quinta-feira, 30 de junho de 2005
quarta-feira, 29 de junho de 2005
Acordo, abro o rádio e a voz de um representante do sindicato dos enfermeiros diz que a greve tem tido uma enorme "aderência". Mais do que o discurso do adesivo, o mais intrigante no registo da voz do dirigente sindical foi a gravidade e a solene lentidão com que cada palavra, muito senhora de si, uma após outra, era soletrada. Incluindo a magistral "aderência".
terça-feira, 28 de junho de 2005
do Six Feet Under de ontem, vem mesmo a calhar este poema de Rui Costa (não, não se mudou do Milan para o Famalicão, é mesmo outro, mas não é pior). Retiro a última estrofe de A Matéria do Ar e deixo-a aqui como homenagem à luminosidade do tédio que ontem tomou conta das imagens:
Falo como o sono nutre a sua teia e o seu
Veneno. Só os bichos da terra e os que andam
no céu são brancos. E digo:
Acende uma fogueira ao que sobrar do
Mundo.”
(A Nuvem Prateada das Pessoas Graves, Quasi, Famalicão, 2005)
Geralmente escrevo logo que o episódio acaba, mas ontem o cansaço arrastou-me para a cama e revi o comentário ao comentário possível já de olhos bem fechados. O que fica, umas horas depois? A simulada praia mexicana onde os cavalos também se abatem, Brenda omnipresente quase a perder o sentido como personagem, algumas vigílias mamíferas no mais vernáculo estilo da National Geographic, a ridícula saga dos coleccionadores de tufões e as novas tecnologias à “taco de graal” experimentadas por Claire (fez-me lembrar a sensação das velhas pastilhas elásticas “Pirata”; lembram-se?). É tudo.
domingo, 26 de junho de 2005
Tenho estado a escrever sobre a nova poesia portuguesa, sobretudo da última década e meia (tentando cruzá-la com o modo como reflecte as grandes mudanças da actualidade "pós pós pós", liberta da verticalidade do escháton dos "grandes códigos" clássicos e totalizantes e imersa que está na hipertecnologia instantanista e global). Tenho percorrido caminhos interessantes na análise do regresso ao presente e ao quotidiano desta poesia (é o fim do exílio utópico num recôndito futuro sacrificial), no seu pendor emotivo, imediatista e descritivo, no leque de realismos que repõe em cena, no modo como enuncia próteses de um corpo pós-ético, hedonista e atreito à mobilidade e, ainda, na empatia que estabelece com a expressão plástica contemporânea. Isto para além do revivalismo evocativo, das ciberpráticas hipertextuais e de uma liberdade específica que se manifesta na procura de uma autonomia ficcional própria e afastada de estafadas narrativas tutelares.
Há autores muitos bons que leio, releio e sublinho, sobretudo Vasco Gato, Carlos Bessa, Rui Pires Cabral, José Tolentino Mendonça, Paulo José Miranda, Pedro Mexia, Ana Luísa Amaral, Jorge Melícias, Luís Quintais e muitos, muitos outros. Os pequenos livros desta nova poesia sucedem-se: na Assírio, na Gótica, na Campo das Letras, na interessante Averno, na & etc, para além das antologias da Quasi e da Contador de Histórias.
Há muito que me afastei das perspectiva autista que condiciona um dado corpus literário a dialogar apenas com um metadiscurso especificamente literário. É isso que me afasta do círculo texto-crítico-texto e das muralhas herméticas das faculdades de letras (há muito que saí delas). A nossa contemporaneidade é feita de redes de redes, de interfaces, de discursos fragmentários que se cruzam, de simulações colocadas em jogo sem um esquematismo orgânico dado, de lances transversais entre saberes, expressões e olhares.
