quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Olhar para dentro

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A grande virtude e, ao mesmo tempo, a grande falha da blogosfera foi - e é - o seu teor centrípeto. Desde 2002/2003 que assim tem sido. No início, a inevitável tentação de os bloggers visarem a blogosfera e não a atmosfera na sua comunicação contribuiu para que uma nova cascata surgisse no espaço público (e se tornasse visível de fora). O imponderável assustou então os actores clássicos da área, os mesmos que mais tarde viriam a absorver e incoporporar o meio (basta dar um breve passeio pelos sites dos jornais para o comprovar). Quanto mais a voz do blogger continuar, hoje em dia, 'a falar' para os outros membros das restritas comunidades de bloggers, tanto mais a blogosfera tenderá a ser um nicho cada vez menos incómodo. Até porque as pequenas comunidades são todas iguais: vigilantes, censórias e limitativas (sem que, neste caso, o aceno tal aparente). Esta realidade foi um dos factores que, a certa altura, digamos em finais de 2006, me fez começar a abrandar aquilo que sempre se designou por "participação" (o próprio termo releva a centripeticidade). Esta análise implicaria outros desenvolvimentos e em nada diminui a importância - bem pelo contrário - do círculo de afectos e amizades criado (pelo menos no meu caso) com muitas pessoas que conheci por causa da blogosfera. Trata-se antes de uma questão que valeria a pena objectivar, independentemente dos protagonistas e das comunidades (muitas identificáveis) em cena. Creio que a blogosfera poderia, de algum modo, renascer... se uma suave catarse ao seu teor centrípeto fosse levada a cabo. Bom ano!

sábado, 27 de dezembro de 2008

Ilha no tempo

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Um pasmar que bebe a surpresa como os lábios aspiram a água do coco. É assim o tempo livre, ocioso, liberto dos cortinados do palco que delimitam, no dia-a-dia, a errância dos passos e a loucura natural das nossas gargalhadas alegremente sem sentido.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Boas Festas

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Aqui vos deixo um catecismo para que se sintam acompanhados neste tempo de harmonia fragmentária e de motricidade espiritual.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

A superação de uma natureza


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Sabe bem alimentar um blogue sem qualquer compulsão. Entre Julho de 2003 e o fim de 2007, foi, de facto, com bastante compulsão que tratei este espaço da rede: como uma expedição feérica, ao jeito de quem experimenta um novo instrumento e verifica que 'o que diz' é também - e quase sempre - parte desse instrumento. O uso da blogosfera é e foi, portanto, sempre parte do que haveria a dizer.
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A formação de comunidades com tendência para se fecharem é - e foi - um fenómeno que acompanhou a formação e definição da blogosfera portuguesa. O caso não é apenas lusitano, mas, nos primeiros tempos, terá sido parte de um processo de iniciação, cuja natureza se tem vindo a esvair à medida que a individuação se tem vindo a emacipar dos limites (algo impositivos e criadores de censuras, remissões e implicações próprias) das comunidades antes formadas e à medida, também, que a compulsão se tem vindo a transformar num quase normal 'facto que se comunica'.
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De algum modo, a sensação de fim da blogosfera prende-se com estas duas emancipações: do blogger face às contingências e pressões onde aprendeu a nadar e ainda - segunda emancipação - da 'urgência' do discurso face ao meio e face à inaudita visibilidade/exposição que o foram criando.

sábado, 15 de novembro de 2008

Destilando o fio-de-prumo

Destila-se a bobina do filme, imagem após imagem, e o relógio torna-se num muro. Visto de longe, parece até ter asas. O tempo faz a cor da erva, do mesmo modo que a névoa permite adivinhar a forma incerta do muro. Há dias assim: começam por ser meros delírios e avançam, depois, em direcção ao olhar como se fossem amazonas. Como nos filmes. Murnau filmou o Fausto e emprestou-lhe asas incorruptíveis. Lembro-me que, a certa altura, havia duas estradas que se juntavam num único ponto. Ponto de luz. Havia névoa, é verdade. E estava lá tudo. Menos o fio-de-prumo. E a música. Há dias em que a esperança volta a ser apenas uma palavra; ter saído de lá - da palavra - é que fez com que esperança não passasse da imagem do tal muro que antes tinha sido bobina, Fausto, delírio ou tão-só (perdoem-me as feministas) amazona. Genealogias secretas.

