E hoje, o Instituto Nacional da Aviação Civil sentiu-se obrigado a responder a um jornal francês.
quarta-feira, 31 de agosto de 2005
E hoje, o Instituto Nacional da Aviação Civil sentiu-se obrigado a responder a um jornal francês.
Da autoria de Brendan O'Neill, esta perspectiva da história da al-Qaeda não deixa de ser interessante.
Para um blogue que aprecio – há coisas assim –, o treinador Scolari é um fantasma de Oliveira Salazar apenas por não ter posto a jogar na selecção nacional de futebol o senhor Baía. É como se Pinto da Costa fosse um arrebatado capitão de Abril, envolto pela gabardina negra e pelos óculos escuros mais ou menos policiais do tempo da outra senhora.
A impaciência traiu António Costa na RTP e deu a ver o modo como os factos, inelutavelmente, ultrapassam os governantes. O discurso político moderno começou por ser a dissimulação desse facto óbvio. Mas António Costa esqueceu tudo isso e preferiu falar em público como se estivesse zangado à mesa de um café, deixando de lado o que se espera de um ministro responsável em tempo de fragilidade e de crise: segurança, compaixão e autoridade (o exemplo inglês de Julho passado e a barbárie natural de Nova Orléans podiam ter servido de exemplo a António Costa para a discrição, para a humildade e para a voz de comando tão necessárias quanto negligenciadas).
"Hace tiempo que los portugueses andan desanimados. El ver arder, por tercer verano consecutivo, sus bosques ha reforzado estos días una introspección interna en un país profundamente deprimido y que no parece poder salir de su malestar. Se le amontonan los problemas y carece, cuando más lo necesitaría, de proyecto de país. La separación entre la clase política y la ciudadanía alimenta este pesimismo.
Los incendios, afortundamente apagados -en parte gracias a una ejemplar colaboración europea-, han puesto de forma desgraciada el foco sobre un campo abandonado por los jóvenes, sobre la desintegración acelerada del mundo rural, y sobre la falta de ordenamiento territorial. Portugal ha cambiado profundamente, para bien, aunque en el camino se olvidó de ese mundo rural. Pero el proceso de modernización y de crecimiento económico con la democratización y la entrada en la hoy Unión Europea ha sido a todas luces positivo, como en España.
Desde hace un quinquenio, ha entrado en una senda en la que no acaba de encontrarse. La economía, a la baja desde 2000, entró en recesión a finales de 2002, y desde entonces no remonta. Ante el encarecimiento del precio del petróleo, ni siquiera se podrá cumplir la tímida previsión del Banco de Portugal de un crecimiento del 0,5% del PIB este año. Mientras, crece el desempleo, del 4,1% en 2001 al 7,2% en la actualidad. Las recetas que han aplicado los diversos Gobiernos no han hecho sino engordar el Estado -hasta un 6,8% del PIB, casi el doble de lo permitido por la pertenencia al euro-, y los impuestos a los ciudadanos.
La depresión tiende a devorar a sus dirigentes, y la crisis de gobernabilidad la alimenta. Antonio Guterres tiró la toalla. Durao Barroso se marchó a Bruselas, y su sucesor, Pedro Santana Lopes, cayó en el caos administrativo. La victoria de José Sócrates ha despertado esperanzas, pero también el joven socialista ha sufrido en carne propia los últimos acontecimientos y, previsiblemente, pagará un precio, aumentado en las zonas devastadas por el fuego, en las municipales de octubre. Tan profunda parece la crisis política, que Mario Soares, a sus 80 años, que lo ha sido todo en Portugal, se ha propugnado como candidato a las elecciones presidenciales de enero, y la derecha mira a Anibal Cavaco Silva como posible contrincante. Son símbolos del pasado, y su candidatura es reflejo de que la nueva generación no ha llenado plenamente el hueco.
Portugal, sin embargo, se recuperará. Si hace unos años logró ponerse en forma para entrar en el euro, puede hacerlo de nuevo y afrontar los nuevos desafíos con el esfuerzo de todos y mediando un gran consenso nacional. Aunque los niveles de confianza de los agentes económicos tienden a empeorar, las empresas están haciendo grandes pasos en su reestructuración. La sociedad civil comienza a despertar y a movilizarse. Es de esperar que logre provocar un cambio en la forma de gobernar y un empuje para las inaplazables, y duras, reformas estructurales que Portugal no puede demorar más. Pero, ante todo, lo que los portugueses deben recuperar, y hay motivos para ello, es ilusión."
terça-feira, 30 de agosto de 2005
Leia-se com atenção o terceiro título mais importante do Público On-line de hoje:
Com a excepção da guerra e da sua imprevisibilidade, os furacões são provavelmente mais perigosos para os jornalistas que fazem a cobertura da sua passagem do que qualquer outro acontecimento."
r
Tomamos o café na esplanada com o cão. De repente, um casal desconhecido está à nossa frente. Ar simpático, traços anafados, compostura dócil.
