sexta-feira, 30 de dezembro de 2005
Desejo-vos um grande 2006!
Já saiu (INCM)
e
Ou as duas coisas, insustentadamente e ao mesmo tempo?"
quinta-feira, 29 de dezembro de 2005
Há quatro décadas
Confissões epistolares
Tenho andado a mexer em papéis nesta pausa de fim de ano. E acabei agora mesmo de encontrar um conjunto de cartas do Vergílio Ferreira que há muito pensava perdidas. Esta foi escrita a 31 de Julho de 1984 e recebi-a, à época, na minha casa de Amesterdão. Depois de algumas frases iniciais, o teor de VF é revelador:
quarta-feira, 28 de dezembro de 2005
Férias
Swinging
terça-feira, 27 de dezembro de 2005
BI de Maria Filomena Mónica - 2
a) Gosto da dimensão do livro, particularmente ligada ao ethos da primeira pessoa, que enaltece a ambição, o narcisismo, a confiança, o deslumbre e a coragem. Esse aspecto, o mais detestado pela gíria dos leitores locais (pelo que tenho reparado), tem muito mais importância do que os factos que são relatados, sobretudo quando querem assumir alguma pertinência na cenografia histórica da época radiografada.
b) A referência ao “voyeurismo”, que já vi insistentemente inscrita em blogues e na imprensa escrita, também não me parece ter grande razão de ser. Para que se olha, quando se olha para dentro deste livro? Creio que se contempla a errância e o fluir entre vias que jamais se dissociam de alguma desordem (o que acontece em todas as vidas). Como refiro no post de baixo, as elipses que legitimam a montagem deste livro não serão talvez as acordadas pela expectativa habitual de quem se relata a si mesmo. Mas não deixam de ser elipses e o enredo não deixa de ser montagem e construção.
BI de Maria Filomena Mónica - 1
segunda-feira, 26 de dezembro de 2005
O problema do dia
domingo, 25 de dezembro de 2005
Vivos como as laranjeiras
sábado, 24 de dezembro de 2005
Natalícias
sexta-feira, 23 de dezembro de 2005
Cartas de amor
Está quase
quinta-feira, 22 de dezembro de 2005
2005 International Weblog Awards
Nuno Gomes
quarta-feira, 21 de dezembro de 2005
Campanha - 21
O caucasiano
terça-feira, 20 de dezembro de 2005
Insídias
Quebras inefáveis
segunda-feira, 19 de dezembro de 2005
Férias?
domingo, 18 de dezembro de 2005
Agora a sério
Tiradas reflexivas - 2
sábado, 17 de dezembro de 2005
Um olhar súbito
sexta-feira, 16 de dezembro de 2005
Coisas extraordinárias
Monovisões
Repto greco-blue
Skip James
e
Ontem emocionei-me com o belíssimo documentário de Wenders na "2". É pena que a Charlotte não tenha hoje acordado com insinuante fotografia da época e sobretudo com uma das músicas do grande Skip James. Sei que ela é mulher capaz de me fazer a vontade. Afinal, não o havia ainda dito, mas estou a seguir a Madonna 'dos últimos tempos' e estou a gostar muito (Time goes by so slowly) e, para além disso, em Agosto de 1997, estive também no Cabo Sounion, durante largas horas, e garanto que foi, de facto, um momento único (ars nascendi). De resto, e com a poíesis no fundo profundo da respiração, passei o tempo a ouvir os ralos nocturnos de Vouliagmeni.
Rabo de fora
Tiradas reflexivas
quinta-feira, 15 de dezembro de 2005
Vendavais extra-eleitorais
quarta-feira, 14 de dezembro de 2005
Tap loves Varig
Juízos à hora do almoço
terça-feira, 13 de dezembro de 2005
Publicidade negativa
segunda-feira, 12 de dezembro de 2005
A não identificação
domingo, 11 de dezembro de 2005
Sortilégios do musgo
sábado, 10 de dezembro de 2005
Mais BD
sexta-feira, 9 de dezembro de 2005
Ressurgimento
A sinceridade de Dezembro
Mais coisa menos coisa, olho e continuo ainda a ver o outro lado da rua. As luzinhas, o Natal, o pasmo. Sinceramente.
O segundo debate: análise aprofundada
quinta-feira, 8 de dezembro de 2005
O que é um feriado?
quarta-feira, 7 de dezembro de 2005
Diabo vermelho e civil (act.)
Carnaval, chacal, banal, etc.
Imagine-se
terça-feira, 6 de dezembro de 2005
Mais vale tarde
A narração do blogger
segunda-feira, 5 de dezembro de 2005
O primeiro debate
De volta
sexta-feira, 2 de dezembro de 2005
Ainda a homenagem a Victor Palla
quinta-feira, 1 de dezembro de 2005
Veja o Episódio 6 (e último) do folhetim BD
r
Veja e leia em baixo o sexto episódio.
quarta-feira, 30 de novembro de 2005
terça-feira, 29 de novembro de 2005
Veja o Episódio 4 do novo folhetim BD
r
Veja e leia em baixo o quarto episódio.
segunda-feira, 28 de novembro de 2005
Veja o Episódio 3 do novo folhetim BD
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Uma homenagem a Victor Palla em seis episódios.
domingo, 27 de novembro de 2005
Veja o Episódio 2 do novo folhetim BD
r
Veja e leia em baixo o segundo episódio.
sábado, 26 de novembro de 2005
Vem aí um novo folhetim em BD
sexta-feira, 25 de novembro de 2005
Heimat
A generosidade das marés
Secreta defesa
Folhetim
Terceira Parte: O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
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Febril, nervoso e quase já esquecido da súbita reminiscência, Abel quedou-se subitamente imóvel, por instantes, nesse momento preciso em que acabava de descer o plano inclinado e luminoso Rua do Alecrim. E agora? Pela frente, apenas o Tejo e nada mais. Nada mais me resta. Tudo o mais é desaire e esquecimento, talvez assombro. Abel sentiu então uma desmedida vontade de juntar o seu destino às águas do Tejo e nelas desaparecer, cruzando o seu caminho com as tentações de Lisboa, de Santo António e dos seus fados de vaticínio irreal. Mas os passos venceram a contenda e Abel voltou a andar. Como um autómato, desceu a rua com leveza até quase se abeirar do Cais do Sodré. Povoado por sinais contrários, mergulhado em desejo e terror, Abel tanto se sentia acossado como herói. Por segundos, voltou a encarar o panorama, os vultos a silhueta de bronze do Duque da Terceira e, para além do rico empedrado da praça, o próprio rio, as suas margens, a maresia, a incerta névoa fluvial.
