Há metáforas que certos espíritos consideram de imediato do foro diabólico. Uma delas, bastante recente, dá pelo nome de “flexisegurança”. No fundo, trata-se de sugerir que se mantêm vivas algumas perspectivas num mundo onde a ausência de perspectivas passou a constituir o nosso dia a dia mais natural. Para além desta metáfora recente, existem muitas outras metáforas de teor igualmente flexível que não se chegam a soletrar, mas que abundam no nosso quotidiano como coisas adquiridas, dadas, óbvias e, portanto, também naturais. Uma delas é este “flexidescanso” entre feriados, ou seja, este sentido da vida muito português que se designa por “ponte”.Um carinho de metáfora. Basta ver o modo como Lisboa hoje parece viver num ambiente de salutar Domingo. O cenário é de facto cristalino: um vazio de ruas, de salas de aula, de trânsito, de tudo. Há quem não goste muito da “flexisegurança”, mas todos adoram o “flexidescanso”. Portugal, país hedonista. Como é afinal filosófico ter nascido nesta terra!
segunda-feira, 30 de abril de 2007
Escavações Contemporâneas - 1
LCA
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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: João Pereira Coutinho*)
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"Leio na imprensa da manhã que as gravatas estão em declínio. Em 1996, e só em Inglaterra, 70% dos trabalhadores usavam gravata nas horas de ofício. Dez anos depois, a coisa desceu para 56% e, nas «profissões liberais», foi a deserção total. Os vendedores fazem contas à vida e perguntam se vale a pena. Os especialistas da sociologia e da história dizem que não vale a pena. As gravatas foram perdendo relevância pela sua evidente inutilidade.
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Curioso raciocínio. Eu julgava que a evidente inutilidade das gravatas era o principal motivo para as usarmos. Até Luis XIV, que praticamente iniciou o fenómeno, percebeu o facto: ao contemplar os lenços que os mercenários croatas transportavam ao pescoço depois da vitória sobre os turcos, o monarca agradeceu a ideia e resolveu adaptar um adereço bélico, capaz de proporcionar protecção e conforto nas noites de campanha, aos salões de Versalhes. Utilidade? Nenhuma. Inutilidade? Toda. A inutilidade própria de quem entende a estética como prolongamento natural da nossa mortalidade.
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Concordo com o velho Luis. Concordo e por mim falo: no dia em que percebi que não precisava de usar gravata, comprei a primeira. Foi amor à primeira vista: castanha, de lã, numa loja do centro. O passo inaugural de uma colecção que já ascende às duzentas. Alguns dirão que é traço de família. O meu avô, o homem mais elegante que conheci em toda a minha vida, juntou umas mil e tal até ao fim. Lã. Seda. Malha. De todas as cores e feitios. Compradas aqui e acolá. Por respeitabilidade social? Talvez. Mas, no seu caso, desconfio que as usava por respeitabilidade pessoal. Ele podia não precisar de usar, porque a certa altura passou simplesmente a trabalhar no escritório, em casa. Mas não usar gravata era como não usar cuecas por baixo das calças. Possível, em teoria. Desconfortável, na prática.
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Comigo, não. Uso-as pela evidente inutilidade que as define. Porque as gravatas são uma celebração da inutilidade. São uma forma de dizermos: sim, eu sei que isto não passa de um trapo colorido sem nenhum valor utilitário. Mas o mundo que habitamos, quando despido de qualquer coloração humana, também não passa de uma evidência física incapaz de transportar qualquer sentido, ou beleza, ou eternidade. Os quadros que amamos são uma mistela de tintas sobre linho: um amontoado de átomos sem nenhuma expressão humana particular. Mas quando os vemos com um olhar grato e deslumbrado, a evidência da tinta desaparece por trás de deuses ou heróis que tomam literalmente conta do quadro. Um traço de tinta é agora um braço; a folhagem perdida de uma vista; o nevoeiro que vem e tudo cobre. E o que ficam são histórias e mais histórias: de como Vénus nasceu das águas. De como Deus tocou no dedo dos Homens e lhes deu vida e imortalidade. De como a névoa chegou a Veneza e tudo cobriu de tristeza e melancolia. Sim, Veneza: aquele amontoado de casas. De pedras, cimento, tijolo. De becos, canais e ruelas, para usarmos a descrição científica, e cientificamente rigorosa, que horrorizava Proust com a força de uma blasfémia. Mas Veneza é também lugar, e memória. E o que anteriormente eram pedras e ruelas, são agora locais de passagem e de regresso.
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Mesmo o rosto da pessoa que amamos será uma colecção de tecidos animados por um batimento cardíaco que começa e acaba sem ninguém saber como, ou porquê. Mas o rosto da pessoa que amamos é tudo menos isso: é a promessa de que a nossa solidão é testemunhada e embalada pela simples presença daquele rosto. Os livros de anatomia estão certos. Os livros de anatomia estão completamente errados.
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As gravatas são pedaços de tecido. Mas são mais do que tecido: são uma extensão inútil da nossa preciosa singularidade. Uma forma de sermos vaidosos, pirosos. Modernos, antiquados. Excessivos, reservados. E, no final do dia, quando desfazemos o nó das nossas vidas, sabermos sempre que, também por isso, somos simplesmente humanos."
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Curioso raciocínio. Eu julgava que a evidente inutilidade das gravatas era o principal motivo para as usarmos. Até Luis XIV, que praticamente iniciou o fenómeno, percebeu o facto: ao contemplar os lenços que os mercenários croatas transportavam ao pescoço depois da vitória sobre os turcos, o monarca agradeceu a ideia e resolveu adaptar um adereço bélico, capaz de proporcionar protecção e conforto nas noites de campanha, aos salões de Versalhes. Utilidade? Nenhuma. Inutilidade? Toda. A inutilidade própria de quem entende a estética como prolongamento natural da nossa mortalidade.
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Concordo com o velho Luis. Concordo e por mim falo: no dia em que percebi que não precisava de usar gravata, comprei a primeira. Foi amor à primeira vista: castanha, de lã, numa loja do centro. O passo inaugural de uma colecção que já ascende às duzentas. Alguns dirão que é traço de família. O meu avô, o homem mais elegante que conheci em toda a minha vida, juntou umas mil e tal até ao fim. Lã. Seda. Malha. De todas as cores e feitios. Compradas aqui e acolá. Por respeitabilidade social? Talvez. Mas, no seu caso, desconfio que as usava por respeitabilidade pessoal. Ele podia não precisar de usar, porque a certa altura passou simplesmente a trabalhar no escritório, em casa. Mas não usar gravata era como não usar cuecas por baixo das calças. Possível, em teoria. Desconfortável, na prática.
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Comigo, não. Uso-as pela evidente inutilidade que as define. Porque as gravatas são uma celebração da inutilidade. São uma forma de dizermos: sim, eu sei que isto não passa de um trapo colorido sem nenhum valor utilitário. Mas o mundo que habitamos, quando despido de qualquer coloração humana, também não passa de uma evidência física incapaz de transportar qualquer sentido, ou beleza, ou eternidade. Os quadros que amamos são uma mistela de tintas sobre linho: um amontoado de átomos sem nenhuma expressão humana particular. Mas quando os vemos com um olhar grato e deslumbrado, a evidência da tinta desaparece por trás de deuses ou heróis que tomam literalmente conta do quadro. Um traço de tinta é agora um braço; a folhagem perdida de uma vista; o nevoeiro que vem e tudo cobre. E o que ficam são histórias e mais histórias: de como Vénus nasceu das águas. De como Deus tocou no dedo dos Homens e lhes deu vida e imortalidade. De como a névoa chegou a Veneza e tudo cobriu de tristeza e melancolia. Sim, Veneza: aquele amontoado de casas. De pedras, cimento, tijolo. De becos, canais e ruelas, para usarmos a descrição científica, e cientificamente rigorosa, que horrorizava Proust com a força de uma blasfémia. Mas Veneza é também lugar, e memória. E o que anteriormente eram pedras e ruelas, são agora locais de passagem e de regresso.
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Mesmo o rosto da pessoa que amamos será uma colecção de tecidos animados por um batimento cardíaco que começa e acaba sem ninguém saber como, ou porquê. Mas o rosto da pessoa que amamos é tudo menos isso: é a promessa de que a nossa solidão é testemunhada e embalada pela simples presença daquele rosto. Os livros de anatomia estão certos. Os livros de anatomia estão completamente errados.
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As gravatas são pedaços de tecido. Mas são mais do que tecido: são uma extensão inútil da nossa preciosa singularidade. Uma forma de sermos vaidosos, pirosos. Modernos, antiquados. Excessivos, reservados. E, no final do dia, quando desfazemos o nó das nossas vidas, sabermos sempre que, também por isso, somos simplesmente humanos."
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Crónica publicada na Revista Atlântico
Folhetim - 5
VANITAS
51, AVENUE D´IÉNA
por Almeida Faria
51, AVENUE D´IÉNA
por Almeida Faria
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(a ler, também, no novíssimo blogue: Folhetins e Novelas)
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«Fui mais afortunado com esta morada, que me serviu de pinacoteca privada e de residência oficial. A minha mulher e meus filhos Nubar e Rita é que habitavam de facto aqui. Eu vinha por causa da família, dos contactos comerciais e sociais, para controlar o essencial, fiscalizar as finanças, disciplinar o pessoal, suportar os aspectos mais chatos de ser milionário. Estava no centro financeiro da cidade, ao pé dos Bancos com que trabalhava, e passei a gostar dela a partir do momento em que juntei sob os seus tectos alguns dos móveis que por aí vê e as colecções que foram para Lisboa e me fizeram passar dias inteiros nesta galeria, na biblioteca ou no meu gabinete de trabalho, estudando investimentos ou contemplando as minhas preciosidades. Gente maldosa e invejosa, gente inclusive muito próxima, chamou-me avarento insinuando que eu dava volta aos cestos dos papéis para ver se as secretárias gastavam papel de carta a mais. Mentiras e mesquinhices, claro, pessoas que não percebiam que eu preferisse os meus quadros ao convívio com elas. Depois do jantar ia dormir à place Vendôme na minha suite do Ritz, sozinho ou com quem me apetecia. Não por ser libertino, nem apenas pelas razões de segurança que aleguei à família. Na verdade detestava confundir no mesmo ambiente as noites e os dias, e se agora volto à noite aqui é porque já cá não vivo. Não, as minhas noites no Ritz pouco tinham das cenas galantes do Lafrensen, pintor sueco, secreto e sensual de quem comprei alguns quadros. Nem sequer eram noites de aventuras. A partir de dada altura a minha aventura foi a luta pela conquista e pela posse de certas obras, umas a preços de loucura, outras à custa de paciência, persistência e alguma astúcia, outras impossíveis de conseguir. Nunca notou que na minha colecção há poucas naturezas-mortas? Uma delas, a maior e mais vistosa, do Jan Baptist Weenix, fazia um figurão por cima da lareira do Salon Rond, com o seu pavão de longa cauda e os seus troféus de caça, incluindo um cisne morto de gosto duvidoso. Outra, discreta e pequena, do Monet, nunca a apreciei por aí além. A minha predilecta, não por acaso, era do Fantin, a de Lisboa, pois, aquela da jarra redonda com hortênsias creme e rosa velho, em cima de uma toalha com vincos pintados por mão de mestre – sabe qual é? Tem um prato fundo cheio de fruta e um prato de sobremesa com morangos, ao lado de um ramo de groselhas e duas cerejas, um pêssego partido e outro meio reflectido na lâmina brilhante da faca, posta de propósito bem à beira do tampo da mesa de modo a mostrar que o pintor é capaz de fazê-la saltar em relevo do quadro. E o minúsculo reflexo da janela no bojo da jarra, não o acha sublime? Para verificar se me enganei ou não, desafio-o a ir ao meu museu quando regressar à sua cidade.