A maior comoção

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Um dia, era criança, caí no mármore. Literalmente. Como acontece em todas as iniciações. Era uma fonte esférica como o mundo e, talvez por isso, tenha percebido que o murmúrio dos deuses era - e é - um feito menor. Deuses de seda que levitavam sem andas. Era uma fonte feita de mármore e estava toda inundada de limões: espécie de nuvem silenciosa, sem densidade, mas de mármore. Compacta. Nasci no meio do mármore e nunca entendi os cemitérios como locais para a derradeira queda. Porque sempre revi nos estilhaços cor-de-rosa que percorrem a pedra a bonomia de uma paixão, cujas figuras se espreguiçariam sob as raízes de oliveiras antigas. Essas, sim, ermas, perdidas, algo deserdadas. Um dia caí dentro deste pranto esbranquiçado e em vez de encarnar, vi o mar. À beira mármore, havia um mar de limões. Do outro lado, havia a compaixão da guerra. Tem sido sempre assim. Até hoje, dia da maior comoção.

Rostos estelares

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Não sei se são recortes, se são guardanapos, se são guerreiros diáfanos. Foram entretecidos por Edgar Mosa, numa cidade onde deixei vários anos de vida e onde os rostos são estelares. E onde o queijo é feito da espuma que não coube no olhar de Sísifo.

Pêndulo

Agarro-me ao pêndulo da Rita Botelho e respiro fundo. O oceano como uma mesa sem fim. A aguarela, por cima, como escalada entre o tampo, o pó e a visão. Sonhei um dia com um fio-de-prumo que terminava num aro a girar sobre si mesmo. Uma bailarina de baquelite com olhos densos, azulados, espumosos. A boneca que está ainda sentada na montra da Palmdwarsstraat. O tricot em vez do oceano e a mesa sem fim em vez do pêndulo. Luzes azuladas, néon, passos apressados, perguntas. Continuo agarrado à trave do carrossel e a vida escoa como o pó ou como aquela visão com que sonhei um dia, era Inverno, e as gabardinas de cor viva (amarelas e vermelhas sobretudo) deslizavam sobre o gelo do canal cheio de príncipes perfeitos. Uma boneca engalanada e de pernas muito abertas. O tricot em vez da liquidez. O desejo como uma respiração profunda. O aro espelhado e a força da gravidade. A rosa feita de pano. As perguntas. O eco. A desesperança. É sábado e ainda bem que assim é.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Convite

Clicar para aumentar
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Nota: Este mesmo livro vai ser apresentado na Livraria Intensidez, em Évora, na quinta-feira dia 20 de Novembro pelas 18,30h.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Desaparecer, aparecendo

Uma pausa, hoje em dia, tem o nome de morte. É a velha história da impaciência diante do que se imagina ter que ser perfeito. O que antes era a impaciência dos místicos face ao apocalipse ou dos comunistas (de há cem anos) perante a "apoteose da humanidade" é, no nosso tempo, a impaciência diante dos cliques. Mais do que tês cliques é a morte. A pausa, a espera - como estás longe Eurídice! - é agora sinónimo real de desaparecimento. Mas o Miniscente vai passar a ter pausas e grandes esperas. Um novo modo de desaparecer, aparecendo.

Não existir, existindo

Reato a escrita no blogue em pleno comboio. Só sei que quero manter este espaço, embora os territórios, hoje em dia, só existam quando feericamente actualizados. Mas quem sabe se este Miniscente não se vai mesmo transformar num espaço que não existe, existindo?

