, de partilha, de incompreensão e de remissão instrumental. O jogo é aqui um jogo de poder, mas é também um jogo acerca da função das mediações no mundo actual. A mediação uniu tradicionalmente no espaço público os seus objectos à oposição tímica (thimos: sopro vital) que se gera entre euforia e disforia. Ao contrário dos média tradicionais (e da antiga tragédia grega), o texto publicitário e o discurso político do poder preferem a primeira opção, enquanto aqueles - e outras micro-narrativas do quotidiano - encarnam a tradição da expiação disfórica. Este alinhamento é menos esquemático na blogosfera, já que uma coisa é o universo por que o ’blogger’ opta (o mundo e a perspectiva a que se refere) e outra coisa é a conformidade da sua linguagem ao novo meio (na horizontalidade de excertos e fragmentos de fontes de fontes que pesquisa, i.e., que abundantemente “googla”). As duas coisas são autónomas e acabam por criar tensões que são totalmente alheias ao estilo, ao método e às regras dos média tradicionais. Daí que a paródia (a mobilização de dados de dados que se perdem no agenciamento de dados) conceda à blogosfera um “tom” que não é próprio da restante comunicabilidade clássica. Na blogosfera, nem sempre a euforia é positiva e nem sempre a disforia é negativa: o que as religará é essenciamente o paródico, muitas vezes um paródico vazio e quase sem objecto.
“NONA LEI DO ABRUPTO : O carácter lúdico dos blogues diminui à medida que a importância da blogosfera aumenta na atmosfera.”
É, curiosamente, a constatação mais sentida e pressentida por Paulo Gorjão. À medida que um blogue se torna referenciado (a origem dos olhares atravessa os meios clássicos e os meios da rede), a audiência pode aumentar e esse facto individualiza e esquematiza inevitavelmente a expressão e a temática na blogosfera. Esta subordinação ao olhar, ou esta fuga para a frente face a um certo pudor da palavra (que creio ter ainda muitas reminiscências ‘atmosféricas’), tem influência decisiva na articulação entre o lúdico e a especialização mais fria e/ou baseada em rubricas fixas. Há um arco de expectativas que envolve estes factos e que defrauda, em primeiro lugar, o enunciador que gostaria de ter partilhado ‘a tempo’ as várias potencialidades do projecto que (deliberadamente) ficaram pelo caminho. Mas o próprio conceito de ‘a tempo’ na instantaneidade blogosférica não se compadece com a perfectibilidade, tal como acontece noutro tipo de produção de simulacros. Daí a quase escravidão nietzchiana, ou “a sublime ilusão de ter a fraqueza por liberdade, a necessidade por mérito”. E daí o facto de a escolha ter que se adaptar, na maioria dos casos, à oscilação da construção de agendas e à proliferação cíclica de meta-ocorrências que cruzam - estou de acordo - todo o espaço (público e privado, atmosférico e blogosférico). Mas existem, apesar de tudo, blogues de referência que são blogues lúdicos. Voltarei ao tema, na medida em que o lúdico se transformou, nas últimas décadas, numa parte importante do ‘novo edifício’ que veio suprir a falência das velhas éticas axiais (teo-semióticas ou modernas).
“DÉCIMA LEI DO ABRUPTO SOBRE OS DEBATES NA BLOGOSFERA: A blogosfera não se consegue ver ao espelho.”
A cegueira: uma última regra, porventura menos substancial, mas mais conclusiva. É sobretudo uma metáfora que se subsume ao conteúdos das anteriores regras e que lhes acrescenta um dado curioso e talvez imprevisto: a pouca plasticidade do meio. Ao contrário das obras que vivem de contextos tangíveis e delimitados (esculturas, livros, jornais, objectos, arquitecturas, paisagens), o texto blogosférico auto-inscreve-se e revê-se sempre - pleonasticamente - de modo reflexivo. Ele é praticamente o seu contexto e por isso reinventa-se como um homem entre espelhos paralelos, mas não como um homem diante de um único espelho. As visões celestiais dos velhos textos apocalípticos descem assim à terra e encarnam nas mil miragens que se perdem à superfície dos espelhos. Cada blogue é, ao fim e ao cabo, um fragmento solto e invisível feito de muitas "Alices". Mas cego, ou seja, sem a plasticidade que troca a imagem ao espelho pela deslumbrada figura do ‘blogger’.