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(continua)
(continua)
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Próximo episódio: “Em contrapartida, Fantin apresentou-o a Courbet, que havia de retratar a modelo irlandesa de Whistler em La Belle Irlandaise. Lembra-se? Era uma beleza, efectivamente!»”
Próximo episódio: “Em contrapartida, Fantin apresentou-o a Courbet, que havia de retratar a modelo irlandesa de Whistler em La Belle Irlandaise. Lembra-se? Era uma beleza, efectivamente!»”
domingo, 29 de abril de 2007
Geração de 60
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Aí está mas um blogue estimulante. Para além do meu editor e amigo Manuel Fonseca, pontuam no Geração de 60: Alexandre Brandão da Veiga (jurista), Diogo Vaz Guedes (empresário), Gonçalo Magalhães Collaço (empresário), Inez Dentinho (jornalista), João Luís Ferreira (arquitecto), Jorge Buescu (matemático), Manuel Cunha e Sá (médico), Miguel Maduro (jurista), Nuno Lobo Antunes (médico), Nuno Ribeiro da Silva (engenheiro e economista), Paulo Pereira da Silva (empresário), Paulo Rangel (advogado), Pedro Lains (economista e historiador), Pedro Norton (gestor) e Sofia Galvão (jurista). A seguir com atenção.
A expressão tranquila
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"(...) Como cereja sobre este bolo de ressonâncias já antigas, surge agora Intriga em Família de Eduardo Pitta (Quasi, 2007) que reúne perto de trezentos posts desassombrados e heterodoxos do blogue “Da Literatura”. Se ainda fosse preciso provar que na blogosfera se escreve particularmente bem, esta obra de Pitta reluziria. Além disso, neste guia “sage” e de bom manuseio, o recorte temático é, por natureza, abundante e variado. É a nouvelle cuisine servida a todos. Sem qualquer excepção. E graciosamente. Ponto.com."
eTexto completo nos Blogues e Meteoros (Expresso Online, próxima Quinta-Feira)
Escavações Contemporâneas
O sorriso do arquivo no tempo da rede:
João Pereira Coutinho - Paulo Tunhas -Viriato Soromenho Marques. E muito mais.
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Amanhã à tarde começa esta nova rubrica. A ideia é repor à luz do dia textos (sobretudo ensaio e crónica) que já tenham saído do chamado circuito editorial, mas que continuem a falar-nos com actualidade do deslumbre do nosso tempo. Há que pôr algum travão na apressada reciclagem do quotidiano. A "retoma", no caso das ideias, tem o nome do brilho imprevisto. À segunda vez, sabe sempre melhor. Trata-se, por outras palavras, da redescoberta do fio da leitura.
Amanhã à tarde começa esta nova rubrica. A ideia é repor à luz do dia textos (sobretudo ensaio e crónica) que já tenham saído do chamado circuito editorial, mas que continuem a falar-nos com actualidade do deslumbre do nosso tempo. Há que pôr algum travão na apressada reciclagem do quotidiano. A "retoma", no caso das ideias, tem o nome do brilho imprevisto. À segunda vez, sabe sempre melhor. Trata-se, por outras palavras, da redescoberta do fio da leitura.
Folhetim - 4
VANITAS
51, AVENUE D´IÉNA
por Almeida Faria
51, AVENUE D´IÉNA
por Almeida Faria
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(a ler, também, no novíssimo blogue: Folhetins e Novelas)
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«Fui depositando em diversos e dispersos lugares, primeiro no British Museum e na National Gallery, em Londres, depois na National Gallery of Art na capital norte-americana, os quadros do Fantin e dos outros, e assim estive privado deles até que reconstruí e restaurei parte deste hotel particular, cujas caves, cobertas de azulejo branco – como o corredor do quarto onde o senhor está instalado – têm portas de cofre-forte, para as guardar em caso de necessidade. Dei às minhas obras de arte espaço para respirarem e a mesma atenção que dediquei em Londres à igreja de São Sarkis, a qual mandei erigir para meu mausoléu e cenotáfio dos meus pais e em memória dos mártires arménios. O senhor sabe que, num dia só, foram massacrados muitos milhares de arménios, tentaram decapitar de vez a nossa espécie? Completei meio século nesse ano, e chorei como uma criança. Mas dos horrores que sofremos não costumo falar, nem alimento ressentimentos. Fui cidadão do mundo, sem me sentir mais ligado a Scutari, Istambul, onde nasci, ou à Arménia que só visitei depois de abandonar a vossa existência, ou mesmo a Londres onde me naturalizei britânico em mil novecentos e dois, ou a Paris e Lisboa onde nunca me cansei de viver. Nada dado a fervores religiosos, venerei dois únicos deuses: a arte e a natureza. A natureza tem uma face repelente, a bestialidade, a morte, o mau cheiro, que a arte supera mesmo quanto trata do terror ou retrata a fealdade. A arte pode ser inquietante e terrífica – como se diz que os anjos são terríficos – mas também consola e pacifica. Ignoro aliás se os anjos são terríficos, suponho que voam invisíveis, intocáveis, entre os mortos e os mortais. Uma vez que não reencarno mais e que interrompi o ciclo dos aperfeiçoamentos sucessivos, não conto aceder aos círculos deles, o que lamento sem me arrepender. Os anjos devem ter algo de assustadoramente imaterial. A natureza é mais palpável. Não que eu fosse fanático da natureza. Quando arranjei uma propriedade na Normandia nem sequer foi para lá morar, foi para mandar traçar e tratar do jardim inglês e do projecto de parque. Comecei a ocupar-me deles dois anos antes da última guerra. Instalava-me aos fins-de-semana no Normandie, então o melhor hotel de Deauville, e ia durante o dia dirigir e corrigir as soluções do meu arquitecto paisagista. Noutros fins-de-semana passeava de propósito pelo Bois de Bologne para aprender botânica e anotar nomes de arbustos e árvores que pretendia plantar, formando mentalmente o parque que sonhei ter. O que me atraía era ser eu a moldá-lo à minha maneira.
«Fui depositando em diversos e dispersos lugares, primeiro no British Museum e na National Gallery, em Londres, depois na National Gallery of Art na capital norte-americana, os quadros do Fantin e dos outros, e assim estive privado deles até que reconstruí e restaurei parte deste hotel particular, cujas caves, cobertas de azulejo branco – como o corredor do quarto onde o senhor está instalado – têm portas de cofre-forte, para as guardar em caso de necessidade. Dei às minhas obras de arte espaço para respirarem e a mesma atenção que dediquei em Londres à igreja de São Sarkis, a qual mandei erigir para meu mausoléu e cenotáfio dos meus pais e em memória dos mártires arménios. O senhor sabe que, num dia só, foram massacrados muitos milhares de arménios, tentaram decapitar de vez a nossa espécie? Completei meio século nesse ano, e chorei como uma criança. Mas dos horrores que sofremos não costumo falar, nem alimento ressentimentos. Fui cidadão do mundo, sem me sentir mais ligado a Scutari, Istambul, onde nasci, ou à Arménia que só visitei depois de abandonar a vossa existência, ou mesmo a Londres onde me naturalizei britânico em mil novecentos e dois, ou a Paris e Lisboa onde nunca me cansei de viver. Nada dado a fervores religiosos, venerei dois únicos deuses: a arte e a natureza. A natureza tem uma face repelente, a bestialidade, a morte, o mau cheiro, que a arte supera mesmo quanto trata do terror ou retrata a fealdade. A arte pode ser inquietante e terrífica – como se diz que os anjos são terríficos – mas também consola e pacifica. Ignoro aliás se os anjos são terríficos, suponho que voam invisíveis, intocáveis, entre os mortos e os mortais. Uma vez que não reencarno mais e que interrompi o ciclo dos aperfeiçoamentos sucessivos, não conto aceder aos círculos deles, o que lamento sem me arrepender. Os anjos devem ter algo de assustadoramente imaterial. A natureza é mais palpável. Não que eu fosse fanático da natureza. Quando arranjei uma propriedade na Normandia nem sequer foi para lá morar, foi para mandar traçar e tratar do jardim inglês e do projecto de parque. Comecei a ocupar-me deles dois anos antes da última guerra. Instalava-me aos fins-de-semana no Normandie, então o melhor hotel de Deauville, e ia durante o dia dirigir e corrigir as soluções do meu arquitecto paisagista. Noutros fins-de-semana passeava de propósito pelo Bois de Bologne para aprender botânica e anotar nomes de arbustos e árvores que pretendia plantar, formando mentalmente o parque que sonhei ter. O que me atraía era ser eu a moldá-lo à minha maneira.
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(continua)
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Próximo episódio: “Depois do jantar ia dormir à place Vendôme na minha suite do Ritz, sozinho ou com quem me apetecia. Não por ser libertino, nem apenas pelas razões de segurança que aleguei à família.”
Próximo episódio: “Depois do jantar ia dormir à place Vendôme na minha suite do Ritz, sozinho ou com quem me apetecia. Não por ser libertino, nem apenas pelas razões de segurança que aleguei à família.”
sábado, 28 de abril de 2007
Folhetim - 3
VANITAS
51, AVENUE D´IÉNA
por Almeida Faria
51, AVENUE D´IÉNA
por Almeida Faria
MGB
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(a ler, também, no novíssimo blogue: Folhetins e Novelas)
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Sem esperar pela resposta, prosseguiu: "A leitora é a noiva, Victoria; a loura e futura cunhada é Charlotte. Eu teria escolhido a preterida; Fantin, pelo contrário, casou com a outra, pintora amadora, frequentadora do Louvre, amiga de artistas e recém-retratada por Degas, apesar de, quanto a mim, ele adorar Charlotte, como o prova a quantidade de vezes que a retratou. Talvez o sentimento fosse recíproco, embora seja dificil decidir pela altivez e o olhar da bela solitária. Procurei outros retratos dela: a sanguínea estilo setecentista no museu de Lille; o pastel – técnica que Degas retomara do período rococó – no Rijksmuseum de Otterlo; e aquele que veio do Jeu de Paume para o Museu d´Orsay e que o senhor viu ontem. Como sei? Também lá estive, o Fantin leva-me a frequentar esse novo museu. De caminho visito o apartamento que foi meu, no número vinte e sete do quai d´Orsay, e que mantive mesmo depois de inaugurada esta casa. Fosse qual fosse a relação de Charlotte com o cunhado, a verdade é que Fantin me transmitiu o seu entusiasmo. As cenas de interior em que ela aparece são, juntamente com as naturezas-mortas, o melhor da sua obra. Não sei se reparou que A Leitura de Lisboa, com a sua jarra de flores, alia ambos os géneros na mesma tela: a natureza-morta e o intimismo do retrato em família. Não gosto de chamar natureza-morta às representações de flores ou vitualhas, talheres, livros, papéis, objectos domésticos ou musicais. Seria mais correcto chamar-lhes still-life ou Stilleben, mas a língua francesa a isso me obriga. Um amigo meu dizia, por malícia, que eu era mais pelas naturezas vivas. Acontece que, para mim, as naturezas-mortas são naturezas vivas. As do Fantin mais que nenhumas, e dele tive várias. Doei ao Museu das Janelas Verdes umas Rosas da fase final, e fiz a asneira de oferecer outra – um cesto com maçãs e peras, uma jarra, uma faca – ao senhor Cayrol, director de uma companhia de petróleos com quem arquitectei bons negócios. Por sorte, a que ofereci ao senhor Cayrol foi parar ao Metropolitan Museum de New York. Conhece? Pois, a gente jovem viaja tanto que não sei como ocupará o tempo quando passar ao meu estado. Aliás, isto de morte e vida é muito relativo. A vida é um vento breve, mas a morte não o é menos para quem quiser continuar a cadeia de morrer e nascer. Eu não quero, nevermore. Vivi bem, e as alegrias da arte tornam a minha situação mais que suportável.»