Esta nova perspectiva transversal e propensa à ubiquidade dos gestos - que tende a rever as meta-ocorrências em tempo tendencialmente real -não pode deixar de analisar a literatura e revê-la até de um modo que já não corresponderá à ideia que dela temos desde o pós-Iluminismo. O mundo está a mudar e é por isso que a respiração criativa há muito invadiu os objectos culturais do planeta, esteticizando-o, e, nesse movimento, fez também com que a arte deixasse de ser uma caixinha fechada para ser vista apenas em museus, ou na micro-circulação que liga a literatura à sua (legítima) transcendência crítica. Desse tipo de analogias estamos agora a passar para um universo de imagens soltas, livres, abertas ao brilho conotativo do interface.
É com este tipo de leitura de viés, diagonal, transversal e aberta às correntes de ar com as expressões contemporâneas (sobretudo a expressão plástica, o design, a instalação, a inscrição do corpo e as ciberescritas) que estou a confrontar a nova poesia portuguesa.
Para já, o destino deste trabalho irá ser um curso on-line. Mais tarde "avaliarei do seu grau de pureza", tendo em vista outros maneiras de partilhar conclusões, diálogos e pistas de entendimento.
sábado, 25 de junho de 2005
sexta-feira, 24 de junho de 2005
Geralmente, à minha volta toda a gente fala do estado do tempo. Geralmente, todos repetem que lá veio, por fim, um pouco de fresquinho. Ficam com os olhos a brilhar com aquele contentamento lunar que sabe a pouco. E eu acho sempre o contrário, mas, ao mesmo tempo, sorrio com (falso) ar condescendente e prefiro não dizer nada. Sinto vontade de me ir embora, de me refugiar no escritório, de contar as páginas ainda em branco do último texto, de ver a água parada a vogar na imperfeita contaminação da memória. Porque eu, sinceramente, prefiro o calor, esse calor mortal de que ninguém gosta, esse calor irrespirável, esse calor da bonomia que, à meia-noite, ou às três da manhã, não deixa dormir nem vegetar vivalma. Sou assim, nasci em Agosto e sinto uma indescritível felicidade com esta dilatação do cosmos.
No poema A Mais Perfeita Imagem de Ana Luísa Amaral, o quotidiano é apenas um pretexto que se convoca sob condição: “Se eu varresse todas as manhãs”, “Se todas as manhãs lavasse estas janelas”, “Se todas as manhãs olhasse a teia a enfeitar-lhe os ramos”. Do imponderável cumprimento destas (e doutras) condições dependeria o entendimento de coisas grandes, tais como a “erosão” do tempo ou a “saudade”.
Há, de facto, coisas que se lêem para subir ao céu na terra:
Se eu varresse todas as manhãs as pequenas
agulhas que caem deste arbusto e o chão que
lhes dá casa, teria uma metáfora perfeita para
o que me levou a desamar-te. Se todas as manhãs
lavasse esta janela e, no fulgor do vidro, além
do meu reflexo, sentisse distrair-se a transparência
que o nada representa, veria que o arbusto não passa
de um inferno, ausente o decassílabo da chama.
Se todas as manhãs olhasse a teia a enfeitar-lhe os
ramos, também a entendia, a essa imperfeição
de Maio a Agosto que lhe corrompe os fios e lhes
desarma geometria. E a cor. Mesmo se agora visse
este poema em tom de conclusão, notaria como o seu
verso cresce, sem rimar, numa prosódia incerta e
descontínua que foge ao meu comum. O devagar do
vento, a erosão. Veria que a saudade pertence a outra
teia de outro tempo, não é daqui, mas se emprestou
a um neurónio meu, uma memória que teima ainda
uma qualquer beleza; o fogo de uma pira funerária.
A mais perfeita imagem da arte. E do adeus.
(A Arte de ser tigre, Gótica, Lisboa, 2003)
quinta-feira, 23 de junho de 2005
Há um antigo livro de Fernando B. J. Martinho, Resposta a Rorschach (1970), baseado nesta figura do diálogo fantasiado, que é construído a partir de palavras revividas e de um sabor a intimidade desejada. Este é, também, o aroma de “Borges”, poema de Fernando Pinto do Amaral, embora a sua morfologia assente, não no diálogo-resposta, mas antes na alocução sem réplica, ainda que ficcional, por parte do alocutário.