O marido diz, a certa altura, na direcção da mulher: "Carlota dá um beijo ao cão". A senhora quase se ajoelha e o Ulisses lambe intensamente a cara à senhora.
Seguem depois o seu caminho, sem pressas, como se escutassem a voz de Jacques (le fataliste et son maître): "Et qui est ce qui m'apprendra à moi, pauvre ignorant, si la doctrine du faiseur de miracles est bonne ou mauvaise?"
segunda-feira, 29 de agosto de 2005
Andar de casaco de linho e de mala na mão pelas ruas de Lisboa, cidade ainda fantasma. Pensava eu que a vida recomeçava após o fim-de-semana, mas não: Agosto é mesmo sagrado. Nada a fazer.
P.S. - Acho curiosa a visão romântica que JPP tem dos "cemitérios alentejanos". Joaquim de Flora também tinha grandes visões!
domingo, 28 de agosto de 2005
Sobre a estratégia americana para o século XXI, por Henrique Raposo. O texto tem imenso interesse e fala de coisas reais. O que são coisas reais? Edward Hopper definiu-as como poucos: "The man's the work. Something doesn't come out of nothing".
Sobre inusitados fractais, por Filipe Moura.
sábado, 27 de agosto de 2005
sexta-feira, 26 de agosto de 2005
quarta-feira, 24 de agosto de 2005
Uma multidão a levantar a areia com os dedos dos pés. Parece uma peça de arte pública encenada para uma ocasião soberba. Mas não: trata-se apenas de pôr em prática o instinto recolector das massas. Tudo e todos à procura de conquilhas, também chamadas condelipas ou simples cadelinhas. No ar, ao fundo, o céu com a cor escura do fumo. Na rebentação, a cor não menos escura das algas. Sinais de fogo.
terça-feira, 23 de agosto de 2005
Ontem, Coimbra foi a cena quase ideal para o excelente texto de Fernando Ilharco, publicado no Público do mesmo dia, que, além do mais, a elevou ao nível de enigmática premonição. Deixo aqui um breve extracto para os menos atentos:
"Nas milhares de horas de televisão dedicadas nos últimos anos aos incêndios do Verão, a mensagem mais pesada, ainda que apenas uma suspeição, é a de que um dia as chamas destruirão não apenas as matas e as aldeias no meio dos montes, mas tomando as auto-estradas que têm vindo a ameaçar, queimarão também as cidades, o país e tudo o que nos fez chegar onde chegámos. Os "incêndios do regime" não estão apenas em Pampilhosa da Serra ou em Leiria; as chamas estão em todas as salas de estar do país, quando as famílias se juntam e nos incêndios do Verão vêem o poder a desautorizar-se e o país a questionar-se."