Calou-se por momentos, como se receasse ter falado de mais. O mutismo da minha parte tê-lo-á irritado. Para rompê-lo perguntou-me se, no museu de Lyon, vira a natureza-morta do Fantin a que Claudel chamou carré de silence. Não, faltava-me a de Lyon e muitas outras. A minha ignorância acalmou-o e, animado, recomeçou:
Sem esperar pela resposta, prosseguiu: "A leitora é a noiva, Victoria; a loura e futura cunhada é Charlotte. Eu teria escolhido a preterida; Fantin, pelo contrário, casou com a outra, pintora amadora, frequentadora do Louvre, amiga de artistas e recém-retratada por Degas, apesar de, quanto a mim, ele adorar Charlotte, como o prova a quantidade de vezes que a retratou. Talvez o sentimento fosse recíproco, embora seja dificil decidir pela altivez e o olhar da bela solitária. Procurei outros retratos dela: a sanguínea estilo setecentista no museu de Lille; o pastel – técnica que Degas retomara do período rococó – no Rijksmuseum de Otterlo; e aquele que veio do Jeu de Paume para o Museu d´Orsay e que o senhor viu ontem. Como sei? Também lá estive, o Fantin leva-me a frequentar esse novo museu. De caminho visito o apartamento que foi meu, no número vinte e sete do quai d´Orsay, e que mantive mesmo depois de inaugurada esta casa. Fosse qual fosse a relação de Charlotte com o cunhado, a verdade é que Fantin me transmitiu o seu entusiasmo. As cenas de interior em que ela aparece são, juntamente com as naturezas-mortas, o melhor da sua obra. Não sei se reparou que A Leitura de Lisboa, com a sua jarra de flores, alia ambos os géneros na mesma tela: a natureza-morta e o intimismo do retrato em família. Não gosto de chamar natureza-morta às representações de flores ou vitualhas, talheres, livros, papéis, objectos domésticos ou musicais. Seria mais correcto chamar-lhes still-life ou Stilleben, mas a língua francesa a isso me obriga. Um amigo meu dizia, por malícia, que eu era mais pelas naturezas vivas. Acontece que, para mim, as naturezas-mortas são naturezas vivas. As do Fantin mais que nenhumas, e dele tive várias. Doei ao Museu das Janelas Verdes umas Rosas da fase final, e fiz a asneira de oferecer outra – um cesto com maçãs e peras, uma jarra, uma faca – ao senhor Cayrol, director de uma companhia de petróleos com quem arquitectei bons negócios. Por sorte, a que ofereci ao senhor Cayrol foi parar ao Metropolitan Museum de New York. Conhece? Pois, a gente jovem viaja tanto que não sei como ocupará o tempo quando passar ao meu estado. Aliás, isto de morte e vida é muito relativo. A vida é um vento breve, mas a morte não o é menos para quem quiser continuar a cadeia de morrer e nascer. Eu não quero, nevermore. Vivi bem, e as alegrias da arte tornam a minha situação mais que suportável.»
Calou-se por momentos, como se receasse ter falado de mais. O mutismo da minha parte tê-lo-á irritado. Para rompê-lo perguntou-me se, no museu de Lyon, vira a natureza-morta do Fantin a que Claudel chamou carré de silence. Não, faltava-me a de Lyon e muitas outras. A minha ignorância acalmou-o e, animado, recomeçou:
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Próximo episódio: “O senhor sabe que, num dia só, foram massacrados muitos milhares de arménios, tentaram decapitar de vez a nossa espécie?”
Próximo episódio: “O senhor sabe que, num dia só, foram massacrados muitos milhares de arménios, tentaram decapitar de vez a nossa espécie?”
sexta-feira, 27 de abril de 2007
Folhetim - 2
VANITAS
51, AVENUE D´IÉNA
por Almeida Faria
51, AVENUE D´IÉNA
por Almeida Faria
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Calvo, de rosto redondo que o bigode e as densas sobrancelhas sombreavam, de carnudas orelhas e nariz direito, fixava-me semicerrando os olhos vivos e levantinos. O arquear da sobrancelha esquerda denotava um ar de superioridade e um hábito do mando não isento de ironia. Havia mesmo alguma delicadeza envergonhada no sorriso astuto e fino, nos lábios mais de gozador que de poderoso. Apesar de atarracado, de pescoço curto e tronco quadrado, afundado na cadeira, o seu porte dava-lhe certa imponência. Com um gesto do braço convidou-me a sentar. Balbuciei que um problema de coluna me dificultava o sentar e o levantar, e que por isso ficava de pé. Ele encolheu os ombros e, numa voz gutural, quase me ordenou que estivesse à vontade. Mais à vontade que isto é impossível, menti. Novo encolher de ombros, seguido das perguntas próprias de um anfitrião: se o meu quarto era confortável, se me agradava a montagem da minha exposição, se considerava os meus quadros bem expostos, se aceitava uma bebida fresca. Apesar da boca seca, disse que não tinha sede, que por enquanto não bebia nada. O cavalheiro iniciou então um longo monólogo, como se só com esse propósito me tivesse arrancado ao primeiro sono. Num francês de estrangeiro mas quase sem sotaque, contou que aquele salão fora uma das galerias de pintura do seu hotel particular - assim se referia ao palacete quando não o tratava, mais modestamente, apenas por casa - e que dantes as amplas janelas à minha direita iluminavam os quadros com uma luz ideal, por isso estiveram ali alguns dos seus preferidos.
"Por exemplo? Olhe, A Leitura do Fantin-Latour, uma daquelas telas que conheço de cor. Está agora em Lisboa, há uns anos contudo o senhor vê-la-ia nessa parede aí, entre as colunas e essa porta que dá acesso a um dos meus escritórios. Não me importaria de ter sempre por perto as duas irmãs nele retratadas: na sombra, em segundo plano, a leitora aponta com o indicador a linha onde ia ao reparar que a sua ouvinte, voltada para dentro e ausente em devaneios, não lhe prestava a atenção devida. Deduzo do vestido austero e do véu ou mantilha preta que a distraída sonhadora sofreu um desgosto recente. Mas o xaile vermelho no regaço - sobre que pousa as mãos abandonadas - e, no cabelo, a fita muito azul, deixam-me na dúvida. Uma era noiva do pintor, a outra ficou por casar. Adivinha qual é qual?"
Calvo, de rosto redondo que o bigode e as densas sobrancelhas sombreavam, de carnudas orelhas e nariz direito, fixava-me semicerrando os olhos vivos e levantinos. O arquear da sobrancelha esquerda denotava um ar de superioridade e um hábito do mando não isento de ironia. Havia mesmo alguma delicadeza envergonhada no sorriso astuto e fino, nos lábios mais de gozador que de poderoso. Apesar de atarracado, de pescoço curto e tronco quadrado, afundado na cadeira, o seu porte dava-lhe certa imponência. Com um gesto do braço convidou-me a sentar. Balbuciei que um problema de coluna me dificultava o sentar e o levantar, e que por isso ficava de pé. Ele encolheu os ombros e, numa voz gutural, quase me ordenou que estivesse à vontade. Mais à vontade que isto é impossível, menti. Novo encolher de ombros, seguido das perguntas próprias de um anfitrião: se o meu quarto era confortável, se me agradava a montagem da minha exposição, se considerava os meus quadros bem expostos, se aceitava uma bebida fresca. Apesar da boca seca, disse que não tinha sede, que por enquanto não bebia nada. O cavalheiro iniciou então um longo monólogo, como se só com esse propósito me tivesse arrancado ao primeiro sono. Num francês de estrangeiro mas quase sem sotaque, contou que aquele salão fora uma das galerias de pintura do seu hotel particular - assim se referia ao palacete quando não o tratava, mais modestamente, apenas por casa - e que dantes as amplas janelas à minha direita iluminavam os quadros com uma luz ideal, por isso estiveram ali alguns dos seus preferidos.
"Por exemplo? Olhe, A Leitura do Fantin-Latour, uma daquelas telas que conheço de cor. Está agora em Lisboa, há uns anos contudo o senhor vê-la-ia nessa parede aí, entre as colunas e essa porta que dá acesso a um dos meus escritórios. Não me importaria de ter sempre por perto as duas irmãs nele retratadas: na sombra, em segundo plano, a leitora aponta com o indicador a linha onde ia ao reparar que a sua ouvinte, voltada para dentro e ausente em devaneios, não lhe prestava a atenção devida. Deduzo do vestido austero e do véu ou mantilha preta que a distraída sonhadora sofreu um desgosto recente. Mas o xaile vermelho no regaço - sobre que pousa as mãos abandonadas - e, no cabelo, a fita muito azul, deixam-me na dúvida. Uma era noiva do pintor, a outra ficou por casar. Adivinha qual é qual?"
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Próximo episódio: “Fosse qual fosse a relação de Charlotte com o cunhado, a verdade é que Fantin me transmitiu o seu entusiasmo. As cenas de interior em que ela aparece são, juntamente com as naturezas-mortas, o melhor da sua obra.”
quinta-feira, 26 de abril de 2007
Blogues e Meteoros - 28
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"Lev Grossman escrevia, há três meses, na Time: “2006 foi um ano marcante para a tecnologia: a Nintendo inventou um jogo de vídeo controlado por varinha mágica. Um robô aprendeu a andar de bicicleta. Foi inventada uma nanosombrinha à prova de água. Mas apenas o YouTube criou um novo modo de entreter, educar e chocar (“rock and grok”) numa escala sem precedentes. É por isso que a Time considerou o YouTube a Invenção do Ano de 2006”. Mas a procissão ainda ia no adro. De um momento para o outro, as simulações e o quotidiano rescreveram novos episódios, tal como o 09/11 pareceu misturar algum aparente impacto ficcional com o inexplicável peso do real."
O novo projecto
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Começa hoje um novo projecto na blogosfera: Folhetins e Novelas. Um projecto a meias com Paulo Querido. Trata-se de voltar a dar luz a ficções que o passado encobriu ou que a espessura do presente diluiu. Trata-se de remar contra o esquecimento e o ruído, repondo online narrativas de fôlego. Trata-se ainda de assumir como meta o prazer, o passatempo e a lenta desordem que é poder imaginar ao sabor da letra e do imponderável. O folhetim de Almeida Faria, que hoje se iniciou no Miniscente, já alargou a sua presença na rede ao Folhetins e Novelas. Mas em breve, alguns romances aparecerão neste novo blogue. A surpresa é o outro nome da leitura.