quarta-feira, 24 de maio de 2006

O "tom" dos blogues - 15

e
Há pessoas que quase ignoram a blogosfera e que perguntam: “Por que é que (os bloggers) escrevem, porquê?”. Esta inquirição sobre o sentido de uma escrita é muito interessante. É como se se baseasse no horror ao vazio que não é capaz de desvendar uma realidade de tipo instrumental que fundamentasse a existência da blogosfera. É como se não se conseguisse entender a blogosfera fora de uma esquadria transitiva, ou de uma funcionalidade concreta e estrita. É como se uma escrita processada no éter da rede - e onde qualquer um pode escrever - correspondesse a pressupostos pouco claros. A memória não é imune a tais tentações: a revelação islâmica, quer a tradição (hadíth), quer o Alcorão, também se interrogavam acerca do sentido da escrita, sobretudo da poética, minimizando-a de forma extrema (no fundo, ela punha em causa o ‘Sopro de Deus’ e o valor do “Recitado”, i.e., do al-Qurân). As imagens também foram muitas vezes escritas incompreendidas (não só no Islão, mas também em Bizâncio e na famosa ‘beeldenstorm’ ainda hoje visível na catedral de Utreque - Holanda). A interrogação de uma escrita não é, pois, uma coisa nova: ela tece a ideia de uma tentação que caminharia para a – perigosa e lancinante - falta de sentido.
Uma tal desconfiança aparece amiúde espelhada no modo como os (profissionais dos) média clássicos encaram os blogues. Alguns, felizmente, cruzam ambos os territórios. Há muitos e bons exemplos de jornalistas na blogosfera. Outros preferem diminuir a riqueza criativa que percorre a blogosfera, reduzindo-a a esquemas pejorativos que, ou traduzem uma recusa em interrogar as novas questões que ela mesma sugere (deontologia, escrutínio, edição, etc.), ou que pouco têm a ver com a compreensão da rede (reversibilidade, banalidade, efémero, provisoriedade, etc.). Há ainda outros, muito poucos, que fazem da blogosfera uma espécie de ‘monstro intimidador’.
O caso de Eduardo Prado Coelho é, entre estes últimos, tão intrigante quanto revelador. Atento a tudo o que é metatexto, rede, desconstruções e cultura ‘pós-pós’, Eduardo Prado Coelho vem denotando nas suas crónicas uma aberta e ostensiva demarcação face à blogosfera. Entusiasmado desde sempre com um mundo que perdeu fronteiras estanques, Eduardo Prado Coelho decidiu agora, de modo dir-se-ia paradoxal, embora legítimo (está no seu direito!), traçar uma fronteira entre si e uma das matérias mais criativas onde a linguagem contemporânea se está a redescobrir: a blogosfera.
É verdade que a sua crónica diária, O Fio do Horizonte, é tematicamente previsível (há um mesmo horizonte sobre ou do qual EPC fala) e expressivamente contida nos moldes que a encerra (isto é, fecha-se numa natureza bastante orgânica). Por seu lado, a natureza de um ‘post’ contradita o modelo de Eduardo Prado Coelho, na medida em que se apresenta como tematicamente bastante imponderável e expressivamente (ainda) à procura de uma adequação.
É verdade que a mediação vertical de O Fio do Horizonte nada tem a ver com a mediação horizontal de um post: de um lado, está-se almofadadamente em palco dominando de forma quase imperial a plateia imaginária; do outro lado, está-se ao nível do rosto dos interactores - nesse local difuso e indistinto onde a enunciação e a recepção se confundem.
É verdade que O Fio do Horizonte vive de um contexto altamente codificado (um jornal, públicos direccionados, um leque narrativo diário, etc.), enquanto um post vive de um contexto próprio, na medida em que habita e respira na malha dispersa da rede onde o acesso post mortem é feito por motores de busca e não através do agenciamento em hemerotecas.
Seja como for, este tipo de distanciação ostensiva face à blogosfera significa que a procura expressiva (o “tom”) que é própria da jovem história da blogosfera acaba por ter impactos importantes, quer no seu seio, quer também – e sobretudo - fora dela. Não se trata apenas de uma diferenciação de atributos entre expressões off e on-line. Trata-se, sim, do que Deleuze caracterizou (EPC saberá muito bem do que falo e é por isso – e apenas por isso – que recorro a esta terminologia) como “desterritorialização” entre ambos os campos, i.e.: inevitavelmente andam fundidos um no outro o ‘devir blogosférico dos cronistas’ e o ‘devir cronista da blogosfera’.
Uma coisa é certa: é tão paradoxal e curiosa a posição de Eduardo Prado Coelho quanto é estimulante e desafiadora a questão dos impactos da expressão blogosférica no espaço público (e não apenas no seu próprio universo).