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Volta ao Mundo - 25

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Pois foi. A Clara e o Miguel acabaram a volta ao mundo e eu demorei três semanas a colocar aqui a última crónica que me enviaram. É a que se segue, escrita ainda na África Austral, depois de terem aventurosamente atravessado o planeta no sentido das Américas-Pacífico-Oceania-Ásia-África e, de novo, Europa. Que me desculpem!
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África do Sul
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Imagino uma nuvem. No meio dos círculos de medo e ódio, loucura e amplitude deste país, aparece na forma de um momento. Dou-lhe um nome. Humanidade.
e
Têm um ar duro, são quatro ou cinco ou mais homens de um negro aflito a sair-lhes de cada poro. Enfrentam a máquina fotográfica com desprezo de bandido. As mãos são armas e dedos desiludidos. Mas de pose firme para a incerta posteridade. Até que lhes mostro o resultado. Só observo. E tremo. Com medo. Um a um, pegam no seu reflexo. É esse o momento que retenho. De uma nuvem a sair-lhes pelos dentes. Feliz. A violência esquecida por um instante de verdade.
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E da maior humanidade.
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Outra nuvem: no meio de um caminho duro, entre leões, vida e a terra maior do mundo, uma cassete velha canta, em Xhosa, língua de estalos e surpresas. "Com a voz canto a minha África, a minha liberdade".
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- Esta é a única frase de toda a canção. – diz o Sam, um homem de sonhos que nos guia por aquele castanho forte. - Não gosto de músicas cheias de letras. As frases verdadeiras precisam de espaço.
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Imagino mais nuvens. Esmagadas por medos, ódios, loucuras e amplitudes deste país. Tão negro e branco e inicial. O maior país do mundo. Espero que existam.
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Escrevo em casa. Em círculos. Sem saber se cheguei ontem ou não cheguei ainda. Tenho este sul de África na garganta, em pedaços vivos. Como uma música de letra verdadeira e que precisa de espaço. Uma nuvem.
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Texto: Clara Faria Piçarra
Fotografia: Miguel Sacramento

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

PNETliteratura

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Começou hoje o site PNETliteratura. O que explica, pelo menos em parte, o silêncio aqui acumulado no Miniscente. Bastará abrir o novo site para perceber porquê.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Raveliana - 2

Uma noite
a névoa de ouro
a corda a desprender-se
como o fogo
a atear
o navio
polar.

Raveliana - 1

A respiração crepuscular.
Quando a transparência dos canais era
o olhar
de frente
feito de argila
a respirar
no fundo do rio.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Férias

De férias, ou melhor, entre dois períodos de férias. A própria ideia de férias é tão recente (e ocidental) quanto confusa: implicaria separar o que se entende por trabalho do que se possa entender por descanso. Na prática, toda a gente interioriza muito bem este tipo de separação, já que ela nasceu numa sociedade que se inventou a si própria atribuindo menos força à iniciativa do que à lógica do por conta de outrem. Mas as férias significam tudo menos inactividade. As férias são uma indústria e, ao mesmo tempo, uma ostensão. É nas férias que o gelo, parecendo derreter, se torna em iceberg: um imenso jogo de espelhos que, embora imaginando-se livre, acaba por encarnar a rotina e o mimo de um formigueiro.