Folhetim - 1
VANITAS
51, AVENUE D´IÉNA
por Almeida Faria
51, AVENUE D´IÉNA
por Almeida Faria
(a ler, também, no novíssimo blogue: Folhetins e Novelas)
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Só percebi que adormecera de luz acesa quando acordei de súbito e senti vacilar a luz das lâmpadas de cada lado da cama. Estremunhado, pareceu-me ouvir uns passos lentos sobre a minha cabeça. Os soalhos velhos estalam quando as temperaturas mudam, possivelmente estalaram à frialdade nocturna. Estalar sim, mas a ponto de fazer tremer as paredes? Levantei-me e, mesmo descalço, em calções de pijama, atarantado e tropeçante, caminhei até à porta do quarto, espreitei o corredor, silêncio, ninguém. Segui até à outra porta, mais larga e mais alta, que outrora separava os quartos de serviço do resto da casa. Nada, só o busto da deusa Palas Ateneia numa coluna multiplicada pelos espelhos da galeria de acesso à parte nobre da casa. Num susto de segundos convenci-me de que por cima de mim passava um bater de asas. Baixei-me instintivamente e, quando olhei em roda, deparei nos espelhos com um grotesco esgar de medo, o meu. Sob a incómoda suspeita de ter presenciado já um episódio semelhante que metia um monocórdico corvo à meia-noite, transpus o patamar de mármore, parei na escadaria oval de pedra clara e corrimão em ferro forjado a condizer com as grades do ascensor e de repente outra vez os lentos passos. Quem seria o insone às voltas àquela hora, no último andar desta mansão sem outros hóspedes?
O homem da recepção, ao entregar-me um cartão com o código da porta principal, avisara-me de que se ausentaria até segunda de manhã. A porteira e o marido, habitando na subcave, àquela distância não ouviriam nada. Talvez os passos fossem do guarda que, segundo o recepcionista, costuma descansar num canapé ao cimo da grande escadaria, junto à biblioteca. Mas o peso das pezadas era de alguém firmemente disposto a despertar um defunto.
Arriscando-me a dar de caras com ladrões - ou com uma dessas Fúrias que as trevas soltam do sótão das casas mais respeitáveis - o demónio da curiosidade empurrou-me para o andar de cima, outrora o dos aposentos privados do dono da casa. Subi vinte e sete degraus contados sem querer, até ao terceiro piso onde dei com uma porta de imponentes dimensões em madeiras trabalhadas, acesso provável a segredos excepcionais. Abri-a devagar. Num salão rectangular muito mais comprido que largo, sentado à cabeceira da mesa rodeada por uma vintena de cadeiras com costas e fundos de cabedal, à luz de um candelabro, um cavalheiro - cuja cara julguei reconhecer sem saber de onde - aguardava-me calmo e sem surpresa. A sua palidez e o seu traje antiquado, o sobretudo azul, a gravata de seda, as calças, colete e casaco cinzentos, vinham de outros tempos ou de fora do tempo.
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O homem da recepção, ao entregar-me um cartão com o código da porta principal, avisara-me de que se ausentaria até segunda de manhã. A porteira e o marido, habitando na subcave, àquela distância não ouviriam nada. Talvez os passos fossem do guarda que, segundo o recepcionista, costuma descansar num canapé ao cimo da grande escadaria, junto à biblioteca. Mas o peso das pezadas era de alguém firmemente disposto a despertar um defunto.
Arriscando-me a dar de caras com ladrões - ou com uma dessas Fúrias que as trevas soltam do sótão das casas mais respeitáveis - o demónio da curiosidade empurrou-me para o andar de cima, outrora o dos aposentos privados do dono da casa. Subi vinte e sete degraus contados sem querer, até ao terceiro piso onde dei com uma porta de imponentes dimensões em madeiras trabalhadas, acesso provável a segredos excepcionais. Abri-a devagar. Num salão rectangular muito mais comprido que largo, sentado à cabeceira da mesa rodeada por uma vintena de cadeiras com costas e fundos de cabedal, à luz de um candelabro, um cavalheiro - cuja cara julguei reconhecer sem saber de onde - aguardava-me calmo e sem surpresa. A sua palidez e o seu traje antiquado, o sobretudo azul, a gravata de seda, as calças, colete e casaco cinzentos, vinham de outros tempos ou de fora do tempo.
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(continua)
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Próximo episódio: “Ele encolheu os ombros e, numa voz gutural, quase me ordenou que estivesse à vontade. Mais à vontade que isto é impossível, menti.”
quarta-feira, 25 de abril de 2007
A partir de amanhã
VANITAS
51, AVENUE D’IÉNA
51, AVENUE D’IÉNA
por Almeida Faria
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no Miniscente, como folhetim, a partir de amanhã.
no Miniscente, como folhetim, a partir de amanhã.
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Excerto do primeiro episódio:
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"Num salão rectangular muito mais comprido que largo, sentado à cabeceira da mesa rodeada por uma vintena de cadeiras com costas e fundos de cabedal, à luz de um candelabro, um cavalheiro - cuja cara julguei reconhecer sem saber de onde - aguardava-me calmo e sem surpresa."
terça-feira, 24 de abril de 2007
O riso da outra margem
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A campanha publicitária patrocinada pelo governo, "Novas Oportunidades", tem sido alvo de indignação. O que é normal. Mas há um lado que tem sido pouco aflorado até agora: a adequação das figuras convidadas às profissões menores que ficcionalizam. É que nem sempre a pose e o guião sugerem notas desajustadas. Repare-se: um observador coreano ou maltês, ao olhar para as imagens da campanha, acharia normal a personagem Judite Sousa a vender jornais ou Maria Gambina a cerzir meias (por causa do Manchester United, Carlos Queirós acaba por denotar uma veia um tanto paródica, mas isso não lhe retira a eficácia do papel assumido). A prática do endorsement publicitário tem destas coisas. Do outro lado da "genialidade" dos copies e da indignação da crítica, há sempre uma trovoada que faz rir. Bataille concordaria.
segunda-feira, 23 de abril de 2007
"Vanitas" por Almeida Faria
MGB
VANITAS
51, AVENUE D’IÉNA
por Almeida Faria
por Almeida Faria
(no Miniscente, como folhetim, a partir de 26 de Abril)
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"As noites que passei, em 1996, no quase-palácio que Calouste Gulbenkian reconstruiu na Avenue d´Iéna, em Paris, deram-me a ideia para um conto a que chamei Vanitas e que foi publicado na revista Colóquio/Letras. Dez anos depois, Emílio Rui Vilar, presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, sugeriu a sua reedição em livro e facultou-me, a meu pedido, a consulta das cartas inéditas trocadas entre Saint-John Perse, futuro Prémio Nobel, e Calouste Gulbenkian, seu mecenas durante os tempos difíceis de auto-exílio do poeta.
A minha curiosidade queria saber mais sobre a relação do coleccionador com as obras de arte que fora adquirindo e nessas cartas descobri aspectos de uma exigência e sentido estéticos que me estimularam a insinuar-me, com as devidas liberdades ficcionais, no seu mundo mental, juntando ao conto original algumas páginas. Paula Rego “iluminou” depois esta nova versão com o tríptico Vanitas, reflexão visual acerca do próprio conceito de vanitas enquanto precariedade da nossa frágil existência humana." (A. F.)
A minha curiosidade queria saber mais sobre a relação do coleccionador com as obras de arte que fora adquirindo e nessas cartas descobri aspectos de uma exigência e sentido estéticos que me estimularam a insinuar-me, com as devidas liberdades ficcionais, no seu mundo mental, juntando ao conto original algumas páginas. Paula Rego “iluminou” depois esta nova versão com o tríptico Vanitas, reflexão visual acerca do próprio conceito de vanitas enquanto precariedade da nossa frágil existência humana." (A. F.)
Os nomes dos dias
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Diz Isabel Alçada, hoje no Público, que o importante é ler. Não importa o quê, mesmo os "best-sellers da Joan Collins ou do Paulo Coelho", embora ache preferível "obras de maior envergadura". Não sei ao que corresponde este dever-ser, ou melhor: este dever-ler. Desconheço as raízes que estarão na base deste sentido meio moral meio imperativo que, com dinheiros públicos ou não, deverá remeter as pessoas para a leitura. Alguma promessa de felicidade que eu certamente não domino.
domingo, 22 de abril de 2007
Escavações Contemporâneas
O sorriso do arquivo no tempo da rede:
João Pereira Coutinho - Paulo Tunhas -Viriato Soromenho Marques. E muito mais.
João Pereira Coutinho - Paulo Tunhas -Viriato Soromenho Marques. E muito mais.
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A nova rubrica inciar-se-á no próximo dia 30 de Abril. A ideia é repor à luz do dia textos (sobretudo ensaio e crónica) que já tenham saído do chamado circuito comercial/editorial, mas que continuem a falar-nos do deslumbre do nosso tempo. Há que pôr algum travão na apressada reciclagem do quotidiano. A retoma, no caso das ideias, tem o nome do brilho imprevisto. À segunda vez, sabe sempre melhor. No Miniscente acredita-se que sim.
sábado, 21 de abril de 2007
Anunciações da Primavera
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Os últimos dias de Abril vão dar ao Miniscente novas rubricas. Para já, o anúncio de duas: um Folhetim assinado por Almeida Faria e a rubrica Escavações Contemporâneas ("para além do passado e do presente: o sorriso do arquivo no tempo da rede") onde se incluirão textos de ensaístas conhecidos do espaço público português.
Nestas duas rubricas, recuperar-se-ão textos que a reciclagem do nosso apressado quotidiano tem tendência a esquecer. A ideia é repor à luz do dia, quer na ficção, quer no ensaio, textos que já saíram do chamado circuito comercial/editorial, mas que continuam a falar-nos do deslumbre do nosso tempo.
sexta-feira, 20 de abril de 2007
Blogues e Meteoros - 27
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HCO
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"Estamos, pois, muito longe dos receios que o presidente da “Nacional Association of the Motion Picture Industry” incutiu em Hollywood, no alvor dos anos 20 do século passado. O então “código de pudor” de Hays determinava o que devia ou não ver-se nos ecrãs. Ao invés desse tipo de “leis secas” e generalistas, a rede está hoje sobretudo a aprender como reagir ao imponderável, caso a caso.
É por isso, porventura, que o mais falado dos bloggers portugueses deste início de Primavera, António Balbino Caldeira (do blogue Do Portugal Profundo), tem rematado os seus posts sobre a vida académica de José Sócrates com uma interessante “Limitação de responsabilidade (disclaimer): José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa não é arguido ou suspeito no seu percurso académico ou profissional do cometimento de qualquer ilegalidade ou irregularidade (…)”. A salvaguarda é, caso a caso, alargada a outros visados, conforme o teor do post."
É por isso, porventura, que o mais falado dos bloggers portugueses deste início de Primavera, António Balbino Caldeira (do blogue Do Portugal Profundo), tem rematado os seus posts sobre a vida académica de José Sócrates com uma interessante “Limitação de responsabilidade (disclaimer): José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa não é arguido ou suspeito no seu percurso académico ou profissional do cometimento de qualquer ilegalidade ou irregularidade (…)”. A salvaguarda é, caso a caso, alargada a outros visados, conforme o teor do post."
quinta-feira, 19 de abril de 2007
O futuro da UE?
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Ontem, num debate do Canal 2 sobre os dramas franceses, Teresa de Sousa pediu, a certa altura, ao painel para reagir a este dado: quatro entre cinco jovens franceses têm como aspiração máxima trabalhar para o estado. A reacção envolveu alguns sorrisos e uma explicação identitária por parte do filósofo José Gil. Eis, num simples número, a radiografia cirúrgica da iniciativa e dos grandes desígnios (do core) da UE.