Abel terá percebido nesses segundos o que o poeta quereria dizer, ao contemplar dali, sem passado nem futuro, toda esta urbe esfumada num autêntico desejo absurdo de sofrer. Confrontado com tais sombras e bulícios interiores, Abel contornou os quiosques dos jornais, passou pela agência de viagens, atravessou a avenida e acercou-se da estação. Que fazer? Abel encolheu os ombros e, sem medir rumo e leme, acabou por se sentar na última das esplanadas ribeirinhas onde o destino, sempre ínvio, ainda permite que se visione o que resta da antiga e nostálgica Doca de Abrigo.
Daqui já partiram os vapores ditos lisbonenses e, na minúscula doca, recolhiam-se, em tempos que já lá vão, embarcações de pesca de mastro branco e altíssimo, ateadas por cordas, correntes de metal e deslumbradas memórias. De todo esse espectáculo, Abel apenas descortinou, ao longe, sobre o pontão, um par de namorados que continua a abraçar-se sob a ligeira neblina que envolve, ao longe, a Lisnave, os braços dos guindastes, o arcaboiço metálico e escuro das ancestrais naves de sonho. Depois, chegou a imperial bem tirada e, ao mesmo tempo, aportava na gare marítima um cacilheiro carregado de pneus cor-de-laranja que mais pareciam globos armilares do antigo império. E foi nesse momento, após um último olhar para a outra margem, que Abel sentiu uma desmesurada necessidade de falar, de contar, de se expor fosse a quem fosse.
Na mesa ao lado, estava já sentado o desconhecido senhor Zorba, entretido que estava com o seu silêncio e com a textura negra da Guiness. A conversa iniciar-se-ia pouco depois e foi então que Abel sentenciou a sua primeira frase. A tal frase. Disse Abel: “Não tenha medo, mas o que está à sua frente é um homem que já viveu várias vidas e que agora se transforma em luz”. Zorba intrigou-se, mas ouviu; percorreu com Abel o percurso da 24 de Julho até às Janelas Verdes. Aí apareceu Isabel, depois a Júlia e a Dona Joana já em Santos-o-Velho. O resto é conhecido, pois o grupo foi-se alargando e, com ele, a própria história; surgiu o senhor Gouveia na D. Carlos e, perto da Rua Nova de S. Bento, todos os restantes: o senhor deputado, o senhor professor de comunicação - o mais sisudo e calado - Lopamudra de Vidarbha, Chico e Sara de Belém e o sr. Brihadratha. O sapateiro Palmeirim, como todos se lembram, só se juntaria ao grupo na Rua da Boavista, perto do Conde Barão.
- E agora aqui estamos, já o sol nasceu e a noite passou. Desde o meio da tarde de ontem que venho contando toda esta longa história, e confesso que me sinto agora mais aliviado, menos misterioso. Ainda ontem, a esta hora, estava a entrar no fatídico duche e cantava, cantava, miraculosamente cantava. Era como se a voz de Adão me tivesse de novo visitado. Eis-me, portanto, aqui, entregue a vós, sem mais nada para dizer. Eu que sou Adão, Caim e Abel, ao mesmo tempo. E agora? Gritou Isabel, gritou Zorba, gritou Lopamudra de Vidarbha. Não tenham medo, o que está à vossa frente é um homem que se transforma em luz. A frase, a tal frase. E o senhor Gouveia apontou com fúria para baixo e disse: Venham, venham por aqui, vamos para os baixos do Jardim de S. Pedro de Alcântara; lá... sempre estamos mais recatados, escondidos. E depois... logo se vê, haveremos de decidir o que fazer. E o grupo desceu pela Rua de S. Pedro, entrou no jardim e aí viu nascer a manhã.
E o sol levantou-se dos lados do Castelo, da Graça, de S. José e nós os treze, entre canteiros, passeando pelos bustos de Ulisses, Vénus e Minerva, evocando a idade de ouro, a bonança do vazio e a terrível aflição do momento. Até que, por volta das onze da manhã apareceram helicópteros, viaturas, buzinas, sirenes, comandos; o cerco era total. Em cima, o jardim foi praticamente fechado e Abel, diante de tal aparato, recuou até ao tronco do imenso limoeiro, sobre o abismo, encostado a nada, ao fim. Os doze ficaram um pouco mais atrás, encostados à cerca de metal, aflitos, brancos de rosto, impávidos, esperando a voz, o alento, o sinal decisivo de Abel. E o nosso homem gritou, gritou, gritou muito alto para que o ouvissem - Tenho uma granada comigo e estas doze pessoas são minhas reféns. Tudo o que quero é... esperar aqui neste sítio, até ao pôr-do-sol. Depois disso entrego-me, desde que me deixem contar tudo o que tenho a dizer. - Ao crepúsculo? Mas o homem está maluco. O que vamos fazer, comissário? Tenham calma, não vêem que ele tem reféns e está armado? Nada de avançar, para já, com os comandos. Vamos esperar até ao pôr-do-sol, vigilantes, até porque esta espera pode não agoirar nada de bom. À volta, por toda a Lisboa, uma multidão imensa rodeou o local e ouve quem gritasse em coro: canta, canta, canta Adão! Mas o silêncio de Abel manteve-se. Perdurou.
Passaram algumas horas e os doze mantinham-se aquietos, hirtos, dominados por uma qualquer grandeza sem nome. Por cima, as hostes amotinavam-se, iam-se agitando a pouco e pouco e, apoiados às grades, Luísa, Leonor, Arlete, Dona Olga, o médico, Porfírio, algumas russas de Porto Brandão e gente e mais gente sem fim contradiziam-se nas implorações, impropérios e lisonjas. Um caudal de gritos, alaridos, brados e ecos ressoando entre as fileiras da polícia e o cheiro a limão que envolvia a aparente calma de Abel. Nos telhados e sótãos dos prédios vizinhos, sobre estruturas improvisadas, as televisões transmitiam já em directo todo o folclore, a espera, o semblante enigmático e longínquo de Abel. A tarde ia caindo, lenta, preguiçosa e, com ela, aumentava a expectativa, o temor, o tremor, a grande questão afinal: porquê o crepúsculo? Perto do pôr-do-sol, o comissário falou com o ministro e tudo foi decidido acerca da manobra. Os comandos avançariam por baixo e igualmente pelo ar, de helicóptero, tentando assim salvar os reféns e, ao mesmo tempo, não dando oportunidade a Abel para deflagrar a granada ou qualquer outro explosivo. A multidão estava ao rubro, a excitação polvilhara a capital, o jardim começava a escurecer.
