Um homem vê uma mulher na igreja. Esse olhar excede a intensidade da neve de Clermont-Ferrand. Passará uma noite em casa dessa mulher, que se chama Maud, e o universo por ambos tacteado bastar-se-á ao peso da palavra. Um corpo chamado palavra. Antes, no mesmo filme, o protagonista – um católico que desafia a matemática e a revelação possível do ateísmo – discute com um marxista num café. Falam de Pascal, de probabilidades, de si próprios: rostos a preto e branco, poses deíficas, brilhos discretos. E fazem-no, com elegância, a bordo de uma imagem que existe, apenas porque o aparecer da palavra a vai gerando. É neste milagre que reside o génio de Rohmer, desaparecido há precisamente uma semana: desfiar o novelo de perguntas em torno da tentação imobilizadora da imagem que não é capaz de parar, apenas porque gira, porque é, ela mesma, uma imagem.
No cinema de Rohmer, a literatura aparece quase em estado puro. Como um glaciar sem nome. Se é que isso existe. Aparecerá, de certeza, fora de si mesma, como se o realizador tivesse descoberto o espelho perfeito que tornaria a literatura numa espécie de inofensiva Eurídice. Longe do mito, do sagrado, e, portanto, capaz de discorrer – cara a cara – com os muitos Orfeus que narrariam fábulas ou cantariam hinos prosaicos nas quatro estações de cada ano. Mas sobretudo no Inferno frio de Clermont-Ferrand.
É um facto que Rohmer colocou a força da palavra na essência e na textura de todas as suas obras. A intriga nunca passou, nos seus filmes, de um breve pretexto sempre pronto a encarnar o encadeamento do discurso, as metáforas e a perenidade possível do amor – ainda que platónico, iniciático ou inquiridor.
Não é por acaso que este “selvagem solitário” foi professor de literatura antes de se entregar à crítica cinematográfica (escreveu sobre obras de Hawks, Rossellini ou Renoir). Foi redactor da Gazette du cinéma e, entre 1957 e 1963, dos famosos Cahiers du cinéma. Fez estudos académicos sobre o expressionismo alemão, com ênfase para a ideia de espaço no Fausto de Murnau, e foi sempre um grande admirador de Alfred Hitchcock (chegou a assinar com Chabrol um livro sobre o realizador).
Le signe du Lion (1959) foi o seu primeiro filme, mas as mais emblemáticas obras de Rohmer apareceriam mais tarde. Foi o caso, sobretudo, de Ma nuit chez Maud, de 1969, e do mágico Le genou de Claire, do ano seguinte. Até ao ciclo dos fascinantes contos juvenis dos anos noventa (Primavera, 1990; Inverno, 1992; Verão, 1996 e Outono, 1998) e aos últimos filmes desta década (que não vi), Rohmer foi autor de mais uma dúzia de filmes e de um sem número de curtas, trabalhos para televisão e de documentários (com destaque para Ville Nouvelle, de 1975).
Em Le genou de Claire, um homem vive uma paixão rara, quase cirúrgica. Conhece uma jovem mulher chamada Claire e coloca a si próprio um objectivo maior do que as suas próprias forças: tocar, um dia, no joelho de Claire. E há-de consegui-lo, já no epílogo, numa pequena embarcação em que apenas ele e ela se encontram. Todo o mundo se reduz a este acto e a esta grandeza: os dedos que encontram o joelho de Claire. Desejo cumprido, paixão realizada. Grande motivo literário, este, sobretudo se revisto nos dias de hoje; neste nosso tempo ilimitadamente livre, mas, ao mesmo tempo, inquinado pelos terrores da correcção e por milhares de (por vezes indescritíveis) microfascismos.