Entrevistas do Reactor
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A questionação do design continua no blogue de José Manuel Bártolo. A partir de hoje, está online a entrevista com Eduardo Côrte-Real. Já agora, leia-se na Times o interessante dossiê "The Design 100".
quarta-feira, 18 de abril de 2007
Massacre de Virginia Tech (actualizado)
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O YouTube permite ver imagens que se antecipam às captadas pelos media tradicionais, ao filtro da edição e sobretudo às consequências dos factos filmados. Há no YouTube um novo tempo, o tempo da iminência, que nada tem já que ver com o tempo da notícia, nem com o tempo da meta-ocorrência (i.e., os factos reais transformados, num dado período, em efabulação ficcional e contagiosa - veja-se o caso Sócrates, o caso Casa Pia, o caso gripe das aves, etc...). As imagens do massacre de Virginia Tech (ver aqui) denotam esse lado abismado e terrível. Há nesta nova iminência (que se actualiza para além do tempo em que se processou o acontecimento) um pasmo inenarrável, porventura semelhante ao que outros media terão causado no momento em que abruptamente surgiram (a fotografia e o cinematógrafo face aos seus primeiros espectadores). A grande diferença é que, hoje em dia, deixámos de ter tempo para nos prepararmos para a actualidade. A interpretação quase deixou de ser uma aprendizagem: entre as imagens e o pasmo e, por sua vez, entre o pasmo e as imagens passou a existir uma distância ínfima. Uma película imperceptível. Ou seja, quando as imagens nos invadem, inevitavelmente já desencadeiam pasmo e quando o pasmo nos povoa - como se fosse um alívio - apenas só já desejamos entregar o corpo e a imaginação ao fluxo das imagens. É este o novo pas de deux que o tempo da iminência apenas está a dilatar.
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O mais intrigante deste caso é que o próprio Cho Seung-Hui, entre os vários disparos que levou a cabo em Virgina Tech, gravou uma mensagem que depois - às 9.01 locais - acabaria por enviar para a NBC. É o tempo da iminência, aqui enunciado pelo terrorista e não apenas por câmaras testemunhadoras e ocasionais, a tentar intrometer-se de modo decidido na construção da realidade (leia-se: na construção deste pacto excessivo e cada vez mais irredutível que associa pasmo e imagem).
Mini-entrevistas/Série II – 148
LC
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O Miniscente tem estado a publicar uma série de entrevistas acerca da blogosfera e dos seus impactos na vida específica dos próprios entrevistados. Hoje o convidado é Carlos Araújo Alves.
O Miniscente tem estado a publicar uma série de entrevistas acerca da blogosfera e dos seus impactos na vida específica dos próprios entrevistados. Hoje o convidado é Carlos Araújo Alves.
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- O que lhe diz a palavra “blogosfera”?
A celeridade do ritmo de mudança que o tempo hoje impõe ultrapassa frequentemente a nossa capacidade de assimilação e descodificação do que vamos experimentando e a blogosfera não escapa a esta dificuldade. Há pouco mais de três anos, quando iniciei o Ideias Soltas, a blogosfera era uma pequena e muito interactiva comunidade, entre pessoas já conhecidas ou que rapidamente ficámos a conhecer. Hoje, com a pulverização de milhares novos blogues, nada mais consigo vislumbrar que uma “democratizada” plataforma de edição digital onde se vão formando pequenas comunidades cada vez mais restritas e fechadas que só interagem entre si e que concorrem com outras, recorrendo a humanos processos de luta pelo poder, por uma supremacia de opinião.
Talvez a blogosfera não seja agora mais do que isso – a manifestação de opinião e a tentativa de que ela prevaleça sobre as demais.
- Qual foi o acontecimento (nacional ou internacional) que mais intensamente seguiu apenas através de blogues?
Vários e variados desde as opiniões sobre a invasão do Iraque, o massacre de 11 de Março em Madrid, o desaparecimento de Durão Barroso e a demissão de Santana Lopes, a reestruturação da RTP e da RDP e do conceito de Serviço Público de Audiovisual levada a cabo por Morais Sarmento, as eleições internas no PS…
No entanto, os que mais prazer me deram enquanto emissor de opinião foram: a campanha pessoal orquestrada de Santana Lopes contra Miguel Graça-Moura colocando em risco o precioso projecto AMEC (mais conhecido por Orquestra Metropolitana de Lisboa); as hilariantes vicissitudes (de gestão e vistas curtas) por que passou o projecto da Casa da Música (que dá como provado, para quem acalente dúvida, que não há cultura sem boa gestão); a inclusão do ensino artístico nos planos curriculares do ensino pré-primário e básico e a “reforma” da educação; a inqualificável anarquia de gestão de recursos dos sucessivos Ministérios da Cultura no que concerne aos subsídios, apoios, financiamentos a equipamentos culturais públicos (nacionais e municipais), a entidades promotoras e criadores e aos artistas; o endémico bloqueio mental - o divórcio entre cultura, educação, meios audiovisuais, política com a gestão - principal óbice à constituição de uma política de gestão cultural global do Estado, concertada entre as tutelas envolvidas, que racionalize e cônjuge todos esses meios e os coloque com uma missão e objectivos precisos, quantificáveis e avaliáveis ao serviço de todos os cidadãos.
- Qual foi o maior impacto que os blogues tiveram na sua vida pessoal?
Balanços são sempre difíceis mas adianto, de repente, um negativo e três positivos:
1 – menos tempo para a família;
2 – redução drástica do consumo de media tradicional, impressa e audiovisual, uma vez que os factos estão on-line e na blogosfera comentários mais ricos e variados e isentos aos mesmos;
3 – conhecer pessoas através da escrita e, de afinidade em afinidade, constituir boas e sólidas amizades;
4 – a obrigação que a escrita implica de decifrar e sistematizar o que vou sentindo a cada momento e, muito especialmente, dar-me, dar-me a quem quiser receber, evidentemente, numa atitude, tal como o Paulo Gorjão atrás disse, de exercício de cidadania.
- Acredita que a blogosfera é uma forma de expressão editorialmente livre?
Tenho dificuldade em separar a blogosfera da vida em geral – o bem e o mal, o bom e o mau são emanados pelas pessoas através de qualquer forma e meio de comunicação estando por isso tão presentes em meios ditos virtuais como noutro qualquer. Compete aos autores dos blogues zelaram pelo que editam e, enquanto consumidores, fazerem a sua selecção.
Neste contexto diria que editorialmente um blogue será tão livre quanto o(s) seu(s) autor(s) o for, ou puder ser, o que não acontece nos media tradicionais, mas não me consinto a uma generalização universal à blogosfera.
A celeridade do ritmo de mudança que o tempo hoje impõe ultrapassa frequentemente a nossa capacidade de assimilação e descodificação do que vamos experimentando e a blogosfera não escapa a esta dificuldade. Há pouco mais de três anos, quando iniciei o Ideias Soltas, a blogosfera era uma pequena e muito interactiva comunidade, entre pessoas já conhecidas ou que rapidamente ficámos a conhecer. Hoje, com a pulverização de milhares novos blogues, nada mais consigo vislumbrar que uma “democratizada” plataforma de edição digital onde se vão formando pequenas comunidades cada vez mais restritas e fechadas que só interagem entre si e que concorrem com outras, recorrendo a humanos processos de luta pelo poder, por uma supremacia de opinião.
Talvez a blogosfera não seja agora mais do que isso – a manifestação de opinião e a tentativa de que ela prevaleça sobre as demais.
- Qual foi o acontecimento (nacional ou internacional) que mais intensamente seguiu apenas através de blogues?
Vários e variados desde as opiniões sobre a invasão do Iraque, o massacre de 11 de Março em Madrid, o desaparecimento de Durão Barroso e a demissão de Santana Lopes, a reestruturação da RTP e da RDP e do conceito de Serviço Público de Audiovisual levada a cabo por Morais Sarmento, as eleições internas no PS…
No entanto, os que mais prazer me deram enquanto emissor de opinião foram: a campanha pessoal orquestrada de Santana Lopes contra Miguel Graça-Moura colocando em risco o precioso projecto AMEC (mais conhecido por Orquestra Metropolitana de Lisboa); as hilariantes vicissitudes (de gestão e vistas curtas) por que passou o projecto da Casa da Música (que dá como provado, para quem acalente dúvida, que não há cultura sem boa gestão); a inclusão do ensino artístico nos planos curriculares do ensino pré-primário e básico e a “reforma” da educação; a inqualificável anarquia de gestão de recursos dos sucessivos Ministérios da Cultura no que concerne aos subsídios, apoios, financiamentos a equipamentos culturais públicos (nacionais e municipais), a entidades promotoras e criadores e aos artistas; o endémico bloqueio mental - o divórcio entre cultura, educação, meios audiovisuais, política com a gestão - principal óbice à constituição de uma política de gestão cultural global do Estado, concertada entre as tutelas envolvidas, que racionalize e cônjuge todos esses meios e os coloque com uma missão e objectivos precisos, quantificáveis e avaliáveis ao serviço de todos os cidadãos.
- Qual foi o maior impacto que os blogues tiveram na sua vida pessoal?
Balanços são sempre difíceis mas adianto, de repente, um negativo e três positivos:
1 – menos tempo para a família;
2 – redução drástica do consumo de media tradicional, impressa e audiovisual, uma vez que os factos estão on-line e na blogosfera comentários mais ricos e variados e isentos aos mesmos;
3 – conhecer pessoas através da escrita e, de afinidade em afinidade, constituir boas e sólidas amizades;
4 – a obrigação que a escrita implica de decifrar e sistematizar o que vou sentindo a cada momento e, muito especialmente, dar-me, dar-me a quem quiser receber, evidentemente, numa atitude, tal como o Paulo Gorjão atrás disse, de exercício de cidadania.
- Acredita que a blogosfera é uma forma de expressão editorialmente livre?
Tenho dificuldade em separar a blogosfera da vida em geral – o bem e o mal, o bom e o mau são emanados pelas pessoas através de qualquer forma e meio de comunicação estando por isso tão presentes em meios ditos virtuais como noutro qualquer. Compete aos autores dos blogues zelaram pelo que editam e, enquanto consumidores, fazerem a sua selecção.
Neste contexto diria que editorialmente um blogue será tão livre quanto o(s) seu(s) autor(s) o for, ou puder ser, o que não acontece nos media tradicionais, mas não me consinto a uma generalização universal à blogosfera.