O mesmo tom de ambicionada intimidade percorre os versos de Pinto do Amaral, através de uma proximidade que a segunda pessoa vai moldando (“Procuravas”, “foste gastando a tua vida”, “Essa era a tua/ maneira de atingires o mais divino”, etc.).
No final, a evocação parece recuperar aquilo que terá sido o seu destino mais imprevisível, ou, tão-só, o que lhe terá ficado pelo caminho. A toada torna-se subitamente em reconhecimento e em exempla: “poeta que sofreste algures o lento/ remorso de não teres sido feliz./ Uma vida é assim, Jorge Luís:/ Versos, poeira, sonho e esquecimento.”
No revivalismo há, pois, inevitavelmente um regresso, um reatar, um recolocar de máscaras. Apesar de o seu figurino não ser sempre de natureza mitológica, genérica, estilística, citacional ou até intertextual.
“BORGES”
(Fernando Pinto do Amaral)
“Procuravas nos versos a entrada
de um labirinto sempre sem saída.
Nisso foste gastando a tua vida
como se nela não houvesse nada
mais precioso do que a melodia
ditada pelos sons do alfabeto.
Era o réu reino mágico e secreto,
o império de um cego que sabia
ver melhor que ninguém a luz da lua,
a sua claridade cor de prata
onde se projectava a imediata
transparência do mundo. Essa era a tua
maneira de atingires o mais divino
reflexo de um espelho imaginário,
o rosto do maior adversário
dentro e fora de ti, ó argentino
poeta que sofreste algures o lento
remorso de não teres sido feliz.
Uma vida é assim, Jorge Luís:
Versos, poeira, sonho e esquecimento.”
(De Poesia Reunida – 1990/2000 em Anos 90 E Agora - Uma Antologia da Nova Poesia Portuguesa, Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2001)
quarta-feira, 22 de junho de 2005
Dedico este belo poema de Ana Luísa Amaral ao amigo que hoje confessou aquela dor oculta. Fiquemo-nos por aqui. A vida continuará e os olhos, apesar da dor, vão agora tomar atenção à pulsação do poema:
“São projectos de sonho atravessados,
desafiando nascimento e morte:
projectos limitados a não ser.
Roubados do novelo,
da primeira função de bastidor,
pouca coisa lhes resta:
meia dúzia de esboços
com que pintaram sortes.
Que o novelo foi todo tricotado:
tornou-se camisola em tons de mel
sulcada por brilhantes,
e em labaredas calmas ressuscita:
a esfinge em fuso exacto,
o leão em rugido de rouquidão
diferente.
"A luz", exclamou, por fim,
deixando a quem vier:
varanda
- e algum
real.”
(Imagens, Campo das Letras, Porto, 2000)
terça-feira, 21 de junho de 2005
segunda-feira, 20 de junho de 2005
"A Europa (ocidental) não quer aceitar a crise do seu modelo de bem-estar baseado em premissas que mudaram e em parte a favor de outros povos mais atrasados. Rabuja contra os Estados Unidos, por inveja e rivalidade. Protege-se contra a China e a Índia, países de pobres sem direitos sociais. E, depois de uns abraços aos europeus de Leste, mostra-lhes claramente que as querelas de prestígio e de egoísmo feroz entre os velhos inimigos no seio da própria Europa ainda não morreram. Agora, que os nossos irmãos europeus de Leste se juntam ao ocidente europeu numa Europa unida, um marco histórico verdadeiranente milenar, o espectáculo que oferecemos é outra vez o dos egoísmos financeiros e das rivalidades nacionalistas. Por mim, creio que não serão nem a economia nem o despique de influências que nos vão fazer entrar num novo período de progresso material e espiritual, moral e social. Parece indispensável renovar o espírito europeu."
de dizer que me sinto muito orgulhoso pelo facto de um português, na competição da fórmula 1 de ontem, ter chegado em terceiro lugar à meta. O noticiário da RTP-1 relatava a coisa com uma toada epicizante, sem que ninguém se risse à gargalhada com o resto da notícia: é que houve catorze desistências e apenas acabaram por comparecer na pista seis viaturas. Mas mesmo assim, o génio luso soube impor-se aos três últimos e singrar num terceiro lugar a contar da frente.