terça-feira, 23 de maio de 2006

O "tom" dos blogues - 14

e
O sentido individual é hoje em dia particularmente marcado por fluxos, ou seja, por agenciamentos mais automatizados do que autonomizados que condicionam as escolhas (consumo, imagem e mobilidade são exemplos de práticas que excedem a necessidade: consumimos mais do que necessitamos, vemos mais imagens do que ponderamos, viajamos amiúde por viajar). Por outro lado, as referências do agir colectivo tornaram-se nas últimas décadas bastantes instáveis e flutuantes, muitas vezes delineadas por ‘main streams’ ou por meta-ocorrências que se propagam através dos média (no fundo, a narrativa que leva hoje a cabo a velha catarse dos mitos antigos).
Há de facto na actualidade uma miríade de escolhas que passou a corresponder a um efeito de fluxo ou compulsão. O princípio da rede – ‘É preciso estar lá’ – adequa-se a este tipo compulsivo que está a transformar os aparelhamentos hipertecnológicos numa espécie de templo onde o processamento instantâneo de possibilidades sugere visões, milagres e súbitas redenções (o vasto e encantatório palco da virtualização). Quer isto dizer que, ao contrário do sempre adiado ‘clímax’ da história moderna, que se via a si mesma como um edifício orgânico, continuista e progressivo, o verdadeiro “locus” da história está a ancorar, de dia para dia, apenas e tão-só no coração do presente.
A blogosfera também se insere nesta cartografia feita de fluxo, compulsão, pertença e presente imediatista. A conquista do sentido individual na blogosfera alia-se a uma intensa procura expressiva e tem demonstrado, por isso mesmo, uma clara tendência a sobrepor-se a qualquer horizonte de sentido mais geral, apesar das marcações políticas e das empatias diferenciadas (mesmo em momentos em que as ‘separações de águas’ mais se fizeram sentir nos discursos blogosféricos, caso da guerra do Iraque em 2003). No entanto, não deixam de se verificar na blogosfera automatismos e práticas interessantes de fluxo. Algumas isotopias e laços de empatia expressiva estão a tornar-se comuns. Sem me referir a exemplos de metabloguismo, dou de seguida alguns exemplos relevantes mas dispersos dessas partilhas:
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a) Registar um quotidiano absolutamente inesperado (neste caso, sinalizando o caos em que se deixa um quarto de hotel e fazendo eco do ponto de cruz como forma de esquecer os tristes caminhos de Portugal);
b) Reabrir ou descobrir polémicas e debates (neste exemplo, a partir do caso Handke vs. Jorge Silva Melo/Augusto Seabra com posteriores extensões a Rui Rio e à Relação do Porto);
c) Escrever com base em alegorias ambíguas e paródicas (o caso Carrilho - entre a fúria do “epitáfio” e a “missa do sétimo dia” - e as reformas de Sócrates);
d) Antever factos descomprometidamente (caso do destino de Marcelo Rebelo de Sousa ou do desfecho de uma guerra entre supermercados);
e) Registar territórios e ambientes (neste particular, a transformação de Cascais ou o cenário do Portugal rural “das couves”);
f) Analisar a narração televisiva diária (sobre um Prós e Contras que se anunciava fracturante);
g) Registar o que escapa à ordem mais previsível das coisas (neste caso, as “deliciosas gralhas” – “Opus Day” por “Opus Dei” numa crítica ao filme O Código Da Vinci – e a procura de palavras certas e “doutas”);
h) Aconselhar ou sugerir leituras (ofício quase diário e, neste caso concreto, visando uma entrevista e um artigo de jornal).
e
A procura expressiva que pressupõe a adequação ao novo meio blogosférico (o "tom”) não se circunscreve a isotopias. É normal que haja mimetismos temáticos no vaivém que se desenha entre os fluxos (repetições quase inevitáveis) e a criação de um sentido individual que dita, dia a dia, a sua inscrição no pequeno rectângulo cor-de-laranja “Publish Post”.
Seja como for, a procura expressiva não se reduz às áreas temáticas e às abordagens que poderão ser dominantes, na medida em que uma coisa é o agenciamento do blogueador (o mundo que ele escolhe para e de que falar) e outra coisa é a adequação da linguagem utilizada. As duas coisas são autónomas. E são de tal modo autónomas que seria possível concluir que entre o agir humano (dos blogueadores, neste caso) e o agir das linguagens existe uma interacção maleável e aberta que se confunde com um sincretrismo quase sempre invisível.
É nessa invisibilidade que o “tom” se vai definindo.