E foi quando Abel ouviu ao longe o ruído dos helicópteros e o vasculhar das sebes no acesso ao jardim que, sem mais, correu subitamente para o meio dos doze e disse: abram um círculo à minha volta, protejam-me. A cidade estava em suspenso, parecia calada; as sombras dos helicópteros a percorrerem telhados, uivos de cão ao longe; as cordas lançadas às grades, os comandos escalando por baixo do Jardim de S. Pedro de Alcântara. Quase ao mesmo tempo, a polícia de choque interveio à bastonada para evitar a histeria colectiva que se formara. Um atrito, uma espessa nuvem de gestos, sonidos de violoncelo, corpos por terra, uivos de cão ao longe e Abel entre os doze, de braços abertos, rindo muito alto, unindo os pés e lembrando-se como nunca de Alonso, o pirotécnico, o nómada fogueteiro de Trujillo.
De repente, mal caiu o sol, Abel ficou com a pele toda macerada, em tons lilases, depois parecia vermelha, mais do que corada, quase em fogo. Passados alguns segundos, já os comandos saltavam as grades e os helicópteros apareciam sobre a Rua de S. Pedro, de súbito, sem que nada o fizesse esperar, Abel ficou incandescente como uma pira de lenho a arder e o seu corpo, agora longilíneo, afunilava-se como se o tronco, os membros e a cabeça se tornassem, de repente, numa vara muito alta em cor e em forma de fogo. E mais se parecendo com um gigante fio-de-prumo de brasas virado para as nuvens, Abel subiu pelos céus de Lisboa como se fosse o pau, o simples pau de um magnífico foguete e, ao atingir a calote ainda azulada da esfera pelos últimos raios de sol; ao atingir a curvatura celeste reflectida nas águas avermelhadas do grande Tejo; ao atingir de par a par o arco perfeito da atmosfera das Tágides, este foguete que fora Adão, Caim e Abel transformou-se num colossal fogo de artifício que fez regressar Lisboa à lembrança da sua última aurora boreal. E Zorba, espantado, quase destruído, sentiu uma estranha irritação nesse seu sinal paterno em forma de serpente com duas cabeças. O pasmo era total e, por cima, expandia-se o clamor, a beleza da frágua vermelha; seguiram-se explosões e mais explosões na indolência dos ares, dos eflúvios de lume, luz e brilho que se expandiam em forma de trevo de três fogos. Foi assim durante mais de meia hora.
Foi assim, em Lisboa, num dia de fortunas e luminárias.
quinta-feira, 24 de novembro de 2005
Da nossa poesia mais actual
Folhetim
e
Termina amanhã a publicação do folhetim O Trevo de Abel, baseado no meu romance homónimo de 2001.
Folhetim
Terceira Parte: O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
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Subitamente, sem razão nenhuma para tal, enchi o peito e vi-me a cantar muito alto, sob os auspícios da água quente do duche: “Leonor Luísa Amor/ Pelo vosso coração/ Canta a minha dor/As rosas desta visão”. Maravilha! Quase rejubilei. Vinda do nada, talvez do gravitas da alma, era outra vez a voz de Adão, potente e bela, ressurgida como que por milagre. Que maravilha! Era como se as cordas vocais tivessem sabiamente regressado ao seu paraíso primeiro e inicial. E... porquê agora?
Entretanto, no rés-do-chão, Leonor abriu lentamente a porta e subiu alguns degraus. Não foi preciso mais para ficar apavorada diante daquela voz televisiva, clara e nítida, que conhecia como ninguém. Parou ainda no cimo das escadas e, já trémula de palavra e espírito, ainda teve forças para gritar - Abel, estás em casa? Sem resposta, Leonor desceu a escadaria rapidamente, em pânico, veloz, com a boca presa, os olhos muito abertos, a respiração quase em suspenso, parada, irada. Abel, nu em flor, apercebendo-se do tremendo descuido, do repentino dom, do indomável susto, desceu até ao hall do primeiro andar e ainda gritou - Querida, estou aqui, o que é, o que se passa? Nessa altura, já Leonor tinha batido com a porta e fugido, fugido.
Sem tempo sequer para pensar, vesti-me num ápice e - continua Abel - segui pela esquina de cima. Passei pelo ‘Ano Zero’, a loja de cerâmica da vizinhança, e meti-me depois no táxi, uns metros mais à frente. Contei o dinheiro, acelerei, evitei a praça e, em poucos minutos, dei comigo em plena estrada de Pero Pinheiro. Atravessei então bermas de eucaliptos, nuvens baixas e carregadas e soube, por fim, que era este o termo da minha fase de Belas. Agora, já não podia voltar para trás. Depois do cantor, o chulo e agora o pacóvio, o pateta alegre! Ri-me de tanto fantasma, de tanta história insuportável, de mim mesmo, juro. Acelerei e voltei a cantar muito alto, alto, alto... e senti, a dada altura, que estava a ensandecer ou a tresloucar-me. Segui pela CREL, cigarro atrás de cigarro, lento, concentrado. Até que decidi o que fazer. Eureca.