Hoje... começo por dar a palavra a Carlos Bessa:
Dizer o que se tem com palavras simples.
Por exemplo, é ridículo viver para
ser história no futuro. Como se os anos
transformassem um rato num gato.
Ele há tanta gente que sonha ser rei.
E tu há muito te apercebeste de que
jamais terás lugar na corte. É tão triste.
Não saber estar com a multidão e
tudo dizer atabalhoadamente. O amor,
a solidão, o nome, a morte.
(Em Partes Iguais, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004)
domingo, 19 de junho de 2005
Para além do Carlos Bessa, do Vasco Gato, do Rui Pires Cabral e do Paulo José Miranda - tudo óptimo e jovem versejar -, redescubro sobretudo a poética da sesta. Tem sido assim, ontem e hoje, entre ralos, cigarras e o abafado rumorejar das nuvens baixas. Quarenta graus à sombra, sonhos descontínuos, fragmentos de argila, a pele em ardís e o cantil imaginário a doar ao viajante onírico o mais belo sumo da existência: a preguiça, a pausa, os olhos cravados no tecto onde abundam ainda penumbras em movimento e carros de cavalo muito lentos (interrompo, pois o meu cão - o Ulisses - não suporta a concorrência equestre e demonstra-o com a sua potente voz de quarto baixo).
sábado, 18 de junho de 2005
Estou na Área de serviço de Vendas Novas e é noite. De repente, vejo um carro, em aceleradíssima marcha atrás, a devorar os sentidos proibidos entre a zona do restaurante e a bomba de gasolina. Segredo para mim aquelas coisas que se dizem nestas alturas ( Pato bravo!, Novo rico! Portuguesinho! e... etc., etc. - é melhor ficar por aqui).
Depois, deixo tranquilamente o travelling do olhar a circular, e eis que decifro a cara do artista.
Era o Luís Delgado.
sexta-feira, 17 de junho de 2005
quinta-feira, 16 de junho de 2005
E parabéns, Francisco, pelos dois anos de vida!
Segue o presente de aniversário, sem título, mas assinado pelo José Gomes Miranda:
ficas alerta no topo de uma meda de feno
e assobias e acenas com o lenço vermelho
e venho a correr
antes da penumbra."
(De O que nos protege em Anos 90 E Agora - Uma Antologia da Nova Poesia Portuguesa, Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2001)
As cadeiras brancas, branquíssimas, com aquela forma iluminada que a penumbra dá a imaginar no meio da escuridão. Olho e vejo-as lá em baixo. Há, pelo menos, a distância como conformação. Uma certeza íntima de partilha. O logradouro de uma saudade remota. Onde é que eu já vi, ou vivi isto?
Há uns quinze anos bastava dizer “a guerra” para legitimar o sonhado esteio europeu. Tudo valia em nome da paz e da liberdade, ainda que o escrutínio raramente se acercasse dos cidadãos. A coesão, nessas circunstâncias, não era verbo desconcertante. Mas o tempo mudou radicalmente e a “guerra” já não é mais a ferida mal fechada de há duas décadas. Hoje, essa mesma “guerra” já não passa de um filme quase mudo e estupidamente ignorado. Nas novas circunstâncias, a coesão, os tratados, as generosidades, o próprio projecto europeu são coisas a perderem o sentido (o mais estúpido da condição humana é o “horizonte” que é sempre o “horizonte de uma conjuntura”). Há quem faça moda desta fácil constatação que é ver cair em movimento prenunciado um continente inteiro. Há quem adore escorços de apocalipse, agonias destemperadas e memórias à deriva. É fácil desdizer quando o dito já está a arder em chamas na frente dos nossos olhos. E o facilitismo da moda tanto entra na boca de cena do “Não” - não há como um “Não” para unir sem qualquer esforço de alternativa -, como entra na boca de cena do “Sim”, porque, neste caso, não há nada como um “Sim” consensualizado para cativar a inércia alheia (veja-se o “Sim” do parlamento alemão). Mas a Europa, quer se queira quer não, viverá sempre para além da tensão entre este “Sim” e este “Não”. Há uns quinze anos, ou há duas décadas, a “guerra” era o quanto bastava para superar os “Sins” e os “Nãos” potenciais (os vencidos ainda se escondiam sob a balaustrada silenciosa dos vencedores). Nessa altura, não era difícil encontrar grandes líderes e causas. Hoje, o que bastará para salvar a súbita crise do malabarismo criado por Giscard e pelos seus insondáveis aliados? Que nova “guerra”, que novos “líderes”, que novas “causas”, que novos “problemas”?