sábado, 2 de agosto de 2008

Volta ao Mundo - 24

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Faz já em Setembro um ano que a Clara Piçarra e o Miguel Sacramento partiram para uma volta ao mundo. Foram para Ocidente e regressarão pelo Oriente. Do último continente percorrido, a África, chega-nos agora, não uma crónica, mas uma "respiração":
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"Primeira Respiração"
e
"Estou em África.
e
O ar é maior, enche-me o peito com uma força que me ultrapassa. Há uns dias, quando menos esperava, senti-me a descalçar. E andei. Andei com os pés dentro da terra, num passo arrastado, demorado, sem forma conhecida. Não sabia que podia entrar assim no mundo. O céu é maior…mas não nos esmaga. Preenche todos os espaços. É mais do que cor, mais do que uma ilusão. Há uns dias, quando menos esperava, deitei-me sem tecto. E ouvi. Cada estrela, cada cheiro. Descobri. Que aqui o céu tem… som.
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Se eu fosse uma árvore era África. Ou um animal. Ou uma pedra. Era África. Seria o meu próprio início. Acho que é verdade."
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segunda-feira, 28 de julho de 2008

Inércias

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Pois é, este sexto ano de Miniscente tem sido dominado pela inércia. Não é tanto a dificuldade em aqui vir, devido às muitas ocupações; é sobretudo o adiamento a que dou carta branca sempre que sinto inclinação mínima em postar. Não sei, mas deve ser mesmo falta de vontade de continuar a blogar. Ou não serão as férias, essa desejada e longínqua presa que me olha, ainda de longe, como um touro para um forcado?

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Volta ao Mundo - 23

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Há dez meses, a Clara Piçarra e o Miguel Sacramento partiram para uma volta ao mundo que o Miniscente tem acompanhado... passo a passo. Embora já se encontrem em África, hoje a crónica chega-nos ainda da Indonésia e fala-nos, entre outras coisas, das consequências de um recente e terrível maremoto:
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"Indonésia – Bali e Sumatra (Pulau Nias)"
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"Há alturas em que ficamos quase sem nada. Não porque perdemos, ou desistimos, ou deixámos de agarrar. Ficamos quase sem nada. Porque vimos. Olho para longe e sinto a onda como se fosse minha. Nos pés. No peito. Na incerteza. Sou água ou sol? Sou vento, azul, quase transparente. Se pudesse chorava. Ou gritava. Ou sorria. Se pudesse. Mas deixei de ser formado por pedaços. Transformei-me em tudo. Desço a onda, sinto, faço parte. Não há nada fora de mim. As vozes são minhas, as cores, o sal, o momento curvo de força pura. Sei que não sou eu. Eu agarro apenas um sonho. Com as duas mãos, debaixo do braço… como se deve agarrar um sonho: com a certeza de que um dia vai ser inteiro.
e
Há alturas em que ficamos quase sem nada. Não porque perdemos, ou desistimos, ou deixámos de agarrar. Ficamos quase sem nada. Porque vimos. O caminho é duro. Não percebo porquê. O verde prolonga-se numa floresta cerrada que só desiste no mar. A estrada vence com calma cada curva. Recebem-nos com fruta e vontade. Por que sinto ser tão difícil? É quando estamos sentados num chão que serve conversa fácil que olho pela primeira vez. Não para o verde, não para o mar… para o vazio. Todas as casas estão vazias. Não há mesas, ou cadeiras, ou quadros. Há apenas vazio fechado entre paredes e tectos. Nias foi destruída por uma onda gigante que vimos na televisão. Nos anos seguintes dois tremores de terra resumiram a destruição. Lentamente, as casas vão crescendo como as pessoas que ali vivem. Num vazio envolvido por pele fina. Mas que guarda uma esperança que não sabia possível.
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Os desequilíbrios não são a perda da vertical. São os espaços vazios que se criam quando não há justiça. Temos culpa. Porque sabemos que existem."
e
Fotografia: Miguel Sacramento