Mas a verdadeira explicação dos incêndios portugueses aparece inscrita na crónica de Vasco Pulido Valente (publicada no Público do passado Domingo):
"O meu pai tinha uma casa no Magoito, no meio de um pinhal. A casa ficava na encosta do rio da Mata, um riacho que ia dar à praia. Tinha uma varanda suspensa e uma vista sobre toda a serra de Sintra. Assisti à construção (o arquitecto foi Keil do Amaral, uma escolha política e funesta) e, obviamente, durante anos, passei lá as férias. Nessa altura, por volta de 1960-65, o Magoito, a 30 quilómetros de Lisboa, era uma aldeia primitiva sem electricidade, sem água canalizada e sem esgotos, com uma população pobríssima, que vivia de uma agricultura arcaica e de uma fábrica de cigarros a meio caminho de Sintra. No verão só vinham meia dúzia de famílias de fora. A praia, nunca muito boa, estava sempre deserta e havia por toda a parte, na falésia e nas rochas, percebes, mexilhão e búzios, que se apanhavam livremente aos quilos com uma espécie de canivetes curvos.Na outra encosta, em frente da casa do meu pai, íngreme e arenosa, mas dividida ciumentamente em pequenos talhões por muros de pedras, continuavam a trabalhar alguns camponeses. Por causa deles, existiam ainda alguns caminhos no pinhal e o rio da Mata não deixara de correr. No princípio de Junho, o caseiro do meu pai, um homem jovial, cortava os ramos secos, removia a caruma e levava as pinhas. Mesmo com sardinhadas clandestinas de bandos de arribação, em trinta anos não ardeu nada. Por sorte. Em 1980-81, o velho caseiro abriu uma mercearia e já não se arranjava quem quisesse limpar o pinhal. Os camponeses abandonaram a outra encosta e os caminhos pouco a pouco desapareceram. Os pinheiros, de que ninguém tratava, cresceram ao acaso em frente da casa e, excepto na varanda, tiraram a vista e taparam o sol. E até a varanda, no meio de metros de caruma acumulada, perdeu a graça. Para a gente do Magoito, esta história não foi uma história triste. Veio a electricidade e a água. Vieram estradas, centenas e centenas de casas, milhares de turistas. No tempo de uma vida, acabou o trabalho da pobreza e da fome. Entretanto, o vale do rio da Mata reverteu ao seu estado selvagem e os raros pinhais que sobreviveram à "urbanização" de massa são um barril de pólvora. Por falta de dinheiro e de pessoal, nem o Estado, nem os particulares podem tomar conta deles. Se amanhã vir na televisão um incêndio no Magoito, espero que me lembre do Magoito antigo e que não o lamente muito."
De qualquer modo, eu insisto: quem, longe da ruralidade profunda, não sentiu como sua e não testemunhou como sua a lenta desertificação (de décadas) do país não pode, hoje em dia, senão arrepiar-se com as consequências desse facto, mas sem, contudo, as compreender. Quando as vozes oficiais do regime apelam ao estudo das "causas estruturantes" do "flagelo", elas mais não fazem do que ecoar essa incompreensão embaraçante e, quer se queira quer não, carregada de uma vertiginosa perda de sentido. Essa perda é o rosto da nossa própria impotência.
segunda-feira, 22 de agosto de 2005
Preferia um mundo em que comunicássemos todos por telepatia e sem agenda definida. Já não era preciso a semiótica para nada. Mas, nesse caso, o próprio corpo humano teria tido um desenvolvimento muito diferente. Provavelmente não teríamos membros para gesticular (lá se iam de vez as encenações de Paulo Ribeiro), provavelmente não teríamos lábios (lá se ia o suave mistério da Mona Lisa), provavelmente também não teríamos orelhas (lá se ia o sereno prazer ao som de Monteverdi). Estou em crer que, se não fôssemos seres semióticos, seríamos meros espigões marcianos sem aquela angústia primata que nos permite imaginar os olhos dos deuses e a cor do areal para onde estou agora a olhar. Não é?
domingo, 21 de agosto de 2005
sábado, 20 de agosto de 2005
Ontem li no Público (no links) as declarações de um responsável do grupo de teatro, Fatias de Cá. Dizia o artista, a propósito da peça do grupo que entra agora em cena (uma adaptação ilícita, ao que parece, de um romance do Miguel Sousa Tavares), que não queria "chatices do isso dos direitos de autor". Cito a frase tal e qual, pois ela demonstra, por si só, um explícito e assumido desprezo por algo que é precioso para um escritor decente; leia-se: um escritor que não vive à custa de subsídios do estado.
P.S. Segundo consta na imprensa de hoje, o caso (legal) estaria já resolvido. Mas isso não retira qualquer peso ao peso das declarações. Quanto à "decência", trata-se de uma consideração que faço sem presunções judicativas; quer dizer: eu não me sentiria com um mínimo de decência, se vivesse, enquanto escritor, às custas do estado. Mas quem se quiser sentir visado com o que ontem escrevi... que se sinta à vontade!
sexta-feira, 19 de agosto de 2005
quinta-feira, 18 de agosto de 2005
A praia dá aos portugueses outras vestes e outros vaticínios. Deixam o fato de treino à hipermercado e passam a circular com desnudada verve, voz alta e perfís anafados a rodopiar pontões, assados e orlas de circo onde há sempre a atracção do tigre branco. Junto à areia molhada, a bola gira entre passeantes e cavaleiros tardios que mais tarde ressurgem de mota, ou de jipe de alta cilindrada, e assim fascinam aldeões, cachopas entediadas e roxas, turistas pardos e ainda aquela rapaziada de tatuagem no coxis e híbrida palavração. Ao fim do dia, engarrafam-se as vias e a nova rotina de rotundas e estacionamentos impossíveis dá aos habitáculos das viaturas aquele aspecto de quarentena que escapa à peste como o diabo às chamas florestais (aquelas que a televisão dá a ver, à hora do jantar, como se fossem coisas há muito passadas no centro da Via Láctea). Depois, noite escura e já densa, entre brasas e arrufos de tamboril, vislumbram-se ainda nos ecrãs das esplanadas uns gajos a serem postos fora de casa lá para as bandas do deserto e uns candidatos à presidência entre o silêncio da meteorologia e o bramido das ondas sem novidade. E o mundo pode, deste modo, continuar ileso a temporais, a crises, a catástrofes e a mil meteoritos cintilantes. É a felicidade do verão.