Há um compromisso anunciado, mais um, a deslizar entre o “Sim” e o “Não” que nos vai ocupar em cimeira de fim-de-semana. Já todos o conhecemos. Falta agora sentir o tom da sua enunciação. É disso que é feita a política: da adequada prosódia da alocução.
quarta-feira, 15 de junho de 2005
Um instante que se parte. Como uma miríade de átomos a flutuar no céu entre encruzilhadas e redes.
Há um teclado arenoso à minha frente: o grande concerto sem maestro ou o aquário de nomes perdido entre paredes translúcidas, mas tão maravilhadamente opacas.
Soletro e vem de imediato ao ser o quebranto gelado do instante que se quebrou.
É esta evasão singular que dá nome ao nome. A qualquer nome.
terça-feira, 14 de junho de 2005
Ligeiramente tardias, começaram hoje a sair da árvore, uma a uma. Sôfregas de gestação, maduras e alagadas no doce sumo que é o seu. Trazem pele muito fina, o perfume quase meloso e a cor a estrondear aquele tipo de eco que se perde nas águas interiores, profundas e íntimas. São assim as ameixas do meu pátio.
“Eu já fui o Joe”, segredou Nate com voz melífera. O sol vai nascer em breve. E a manhã renasce com aquela brancura translúcida, com aquele peso de insónia que leva os sons a afoguear-se. Ouve-se, nessa imprevista saga de silêncio, o gemido de dois pobres gatos que dão uma queca súbita e sofrida. Mas não admira: eles moram num beco, mundo fechado, luar de sofrimento, belíssima tautologia: a cat is a cat and “Nathaniel is… Nathaniel”. Entretanto, no coração do Midwest, uma jovem star está deprimida e nada melhor do que um bar de gays para saltar por cima da Via Láctea. Uma depressão é uma depressão, como deve ser: o suor torna-se confessional, a barba rasíssima e a tez é quase ungida pela sinceridade dos aventurosos que a acompanham. E há-de também haver um tempo para o génio das pipocas em plena sala de cinema. Sem mais, uma voz desabrida solta-se e cresce. Claire: “Eu não quero pensar que não o faço apenas por ter medo. Deixa-me primeiro lavar os dentes” (lembro-me, nesse momento, da mais bela das majorettes de American Beauty). Seja como for, o mundo puertoriquenho é sempre o mais agitado e impetuoso: “Eu vi a outra, entregaste-lhe o livro e sei que ela te ama. Isto não pode estar a acontecer. Sai já de casa!”. Brenda flutua em vasos comunicantes, sem o saber: “Fiz uma coisa má”. Joe: “Mas… eu conheço essa pessoa”? “Não”. Não. Jamais. E, no meio de tal areal, de tão luminoso, há ainda espaço para um suave mundo de aparições que aconselha a celestial ingenuidade de Nate: “Fica com essa mulher e deixa-te de motéis repugnantes. Não. Não. Isso não. Procura antes a Brenda. Amanhã pode ser já tarde”. Brenda? Brenda? Sim, Brenda. Só mais uma vez: “Bom dia, soldado, estou à tua disposição”. E por que é que as pessoas procuram fósseis? Não sei, ninguém porventura saberá. Apenas sei que “sou uma pequena petúnia no meio de um campo de cebolas”. E eu sei que “já fui o Joe”, segredou Nate outra vez com a mesma voz melífica. Sim e não: Até quando? That´s the point, Charlotte, Polly, Cláudia e Luís.