O encanto dos "mortinhos"

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O relato prossegue no seu misto de entediado paralelismo. Brenda fez ontem de soissante-huitard: quis ir directa ao assunto, embora o propósito narrativo visasse apenas repor as origens da história de Maya (simplismo exagerado). George pareceu subitamente ressuscitado: privou com Claire, exibiu a espiral de Simenon, desejou viajar e foi ainda ver a nova casa que Ruth lhe propôs. Claire continua a afundar a vivacidade e viu-se ontem envolvida na mais patética das passagens do Six Feet Under (a mãe de Brenda e de Billy, geralmente hilariante e divertida, contracenou com tal penumbra desnecessária). Keith e David continuam na rota da seda do adopcionismo e quanto maior é a circumnavegação do ‘politicamente correcto’ menor se vai tornando a expectativa do destino criado por ambos. Por fim, o jogo que envolve Frederico e Vanessa encenou, no episódio de ontem, o refluxo já esperado: depois do sol, veio agora o gelo. Cláudia, Luís e Mr. Quid: por este andar, isto – este brevíssimo comentário - vai um dia destes também acabar.

Tonalidades & casos - 14

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"Rocio Guirao Diaz/Mais uma descoberta Argentina. Modelo de altíssima qualidade…" (Aqui é só gatas)
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Passando pelo Blogómetro não é difícil entender a razão que leva certos blogues a serem os mais visitados de todos. São compostos por escritas e sequências de imagens pornográficas que recorrem ao novo meio blogosférico para evocar a mais antiga e ardente película do universo. O mais lido de todos (Aqui é só gatas) anda pelas quase 12 milhões de páginas visitadas. É particularmente económico sob o ponto de vista textual e, ao aventurar-se nos sibilinos territórios da escrita (“Mais uma descoberta Argentina. Modelo de altíssima qualidade…”), são as reticências que nele acabam por dizer quase tudo. Ou seja, as reticências - deixam de traduzir a habitual hesitação ou indecisão, para passarem a servir de ingénuo acepipe aos muitos leitores que aí acorrem como poderiam acorrer a qualquer outro lado onde o business e a (legítima) tentação dos néons falassem mais alto. Nestes blogues não há qualquer procura expressiva (o sentido está lá como estalactite na gruta, i.e., as coisas pertencem-se conaturalmente umas às outras). O que neles aflora é, ao invés, tudo aquilo que se mostra através do exibicionismo, cuja missão é justamente não mostrar objecto nenhum, ou seja, suprimi-los. O que se deixa ver na pornografia é o ininterrupto decorrer de imagens que denota a presença da carne (o bife e o sangue do velho Barthes). O sexo é aqui uma espécie de objecto encenável e manipulável que é capaz de transformar os elementos simbólicos e rituais presentes num mero jogo de cartas instantaneamente aberto ao jogador (é pegar ou largar!). E ele entra com facilidade no desejado jogo, sem burocracias inúteis, dialogando de imediato com o alarde dos seus próprios fantasmas. A mobilização é eficaz, plena e rápida.
A manobra de travessia do espaço da blogosfera está pois à disposição de todos, mesmo daqueles que não perdem tempo em pesquisas de um tom adequado ao meio, já que para eles o meio se limitará a despertar e a avivar os alvos e as finalidades pretendidos (mesmo no mundo off-line). Estes híbridos de turbo e escape à mostra cruzam todos os espaços da contemporaneidade e fazem do seu fluxo uma espécie de intemporalidade. Ao fim e ao cabo, é isso que está aqui mesmo em causa: a intemporalidade dos fantasmas (coisa tão sagrada e profana quanto a ideia de photogenie nos alvores oitocentistas da fotografia). Não deixa de ser curioso que alguns blogues denotem pudor e retirem os contadores para não aparecerem ao lado de tais monstruosas aparições. Sempre houve gente muito séria em todas as galáxias. Até nesta.
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Peço sinceras desculpas ao blogue O Vizinho pela precipitada análise que foi aqui levada a cabo. O Miniscente errou profundamente neste caso e não há como dissimular o facto. Tenho sido directo e franco na blogosfera e espero sempre continuar a sê-lo - assim os deuses e os amigos me ajudem, caro JPT! - na análise à blogosfera.
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Parece que os factos relativos ao blogue em análise me davam afinal razão (ver porquê na caixa de comentários). embora mantenha o que escrevi no caso do post concreto analisado.