quarta-feira, 17 de agosto de 2005
segunda-feira, 15 de agosto de 2005
sábado, 13 de agosto de 2005
"O Lula e o Alencar ficaram na sala e fomos para o quarto eu, o Delúbio e o Dirceu. Eu comecei pedindo R$ 20 milhões para levar uns R$ 15 milhões. Daí, ficou aquela discussão. Uma hora, o Zé Alencar entrou e falou: 'E aí, já resolveram?'. Eles (o PT) achavam que iam arrecadar R$ 40 milhões. Eu falei: 'Tira R$ 15 milhões para a gente. É justo'. Eles ameaçaram ir embora. O Lula mandou ligar para o (hoje ministro) Patrus Ananias e avisou que, se a conversa não desse certo, ele seria o candidato a vice na chapa. Uma hora, o Dirceu chegou a dizer 'acabou'. Eles batiam tanto o pé comigo que eu pensei 'ô povo firme. Esses vão me pagar rigorosamente em dia'. Daí chamei o Zé Dirceu de volta para o quarto. O Zé Alencar veio junto. Falei: 'Vamos acertar por R$ 10 milhões'. Voltamos para a sala e avisamos: 'Está fechado'. Lembro ainda que o Zé Alencar falou 'peça tudo por dentro' "
No meio do campo profundo a olhar para o céu. Foi nos arredores da aldeia de Nossa Senhora de Machede e as perseides, confesso, deram-se realmente a ver. Nem sempre a norte. A mais rasgada e avermelhada apareceu a sul. E muitas outras entraram em cena no lado mais ocidental (onde se via pior devido ao clarão eborense). O pescoço é que pagou pelo sortilégio. Ainda hoje.
sexta-feira, 12 de agosto de 2005
O aumento do preço do petróleo deu origem, e bem, a um debate na SIC-Notícias sobre o tema com especialistas da área. Dessa discussão saltaram para cima da mesa alguns números interessantes. Bastará dizer, em suma, que o preço do petróleo atingiu hoje valores que rondam os 66 dólares por barril e que o orçamento rectificativo - em vigor - estimou o preço do barril em 50 dólares, enquanto o orçamento de Bagão Félix (do Outono do ano passado) o estimava em 38 dólares (!).
Fique-se agora a conhecer a relação que dá valor e algum sentido a estes números que, por si só, parecem nada querer dizer aos leigos: ou seja, por cada dólar a mais (ou a menos) no preço do barril do petróleo corresponde entre nós uma diferença de cem milhões de Euros (façam-se as contas para menos 28 dólares por barril, no caso Bagão Félix, e para menos 16 dólares por barril, no caso do orçamento em vigor).
Depois destas contas, caro leitor, bastará respirar fundo, arrumar a toalha e regressar à praia. Não é o melhor?
quinta-feira, 11 de agosto de 2005
"Não é o ideal, mas é o melhor que temos" - Esta frase de Mário Lino, ministro das obras públicas, sintetiza e metaforiza como nenhuma outra a ligeireza e o espírito de fuga para a frente que herdamos dos tempos de Cravinho e Elisa Ferreira (1999/2000) e, também, de Durão Barroso (2002/2004).
Sem estudos, sem avaliações sérias conhecidas e sem inserção numa visão mais ampla dos desafios que o país carece, a Ota não é uma mera Expo: é sobretudo um entreposto frágil, casuístico e algo obscuro para grandes investimentos (sabendo-se que a intenção do governo é transformar os "riscos" em matéria aparentemente alheia ao estado, embora, como é óbvio, seja nele que acabarão por recair todas as garantias...).