segunda-feira, 13 de junho de 2005
O que diz o mistério não se sabe. O que fica no poema é talvez disso um vestígio, seu sinal maior. Que pouse na penumbra do dia este Canto Rouco, escrito pelo poeta hoje falecido:
CANTO ROUCO
Antes que perca a memória
das pedras do adro,
antes do corpo ser
um só e quebrado
ramo sem água,
devolvei-me o canto
rouco
e desamparado
do harmónio na noite.
Mãe,
desamparado na noite.
domingo, 12 de junho de 2005
"Que terá este Portugal — penso eu — para assim me atrair? Que terá esta terra, por fora risonha e branda, por dentro atormentada e trágica? Não sei; mas quanto mais lá vou mais desejo voltar. Cheguei a crer que estes extremos ocidentais deram as mãos espirituais aos extremos orientais, aos da Índia, e chegaram ao triste miolo da sabedoria, à compreensão da inutilidade final de todo o esforço. Dir-se-ia que ali pousa a lúgubre sabedoria do Eclesiastes. Nesse povo triste, tristíssimo, a gente diverte-se, sem dúvida, mas diverte-se como se dissesse: comamos e bebamos, que amanhã morreremos."
“Até onde te fazem descer, decrépita universidade! Como os filhos das tuas entranhas tuberculosas, servos parricidas, te apertam as cordoveias da garganta até deitares cá fora a língua cheia de injúrias e de parvoíces! Lá te ias arrastando na tua velhice, amparada no preconceito de cinco séculos que são as tuas muletas: e vêm os teus filhos, e, a encontrões de troça ébria do Bairrada, quebram-tas, e tu aí estás estatelada no muladar. E eu, ao perpassar por ti, não voltarei o rosto na repulsão do nojo. Erguer-te-ei; e, pois já agora seria extemporânea tolice conduzir-te à escola, levar-te-ei a um asilo de inválidas. E como o clínico da casa te há-de perguntar o nome e os achaques, responde-lhe que és a Minerva portuguesa com disenteria crónica.”
(Camilo Castelo Branco, S. Miguel de Ceide, 18/05/1883, A Questão da Sebenta em As Polémicas de Camilo – I, Portugália Editora, Lisboa, s/d)
sábado, 11 de junho de 2005
Regresso a casa, regresso à noite das absides iluminadas, regresso ao gladíolo que deu hoje pela primeira vez uma flor branca.
E que mais?
Três breves reparos com os olhos presos ao fim do horizonte:
- Os feriados proporcionam ao país um ar de sublime e apressada mortificação (mas eu adoro as ruas vazias e as palmeiras sedentas da nuvem mais líquida).
- Os feriados consagram o país ao enevoado peso do mutismo e da saudade própria (mas eu adoro percorrer a vacuidade dos discursos, essa imensa paródia que esquece o abismo e a ponderação).
- Os feriados inventam o ócio que atravessa a civilização da crise (nada a que o "arrastão" da Praia de Carcavelos seja alheio).
Santos populares? Sim, sem qualquer moderação.
sexta-feira, 10 de junho de 2005
Ontem fui ao Largo de Sto. Antoninho para comer sardinhas e ver tocar os Latinos de Ouro que envergavam camisola azul e calças pretas. Eram acompanhados por duas irresistíveis ninfas de barriga Marie Brizard que ululavam e vibravam com um pouco de tudo: marchas, baladas, chanson française, brasileiras, melopeias pimbas e fado de turbo caído. Os espontâneos da Bica marcavam o empedrado com todo o preceito, o embarcadiço de pulso engessado atirava-se às holandesas que se pelam por estas peças exóticas, enquanto o fogo de artifício ressoava nos ouvidos da bela anã à moda de Kusturica que atravessava a passerelle do clube Zip-Zip com um pimento verde em cada mão.
quinta-feira, 9 de junho de 2005
“Juntavam-se diária e infalivelmente no «Martinho» três tipos extravagantes e de tão singular aspecto que me inspiraram a curiosidade, em mim rara, de saber quem eram. Sobretudo depois de os ouvir, uma vez que abancaram na minha vizinhança. Após várias referências a brilhantes façanhas donjuanescas, falaram do Fialho e percebi que colaboravam no trabalho acintoso da horda então amatilhada para o desprestigiar, pretendendo mudar-lhe o antigo ceptro literário em mísera cana verde.