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Entrevistas anteriores (apenas a Série II): Eduardo Pitta, Paulo Querido, Carlos Leone, Paulo Gorjão, Bruno Alves, José Bragança de Miranda, João Pereira Coutinho, José Pimentel Teixeira, Rititi, Rui Semblano, Altino Torres, José Pedro Pereira, Bruno Sena Martins, Paulo Pinto Mascarenhas, Tiago Barbosa Ribeiro, Ana Cláudia Vicente, Daniel Oliveira, Leandro Gejfinbein, Isabel Goulão, Lutz Bruckelmann, Jorge Melícias, Carlos Albino, Rodrigo Adão da Fonseca, Tiago Mendes, Nuno Miguel Guedes, Miguel Vale de Almeida, Pedro Magalhães, Eduardo Nogueira Pinto, Teresa Castro (Tati), Rogério Santos, Lauro António, Isabela, Luis Mourão, bloggers do Escola de Lavores, Bernardo Pires de Lima, Pedro Fonseca, Luís Novaes Tito e Carlos Manuel Castro, João Aldeia, João Paulo Meneses, Américo de Sousa, Carlota, João Morgado Fernandes, José Pacheco Pereira, Pedro Sette Câmara, Rui Bebiano, António Balbino Caldeira, Madalena Palma, Carla Quevedo, Pedro Lomba, Luís Miguel Dias, Leonel Vicente, José Manuel Fonseca, Patrícia Gomes da Silva, Carlos do Carmo Carapinha, Ricardo Gross, Maria do Rosário Fardilha, Mostrengo Adamastor, Sérgio Lavos, Batukada, Fernando Venâncio, Luís Aguiar-Conraria, Luís M. Jorge, Pitucha, Gabriel Silva, Masson, João Caetano Dias, Ana Luísa Silva, Ana Silva, Ana Clotilde Correia (aka Margot), Tomás Vasques, Ticcia Patrícia Antoniete, Maria João Eloy, André Azevedo Alves, Sílvia Chueire, André Moura e Cunha, Helder Bastos, José Bandeira, João Espinho, Henrique Raposo, Jorge Vaz Nande, João Melo, Diogo Vaz Pinto, Alice Morgado e Sérgio dos Santos, Adolfo Mesquita Nunes, João Paulo Sousa, Pedro Ludgero, João Tunes, Miguel Cardina, Paula Cordeiro, Edgar, André Azevedo Alves e Inês Amaral, David Luz, Saboteur, João Miguel Almeida, O Impensado, Hugo Neves da Silva, Paula Capaz, João Pinto e Castro, Sandra Ferrás e Alberto Lyra. Hoje: Carlos Araújo Alves.
terça-feira, 17 de abril de 2007
Contra o fanatismo
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É por isso que sou contra as posições de tipo exclusivista. Um exemplo: O Sol tem inscrito no cabeçalho que nunca "dará brindes". A posição corresponde a uma espécie de alma fundadora do projecto (complexos concorrenciais, sabemo-lo). Mas convenhamos: dar por uma vez um brinde como aquele que o Público hoje dá é, no mínimo, um privilégio. "Nunca digas: Desta água não beberei", avisa a sabedoria popular.
Multidisciplinaridade subsidiada
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Em Portugal, artistas e cientistas já podem conviver em períodos semestrais, recebendo um ordenado de mil Euros (por mês). A iniciativa pretende "estimular a troca de experiências e a criação artística entre artistas e cientistas". Informa hoje o Portal do Cidadão, embora a responsabilidade seja da Agência Ciência Viva e do Instituto das Artes. Mais: "(...) os artistas podem habilitar-se a serem acolhidos numa das sete entidades envolvidas no programa: Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores do Porto, Instituto de Engenharia Biomédica, Instituto de Tecnologia Química e Biológica, Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto, Departamento de Física da Universidade de Aveiro, Instituto de Biologia Molecular e Celular e Instituto de Sistemas e Robótica. Através desta acção vão ser desenvolvidos projectos multidisplinares nas áreas de Arquitectura, Artes Visuais, Dança, Design, Música e Teatro, utilizando ferramentas e materiais específicos de um laboratório de investigação científica."
Bem-vindo!
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Saúdo o regresso do Eduardo Prado Coelho às suas habituais crónicas do Público. A saúde é, sem hesitações, o nosso maior império. É bom ver de volta uma pena que não se exime à polémica e à defesa de pontos de vista, ao arrepio dos caminhos da moda que velam pelo amolecimento (o óbvio pelo óbvio) e pela ambiguidade retórica, evitando quase sempre expressar um pensamento próprio. Cada vez há mais crónicas avulsas, feitas com plasticina bem falante e sem a cerviz da palavra.
Dito isto, passemos à apetitosa dança da discórdia. Eduardo Prado Coelho entra em força, nesta sua nova fase de cronista, a defender a chancela da (cito) "gente da ciência, da tecnologia, da cultura ou do espectáculo" contra a presença, num programa de Judite de Sousa (RTP1), de pessoas como Tony Carreira e Valentim Loureiro. Como se o "serviço público" fosse uma arena exclusiva das pessoas de quem se gosta e não de todas. Ó Eduardo! Então... vamos sacralizar actividades e rostos da "cultura" em detrimento dos heróis e símbolos - que eu também não aprecio em termos pessoais - de públicos inequivocamente vastos? Essa democracia... essa democracia!
segunda-feira, 16 de abril de 2007
Entidade nacional
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O testemunho telecrático é coisa de respeito. Ontem, passariam alguns minutos das nove, choveram mensagens nos meus telemóveis e chegou-me um número razoável de mails. Não tanto pelo facto de o "Prof. Marcelo" ter referido o meu último romance no seu programa, mas sobretudo por ter confundido o meu apelido "Carmelo" com "Caramelo". As pessoas gostam de histórias e isso fez-me lembrar a campanha da Pepsi no anos oitenta, quando Michael Jackson queimou o cabelo na rodagem do filme. Nas aulas que hoje dei - e foram três - o tema ressurgiu. E eu lá tive que explicar que o Monte Carmelo fica no Norte de Israel e que (...). De facto, o "Prof. Marcelo" é uma entidade nacional (que faz vender, dizia-me um antigo editor), mas, às vezes, uma entidade tão apressada - e nem sempre bem preparada - quanto suscitada e até desejada. Mas haja alguma proporção: o que são quatro segundos em directo ao pé de uma coisa que leva oito horas a ler? (não confundir, pois, abismo com ingratidão).
domingo, 15 de abril de 2007
Celebrações silenciosas
LVX (Edith Piaf)
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Vi ontem em Évora (no Fórum da Fundação Eugénio de Almeida) uma exposição de Henri Cartier-Bresson. Dezenas de retratos a disputarem o lugar do corpo, a transmutação do olhar e a ruína. Na poética da fotografia, há sempre algo de profundamente letal: um adeus que é moldado através de uma inscrição que persiste, ou um paradoxo que acena do locus amenus onde já houve respiração e riso e onde hoje apenas resta o assombro fascinado pela superfície impressa. Involuntariamente, os olhos de quem observa são levados a deambular entre os traços que se formaram; divagam entre a geometria e o acaso, como se procurassem a incerta chave de um enigma antiquíssimo. E o mais curioso é que, nestes retratos de Henri Cartier-Bresson, pululavam rostos conhecidos, referências do século que passou: Pound, Camus, Beckett, Eluard, Coco, Barthes, Zontag, Colette, Hokenheimer, Aragon, Stravinsky, Sartre, Matisse, Miró, Piaf, etc. Uma imensa nuvem daquela matéria que Kant designou por “génio” e que fez o mundo das várias gerações que nasceram sob o ímpeto das “Grandes Guerras” e de um leque amplo e variado de ideais inefáveis, sacralizados e ilusórios. Hoje – a relação entre a memória e a actualidade é cruel – quase toda essa matéria é pura reciclagem. Um coro que evoca a alma da ruína e o encanto fúnebre das águas de Ofélia. Apenas isso (e “isso”, um simples deíctico, pode ser uma galáxia).
Vi ontem em Évora (no Fórum da Fundação Eugénio de Almeida) uma exposição de Henri Cartier-Bresson. Dezenas de retratos a disputarem o lugar do corpo, a transmutação do olhar e a ruína. Na poética da fotografia, há sempre algo de profundamente letal: um adeus que é moldado através de uma inscrição que persiste, ou um paradoxo que acena do locus amenus onde já houve respiração e riso e onde hoje apenas resta o assombro fascinado pela superfície impressa. Involuntariamente, os olhos de quem observa são levados a deambular entre os traços que se formaram; divagam entre a geometria e o acaso, como se procurassem a incerta chave de um enigma antiquíssimo. E o mais curioso é que, nestes retratos de Henri Cartier-Bresson, pululavam rostos conhecidos, referências do século que passou: Pound, Camus, Beckett, Eluard, Coco, Barthes, Zontag, Colette, Hokenheimer, Aragon, Stravinsky, Sartre, Matisse, Miró, Piaf, etc. Uma imensa nuvem daquela matéria que Kant designou por “génio” e que fez o mundo das várias gerações que nasceram sob o ímpeto das “Grandes Guerras” e de um leque amplo e variado de ideais inefáveis, sacralizados e ilusórios. Hoje – a relação entre a memória e a actualidade é cruel – quase toda essa matéria é pura reciclagem. Um coro que evoca a alma da ruína e o encanto fúnebre das águas de Ofélia. Apenas isso (e “isso”, um simples deíctico, pode ser uma galáxia).
sábado, 14 de abril de 2007
"Código de Conduta"?
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Não. No seu “Radar”, O´Reilly dá apenas conta de um simples “brain storming”, um “work in progress” que na blogosfera lusa se pratica intuitivamente e cujas rotinas já foram motivo de abordagem (lembro-me do meu “Tom dos Blogues” e, por exemplo, das “Regras” do Abrupto). Deixo aqui as sete regras que estão agora em causa – numa espécie de regime laboratorial – e reatarei o tema, na minha próxima crónica do Expresso online (Quinta-feira), relacionando a dramatização que está em curso com o caso que lhe deu origem ("Kathy Sierra"), com o famoso “código de pudor” de Will H. Hays e com as interessantes salvaguardas que têm sido apanágio do mais falado dos blogues portugueses desta Primavera: Do Portugal Profundo. Eis as regras, em regime de quase hipertexto:
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1 - “Take responsibility not just for your own words, but for the comments you allow on your blog” i.e., responsabilização do blogger pelas suas próprias palavras, mas também pelas que permite em comentário.
2 - “Label your tolerance level for abusive comments” i.e., anunciar previamente o aqui designado “nível de tolerância” do blogue aos autores de comentários abusivos, tal como acontece, por exemplo, com os ícones do Creative Commons utilizados em muitos sites com o intuito de preservar os direitos aos seus conteúdos.
3 - “Consider eliminating anonymous comments” i.e., ponderando alguns contextos em que o anonimato tem sentido (em situações repressivas diversas, por exemplo), impõe-se nas caixas de comentários um registo mínimo dos chamados signos de identidade, nomeadamente – é discutível a sua eficácia e o seu grau de simulação – a apresentação de um mail.
4 - “Ignore the trolls” i.e., O´Reilly propõe uma atitude de indiferença (a possível…) do blogger para com os agentes do cibervandalismo. O exemplo dado, neste caso, pelo autor – o quotidiano dos “artistas” versus conteúdos dos media cor-de-rosa – não me parece muito feliz, na medida em que ambos os discursos acabam (muitas vezes) por se alimentar um ao outro.
5 - “Take the conversation offline, and talk directly, or find an intermediary who can do so” i.e., um directo apelo às mediações entre interlocutores de contendas, quando estas parecem não ter saída. Por outras palavras: evitar a “escalada” que tem como leitmotiv o desejo de que querer impor uma inevitável “última palavra”.
6 - “If you know someone who is behaving badly, tell them so” i.e., a ameaça torna-se, no projecto de O´Reilly, em fiel da balança: se o nível considerado for de ofensa, o blogger deve comunicar com o “perpetrator” visando sobretudo dissuadi-lo; se se tratar de ameaça real, há que passar para um outro nível e cooperar activamente com a polícia.