Ao fim e ao cabo, os impostos dos portugueses vão transformar-se numa espécie de garantia bancária para um jogo sem contornos precisos, sem finalidades evidentes e sem necessidade comprovada. Porquê?
quarta-feira, 10 de agosto de 2005
Fiquei a saber pelo Nuno Guerreiro que Peter Jennings voltou a fumar no dia 11 de Setembro de 2001. Como se sabe, o pivot e editor do jornal da noite da ABC morreu anteontem com cancro do pulmão.
Hoje, para admiração minha - pensava que sairia no Outono -, apareceu nas livrarias o meu ensaio, A Viragem Profética (Publicações Europa-América, Biblioteca Universitária).
Volto a publicar aqui o texto que abre o livro:
Nas várias culturas que se organizaram sob o pano de fundo da civilização do "Livro" (o mundo judaico, cristão e islâmico), a chamada civilização axial ou escatológica, foi sendo instituída uma espécie de ordem dicotómica que tendia claramente a separar a normalidade das coisas daquilo que, devido às mais variadas razões, se evadia dessa normalidade. Aliás, a palavra "segno" (não confundir com signo, nas suas várias acepções correntes), em finais do quattrocento e no século seguinte, traduzia precisamente a ideia do conjunto de alterações que se processava escapando-se ao “curso natural das coisas” (O.Niccoli, 1990, p.31).Isto quer dizer que o diabo, as metamorfoses inexplicáveis, as excrescências evidenciadas pela natureza, os monstros que habitariam a periferia do planeta, os eventos imprevistos, os animais fabulosos que respiravam nos relatos de Preste João ou do imaginário trágico-marítimo integravam, cada um a seu modo, esse desmedido mundo do segno. No entanto, para que o segno pudesse existir e tornar-se reconhecível, independentemente da significação que lhe fosse atribuída, era necessária a existência de uma ordem muito bem ancorada que, por contraste, separasse o seu mundo do mundo definido como normal. Sem esse contraste, as bruxarias, os textos proféticos considerados anómalos, as apostasias, as arquitecturas desproporcionadas, as heresias e outros “horrores” jamais teriam sido perseguidos.Curiosamente, o mundo utópico e o mundo ideológico, que desaguaram um e outro, com idades e naturezas diversas, no século XIX, acabaram por trazer consigo, no Ocidente cristão, a antiga marca das civilizações axiais e escatológicas. Só que, em vez de paraíso, convocaram a ideia de um igualitarismo terreno. Por outro lado, a natureza racional do dogma substituía o “Livro” divino, enquanto a luta “por um mundo melhor” passava a encarnar os exigentes preceitos da antiga fé.Nesta novíssima geometria, o segno adquire novas formas, até porque a modernidade avança em cascata, mobilizando, a partir do fim do século XVIII, diversas autonomias, nomeadamente de natureza jurídica, científica, estética, mediática, ética, constitucional, social, clínica, etc. Mas em todas estas naturezas, em todos estes palcos subitamente libertos (ou deliberadamente ausentes) de uma tutela divina, a racionalidade moderna teve sempre tendência a instituir contrastes férreos entre a normalidade e a não-normalidade. Pode mesmo dizer-se que o segno acabou por persistir sendo o que sempre havia sido, mas agora luzindo de um modo lógico e tornando-se, por isso mesmo, peça de arremesso e móbil para a iniciativa.Em cada uma das áreas de sociabilidade moderna, os contrários passam a digladiar-se ferozmente definindo mutuamente o campo do segno (nos sistemas políticos, nas modalidades jurídicas, na sucessão vertiginosa de vanguardas artísticas, no debate científico, etc.). Esta sistemática e violenta norma de oposições trouxe o segno para dentro da vida social e deixou, portanto, de o imaginar como um sinal divino vindo do alhures e cujas finalidades últimas escapariam à compreensão humana (era esta a explicação de Santo Agostinho para a existência de monstros e portenta).Contudo, quer no mundo cristão pré-moderno, quer no mundo cristão moderno, verifica-se, ainda que com uma topografia claramente diversa, uma necessária separação entre segno e não-segno. Essa barreira une ambos os mundos, o pré-moderno e o moderno, o que acaba por ter como importantíssima consequência a não banalização do que vai escapando à ordem “natural” ou “normal” ou ainda “previsível” das coisas (o chamado segno).Ora o que muda abruptamente no Ocidente no final do século XX e no início do século XXI é precisamente este aspecto. E essa mudança, por si, tem uma força histórica tremenda e, por isso mesmo, bastante silenciosa ainda hoje. A grande mudança dos últimos quinze anos ficou a dever-se a dois factos fundamentais: por um lado, à