terça-feira, 15 de julho de 2008

Hoje é o dia do quinto aniversário do Miniscente

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Parece que foi hoje, mas a verdade é que as primeiras palavras do Miniscente foram escritas num ambiente muito diferente do que hoje nos respira e envolve.
e
O 09/11 estava ainda fresco, o Iraque fervilhava em pleno, Durão era PM, o caso 'Casa Pia' ainda não existia e uma nova (e pouco compreendida) febre comunicacional estava a arrancar em Portugal.
e
Este desafio ao espaço público, com a tonalidade com que foi singrando há pouco mais de meia década, durou pelo menos três anos. Foi um início de milénio caudaloso! De facto, foi particularmente interessante ter assistido e colaborado na emergência de uma nova área dos media (ainda não absorvida pelas tradicionais) que apostava em ser um pouco de tudo do que já se conhecia - diário, memórias, crónica, botequim, crítica, monólogo, etc. -, embora marcando sempre identidades para fora desses perímetros referenciados e excedendo, sem quaisquer preconceitos, o esquematismo ficção-realidade e/ou verdade/sentido.
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Foi também um auspicioso e generoso movimento de afirmação personalista, num tempo em que tudo aparentemente parecia condenado ao apagamento autorial. Foi ainda a reocupação de uma área militante, mas sem ideologia a comandar os barcos, os portos, os submarinos e as secretas.
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A nomes conhecidos da opinião, juntar-se-iam imensos nautas que pretenderam cunhar a sua expressão através de um novo labirinto, de que a figura dourada do "link" foi muitas vezes - por ausência ou presença - protagonista de ouro.
e
Enfim, a primeira década do século XXI teve a sua própria onda expressiva, de algum modo comparável - colocando de lado as auto-descobertas da tecnhé - à do cinema que floresceu cem anos antes.
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Aliás, o desafio expressivo criado pelo novo meio (e que sempre me encantou enquanto fenómeno) levou-me mesmo a escrever um livro, publicado já este ano, que tentou levar a cabo o balanço compassado e pensado de toda esta euforia.
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Não creio que a explosão bloguista - ou blogueadora - tenha já acabado; o que creio é que ela já não existe do modo fulgurante com que se fez significar no tempo da 'grande bolha' (digamos: 2003-2006).
e
O Miniscente, nos últimos cinco anos, atravessou todo este terreno. Um terreno imensamente fértil, mesmo sob o ponto de vista humano. Não sei o que teria feito, se não me tivesse ocupado tantas horas na redacção de perto de 4.000 posts. Mas não me arrependo. Olho para trás e compreendo que foi uma fase virtuosa e arrebatada. Adoraria, em todas as fases da minha vida (passadas ou futuras), poder sempre mergulhar em comunidades tão estimulantes quanto foi a dos blogues no seu período de excelência.
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Agradeço a todos os que me têm lido e acompanhado nesta saga. Não posso prometer o que já prometi noutros aniversários do meu blogue. Também não acabarei com o Miniscente neste dia de festa! A eutanásia não é quase nunca boa conselheira. Se este meu blogue tiver que acabar, acaba naturalmente. Por ora, prometo uma coisa: o Miniscente vai envelhecer com a mesma serenidade com que o meu cão Ulisses também está a envelhecer. Hoje em dia, no mundo célere em que vivemos, cinco anos são cinco séculos. Quase meio milénio, ou seja: qualquer coisa já muito perto da salvação.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Quinto Aniversário do Miniscente (cont.)

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Na véspera do quinto aniversário do Miniscente, deixo aqui mais quatro de treze poemas preparados para celebrar o microacontecimento:
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A árvore
w
Existe um salmo
a invadir o antigo rumor de Boticelli
w
basta olhar para as árvores sem género
que gravitam entre o vazio e a folhagem densa

da Primavera
para entender o modo como as formas
semeiam na consciência
uma poeira fina de argila vermelha
que nos traz
rosto a rosto
dia a dia
o horizonte quase inabitado.
w
A procura
e
Disse que o caminho era longo
uma descida íngreme entre o vestígio dos caules e a

lentidão da voz
e
trouxe o musgo em que imaginámos
os acampamentos e o fulgor das
vias e viadutos à procura do mundo
e
seguiu pela grande estrada e era já

demorada a saudade dos moinhos de vento
escarnecidos pela luz

da cidade.
e
O pólen
e
Subia pela rua que ia dar ao pólen
e
foi nesse dia que reviu
figueiras esvaídas e a luz que as abelhas
consumiram

para ver passar
e
a beleza


que era o nome desse incêndio
ee
A noite
e
Estava reclinada sobre a noite
a entrever as giestas e um desses volumes
de alvenaria que irão dar à alma
e
dizia
e
que Vermeer era
o pintor
que teria gostado de a ver
e
voaria através da luz inclinada
e dessa penumbra inventaria a noite
que o rio já absorveu.