Um deles tinha a cara completamente hirsuta de uma tal rigidez de coiro que lembrava um ouriço cacheiro com um par de óculos escanchados no lombo.
Ao outro bailavam-lhe os ossos na pele, que pendia e se ajuntava, sem consistência, para onde o corpo se inclinasse; no rosto franzia em pregas à roda do queixo, e nas mãos os próprios dedos pareciam metidos em tripa seca.
O terceiro, de estatura extremamente exígua, os olhos mortiços, as feições angulares, o crânio desconforme e abaulado, ameaçando com o seu peso desequilibrar toda a máquina corporal; de todos o mais desdenhoso, mas levantava-se precipitadamente da cadeira, apenas assomava à porta do «café» algum figurão de importância, e corria-lhe ao encontro para lhe apertar as mãos entre as suas, cujos dedos mordiam como turqueses de caranguejo.”
(M. Teixeira Gomes, Carnaval Literário, Portugália Editora, Lisboa, 1960 - 1ª edição: 1939)
quarta-feira, 8 de junho de 2005
E depois do dia abrasador, regar a relva, as buganvílias, a laranjeira, os gladíolos, as manchas de hortelã-da-ribeira, os jarros, as petúnias e tudo o mais. Um cheiro a agasalho húmido a trespassar a quietação do deserto que ainda tremula nos ares e se apoia às desafogadas telhas da noite. É o regador como alfaia do espírito, como azáfama do ponto morto da felicidade, como azimute do desejo.
terça-feira, 7 de junho de 2005
Claire conhece o que realmente toca as pessoas e torna, por isso, a pragmática numa ciência dos relvados noctívagos. Keith venera os insufláveis chumaços de Celeste e ignora a volátil paixão de David por caril com abóbora. Mas o bem resguardado pânico de David apenas consegue abrir portas ao sorriso bruxuleante de Claire, no day after espirituoso que a fez cometa e cuja redenção acabou por transformar o seu irmão, Nate, num pródigo regressado à causa dos funerais. Entretanto, a mãe deste suave milagre familiar escuta a fábula da 'ex' do marido, enquanto relata quase tudo o que sabe sobre Sophie, com aquela ingenuidade de gazelinha aninhada em águas profundas. E Brenda, tão feliz sob cortinas espessas e, ao mesmo tempo, tão prefiguradora dos grandes desabamentos da alma! Que sobrará à sua desencantada e escarnecida arena, a não ser a visão tão rotundamente real que a leva de volta aos lábios de Nate? Tudo, nos próximos episódios (até mesmo, a memória colorida daquela última ceia do aniversário de David, o anti-herói sacrificial sem Monte das Oliveiras à vista).
segunda-feira, 6 de junho de 2005
Nos textos clássicos de cariz profético, uma voz, dotada de omnipresença e de pré-conhecimento absoluto, comunica a uma outra voz, associada a um nome geralmente simbólico e no quadro de um relato primeiro, um determinado saber. Esta competência, entre outras secundárias, manipula a expansão fundamental dos mundos possíveis do profético e acaba por inscrever, à superfície desse tipo de textos, uma topografia e uma espacialidade que parecem, a todo o momento, sobrepor-se àquilo que deveria ser a grande inquietação clássica do horizonte de expectativas do género: o cronograma da salvação. Ou seja: quando é que vai ter lugar o que Deus, por interposta voz, anuncia - ou terá, alguma vez, anunciado - à humanidade ?