diluição e perda de eficácia das grandes referências pesadas e doutrinais de carácter ideológico e similares (o fenómeno atravessa diversificadas esferas e não se circunscreve ao esboroar da guerra-fria) e, por outro lado, à entrada em cena de uma globalização hipertecnológica associada a um novo tipo de espaço público aberto.Os vários compostos de uma era que fora prenunciada como “pós-moderna” e policentrada criam rápida e progressivamente, em todo o Ocidente, o apagamento da antiquíssima barreira que sempre havia separado segno e não-segno. E, de um momento para o outro, em muito poucos anos, a verdade é que a relativação quase absoluta tende a incluir, na horizontalidade social pós-moderna, quer o que precede do segno quer o que precederia do não-segno. Mais: a separação entre um e o outro deixa mesmo de ser uma questão, um problema ou uma preocupação, da mesma maneira que a superação da divisão clássica entre real e ficcional aparece anunciada sob o desígnio da hiper-realidade.A consequência mais importante desta grande mudança ainda em curso - o tempo de transição é quase nulo e a sua percepção é abismada - consiste na banalização daquilo que, secularmente, no Ocidente, sempre foi encarnado sob o manto do “mal”, ou, numa perspectiva menos simplista, do “segno”. A primeira vez que esta mudança efectiva nos entrou em casa - através do fluxo globalizado de imagens - foi no dia 11 de Setembro de 2001. O carácter extraordinário desse evento, para além das suas implicações políticas (que reputo de fundamentais), foi o facto de, ele mesmo, ter conduzido ao pasmo, à ambiguidade ou à tentação relativadora (houve mesmo, numa perspectiva neo-conceptual, quem lhe atribuísse conotações artísticas). Ainda hoje existe, em certos meios, a ideia de que o 11 de Setembro é aqui e ali “justificável”, ou é, “bem vistas as coisas”, uma deriva do “sistema”: ou é uma “vingança”, ou ainda uma “inevitável resposta” face aos factos A ou B produzidos no Ocidente (esta última é a explicação autofágica).É este apagamento das barreiras que sempre separaram segno e não-segno que eu designo por viragem profética. É esta relativação imparável que eu designo por viragem profética. Ao exemplo nevrálgico do hiperterrorismo podíamos acrescentar o pressentido mundo das manipulações genéticas e ainda algumas das implicações do que hoje já se chama a “pós-humanidade” (assim como a diluição das próprias ideias-força que separam dever e não-dever, tolerância e não tolerância, democracia e não-democracia. etc.)Jamais na história do Ocidente (e noutras culturas axiais - o caso do Islão é extraordinário, pois aí, salvo excepções pontuais e sempre superadas, nunca existiu um Iluminismo racionalizante), o segno deixou de ser um elemento individualizado, descodificado e bem reconhecível, independentemente da siginificação que lhe era imputada (essa é uma outra questão de natureza semiótica). Este facto novo está hoje em dia a traduzir-se na dissolução do segno no meio das mais variadas ordens que, de modo devorador, agenciam todos os dias factos e ocorrências que se processam à nossa volta através de imagens seriadas e mundializadas.O terrorismo, hoje em dia, não é apenas uma ameaça. Ele é sobretudo um desenho quase invisível que atravessa os desenhos sobrepostos da nossa sociabilidade contemporânea. Ele é design a contracenar discretamente com o macro-design. O aspecto mais terrível do actual terrorismo é a ideia, no Ocidente, de que ele não existe, porque conviveria no mesmo horizonte aparente com outros factos cuja textura não seria afinal diversa. O terrorismo converter-se-ia, desta maneira, numa ocorrência entre as muitas outras ocorrências do quotidiano para o mais puro deleite e para a mais fatal das gargalhadas do cidadão ocidental, esse novíssimo guardador e curador global de imagens.Daí, também, a propensão europeia para a imagem de uma grande Suíça neutral, pacífica no seio da qual o terror e o não-terror seriam uma espécie de irmãos gémeos federados, sem problemas, sem ambições e sem olhos para observar as perversas ausências de fronteiras que se criaram na sua própria casa. É a esta indiferença indigente, é a esta cegueira involuntária - e, em última análise, auto-flageladora - que eu chamo a viragem profética."The prophetic turn", um dos sinais mais vitais dos nossos tempos.
terça-feira, 9 de agosto de 2005
Sigo a reentrada do vaivém na atmosfera como se eu fosse também parte do vaivém. À fragilidade soma-se agora a ordem do sublime: é um momento raríssimo em que o tempo real do directo se associa a um risco francamente real.