segunda-feira, 22 de maio de 2006

O "tom" dos blogues - 13

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Um dos traços (geralmente polémicos) da expressão artística contemporânea diz respeito à banalização. No entanto, uma arte pobre (materiais elementares, fusão com o quotidiano, instalação pura, inscrição minimal na paisagem, etc.) pode ser uma arte muito enraizada no dia a dia e, nessa medida, necessária, fértil e sobretudo autêntica. Do ponto de vista da tradição sacerdotal e quase sacralizada da arte, que fez vida do romantismo para cá (com mais ênfase para o legado formativo, expressivo, reducionista, mas não menos para a chamada arte útil, para a pop e para outros legados de tipo social), esta expressão contemporânea da banalidade é ainda, muitas vezes, observada como uma excrescência dos tempos que correm.
Não partilho desta angústia que é própria de quem olha para o presente com uma perspectiva que já não lhe pertence. Nas últimas duas décadas, um horizonte fixo de referências com mais de dois séculos de idade foi-se descolando da experiência quotidiana, do mesmo modo que a hipertecnologia veio atribuir ao presente novos significados. A banalidade de que tanto hoje se fala é o resultado da reordenação de expressões e linguagens num quadro de mudanças que é no mínimo profundo. Esta pulverização expressiva atravessa um conjunto vastíssimo de territórios e não se limita naturalmente ao que continua a ser (esquematicamente) designado por perímetro artístico.
Os campos hoje em dia contaminam-se, confundem-se e movem-se. A blogosfera é um desses campos que cresceu e apareceu na turbulência que reflecte e está a edificar o presente comunicacional. Subitamente, quebraram-se as paredes que limitavam os géneros e as legitimações expressivas, ao mesmo tempo que se passaram a ouvir vozes que antes não dispunham de meio onde enquadrar a sua expressão própria. Todos conhecíamos já a tradição espistolográfica, enciclopédica e opinativa que era complementada com modelos fixados para a extroversão do intimismo (diário, crónica, memórias, etc.). Contudo, a blogosfera (ao lado de outros meios inovadores) está a proporcionar a enunciação de tipos expressivos que não se enquadram já em nenhum destes moldes que parecem ter sempre existido.
Esta emergente – e às vezes excessivamente eufórica – explosão de vozes tem arrastado consigo errância, procura e sobretudo afirmação admirada. Do seu nada, o anonimato encarnou, encorpou e descobriu-se no vertiginoso papel de autor e de editor, na confluência de olhares que ainda ontem dividia o imenso fosso entre auditório e emissor. Desaparecido o palco que os afastava, removida a crisálida que envolvia a voz, transposto para a rede o desejo de “dizer”, eis que a novíssima panóplia desabrochou. E com ela, entre ela, também com ela, a expressão de alguma banalidade. Mas não se reduza a blogosfera àquilo que se traduz, de modo simplista e apressado, por banalidade. Até porque, para muitos, a banalidade é uma manifestação de deriva e desvario que espelha a descida do ‘céu das expressões’ à ‘poeira terrena dos mortais’. A dessacralização expressiva ‘em curso’ seria assim comum a muito do que atravessa a arte (dita) pobre e a blogosfera. Depois de um longo tempo em que as referências eram autores, vias consagradas e valores pesados e centrais, hoje cada post encarnaria em si e por si uma referência, a sua própria referência: perdida e ganha no novo éter das expressões à procura de rosto.
A “consciência do nosso tempo” é uma ideia moderna e tem atrás de si uma longa tradição. No entanto, o que a torna diferente na actualidade é a dissociação entre horizonte e presente: ambos parecem fundir-se num cenário indefinido de simulações e efeitos (pixels de pixels). As novas formas de perspectivar estão intimamente ligadas ao instantanismo tecnológico e às múltiplas formas paródicas que o desenham no dia a dia nos mais variados campos expressivos, entre eles a blogosfera, os novos designs e toda a esteticização generalizada do mundo. Tal como o poeta Vasco Gato escreveu: “não tem anatomia,/ olhos apenas”. Estamos, pois, num novo patamar (como se existisse Leibniz sem Deus). Confundi-lo com banalidade seria quase crime.