domingo, 13 de julho de 2008

Quinto Aniversário do Miniscente

e
A dois dias do quinto aniversário do Miniscente, deixo os primeiros quatro de treze poemas escritos para celebrar o microacontecimento:
dd
A corrida
w
As luzes ao longe ciciavam
na memória dos muros
entre amores-perfeitos e o ressoar
dos passos com que regressava
no fim do Verão e havia chuva
ee
lembro-me de passar folha a folha
o tempo a correr como se a sombra trouxesse
ao suor aqueles dias já mais curtos em que
falava de bois deslumbrantes a cruzar a nora do quintal
e
havia silêncio ao fundo do corredor
e ciciavam luzes sob a maresia
enquanto olhava para a chuva
que tolhia a voz
e e
quem dera ao luar este amor
este rugido na falésia da memória
e
lembro enquanto caminho
sem idade
na direcção dos plátanos despidos.
e
O boi
d
O tempo serenou junto ao campo de aviação e os olhos do boi
levantaram-se lentamente e
viram o trono de deus
d
naquele tempo
a boa nova não apareceu no traçado dos rolos
mas sim nos relâmpagos
e nos cascos com que o animal avançava
em direcção ao rio,
cheio de farpas galanteios e sangue
d
nas águas viu-se como um deus no fim daquela tarde
e em cor de ouro escalou à arena do paraíso
abraçado ao toureiro aviador que era apóstolo da chuva.
d
O desafogo
d
Havia sangue nas rosas e o regador parecia
um céu
a clarear na memória do pasto
d
e as ovelhas continuavam escondidas sob oliveiras
ali mesmo
ao lado do corpo abandonado
e e d
O Corredor
ed
Era silencioso
longo
e a cortina ao vento
paralisava os sentidos
d
ao fundo
havia um corrupio de pombos a revolver
a escrita com que se respirava
o ar profundo e fresco do poço
d
passava em frente da cortina
bordada pelas viagens e aí permanecia
como se fosse uma deusa
a olhar para a crista das ondas
d
até que um dia a sétima vaga subiu pelo farol
e drenou a imagem com que se apagaou
na lembrança dessa paixão que era
secretamente
a minha.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

O quinto aniversário: rumores íntimos

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No próximo dia 15 de Julho, desta terça a oito, o Miniscente fará cinco anos. Um tempo simbólico, mais nada. Relembro sumariamente (com aquele tipo de síntese que não recobre a massa das coisas) o que tem sido esta saga.
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e
O primeiro ano foi de vício e compulsão sem fim. O segundo ano foi de intensíssima apropriação do meio. O terceiro ano foi o ano que culminou com a evidência do metabloguismo. O quarto ano foi de mini-entrevistas e de aceso debate sobre a dupla ficção-realidade. O quinto ano foi tempo de travagem, de mais inércia e, sobretudo, de contemplação menos deslumbrada.
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Nada sei sobre o sexto ano a vir, porventura o da desmobilização natural (até porque há novos desafios na rede a que vou ser chamado a partir do próximo Outono). Veremos.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Episódios e Meteoros - 91