*
O alívio é, por fim, o nome da aterragem. Terra: o lugar do ouro.
segunda-feira, 8 de agosto de 2005
Há outro silêncio gritante que atravessa toda a comunicação social portuguesa (mas não só, claro).
Não, não é apenas a questão da Ota, do mensalão ou da banalização informe que envolve os incêndios estivais.
A verdade é que também ninguém ousa falar da coragem política de Sharon e do seu propósito de pacificação do Médio-Oriente.
Porquê? Eu sei, todos sabemos (i.e., o preconceito histórico que continua vivo no profundo magma português e o modo como o conflito israelo-palestiniano tem sido dominantemente representado no último meio século europeu)
"miniscente was the subject of much speculation when analysts at several firms were heard to be very positive about it's recent performance. It's share price rose from B$3,646.50 to B$5,031.55. Much of the hype was said to originate from Queen of Jerusalem whose Explorer (artefact) was said to be involved."
A ficcionalidade é, de facto, uma coisa extraordinária.
Visão: vejo Mário Soares a esquecer veladamente tudo o que disse nos últimos quatro anos: que não era alter-globalizador, que não era pela negociação com uma organização terrorista, obscura e acentrada, que não era anti-americano mas apenas anti-Bush e que não era europeísta por simples contrapeso aos States.
O mundo que se auto-representava (ou que se auto-representa) nos textos das chamadas civilizações do "Livro", nas profecias anónimas que serviram de arma de guerra entre cristãos e turcos durante o século XV, no deambular do Quijote ou de Candide, nas ideologias verticais do século XIX, ou nos mundializados média contemporâneos não era o mundo dos ricos nem o mundo dos pobres. Era tão-só o mundo que se auto-representava. Reduzir tudo à evidência da pobreza e da riqueza é não ver a evidência do mundo que se apresenta.
"Enquanto, por um lado, criticamos os "ladrões capitalistas" americanos porque parecem demasiado seguros das suas prioridades, continuamos a defender timidamente os nossos Estados de bem-estar. "Mantenham-se afastados! Pode-nos sair caro", gritamos. Em vez de agirmos de forma a defendermos a nossa civilização, preferimos discutir a redução do horário de trabalho para 35 horas semanais, o aumento da cobertura dentária ou a extensão das quatro semanas pagas de férias anuais. Ou, então, escutamos atentamente os pastores pregar na televisão sobre a necessidade de "estender a mão aos terroristas", compreender e perdoar. Hoje em dia, a Europa faz-me lembrar uma velha senhora que, com mãos trémulas, esconde freneticamente as últimas jóias que lhe restam ao ouvir um ladrão arrombar a casa do vizinho. Apaziguamento? É apenas o começo. Europa, o teu nome é cobardia."
domingo, 7 de agosto de 2005
sábado, 6 de agosto de 2005
e
A cobertura mediática dos incêndios tem-se assemelhado, entre nós, a um genérico para grandes audiências: todos o vêem, mas ninguém o lê.
Adenda
Só quem nunca a viu, ou sentiu como sua, é que se admira com a desertificação. Há factos de que nos apropriamos apenas através do pasmo, do espanto e da súbita e impotente contemplação das consequências. Em boa verdade, a recente vaga de incêndios começou a ser preparada há algumas décadas e, agora, necessitamos de outras tantas para a travar. Há fenómenos, cuja escala e amplitude não se compadecem com a capacidade humana de controlo. Borges escreveu-o há mais de sessenta anos: “Las ruinas del santuario del dios del fuego fureon destruidas por el fuego” (Las Ruinas Circulares, Ficciones, 1944).
r
Discordo, caro Avatar!
O intelectual é já, felizmente, uma obra de caridade em extinção. Hoje em dia, o intelectual é coisa que já não significa o mesmo que significou entre o iluminado fim de setecentos e os anos sessenta mais ou menos sartreanos. Os antigos silêncios dos antigos intelectuais já não são os silêncios dos que hoje cintilam com o vestígio do que foi ser intelectual. É por isso que "não dizer" (ocultar, omitir), nos dias de hoje, remete sobretudo para aquilo que não pertence ao fluxo ininterrupto e mundializado de imagens. Por outro lado,"dizer" (explicitar, enunciar), nos dias de hoje, é uma verdadeira corrente que atravessa público e privado, comércios infindos, nichos e patéticas redomas.