Leonor correu até à praça, entrou no Centro de saúde e pediu para falar com o médico. O médico? Mas... o senhor doutor agora está muito ocupado, é quase hora de almoço, é uma hora muito má! Por favor, diga-lhe que é a Leonor, é muito urgente. É coisa de vida ou de morte, a sério... é isso mesmo, de vida ou morte. O médico entretanto apareceu com a bata branca a envolver-lhe o espanto, a ousadia do momento, a dúvida. Mas o que é que se passa, Leonor? Senhor doutor, ontem o senhor, afinal, tinha toda a razão. O morto-vivo está mesmo na minha casa! Ouvi-o a cantar muito alto e garanto que era ele, sem engano, sem hipótese alguma de me enganar. É que eu segui, durante anos e anos, o programa dele e conheço-lhe a voz, juro sr. Doutor, conheço-lhe a voz como conheço as minhas mãos. Mas não é apenas isso. É também o corpo... primeiro era aquela articulação do cotovelo, o osso, a forma do braço, depois as coxas ao andar, o pescoço, mas não só. Sabe, é que ele, já lho tinha dito uma vez, foi meu namorado, há muitos, muitos anos! Leonor fala, balbucia, hesita, parece tremer. Veja lá Leonor, está tão nervosa! Mas há mais, repare sr. Doutor, aquelas costuras atrás das orelhas devem ter sido plásticas que ele fez... para ocultar a identidade ou coisa do género e nunca por causa de qualquer acidente que tenha sofrido. Sempre desconfiei disso porque, pelo menos umas duas vezes, ele me trocou as estradas e até os sítios onde tudo se terá passado. Ó sr. Doutor, desculpe-me, deixe-me falar, eu sei que não estou nada bem, mas há uma última coisa que quero dizer. Aquele nome não existe no Arquivo, ou antes, deverá corresponder a alguém que já… morreu. Em vez de ir à escola, hoje de manhã, fui aos Arquivos Centrais e confirmei isso. É verdade, sr. Doutor, tem toda a razão, eu devia ter desafiado o homem cara à cara... mas reconheço que fiquei apavorada, tive medo; não estava à espera de ouvir aquela voz de defunto a cantar. Parecia uma coincidência do diabo, vou ao arquivo, falto à escola e reencontro um morto! Foi demais para mim e foi por isso que tive que vir até aqui a correr, desculpe sr. Doutor...
O médico agarrou então no pulso de Leonor e disse com voz muito decidida - Venha, vamos daí, vamos lá à sua casa, depressa. Subiram os dois pela Cândido Reis, entraram no hall, depois na cozinha; examinaram a sala, os quartos, passaram pelas águas-furtadas e ninguém, nada, vazio total. No entanto, o ar de casa subitamente abandonada falava por si: marcas de duche deixado a meio, roupa no chão, flocos e notas espalhados na bancada da cozinha, o armário aberto com peças de roupa a menos. Não mexa, não mexa em nada, vê-se mesmo que o tipo fugiu a correr; aqui há realmente marosca e da grossa! Dê cá o telefone, dê cá. Eu falo, eu falo, esteja quieta e tome mas é este comprimido, vá lá. Está? Está? É da polícia? olhe, venha num instante à Cândido dos Reis, 68, sim, sim, aqui em Belas. É melhor virem com toda a velocidade, porque a história parece apontar para coisa perigosa. Muito obrigado, até já. Em pouco tempo, duas viaturas da PSP estacionaram em frente à casa cor de cereja e, na hora que se seguiu, Leonor depôs o que pôde, o que sabia e do que, já há algum tempo, desconfiava.
Minutos depois, Dona Olga, espreitando de frente e no fundo dos olhos do médico, desabafava: Mas isto... é o verdadeiro diabo entre nós! Punha e voltava a pôr as mãos à volta da cabeça, suava e repetia, repetia - O perigo que a nossa Leonorzinha deve ter passado! - É verdade, é verdade. Seja como for, ela está agora ali na Casa de saúde a compor-se com uns calmantes e eu vou lá passar outra vez daqui a um bocado. Aproveitei para vir aqui à esplanada, porque vi, através dos vidros, que estava sozinha... posso tratá-la por tu? Só entre nós, claro. Claro. Então, diz-me... a tua mulher continua com as febres? E o médico, mexendo o café, abrindo os dedos cheios de alianças, a sorrir com ar adolescente e malandro, circunspecto... a fazer-se à resposta com alguma avidez demorada, lenta - Está mas é com febres de malta! Não, era tudo treta minha. Sabe, fiz com que ela, ontem, não saísse de casa; há lá umas pinturas a fazer e isso dava-me mais tempo para ir buscar uma ou outra tangerinazinha ao seu quintal, já está a perceber? - Seu madraço, seu brejeiro, como te atreves! Vou-me já calar, Olga, porque estou a ver a tua irmã do outro lado da Praça. - Pois é, e vem para cá, já deve ter sabido tudo acerca da Leonorzinha. - Mas antes de me calar, queria dizer-te ainda isto: eu agora não quero outra coisa senão os gomos sumarentos das tangerinas, entendes? E Olga, efusiva, exultante, a ranger entre dentes - Seu madraço, seu castigador, se não fosse ali a minha mana, dava-te com a mala nesse sítio. Quem te vê e quem te viu! Cuidado, olha que em Belas sabe-se tudo, tudo, e onde é que andará aquele bandido do Abel?
O que ouvi no noticiário a meio da tarde fez-me, de imediato, abandonar o carro numa colina isolada a norte de Alverca. De seguida, contornei a colina, segui a pé pela parte debaixo da auto-estrada a rebentar de trânsito e, depois, sem qualquer norte, sem direcção ou rumo, corri entre estradas velhas, atalhos, barracas, prédios de quinze andares no meio da lama; acampamentos de ciganos, quiosques, armazéns clandestinos, gráficas; oficinas de recauchutagem de pneus, casas saloias, tascas cheias de ferroviários, viadutos e alguns passeios esventrados. Na feira do relógio, comprei um casaco e novos óculos escuros. Deambulei pela Avenida do Brasil, pelos lagos do Campo Grande e só me vinha à mente os olhos de Sara, os gestos de Leonor; Luísa a saltar as grandes ondas de Porto Covo. Advinham-me imagens coloridas das ruas de Banguecoque, da tromba de água do Índico, das casas brancas de Djibouti; via diante de mim as meninas de Porto Brandão, os aplausos sem fim do ‘Tostões e Biliões’, a minha desconhecida filha, ou os olhos ávidos da Dona Olga; revia o Porfírio gigante e cheio de tatuagens, o Maremagnum catalão, o mordomo; enfim, tudo aquilo era eu, perdido de sentidos, na Estrela ou no Jardim do Paço do Lumiar a contemplar um céu avermelhado e sem qualquer explicação. Senti-me tonto, fraco, frágil e sem forças. Sentei-me num dos bancos de jardim do Campo Grande e pensei - Já chega! Já chega. Chega de fugas, de fingimentos, de duplos. Chega de desventuras. Serei assim tão anormal? Não será possível contar toda esta minha história a alguém e ser ouvido? Poderei alguma vez vir a ser perdoado? Mas perdoado pelo quê?