sábado, 20 de maio de 2006

O "tom" dos blogues - 12

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Num livro que recente escrevi acerca da “novíssima poesia portuguesa” e da “expressão estética contemporânea”, um dos factos que salientei foi o de terem surgido, nos últimos vinte anos, muitos poetas de qualidade, embora sem que nenhum deles pudesse ser considerado de ‘referência’ (ao contrário do que tinha acontecido em décadas anteriores, quando nomes como Sofia, Herberto, Belo, Eugénio, Sena ou Pessoa constituíram marcos que geraram correntes, mapas de influências, vogas e modas). Subitamente, a poesia actual disseminava a sua linguagem e, ao mesmo tempo, acabava por desintegrar a própria ideia nodal de referência. Ainda que tal facto possa constituir sinal dos tempos – e eu creio mesmo que constitui -, a verdade é que no caso dos blogues a questão da ‘referência’ não se coloca do mesmo modo. Quer se queira quer não, existem blogues de referência e nem sempre, por sinal, serão os mais visitados (as excepções compadecer-se-ão com o cromatismo da paisagem).
Numa época de posicionamentos, as mensagens tendem sempre a criar posição na mente dos potenciais leitores/ interactores. Quando o senhor Y visita alguns blogues de manhã, é óbvio que há-de clicar em primeiro lugar naqueles que estão posicionados no seu próprio leque de escolhas. Um blogue é tanto mais posicionado quanto mais integrar o naipe de paradigmas a escolher pelo auditório potencial (tal como na poética, o sintagma perde aqui lugar face ao paradigma). Se o posicionamento de um blogue coincide com este tipo de território criado na mente de quem usa e significa as mensagens, já a marca de um blogue é a percepção que o auditório – o público em geral - tem desse mesmo blogue (tal percepção, geralmente intraduzível e inapropriável, é fluida e tem uma amplitude muito variada: óptima, péssima, agradável, indiferente, etc.). Pode, por outras palavras, afirmar-se que o posicionamento de um dado blogue estatui um espaço no cérebro do leitor/ interactor para que a marca de – misto de ‘core’ e património - aí se possa projectar, optimizar e ganhar corpo. Nesta linha de ideias, uma marca bem cotada equivale a um conjunto de imagens que num dado sistema – blogues generalistas ou dominantemente culturais, estéticos, eróticos, políticos, sociais, etc. - tornam um blogue num blogue de referência. No entanto, as coisas não são assim tão líquidas: um blogue muito bem posicionado, que o senhor Y visita todos os dias, pode não corresponder a uma marca bem cotada (mas, no entanto, o senhor Y visita-o sempre); por outro lado, um blogue pouco posicionado, que o senhor Y raramente visita, pode, por outro lado, corresponder a uma marca muito bem cotada. Isto é: nem sempre o posicionamento coincide com a marca, ou mais simplesmente, nem sempre a audiência coincide com a referência (basta, aliás, passar pelo Blogómetro para comprovar esta realidade).
Estes factos põem em causa a tremenda ingenuidade que identificaria a facilidade de criação e alimentação de um blogue com uma pretensa e chã ciberdemocracia blogosférica.
Em primeiro lugar, como vimos noutro post desta rubrica, porque a blogosfera vive do paradoxo do regresso da individuação num terreno que é fértil à "des-subjectivização" (daí que nomes posicionados em meios da ‘atmosfera’ se posicionem de modo geralmente eficaz na blogosfera, embora nem sempre com a agilidade expressiva – com o “tom” – a que o novo meio, dia a dia, obriga - o que, em certos casos, pode acabar por pesar).
Em segundo lugar, porque o sistema blogosférico de remissão (sobretudo o “link”) acaba sempre por valorizar o posicionamento e a audiência em desfavor da marca e da referência. O ‘main stream’ - ou o fluxo fundamental dos links - segue, de facto, na larga maior parte dos casos, a cartografia dos blogues mais desejados e visitados e não necessariamente o recôndito e, às vezes, vago horizonte dos mais cotados (existem excelentes blogues que quase não têm visitantes). É claro que ambas as funções coabitam em alguns – poucos - blogues que poderiam ser designados por ‘blogues de qualidade’ (ao aliarem, por mérito e trabalho próprios, a eficácia à referencialidade). A questão da qualidade deve ser perspectivada em construção – numa lógica de encadeamento - e não no consumar de um processo natural como aquele que liga as abelhas ao mel. Há, de facto, na questão da percepção da qualidade uma óbvia resistência ao reducionismo das categorias. É por isso que a qualidade acaba por refugiar-se, muitas vezes, na própria sobrevivência aos discursos, dando-se a ver, não do modo como o Iluminismo inaugurou o tema (“juízo do gosto”, “o génio”, etc.), mas, de um modo mais próximo, tal como António Ramos Rosa – poeticamente - sintetizou: “se a linguagem se salva é porque a linguagem poética se salva do próprio caos que suscita e enfrenta, constituindo a abertura em que o mundo surge na sua invisível materialidade”. Entenda-se “salvar”, no caso blogosférico, de modo algo prosaico. Isto é, como aquela persistência que fez e faz da linguagem dos posts a clara identificação de uma expressão, ou de um “tom”.
Em terceiro lugar, porque a ciberdemocracia é ainda apenas um (frágil) dado em função da livre possibilidade de enunciação e múltipla interacção e não tanto do escrutínio daquilo que é dito na e através das linguagens que são encenadas e processadas em rede. Daí que a blogosfera quase se exima, com toda a naturalidade e como já escrevi noutro post, à avaliação que é normal noutros meios (jurídicos, literários, económicos, académicos etc.). Isto significa que a blogosfera, tal como todo o design efémero que pode ter enorme impacto urbano, corresponde a uma base laboratorial muito pragmática em que o uso da linguagem e o seu sentido são água e leito do mesmo rio. Ao inscrever-se como anatomia desintegradora do corpo clássico e também moderno (de alguma maneira, ao jeito entrecortado de Nietzsche), a escrita dos blogues está hoje em dia a transpor o monolitismo dos géneros (e a procurar um “tom”) e é por isso mesmo que é composta por rasgões, fragmentos, enxertos, notas em movimento, interrogações súbitas, comentários parciais, palimpsestos instantâneos, esboços narrativos, escorços e relatos em radical ‘media res’ (mas não se reduz, por outro lado, e porventura devido à perenidade da sua auto-imagem - voltarei ao tema -, à mortificada elipse das figurações ‘sms’).