Pôr um carro - ou o coração - à venda nos blogues só não é já um facto por razões de pura eficácia. Espero que cheguemos lá (apenas porque é bom somar potencialidades às potencialidades, ou não é esse o caminho da virtualidade?)!
Não o perceber é navegar ainda com as estriadas velas da embarcação analógica, nesse mar de mitos onde os segredos e tabus ainda têm centro, limites e narrativas que se alimentam da pretensa veia libertina e contracultural dos "intelectuais".
P.S. - Discussão parecida já tinha andado por aqui, em finais de Novembro de 2003, entre o bom Avatar e o desilusionismo Miniscente. Na altura, em sintonia quase perfeita, rebatemos e comentámos a definição de "intelectual" do Eduardo Prado Coelho ("os tradutores de códigos culturais"). Não foi?
E já que falamos de jornais, eis aqui a melhor entrevista dada até hoje ao Mil Folhas. Parabéns, também, pelo aniversário!
e
Raramente compro o saco (leia-se o Expresso).
Saco ao sábado é rotina a que nunca, e felizmente, me habituei. Mas hoje, fim-de-semana entre férias, lá revejo e leio tudo de ponta a ponta: intermináveis cadernos de cor anafada, tópicos de intriga menor, editorial sobre confissões de dirigentes políticos jamais nomeados, um humor pobre e requentado, relatos sobre a festa da Caras, o 1812 moscovita dos manos Maniche, a palavra "amesamento" (ou coisa parecida) na gastronomia, a tinta sem sentido em torno do triângulo Soares-Alegre-Cavaco e muitas crónicas pouco motivadoras, radicalmente chãs e sobretudo previsíveis (há sempre excepções: a história da adolescente enunciada pelo João é interessante e a presença da Charlotte é novidade para mim - que ando sempre atrasado nestes densos eclipses da alma).
Voltarei a comprar o saco daqui a seis meses para ver se mantém o nível.
P.S. - Ainda uma singularidade, após a segunda leitura do jornal. Então não é que António Ramos Rosa termina a sua entrevista/excurso - bastante truncada, aliás - com a seguinte frase lapidar: "A vida não me ensinou nada"? Espantoso.
sexta-feira, 5 de agosto de 2005
e
Já se pode ler aqui o meu conto que saiu na revista Atlântico (nº 5). Por acaso - e isto é revelação do Miniscente em primeira mão -, o dito é parte do meu futuro romance que sairá algures em 2006.
"(...)Laurentino lembrava-se das águas escurecidas da barragem, desse verde vago de correntes brevíssimas onde o ofício dos remos e os braços abertos dos remadores limavam a sede do tempo. Visto do alto do precipício, era um movimento lento, vagaroso, bastante sincopado. Era como a miniatura de um limbo que progredia do paraíso esquecido até à sombria mansidão que rodeava o pequeno cais da aldeia. Aí, sobre o que sobrava do velho coreto, estava perfilada a banda de uniformes brancos como se fosse um insecto minúsculo cheio de tentáculos esponjosos e envolvido pela espessa poeira avermelhada do fundo da terra.(...)"
É evidente que também considero normal, e não excepcional, que as instâncias do estado devam colocar os seus projectos on-line para que a desejável discussão pública se torne objectiva, informada e ponderada.
Este tipo de procedimentos deveria mesmo constituir uma rotina, já que, independentemente da natureza dos compromissos eleitorais, o que está em jogo é sempre o dinheiro dos contribuintes.
Estamos, pois, face a uma exigência óbvia e necessária que deveria visar todo o tipo de projectos de iniciativa estatal e não apenas aqueles mega-projectos que têm o condão de inflamar a opinião pública e o jogo político (caso da Ota).
É, pois, de estranhar que o estado não tenha criado, há já muito tempo - e em várias escalas -, um sistema de portais adequado a este fim. A gestão desse tipo de plataformas é leve, como se sabe. Basta ter vontade política para as criar e para as integrar de modo eficaz.
*
Aqui segue, por fim, a solicitação que corre na blogosfera e com a qual naturalmente concordo:
PODE O GOVERNO SFF COLOCAR EM LINHA OS ESTUDOS SOBRE O AEROPORTO DA OTA PARA QUE NA SOCIEDADE PORTUGUESA SE VALORIZE MAIS A “BUSCA DE SOLUÇÕES” EM DETRIMENTO DA “ESPECULAÇÃO”?
O fumo e um intenso cheiro a queimado a sobrevoar a cidade.
(fotografia enviada propositadamente por Tiago Valente. Obrigado!)