A todo o momento, a polícia pode cercar-me, levar-me, ou interrogar-me. Antes isso. Estou aqui no Campo Grande, a sós, livre de querer e de ser, mas, seja como for, à vossa disposição, de todos. Pensei. E pela cabeça passava-me tudo, tudo: era o funeral da Estrela, os cartazes ostentando o meu rosto de Adão hilariante, o antigo fadista dos seguros, a Arlete a dançar à noite nos jardins de Belém; as belas putas do Pireu, o aeroporto de Dubai, as águas-furtadas de Barcelona e Sara e eu num sonho de Verão, em Cascais. Foi então que, sem medo de nada, de rigorosamente nada, me meti no metro. Fosse o que fosse. Circulei, estação após estação, até ao Marquês de Pombal e daí até à Baixa-Chiado. Talvez a secreta notoriedade do nome do Chiado, boémio de gema, homem de perdição, me tivesse atraído. Mas a quê?
quarta-feira, 23 de novembro de 2005
Realeza cultural - 3
Realeza cultural - 2
Realeza cultural - 1
Delírios da Ota - 2
Terceira Parte: O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
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E quando o médico, taciturno e melancólico, disse o que disse com palavras a rolar de lentidão e algum ardor, desencadeando aquele movimento desencontrado de íris, sobrancelhas e pupilas, logo Dona Olga sentiu uma íntima esperança de que alguma coisa, um dia, pudesse ainda vir a acontecer. Mas... senhor doutor, agora só aqui entre nós, acha mesmo que eu e o senhor doutor, por exemplo, somos... maluquinhos que disfarçamos que não somos? Não é isso Dona Olga, não é nada isso, o médico a rir-se bastante alto e retirando de uma assentada os cotovelos de cima da mesa, - olhe lá Dona Olga, nós estamos bem, damo-nos bem e até nem temos motivos de queixa, mas fora aqui dos nossos hábitos e da nossa rotina, digo-lhe mesmo, esse mundo tornou-se numa coisa diabólica. Pois é, Dona Olga de olhos abertos a repetir, pois é, pois é. E hoje o raio da mulher da fruta nunca mais me aparece aqui! Se quiser, sr. Doutor, tenho tangerinas muito boas no meu quintal. Está bem, está bem. Depende de como as coisas se encaminhem em minha casa...está a ver... tenho que receitar umas pomadas, uns tratamentos à minha mulher e, depois, se ela estiver melhor, passo ainda pelo Centro de Saúde e, lá mais para ao fim da tarde, posso ir lá então colher umas tangerinazinhas. Dona Olga sentiu um calafrio, ao longo da coluna vertebral, dos quadris, das orelhas e tremeu como varas verdes, entre os artelhos e as finas rugas da testa, completamente pálida e sedenta de mão de homem. Há tanto ano! Dona Olga estava perdida, corada e afónica, no momento em que eu e a Leonor nos sentámos.
Então, senhora professora, como vão indo as suas aulinhas? Ah, senhor doutor, os meninos, hoje em dia, são todos uns malcriados. Olhe, olhe, estávamos agora mesmo aqui a falar nisso. Dona Olga, já a sorrir, bem rosada e perfumada de olhar, dizendo que sim com a cabeça. Pois é, pois é, naturalmente é preciso ter uma grande paciência; e como eu estimo, por isso mesmo, aqui a nossa Leonorzinha! Eu, sisudo, caladinho, já a mexer o meu chá de limão e a pensar nos templos do interior da Tailândia. E com os taxistas em Lisboa é o mesmo, continua Dona Olga. Andam sempre a correr, parecem uns malucos, como o sr. Doutor dizia, há pouco, meio mundo anda louco, mas louco mesmo a sério! Excepção feita aqui ao senhor Abel, claro está. E o médico levanta o sobrolho, olha-me de baixo para cima e pergunta com ar agoirento e aziago, então mas o meu amigo não teve um acidente, uma vez? Eu? Ah sim, e eu a tentar fixar de lado os olhos no rosto Leonor. Teria ela falado ali das minhas costuras atrás das orelhas, mas que gente esta! O raio do médico, se calhar, ainda está mas é remoído com aquela história do "festo". Eu? Acidente, Eu? Sim, sim, aqui a Leonor contou que passou muito mal, há uns anos, e que até teve que fazer umas plásticas. Ah, sim, sim, isso foi ali na auto-estrada, entre... Saragoça e Barcelona. Sabe, coisa de jovem, estava nos meus vinte e tal anos. Acontece a todos. Dona Olga repetiu, sim, sim acontece a todos, mas coitado, que coisa! E isso custou-lhe muito? Ó Dona Olga, nem imagine! E o médico com o sobrolho levantado, com cara de coronel frustrado, a querer tramar-me com outra pergunta ainda pior que esta.
E então onde é que se fez operar, em que hospital? Olhe, sr, Doutor nem eu já me lembro bem, foi há tanto tempo! Então não foi em Saragoça? Avançou Leonor, ingénua, adjuvando a doméstica intriga do médico. Sim, sim, claro, foi aí mesmo; é, foi em Saragoça, fica em Aragão, conhecem? Ai, conheço tão mal a Espanha, disse e suspirou Dona Olga na direcção do empregado que era, todo ele, uma bandeja arqueada de cafés, garrafas e uns brindes do dia. São caixinhas de marmelada que trago para os senhores, porque hoje é o vigésimo quinto aniversário da casa! Foi nessa altura que chegou a irmã da Dona Olga. Sentou-se, trocou a perna e disse logo na direcção do médico: Olhe, sr. Doutor, o jardineiro disse-me que a mulher da fruta está com papeira e que, portanto, não pode vir hoje. Papeira? Papeira, naquela idade? Há com cada uma! Olha que esta! Isto hoje mesmo é dia de coisas do Entroncamento! Só faltava mesmo é que o morto-vivo estivesse para aí escondido numas águas-furtadas de Belas. O quê? Águas-furtadas, o quê? Disse Leonor. Bom, bom, isso é maneira de dizer. Sabe, durante a guerra, os espiões escondiam-se, ou nos sótãos, ou nas caves. Dona Lola, com o seu ar vidrado, pedrado, ilimitadamente seco de voragens: Ai era? Era mesmo assim? É como lhe digo. E eu, a acabar o chá de limão, e o nervoso miudinho a subir-me pelas canelas até aos joelhos e daí à barriga, ao peito, entrando-me pela cabeça que parece já oca, sem conteúdos, vazia. Subitamente vazia.