sexta-feira, 19 de maio de 2006

O "tom" dos blogues - 11

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Em Março passado, com o objectivo de proteger a figura do jornalista clássico da ventania interactiva dos blogues – e da rede em geral – o ilustre blogueador Alexandre Soares Silva propôs – com o seu habitual halo paródico - um leque de regras de “polémica”. Estas regras não deixam de ser interessantes no que reflectem da tensão clara que existe, hoje em dia, entre as expressões que a blogosfera procura para si e a bem mais tradicional e até unívoca gramática expressiva que sempre fez um jornalista ser um jornalista:
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“1) O golpe do “Não Generalize”- Uma das coisas que as pessoas deveriam ter em mente, quando debatem com um jornalista polêmico, é que ele sabe que existem exceções. Acredite, ele sabe. Não fique apontando o óbvio para ele, que é muito rude. Não fique dizendo: “Nem todo tenista é burro”. Ele sabe. Talvez até conheça dois ou três que não são burros. A questão é que é muito menos chato escrever “todos os tenistas são burros” do que escrever “há um grande número de atletas profissionais (não só tenistas, é claro) que não são assim, digamos, muito inteligentes. Mas faço questão de frisar que há exceções”. Portanto, regra número um: generalizar é divertido. Deixe o generalizador em paz. Ele sempre sabe que há exceções.”
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É difícil não citar toda a primeira regra (como as restantes). Ela é indutiva e, por razão disso mesmo, carbura do exemplo para a premissa perfeita: deixe que se generalize, deixe que se possa intuitivamente abarcar toda a floresta sem ter que ancorar o verbo na resina de cada árvore. Deixe o vitalismo libertar-se e contenha, caro sujeito blogosférico, o seu polposo e voraz apetite da interacção.
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“2) O golpe do “Não queira comparar” – Ah, esse é velho, e muito popular. Não se pode fazer comparação alguma sem que alguém diga: “Você está querendo comparar Jesus Cristo com Agnaldo Timóteo? Trotsky com Sharon Stone? Eliot com Cacaso?” Meu Deus, e daí? Sim, estou comparando. Comparações só podem ser feitas entre coisas diferentes. Exatamente para ver a diferença. Você compara uma melancia com a lua e conclui que uma é um bocado maior do que a outra. Mas você não compara uma melancia com precisamente a mesma melancia. É preciso ao menos que seja outra melancia, o que significa uma melancia diferente. É para isso mesmo que comparações servem! “Não que eu queira me comparar com Van Gogh, mas...” Mas o quê? Se compare, idiota!”
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Esta segunda regra é a regra da latitude. Se toda a retórica funciona por pares, tal como os hemisférios do cérebro (é a metonímia e a súbita contiguidade, é a metáfora e a semelhança subtil, é a alegoria e a simetria narrativa, é a parábola e a doxa da analogia, é a hipérbole e a miragem do gigantão, etc.), logo o espectro da comparação se torna na ginástica primordial de toda a expressão dos humanos. Daí que, ao comparar, nem que seja a raiz do abeto com o olhar de Proserpina, o cidadão interactivo da blogosfera ganhe mais em eclectismo do que em superar a sua angústia expressiva. O Alexandre, mais uma vez, tem toda a razão.
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“3) O golpe do Ataque Ad Hominem – O bom e velho xingamento gratuito. Nem é preciso explicar porquê isso não deveria ser feito. O texto é sobre matemática, digamos – e o leitor desqualifica o autor porque, segundo fontes confiáveis, “ele é corcunda”. Que feio, que feio. Esse tipo de recurso só é válido, é claro, se o xingamento for ao menos engraçado – alguma piadinha sobre corcundas e áreas cônicas, ou algo assim. Mas essa piada tem que ser um pouco elaborada. Um xingamento puro e simples, ou um xingamento com sarcasmo puro e simples, mas sem um toque de ironia, é um comportamento digno de labregos.”