No seu livro, Jules Verne - o espaço africano nas aventuras da travessia (Cosmos, Lisboa, 2000), Carlos J. F. Jorge refere que a "ordo naturalis" do texto é a temporalidade, enquanto, por paradoxo, o devir da literatura aspiraria sobretudo a uma reposição mimética (espacial) do mundo no literário que o representa. Para Verne, de acordo com a perspectiva de Carlos J. F. Jorge, o saber apareceria, homologicamente, como uma solução para tal paradoxo. Isto é, o espaço descritivo, nos textos de Verne, acabaria por superar a encenação ficcional do realismo-naturalismo, dominante na época, ao suprimir as fontes de relatos anteriores e, simultaneamente, ao recorrer a elas, sob a forma de factos que aparecem transpostos na voz (enunciadora) de um saber magistral e enciclopedicamente pré-adquirido. Esta montagem terá traduzido, por outras palavras, a divinização do positivismo e a passagem da lógica pré-moderna do ex-eventum para a lógica dos jogos intertextuais modernos.
Esta é a palavra do mês: "adquirido". Há alguma doce idiotice no fundo lodoso e corporativo da palavra. A vila alentejana de Olivença, o último ornitorrinco e a plumitiva memória do Diário Popular também eram adquiridos. Andaram durante milénios no mapa. E já lá vão. Não me queixo de nenhum, mas lá que é assim, é. Outro dia, o administrador de uma empresa para onde trabalho há quinze anos, telefonou-me e simpaticamente informou-me de que o meu salário seria reduzido em cerca de 70%. Pré-falência técnica. And so what? O meu sindicato chama-se Voltar à Carga. E aqui ando. Mobilidade, iniciativa, skills. Má nada.
Há quem funcione por fixações. Ou detestam Marcelo, ou defendem as espécies do Rio Mira, ou amam como mais nada a voz de Marco Paulo, ou sonham dia e noite com o Belenenses, ou vivem só para a pesca, ou reiteram - segundo a segundo - o seu ódio ao futebol. O mais curioso é que estas apetências são muito vivas entre quem não se acha nada esquemático.
sábado, 4 de junho de 2005
“Alto e mui grave, vestido de azul e com um colarinho voltado sobre uma gravata escarlate, tinha bem a figura do carácter, e não se podia mirá-lo sem logo lhe ver, na ingénua arrogância, o quer que fosse do ser filtrado misteriosamente por uma estranha e aristocrática selecção. O tipo era seco, com uma ossatura poderosa, a pele de fêmea loira, rosada de bom sangue, a cabeça pequena e grega, com uma testa magnífica e feições redondas, onde os olhos amarelo-pardos de estátua, ligeiramente míopes, tinham a expressão profunda, rectilínea, longínqua, que a gente nota nas dos marítimos acostumados a interrogar o oceano por dilatadas extensões.”
sexta-feira, 3 de junho de 2005
O Ministro das Finanças da Holanda, o senhor Zalm, declarou ontem que "todas as desvantagens têm também a suas vantagens". E é por isso que a edição de hoje do Volkskrant esclarece tão nitidamente as intenções do governo Balkenende, ou seja: a partir de agora, a Holanda vai utilizar em Bruxelas o "Não" ao Tratado Constitucional para baixar drasticamente os montantes que se habituou a pagar à União Europeia, ao longo das últimas décadas.
Significativo, não é?
António José Seguro não gosta dos aumentos do IVA. António José Seguro não gosta de abandonar a direcção da bancada parlamentar do seu partido. António José Seguro não gosta de outra coisa: desde os bancos da escola à JS e daí a funcionário permanente da coisa política. Mas há Antónios Josés Seguros em todos os partidos. Os do PC são cónegos mirrados, os do PSD são Antónios Josés Seguros tal e qual e os do PP são mais betinhos e encaracolados, mas tão Antónios Josés Seguros como o próprio. E há ainda os Antónios Josés Seguros do BE que são quatro ou cinco, sempre os mesmos, a atirar pedras ao ressentimento de quem vive em liberdade. Finalmente: quem é António José Seguro? Um novo Acácio sem Bordalo. Uma questão de verniz e nada mais.