Mas o senhor Abel, hoje, está muito pálido, continuou o médico. E de imediato Leonor ergueu a cabeça e virou-se para mim, aparentemente preocupada: Estás-te a sentir bem? E, sem mais, se pôs a contar que eu tinha tido dores no peito, outro dia, quando acabava de almoçar, trá la lá, trá la lá, trá la lá, sempre a falar, não é capaz de se calar e não há nada que lhe ocupe a cabeça que não lhe povoe logo, a correr, os lábios, os gestos, a fala, o raio que a parta. Salvo seja. Não, não, sinto-me mesmo bem, fino. E acho que está quase na minha hora; é que hoje o meu turno começa à uma hora da tarde, porque o senhor Domingos foi ao curandeiro. Então... o que é que o homem tem? Perguntou Dona Olga para a mesa. Ficou tudo a olhar para o vago, uns para os outros, ou para ninguém que fosse; fez-se silêncio, demora, delonga. A atrapalhação com nome próprio. E foi a irmã que acabou por tomar a palavra, com ar secreto, balbuciante, como se chamasse um gato do outro lado da rua. Chega-se à frente, toca com os túrgidos na mesa e avança em máximo sigilo: Ó mana, parece que tem um mal no sítio... dos homens. Dona Olga tapou a boca com a mão carregada de anéis, enquanto eu sorria e Leonor olhava para o chão. Quando me levantei, o médico ainda disparou para o ar: Ó senhor Abel tenha cuidado no serviço que isto hoje parece que está tudo assombrado. Dona Olga riu muito alto, a julgar que era piada. De costas para o médico, sem ligar à desdita, virei-me para Leonor, já atónita, e limitei-me a repetir - Às 6 h, querida, está bem? Então, até logo. Leonor despediu-se de mim com um sorriso leve, improvisado, talvez mesmo distante. E porquê?
Ao chegar ao táxi, abri o rádio e, nas notícias, falava-se já em exumação. Era isso que eu temia. O que iriam eles encontrar? A questão tinha saltado fronteiras e a polícia tinha agora já em seu poder um depoimento do mágico Muhammad Mubarak, para além de andar no encalce de fontes mais consistentes. Entretanto, desse ou não desse, a polícia ia distribuir por todo o país o rosto de Ulisses Caim dos Santos Trigo, meliante, assassino e perigoso elemento que, porventura, poderia ainda estar vivo e a monte, constituindo, portanto, uma verdadeira ameaça para a paz pública. No final das notícias, o chefe Madeira, entrevistado, repetia: a exumação de ambos os corpos é uma medida normal, quando há indícios de crime, ou quando se regista uma ausência de indícios e provas necessários à investigação de um crime.
A polícia começa agora a tratar o que era uma simples anedota num caso realmente sério. Nesse dia, viajei até Campolide. Esperei, ao longo de toda a tarde, a uns bons trinta metros da casa de Porfírio. Observei, tomei notas, esperei. Perto das 6 da tarde revi o gigante; ia um pouco coxo e mais enfatuado do que o normal; entrou rapidamente em casa sem me dar tempo fosse para o que fosse. Fiquei indeciso sobre o que fazer, nervoso, escondido atrás dos meus óculos escuros, com algum medo à mistura. Foi nessa altura que olhei para o relógio e dei comigo a gritar: Mas já são 6 horas e eu esqueci-me de ir buscar a Leonor! Corri para Belas e entrei em casa com os bofes na boca. Que tinha tido um serviço para Lisboa, que não tinha podido parar para telefonar. Mas que já não saía hoje, etc. etc.
Leonor olhou então para mim com um aparente desdém, sorriu depois e disse com voz serena, tranquila - Não há problema nenhum com isso! Percebi logo que devia ter sido uma coisa dessas. Pareces tão nervoso nos últimos dias! Eu sosseguei, mas logo estremeci quando Leonor me disse que a Luísa viria amanhã jantar cá a casa. Ah é? E porquê? Para retribuir? Mas o jantar que ela ia dar... ainda não aconteceu, pois não? Não, mas, no outro dia, foi ela quem me pagou o jantar. Mas o que é que tu tens? Fazes com cada pergunta mais estranha e absurda! Parece que não te conheço! Qual é agora o problema de convidar a Luísa, uma minha amiga, a vir cá comer a casa!? Começo a não gostar nada do ambiente que tu andas aqui a criar, sabes eu...
terça-feira, 22 de novembro de 2005
O delírio da Ota
Presidenciais
Folhetim
Terceira Parte: O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
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- O quê, ouviste aquilo pá? Aquele era o gajo que a gente capturou na Gago Coutinho - disse o chefe Madeira. - Já viste, ó Macedo, aquele nome diz-me qualquer coisa, não era o tipo das russas ali de Porto Brandão? - disse o senhorio da casa da Rua das Flores. - Chega aqui filho, ouve lá, esse tipo que te tramou a vida não era um tal Caim dos Santos Trigo? - disse a mãe de Porfírio, trémula, no hall da pequena casa de Campolide. - Inventam com cada coisa! Ainda ontem estivemos aqui à noite a falar dele, não é engraçado? - disse Leonor. Abel, por sua vez, levantou-se, limpou os lábios com a ajuda do enorme guardanapo branco e, ainda a mastigar, nervoso, levantou-se da mesa, correu, correu e foi dizendo que tinha pressa, que já vinha; - Deixa-me só lavar os dentes, é só um bocadinho. Disse. Abel chega entretanto à casa de banho, abre as luzes laterais do espelho, encosta-se ao mármore da bacia e encara o próprio rosto, face na face, imagem trocada e truncada pelos seus nomes sem nome, olhos nos olhos diante do espelho. E agora? O que vale é que o raio do Preste não conheceu a minha terceira vida, haja pois sossego! E Abel, naquela posição de confronto consigo mesmo a falar sozinho, a segredar, a temer talvez o pior. Mas por que não me sei eu calar, porquê? E se o Porfírio acaba por falar? Mas, também... que pode ele provar? Eu, a todos os títulos, estou morto, não é? Não é assim? Abel de olhos vermelhos em monólogo assustador, perdendo o controlo, a questionar, a questionar-se: estarei vivo? E o que é que me aconteceu, durante este tempo todo? Porquê eu? Abel passa com as mãos pela testa, parece gemer, abre e fecha os olhos, volta a monologar, a questionar, a mão agora sobre o peito... até que, por trás, sem mais, em silêncio perfeito de esfinge, surge Leonor.