7 - “Don't say anything online that you wouldn't say in person” i.e., tentar aproximar os registos que se fariam na atmosfera com os que se praticam na blogosfera, sabendo-se, no entanto, que os escrutínios são muito diferentes em ambos os meios. Ou seja: bastante apertados socialmente no primeiro, muitíssimo mais fluidos no segundo.
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1 - “Take responsibility not just for your own words, but for the comments you allow on your blog” i.e., responsabilização do blogger pelas suas próprias palavras, mas também pelas que permite em comentário.
2 - “Label your tolerance level for abusive comments” i.e., anunciar previamente o aqui designado “nível de tolerância” do blogue aos autores de comentários abusivos, tal como acontece, por exemplo, com os ícones do Creative Commons utilizados em muitos sites com o intuito de preservar os direitos aos seus conteúdos.
3 - “Consider eliminating anonymous comments” i.e., ponderando alguns contextos em que o anonimato tem sentido (em situações repressivas diversas, por exemplo), impõe-se nas caixas de comentários um registo mínimo dos chamados signos de identidade, nomeadamente – é discutível a sua eficácia e o seu grau de simulação – a apresentação de um mail.
4 - “Ignore the trolls” i.e., O´Reilly propõe uma atitude de indiferença (a possível…) do blogger para com os agentes do cibervandalismo. O exemplo dado, neste caso, pelo autor – o quotidiano dos “artistas” versus conteúdos dos media cor-de-rosa – não me parece muito feliz, na medida em que ambos os discursos acabam (muitas vezes) por se alimentar um ao outro.
5 - “Take the conversation offline, and talk directly, or find an intermediary who can do so” i.e., um directo apelo às mediações entre interlocutores de contendas, quando estas parecem não ter saída. Por outras palavras: evitar a “escalada” que tem como leitmotiv o desejo de que querer impor uma inevitável “última palavra”.
6 - “If you know someone who is behaving badly, tell them so” i.e., a ameaça torna-se, no projecto de O´Reilly, em fiel da balança: se o nível considerado for de ofensa, o blogger deve comunicar com o “perpetrator” visando sobretudo dissuadi-lo; se se tratar de ameaça real, há que passar para um outro nível e cooperar activamente com a polícia.
7 - “Don't say anything online that you wouldn't say in person” i.e., tentar aproximar os registos que se fariam na atmosfera com os que se praticam na blogosfera, sabendo-se, no entanto, que os escrutínios são muito diferentes em ambos os meios. Ou seja: bastante apertados socialmente no primeiro, muitíssimo mais fluidos no segundo.
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É caso para concluir: entre o óbvio, a aparente ingenuidade e o fio do abismo, há sempre um número considerável de caminhos por percorrer.
A dramatização precoce, por seu lado, torna-se geralmente numa esfinge imóvel e inerte que não augura caminhos nenhuns.
Uma sociedade de imagens é propícia à propagação de clichés, daí a dimensão da esfinge que atravessa - aí sim, dramaticamente - uma boa parte da blogosfera.
A memória do cinema
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"Por duas vezes, o filho transporta a mãe ao colo até junto de uma árvore. E é na última dessas breves peregrinações que tem uma visão: o mar e a imagem de um barco alternam como se a efígie nos aproximasse de uma derradeira anunciação. Pouco depois, uma borboleta fica presa entre os dedos da mãe. É o sinal da morte. A câmara inunda então o gesto do filho que liberta o insecto. Nesse instante de imprevisto clímax, o quadro plástico volta a criar ambiguidade quanto ao lugar e forma de ambos os corpos em cena. A atmosfera pictórica traduz desse modo, com grande beleza, a suspensão do tempo que subitamente religa mãe e filho.
É nesta medida que Mãe e filho de Alexandr Sokurov é uma Pietà onde o lado patético quase se anula, em benefício da compulsão que supera a ideia de morte. No filme de Sokurov, não há uma mãe que olha para o filho, mas sim um filho que olha para a mãe, após uma via dolorosa de que são personagens fundamentais a paisagem, o abandono, a solidão, mas em primeiro lugar, o amor. Um amor singular."
É nesta medida que Mãe e filho de Alexandr Sokurov é uma Pietà onde o lado patético quase se anula, em benefício da compulsão que supera a ideia de morte. No filme de Sokurov, não há uma mãe que olha para o filho, mas sim um filho que olha para a mãe, após uma via dolorosa de que são personagens fundamentais a paisagem, o abandono, a solidão, mas em primeiro lugar, o amor. Um amor singular."
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sexta-feira, 13 de abril de 2007
Escritos
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Amanhã, na revista do Sol, escrevo sobre o filme da minha vida ("A Pietá segundo Alexandr Sokurov"). Desde ontem, no Expresso online, a crónica habitual: "Para além da cultura?"
Pré-publicações - 26
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Rubem Fonseca, Mandrake - A Bíblia e a bengala, Campo das Letras, Porto, 2007.
ePré-publicação:
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"Começando pelo princípio
Meu nome é Mandrake. Sou um advogado criminalista. O caso que vou relatar comprova, como disse alguém cujo nome não recordo, que a verdade é mais estranha que a ficção porque não é obrigada a obedecer ao possível.
Como poderia eu imaginar que me envolveria com a história do incunábulo de Gutenberg, com o anão, com o Caveirinha, com o cofre Fichet, com os assassinatos, principalmente o da pobre mulher madura que pela primeira vez em sua vida estava apaixonada, uma mulher que gostava de livros e de gatos – toda mulher gosta de gatos, até mesmo aquelas que não gostam de livros. Cheguei ao escritório por volta das oito, acessei a Internet e comecei a ler, selectivamente, como de costume, cinco jornais de cidades espalhadas pelo mundo, além de um do meu país, algo que me tomava, aproximadamente, quarenta minutos. Antes, eu recebia em casa dois jornais locais, de papel, em cuja leitura demorava mais de uma hora, pois acabava lendo os seus vários suplementos, mesmo quando eles não me interessavam, um monte de informações inúteis para mim. Eu leio qualquer papel escrito que vejo na minha frente. Quando estou andando na rua e recebo um desses folhetos de propaganda distribuídos manualmente, eu sempre os aceito, para ajudar quem os distribui, ultimamente mais mulheres do que marmanjos, todos precisando se livrar dos folhetos para ganhar uns trocados, e, antes de amassá-los e jogá-los na lata de lixo mais distante, eu os leio cuidadosamente, seja lá o que for, anúncio de restaurante, de salão de beleza, de cartomante. Estava lendo Le Monde no monitor quando Luma abriu a porta da minha sala dizendo bom dia doutor. Não precisei conferir a hora, eram certamente oito horas e trinta, Luma era de uma pontualidade doentia, para não se atrasar chegava vinte minutos antes e ficava esperando, oculta em algum lugar."
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Meu nome é Mandrake. Sou um advogado criminalista. O caso que vou relatar comprova, como disse alguém cujo nome não recordo, que a verdade é mais estranha que a ficção porque não é obrigada a obedecer ao possível.
Como poderia eu imaginar que me envolveria com a história do incunábulo de Gutenberg, com o anão, com o Caveirinha, com o cofre Fichet, com os assassinatos, principalmente o da pobre mulher madura que pela primeira vez em sua vida estava apaixonada, uma mulher que gostava de livros e de gatos – toda mulher gosta de gatos, até mesmo aquelas que não gostam de livros. Cheguei ao escritório por volta das oito, acessei a Internet e comecei a ler, selectivamente, como de costume, cinco jornais de cidades espalhadas pelo mundo, além de um do meu país, algo que me tomava, aproximadamente, quarenta minutos. Antes, eu recebia em casa dois jornais locais, de papel, em cuja leitura demorava mais de uma hora, pois acabava lendo os seus vários suplementos, mesmo quando eles não me interessavam, um monte de informações inúteis para mim. Eu leio qualquer papel escrito que vejo na minha frente. Quando estou andando na rua e recebo um desses folhetos de propaganda distribuídos manualmente, eu sempre os aceito, para ajudar quem os distribui, ultimamente mais mulheres do que marmanjos, todos precisando se livrar dos folhetos para ganhar uns trocados, e, antes de amassá-los e jogá-los na lata de lixo mais distante, eu os leio cuidadosamente, seja lá o que for, anúncio de restaurante, de salão de beleza, de cartomante. Estava lendo Le Monde no monitor quando Luma abriu a porta da minha sala dizendo bom dia doutor. Não precisei conferir a hora, eram certamente oito horas e trinta, Luma era de uma pontualidade doentia, para não se atrasar chegava vinte minutos antes e ficava esperando, oculta em algum lugar."
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Guerra e Paz, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença e Vercial.
Pré-publicações - 25
Júlia Maria Pinto de Leão, Lévinas e a fenomonologia - O Rosto como facticidade de outrem, Campo das Letras, Abril, Porto, 2007.
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Pré-publicação:
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"Introdução
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Aprender a ler a obra de Lévinas e penetrar no seu horizonte enigmático e sensível obriga-nos a iniciar um processo de reflexão infinitamente complexo. São vários os estudos consagrados a esse filósofo, sempre na tentativa de viver as ilusões e a fantasia ilustradas em cada página dos seus escritos. À semelhança de tantos outros filósofos, também Lévinas tem um estilo próprio ao qual é difícil ficar indiferente; uma terminologia complexa que incentiva todos os seus leitores a procurar o verdadeiro peso das suas palavras (palavras que expressam o desencantamento da época em que Lévinas viveu!). Todavia, sob a poeira dos ventos do pós-guerra e sob a urgente necessitude de repensar a própria vida, permaneceu intacta a necessitude de pensar de um modo diferente a existência humana (...)."
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"(...) O nosso estudo pretende mostrar que Lévinas usa como suporte do seu pensamento a influência de Husserl, sendo a sua filosofia uma radicalização do projecto husserliano da fenomenologia."
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Guerra e Paz, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença e Vercial.
O impensável, o riso e a crença
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Odete Santos saiu do parlamento e o facto tornou-se notícia. E ainda bem. É que a ex-deputada é uma comunista singular por saber que aquele sonho é uma coisa do outro mundo. E trata, por isso mesmo, este nosso mundo por tu, ou seja, sem a angústia austera que povoa a generalidade dos militantes de seita. A espontaneidade de Odete Santos tem - e teve sempre - muito da voz de Zaratustra (III, p.23): "E que seja tida por nós como falsa toda a verdade que não acolheu nenhuma gargalhada". Vai fazer bastante falta àquele hemiciclo cada vez mais seco e descarnado.
quinta-feira, 12 de abril de 2007
Levantada do chão
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Às vezes, parece que os deuses se colocam dentro da baliza. E contrariam tudo: a força da gravidade, o movimento inevitável e o destino dos justos. E é assim que o Benfica sai da UEFA. Tragicamente. O Francisco, em Cruzeiro do Sul, percebeu logo - via TV Record - que as massas, por lá, são todas benfiquistas (fomos falando pelas frestas do tempo). Além do mais, ainda conseguiu recuperar (a tempo) a celerada alma de hooligan e, pronto, deu tudo a perder. Mas se há "cabeça levantada", ela é hoje a cabeça da águia. Do Ártico ao Antártico. Do fundo dos oceanos ao ar mais rarefeito.
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Mais um filme sem heróis
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Não tive tempo para acompanhar a entrevista do PM. Mas, para quem viveu na Holanda uma década, seria impensável ver a NOS (televisão pública) alterar a programação do horário nobre para um directo especial (em formato de entrevista) com o PM sobre a dilucidação de um tema específico.