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Pois é, a ironia. A ironia em vez do “gajo” que é ‘semiótico da Moviflor’ (uma máxima extraordinária publicada há dias numa ilustre caixa de comentários). Por outras palavras: conseguir avançar com desmedida sinceridade e mesmo assim dizer algo ligeiramente diverso do que se quereria comunicar é, de facto, arte pouco “labrega”. No entanto, ela até faz de certo modo escola, hoje em dia, no elevadíssimo milieu tribuno dos parlamentos regionais e das Assembleias Municipais. Só que nem sempre é requintado o modo como o locutor dá a ver o paradoxo ou a contrariedade que desejaria veicular. A coisa sai-lhe atabalhoada, com tons vernáculos e toscos, sobrepondo-se a toada alarve ou de elefante à finura felina que conduziria à acidez da limonada ou à crítica fina. A fulanização e o anonimato andam muitas vezes de mão dada na blogosfera: o que se expande em certos submundos da atmosfera terá na blogosfera o nome de ‘terrorismo do tom’.
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“4) O golpe do “Explique-se Melhor”- Também conhecido como o golpe do “Hein?”, ou “Não entendi”, ou “Fale Sério”, ou “Baseado em Quê Você Diz Isso?”. Não há piada ou frase de espírito ou boutade ou witticism que resista a isso. É como aquele sujeito que pede para que lhe expliquem a piada. Por favor, não peça ao autor da frase espirituosa que justifique sua afirmação em 500 palavras ou menos, usando trechos de jornais de época e bibliografia selecionada. Esse é um dos golpes mais hediondos do manual.”
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O público gosta de ser meta-comprensivo. Nem sempre por não entender, mas porque a própria repetição explicativa coloca em cena o prazer de uma desforra sempre e só imaginária. Enquanto o oponente potencial repete o seu excurso, ele, o pobre adepto da repetição, fica a olhá-lo e imagina – às vezes sem disfarçar - a frescura da guilhotina naquele pescoço dócil, a vibração dos volts na cadeirinha eléctrica e a força da gravidade que o embalaria pelo precipício depois de empurrado com mãos de seda. O público não gosta do laconismo, do texto acabado e do remate conclusivo. O público gosta de intermináveis relatos, de conversas picantes e cerejas e mais cerejas. É por isso que, na blogosfera, a interacção é insaciada: porque, justamente, o texto não tem fim, porque os posts jamais se esgotam e porque a actualidade é sempre a actualidade, removido que foi há muito o futuro e endeusada que foi há muito a amnésia generalizada.
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“5) O golpe do “Debate”- Ah, a mania do “debate”. Não basta a alguém escrever um texto brilhante – na Internet, ele tem que “debater” cada ponto de vista, sob o risco de ser considerado um idiota que não sabe o que diz. Não basta que o regime de governo seja democrático; é preciso que os sites sejam democráticos, com textos democráticos e comentários democráticos, em que leitores democráticos interpelam democraticamente as boutades do escritor democrático até levá-lo a um democrático suicídio. É como se Ibsen tivesse escrito as suas peças apenas para “debater” com qualquer badameco que se sentasse na sua mesa de café em Cristiânia. Ou Oscar Wilde tendo que “debater” seus ensaios com um estudante de sociologia de Goiás. “Não fuja, não fuja! Você não terminou de explicar como fica aquela sua frase sobre a classe média à luz dos conceitos de Durkheim!”
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Aqui é que o texto se confunde com o texto: de facto, uma teia é feita de linhas que se cruzam e que se confundem no produto que parece final. Só que, um dia, a teia desfaz-se e já não se sabe onde a dita terá começado e acabado. O texto – quanto mais o texto de um post - também não é o pontão de um porto onde apenas acosta um casco e um porão de cada vez. Não há nada a fazer aqui: se o aventuroso jornalista terminava dantes a sua tarefa na última linha do último artigo, antes aindade de escalar aos bares do Bairro Alto, hoje o blogueador está perdido como um flanêur sem destino. Não há (praticamente) regra que lhe valha. É por isso, caro Alexandre, que o debate acaba por ser essa coisa bizarra que faz de Ibsen e de Wilde dois marinheiros sôfregos face à impaciência de outros tantos biliões de anónimos marinheiros que com eles comentam o fim do Princípio de Peter. As ondas batem em todo o lado, tal como o texto jorra na omnipresença do debate e da interacção. Não há mesmo nada a fazer: a blogosfera chegou de vez para que a permuta se passe a fazer para lá de um ‘de dentro do texto’ e ‘de um de fora do texto’: todas as Goiás do globário estão abruptamente ao mesmo nível, como se tudo se passasse na instantaneidade do agora-aqui, do hoje e do já.
Deixei o link do post de referência para o fim, já que, misteriosamente (ó Blogger, por que nos abandonas?), o mesmo inibe e apaga tudo o que após ele se escreve: clique, pois, aqui.