- Que é que estás a fazer, querido? Não te sentes bem? O que é que se passa? O coração a galope, acelerado e eu branco, pasmado, virando-me para trás. - Querida, eu estou aqui... com umas dores estranhas no peito, sabes? - Mas vê lá se queres que eu chame o doutor, com essas dores nesse sítio não se brinca. Foi agora enquanto comias, foi? Mas... por que não me contas tu o que sentes? Se te doía o peito, devias-me logo ter avisado! Parece até que... andas estranho nos últimos tempos! Estás com suores frios, é? Eu vou chamar o doutor, está bem? Sempre é melhor. - Não, não faças isso, não vale a pena, isto já está melhor, juro. Olha, põe lá aqui a mão, vês? Vês que não estou com nenhuma arritmia? Vês? Só ia lavar os dentes, não te impressiones, se calhar comi depressa demais, não achas? - Vê lá, querido, estás tão estranho! Não queres hoje descansar? Deixa o táxi por uns dois dias, vá lá! Se quiseres eu também meto atestado e não vou à escola. - Não, isso nunca. Garanto que já estou bem, deixa-me lavar os dentes e depois saímos juntos. Vou levar-te à escola e vou para a praça que até é um sítio tranquilo, descansa que já me sinto mesmo bem, está bem? Pronto, se assim o dizes. - Mas sem pressas. - Certo. Combinado.
A meio da tarde, o telefone da praça de táxis chamou Abel à Idanha e o carro seguiu lentamente, com o condutor bastante apreensivo, curva após curva, ao longo da Avenida Veiga e Cunha, entre paredes recheadas de heras e muros claros. Ocorria-lhe a grande tromba de água por que passara a ocidente de Ceilão, ou o rosto magro e quezilento de Preste Nekemte; as mil histórias de mar e os olhos meio demoníacos do etíope que, de repente, passavam a anil baço. Sentava-se depois no chão do convés, acendia a pequena vela que trazia no macaco e contava histórias de um reino onde nasciam mulheres de bigode e homens com cornos em sangue. Em Djibouti, já na estação, perto da bilheteira, chamou-me à parte e disse - Olha, tem cuidado que nesse reino havia muitos como tu. Conheço bem o que são homens com vários cérebros, corações ou almas, sim, almas fora do corpo correcto e corpos trocados da sua alma. Essa gente é convulsiva, perigosa. Tal como César ou Napoleão. Tem cuidado, não corras riscos, isto que eu sei são histórias que vêm dos confins do tempo. Se não ligares a estas palavras, hei-de ainda falar de ti. Sorri e vim de novo ter com Porfírio que estava com o carrinho de bagagem na mão. Esta gente é toda maluca, pensava eu.
O caminho para a Idanha não é longo, mas está cheio de casas surpreendentes, inóspitas, quase coloniais, estampadas por madeiras de cor pastel, azuladas, afastando-se da estrada por quintais cheios de labirintos, fontes secas, arbustos cansados, oliveiras idosas e hortas meio abandonadas pela humidade dos penhascos. Depois, surge a Quinta da Oliveirinha, surgem as trepadeiras debruçadas em frente do chamado Pacato´s bar e surge ainda a grande mansão meio fantasma, meio assombrada, rodeada por sebes densíssimas, pinheiros bravios, tubos retorcidos para escoar as chuvadas nocturnas e, no topo, no cimo quase inacessível da cumeada, duas palmeiras a escalar o céu com os seus dois troncos muito alongados e estreitos, deixando as copas a flutuar entre nuvens, entre esse logro da respiração divina e da nossa ocultação sem nome. Abel entrou finalmente com o táxi na Idanha, depois de ter percorrido, com olhos assustados e muito vermelhos, essas mágicas palmeiras, esses misteriosos caminhos, esses terríveis prenúncios de vales e vistas, talvez mais frondosos dos que envolvem a estação de caminhos-de-ferro de Djibouti.
Preste Nekemte avisara, é verdade, estou ainda a vê-lo dependurado no comboio quase pré-histórico que partia para a Etiópia. Porfírio levantava as suas mãos de gigante e gritava até breve, até breve. E eu a sorrir, a pensar em Lisboa, na Sara, na minha infinita e desejada Stone. Eu, em estado de estupefacção total, a querer-me vingar dos desgraçados dos Coimbras e vendo naquele Preste um mero embarcadiço delirante, embora, devo reconhecer, me tivesse feito estremecer, pensar, delirar. É que parecia querer penetrar dentro do meu mistério insondável e até conhecê-lo, dominá-lo. Foi há milénios, tudo isso. Há milénios. De regresso à Praça 5 de Outubro, Abel cruza-se agora com a bizarra agência funerária da Victor Cordon que, entre paredes esquecidas, a estalar de cal e tinta esbranquiçada, ostenta, mesmo ao meio, a escultura vermelha de uma deusa pagã a desfolhar um trevo de três folhas na mão. Ao fundo, o largo, os fofos de Belas, os TIRs habituais para cima e para baixo, sacudindo os prédios frágeis desta vila que já viveu um dia a sua sonhada e nostálgica belle époque.
No dia seguinte, ‘O jornal da Capital’ fazia capa da história do morto-vivo e dizia: “Desde ontem que o túmulo de Adão Ulisses tem sido visitado por inúmeras pessoas, ligadas à lenda viva do paladino de 'Tostões e Biliões'”. E acrescentava, no interior: “Embora sem confirmação oficial, fontes seguras confirmaram a ‘O Jornal da Capital’ que a polícia judiciária está atenta ao caso e que, para além de ter desencadeado contactos internacionais sobre a estranha ocorrência, também já inspeccionou as campas dos nomes referidos pelo mágico egípcio. Ou seja, não apenas o túmulo da conhecida vedeta, Adão Ulisses, mas também a campa do meliante Ulisses Caim. A curiosa parecença dos nomes, pelo menos através da presença do enfático “Ulisses” em ambos, foi ontem motivo do programa radiofónico ‘Escárnio a bem dizer’ da ‘Emissora Regional de Lisboa’. Enfim, é um tema que promete ainda fazer correr muita tinta, quando, de início, apenas parecia matéria de chacota, ou mote para um fugaz e meteórico primeiro de Abril. De facto, é caso para dizer que o nosso estimado Adão Ulisses, de boa memória, tinha que continuar a fazer-nos rir e também a pensar, mesmo depois de morto “, concluía o porventura inspirado articulista de ‘O Jornal da Capital’.
Abel fechou o jornal, colocou-o sobre o banco e suspirou. Com o olhar parado, quase imóvel, o nosso homem parecia dizer, sem o dizer, que a vida é disfarce, farsa bem contada, dissimulada, que a vida é desdobramento, duplo. Que a vida é caçada de fantasmas, que a vida é a rapidez de disfarce, eficácia de farsa, relato convincente de dissimulação, que a vida é a tentação do duplo, que a vida é uma derrapagaem desabrida entre jogadores e presas.