O mais curioso é que o comentador político que ontem ouvi na TSF (Mário Bettencourt Resendes) insistia no cabal "esclarecimento do país" e no facto de o PM "dominar muito bem o meio da televisão". O essencial, no entanto, ficava de lado. Por outras palavras: numa democracia com tradições consistentes - e não tão susceptível ao caudal ilusório das mediações públicas - o tema da formação académica do PM ter-se-ia inevitavelmente discutido no local adequado. O parlamento. Era aí que o PM, por sua iniciativa, devia ter comparecido há já algum tempo. Era aí que as oposições deveriam ter exigido todos os esclarecimentos.
Pelo caminho terão ficado inúmeros aspectos por clarificar, muitas dúvidas, mas também o já habitual aproveitamento político barato e algum espírito leviano de pura denúncia que tem raízes consolidadas no país. Toda esta novela acabou por se converter afinal em mais um filme à portuguesa sem heróis. Carregado de negatividade. Uma "curta metragem" triste com alguns contornos que evocam a expiação ainda em cena na longuíssima metragem da "Casa Pia".
Hoje, os jornais sublinham a "fragilização" - ou não - do PM no termo deste processo (ver primeira página do Público, por exemplo); mas é a "fragilidade" da nossa democracia que mais se terá evidenciado, sem dúvida nenhuma, nas últimas semanas.
Criatividade
REC
r
Primeiras páginas criativas? Nem mais. O jogo de hoje poderia lembrar tudo menos o olhar cálido e expectante de um borrego. Nas meias-finais, sugeria à direcção do jornal a opção pelo bâmbi.
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quarta-feira, 11 de abril de 2007
Espectacularizações avulsas
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Há hoje quem refira, com a autoridade que a fria objectividade confere, que "o universo de alunos" da Universidade Independente "representa oito milhões de euros (8 M€) por ano". Não me assusta o mercado, é evidente. Antes pelo contrário. O que, por vezes, ainda me abisma é a exclusão de qualquer juízo que há umas décadas se designaria por "moral". Afinal, o cariz feérico dos objectos culturais, a individualidade (da natureza humana) e o fluxo de mercadorias tornaram-se num único "produto" a trabalhar diariamente nas redacções.
terça-feira, 10 de abril de 2007
Para além da cultura? - 2
(publicado no Expresso online)
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Paulo Gorjão escreveu, no passado dia 5 de Abril, um post acerca do sentido do seu blogue ("UM BLOGUE À PROCURA DE UM PROJECTO"). Terminava assim:
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"(...) a verdade é que há cerca de um ano e meio que o BLOGUÍTICA anda um pouco à deriva. Falta-lhe uma finalidade. Um propósito (...). Uma encruzilhada sobre a qual não quero, por agora, revelar pormenores."
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A questão é interessante e ultrapassa o cariz retrospectivo da história pessoal do blogger e do seu excelente Bloguítica. Paulo Gorjão começa por constatar - ao longo de mais de oito mil posts - "a existência de diversos blogues dentro de um (mesmo) blogue". Com efeito, a blogosfera - e outras escritas em rede - reatam o tipo de miscelânea de certos textos populares medievais que misturavam catecismo com heranças, prescrições morais, lendas fantásticas, alegorias e imagens exaltantes. Falta, de facto, a estes mistos expressivos aquela unidade temática que reflectiria um sentido próprio dos espistemas modernos (que religam um método a um objecto) ou das narrativas tuteladas por códigos de tipo axial. O carácter híbrido destas escritas tem a sua origem num passeio aparentemente espontâneo através das fronteiras dos géneros.
A superação da ideia estanque de género na blogosfera, tal como a codificamos ainda hoje, é o reverso de um outro aspecto que Paulo Gorjão diagnostica: a ausência de objectivos claros para aquilo que um blogue pretende - pelo menos de início - expressar ("Ao iniciar o BLOGUÍTICA não tinha nenhum objectivo definido"). É evidente que um blogue temático converge no topic que se propõe tratar, mas isso não impede (e até estimula) um tipo de transversalidade que é inevitável no meio onde a nova escrita se desenrola. Na rede, o acto de processar excede quase sempre o desígnio unívoco do método. Pode dizer-se que entre o diferido (o arquivo) e o actual (a ilusão instantanista), a escrita em rede se desdobra como um animal flexível, cujos membros não têm fim, para além de praticamente ocultarem a natureza do corpo a que pertencem. O corpo, nesta acepção, é um enunciado jamais acabado: sem princípio, meio ou fim (finalidade).
A angústia do blogger que vê o seu blogue como um misto (de episódios) pouco "focado", pouco "disciplinado" e demasiado "espontâneo" é natural. É uma angústia que faz parte de um modo mais geral - e sobretudo tradicional - de dar sentido à vida. Mas a multimodalidade da rede tenderá inevitavelmente a inscrever a sua forma e os seus moldes específicos nas escritas que processamos na rede. Porque uma coisa é pensar-se que a rede é apenas um meio (um utensílio prático e instrumental), mas outra coisa é termos a certeza de que nos exprimimos reflectindo esse meio. Aliado à Obra milenar do homem, esse "reflexo" é uma coisa que, a meados do século XVIII, diversos autores baptizaram com o nome de "cultura".
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Se existisse uma epígrafe ideal para este post, ela teria sido escrito pela Carla Quevedo: "O bomba inteligente é meu, mas se o tivesse de deixar a alguém, seria àqueles que gostam de o seguir."
Para além da cultura?
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Em Portugal, o mecenato dito cultural vive essencialmente entre a aquisição (de obras) e a subvenção (patrocínio, apoio, bolsa, subsídio, etc.). Outras formas mais eclécticas de usufruto são relativamente escassas. Como também o é a edificação (os bancos, em Espanha, constroem anfiteatros e outros equipamentos culturais nas pequenas terras).
O Âmbito Cultural do El Corte Inglês é um exemplo de organização que proporciona inciativas que eu traduziria por “eclécticas” (criação de públicos, debates, cursos, etc.). Em Portugal, para além da criação do Prémio Stuart, entre outros, o Âmbito Cultural tem promovido “cursos” centrados em áreas temáticas bastante variadas.
A partir de amanhã e durante dez semanas - dez sessões -, darei um desses cursos (“Para além da cultura?”) que resulta de reflexões que atravessam alguns dos meus ensaios da última década. Deixo em baixo o texto de apresentação e o respectivo temário.
Para além das fundações, associações, clubes e da oferta municipal, era bom que as nossas empresas contribuíssem – de modo original – para alargar e estimular o espaço público (é sintomático, por exemplo, como a CGD prefere o centralismo vertical das “Culturgests” à ideia mais contemporânea de uma rede de intervenções em micro-centros disseminados pelo território).
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O Âmbito Cultural do El Corte Inglês é um exemplo de organização que proporciona inciativas que eu traduziria por “eclécticas” (criação de públicos, debates, cursos, etc.). Em Portugal, para além da criação do Prémio Stuart, entre outros, o Âmbito Cultural tem promovido “cursos” centrados em áreas temáticas bastante variadas.
A partir de amanhã e durante dez semanas - dez sessões -, darei um desses cursos (“Para além da cultura?”) que resulta de reflexões que atravessam alguns dos meus ensaios da última década. Deixo em baixo o texto de apresentação e o respectivo temário.
Para além das fundações, associações, clubes e da oferta municipal, era bom que as nossas empresas contribuíssem – de modo original – para alargar e estimular o espaço público (é sintomático, por exemplo, como a CGD prefere o centralismo vertical das “Culturgests” à ideia mais contemporânea de uma rede de intervenções em micro-centros disseminados pelo território).
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Para além da Cultura
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Vivemos num estádio que poderia designar-se “Beyond the world”. As referências estáveis anteriores ao mundo moderno, assim como as diversas arrumações que as sucederam, não passam hoje de um mar encapelado, volumoso e paródico. Estamos, pois, a viver numa ponte entre uma margem nítida e determinável e uma outra imprecisa, sinuosa e quase indistinta.
É sem dúvida uma travessia fascinante e, ao mesmo tempo, abismada. É sem dúvida um tempo riquíssimo e, apesar de tudo, reflectido apenas na iminência da sua actualidade. É sem dúvida um presente que já não se vê ao espelho como antes, durante décadas, se havia habituado a fazer: diante da sua imagem mais ou menos nítida, centrada e aplaudida: a cultura.
Hoje o tempo tornou-se no vórtice de todas as aparências: o leme de um mundo simultaneamente montado e desmontado pela hipnose da velocidade e das imagens. É neste súbito relance que nos encontramos. Para além da cultura? Pois bem, seja esse o guião deste percurso guiado e, porventura, quem sabe, sempre à procura de guias.
4
Unidades temáticas por sessão: Sessão 1 - O “segno”, o dever e a actualidade. Sessão 2 - A criação pré-moderna e o emergir moderno da criação. Sessão 3 - A caracterização da ideia de cultura e o papel actual da mitologia. Sessão 4 - Imagem móvel, criação e a arquitectura da consciência em Damásio. Sessão 5 - Criação, rede e blogues: a aventura da linguagem à procura de si própria. Sessão 6 - Criação, espaço, performance e as tendências artísticas contemporâneas. Sessão 7 - Criação e novíssima poesia portuguesa: panorama e ilações culturais. Sessão 8 - Alteridades culturais: Islão e o mundo cristão. Sessão 9 - Problemas da instantaneidade: do passado escatológico ao presente. Sessão 10 - Do acto criativo de Duchamp ao desafio da hiper-realidade.
Vivemos num estádio que poderia designar-se “Beyond the world”. As referências estáveis anteriores ao mundo moderno, assim como as diversas arrumações que as sucederam, não passam hoje de um mar encapelado, volumoso e paródico. Estamos, pois, a viver numa ponte entre uma margem nítida e determinável e uma outra imprecisa, sinuosa e quase indistinta.
É sem dúvida uma travessia fascinante e, ao mesmo tempo, abismada. É sem dúvida um tempo riquíssimo e, apesar de tudo, reflectido apenas na iminência da sua actualidade. É sem dúvida um presente que já não se vê ao espelho como antes, durante décadas, se havia habituado a fazer: diante da sua imagem mais ou menos nítida, centrada e aplaudida: a cultura.
Hoje o tempo tornou-se no vórtice de todas as aparências: o leme de um mundo simultaneamente montado e desmontado pela hipnose da velocidade e das imagens. É neste súbito relance que nos encontramos. Para além da cultura? Pois bem, seja esse o guião deste percurso guiado e, porventura, quem sabe, sempre à procura de guias.
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Unidades temáticas por sessão: Sessão 1 - O “segno”, o dever e a actualidade. Sessão 2 - A criação pré-moderna e o emergir moderno da criação. Sessão 3 - A caracterização da ideia de cultura e o papel actual da mitologia. Sessão 4 - Imagem móvel, criação e a arquitectura da consciência em Damásio. Sessão 5 - Criação, rede e blogues: a aventura da linguagem à procura de si própria. Sessão 6 - Criação, espaço, performance e as tendências artísticas contemporâneas. Sessão 7 - Criação e novíssima poesia portuguesa: panorama e ilações culturais. Sessão 8 - Alteridades culturais: Islão e o mundo cristão. Sessão 9 - Problemas da instantaneidade: do passado escatológico ao presente. Sessão 10 - Do acto criativo de Duchamp ao desafio da hiper-realidade.
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