Em frente, sob a luz do fim da tarde, a Casa de saúde das irmãs hospitaleiras mantinha a sua fixidez habitual. Portadas azuis sobre paredes amarelas, ocres, dóceis. Portadas em formato neo-gótico, talvez de supositório ou de foguetão, quem sabe se de fantasma? Quem me dera ser o Fritz Lang, pensou por fim Abel.
segunda-feira, 21 de novembro de 2005
Coincidências e décadas
Faz agora dez anos (de hoje a oito dias, mais precisamente), fui a Utreque defender uma tese. Quando regressei a Portugal, soube no aeroporto da morte deste senhor a quem, duas décadas antes, tentara tirar nabos da púcara diante de uma câmara televisiva. Fica a imagem para colar a retina à imprecisa rotunda onde, às vezes, fortuitamente, se dilui a memória mais involuntária.
"Eu tinha grandes naus", não era meu caro Assis Pacheco?
Seca sem agravo
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Respondo que sim, talvez pudéssemos ir comer fora, é tarde, mas o que ressoa ao longe é o temporal, o granizo, nada a não ser o testemunho obscuro do mundo em movimento. Comemos apenas torradas, o ruído da televisão, os passos cruzados no corredor e o sono; palavras vãs, entretecidas a sós, e o que é a história de um dia por contar, ao serão? Sim, é isso mesmo, a vida toda. Foi melhor não termos saído, parece que já há menos chuva, faz-se tarde, talvez eu esteja excitada dos encontros de hoje e por isso ainda não tenha vontade de ir para a cama, e tu? Eu nem sei, estou calado há tanto tempo e o ecrã da televisão agita-se sobre legendas, cores difusas, um regatear de retratos sem tempo, nem lugar.
Talvez exagere no tom da pergunta, na prosódica, no timbre carregado. Leonor volta a endireitar-se na cadeira e repete pela segunda vez
Parou a chuva, o filme está quase a acabar e eu volto ao frigorífico. Nessa noite, Leonor agarrou-me com muita força no cotovelo do braço esquerdo. Parecia querer aí encontrar uma senha, um indício, uma ternura demorada. Que lindo braço tens tu, silenciou. Lá fora, a chuva ainda mole e leve escorrendo nos vidros; o céu lilás e macio, fazendo lembrar outros episódios mais sombrios. O que acha, senhor Abel? Minha senhora, sabe, a vida é como um jardim onde tudo nasce e cresce! Que poeta me saiu o senhor Abel! Dona Olga acrescenta: está quase sempre caladinho aí com o seu chazinho, mas quando fala diz coisas muito lindas. O médico bate com a mão na mesa; são as palavras cruzadas, deixe-o, é sempre assim, gosta de as fazer, mas aborrece-se com elas! A mulher do médico desculpa, justifica, sorri e volta a olhar de soslaio para Dona Olga. Agora percebo que a Leonorzinha esteja... tão contente e feliz, não é? Ó senhor doutor, então diga lá a palavrinha que não é capaz de descobrir? E ainda por cima só falta essa para acabar tudo? Veja lá. Pode repetir, pode? Ah bom, é o seguinte: ponto alto entre duas ou mais rios mas que não faz parte da rede hidrográfica de nenhum deles. Estranho, diz Dona Olga; Inventam cada coisa, diz a irmã da dita; deixa lá isso, hoje, diz a esposa; eu sou professora, mas desculpem... é que não sei mesmo, diz Leonor. E o senhor Abel não nos diz nada, não?
A meio da noite, Leonor acordou e olhou insistentemente para Abel, enquanto o antigo Caim e Adão dormia do outro lado desse olhar penetrante e demorado; é um olhar anatómico, carinhoso, mas, ao mesmo tempo, surpreso, e até algo admirado. É o olhar dos amados que não distingue ainda a diferença entre a ilusão óptica e a ilusão amorosa, mas, agora, parece o olhar de Leonor querer desvendar física e friamente o que os sentidos lhe dão, na realidade, a ver. A respiração tranquila, as costuras atrás da orelha, o acidente, coitadinho, como terá sido? Mas, de novo, com alguma insistência, a mão de Leonor volta a avançar sob o edredão e mexe ao de leve no cotovelo, no braço de Abel. De onde conheço eu esta carne tão íntima, este vigor, esta forma invisível? Leonor olha para a janela, salpicos de chuva sem direcção, lentos, escorrendo sobre as minúsculas vidraças e Abel quase a despertar, sob o efeito da carícia que lhe tolhe o braço, o antebraço, o estreito cotovelo, essa forma íntima e antiga. E o senhor Abel não nos diz nada, não? Olhe, acho que esse ponto se chama "o festo". Sim, "o festo". O doutor levantou a cabeça, ostentou o brilho da sua cabeleira branca impecavelmente penteada e disse baf baf baf. Dona Olga juntou as mãos e pensou que este era, de facto, o marido perfeito para a Leonorzinha.
E a mulher do médico a dizer que era já hora de irmos embora, pagam os cariocas e os cafés e eu a perguntar, então está certo senhor doutor? O homem olha para dentro do saco da fruta, volta a cabeça para o escorrega do parque infantil e diz que sim. A irmã de Dona Olga está atenta ao relógio, que é ainda cedo, diz melosamente; falta ainda tempo para o almoço... e Leonor a pensar, mas terá o médico ficado sentido? Abel põe a chave do táxi em cima da mesa, despede-se, há sorrisos de infinita afinidade, vou-te buscar à escola às 6, está bem? Leonor ficou com o mesmo olhar anatómico, carinhoso, mas, ao mesmo tempo, surpreso, e até admirado.
Por que é que o Abel se levantou da mesa, de modo tão brusco? Pergunta para si Leonor, quando o médico e a mulher já entraram no carro. Dona Olga repete: aquela senhora é mesmo muito difícil. Ao longo da vida toda, sempre, sempre deu cabo do senhor doutor, sempre; então havia lá agora razão para se irem embora! A irmã de Dona Olga concorda e Abel já está de pé e repete, vou buscar-te à escola às 6, está bem? Leonor fez o tal compasso de espera, olhou com a alma vazia por instantes, mas logo contracenou. Claro, até logo, querido; até logo e não demores. Dona Olga enternecida com o casal e temendo não ver o médico amanhã e depois de amanhã, sabe-se lá até quando.