Heresias, Islão e tentações involuntárias
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(publicado desde ontem no Expresso Online)
(Ver também no meu blogue de crónicas)
e
Transgredir sem dar por isso é um dos mais extraordinários dons do ser humano. Nos seus mundos, animais e plantas sabem bem que a violação de regras é sinónimo de vida ou morte. Entre os humanos, por mais feéricas e rígidas que sejam as leis, existe sempre a deliciosa margem da tentação, mas sobretudo a capacidade de pisar o risco de modo totalmente involuntário. Nem sempre a inocência e a ignorância são causas desse dom transgressor. Muitas vezes é apenas o acaso, a simples errância ou o devaneio. Foi o que aconteceu comigo, já por duas vezes na vida, face a face com o Islão.
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Primeira história: recuemos uns aninhos e entremos, lado a lado, com a minha memória na esplanada das mesquitas. Melhor: entremos no que resta do antigo Templo de Salomão. Em frente, a Mesquita da Rocha e, à direita, a famosa Mesquita de Al-Aqsa. A primeira, a matriz do que viria a ser a história de toda a arquitectura islâmica; a segunda, o berço da tradição do Miraj, ou seja, da ascensão de Maomé aos céus (facto criado pelas tradições orais e não pelo verso cunhado e "recitado" do Alcorão). Deslizo lentamente por este terreno que é, decerto, um dos mais mitológicos do mundo. E, distraído, acabo por entrar nas centenárias portas de Al-Aqsa.
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Até aqui nada de novo. Só que me esqueci de tirar os sapatos. Por trás de mim, ouço subitamente gritos: vozes que quebram o silêncio, vozes que me fazem imaginar espadas em forma de crescente e o rumor daquelas batalhas que, nas profecias da Idade Média, eram reportadas com o sangue a chegar à barriga dos cavalos. Não sei como, mas consigo sair dali do mesmo modo que o sorriso de Adão se terá curvado, um dia, diante dos insondáveis caprichos de Eva. Em minutos, não mais, estou na Via Dolorosa a comer o precioso grão do khumus e a lembrar-me da açorda que se come no Alentejo.
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Segunda história: passo por Vilar Formoso, compro um presunto e entro, dia e meio depois, no meu bairro em Amesterdão. No dia seguinte, vou à rua comercial mais próxima, o Dique de Haarlem (Haarlemerdijk), e, num repente, coloco o presunto de porco sobre o balcão da loja dos meus amigos marroquinos. Após tantos anos de confidências e empatias (para além da óptima azeitona e da alquimia dos coentros), faz-se um silêncio de morte. E eu sem perceber porquê. Até que de um nada (inexplicável) abruptamente se fez luz. Lembro-me que passei o resto dos anos que vivi na Holanda a pedir desculpa.
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A propósito destas incursões meio acrobáticas, devo confessar que nunca mais esqueci um poema de Ibn Sâra de Santarém. Um poema que descreve o olhar de quem vem de fés ou respirações diferentes e entra, sem mais, em aquário alheio: "Olho sempre a tua face com apreensão:/ eras a água clara onde abundam/ os crocodilos". De facto, nem sempre abundam crocodilos no lago. Como nem sempre há leões na arena. Embora a épica que mais atrai os humanos seja a que é percorrida pela tragédia diária: histórias de leões e crocodilos em sangue, histórias de transgressão involuntária que acabam em contenda, enfim - histórias letais.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Episódios e Meteoros - 90

e
(publicado desde ontem no Expresso Online)
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Editado por Fernanda Irene Fonseca, saiu a público, há cerca de um mês, o Diário Inédito de Vergílio Ferreira. Para além de romancista e ensaísta, o autor ficou também conhecido como diarista de fundo, por via sobretudo dos volumes do Conta-Corrente (entre 1980 e 1994). O que não era público até agora era a aventura do diário, ao longo dos anos que sucederam o final da Segunda Grande Guerra Mundial, de 1945 a 1949 (com ligeiro intervalo em 1947).
e
A chegada de Vergílio Ferreira a Évora, onde iria viver quase década e meia, domina o diário. Os ecos da vida literária e política do país, neste período conturbado, também ecoam nas pouco mais de cem páginas do volume agora editado pela Bertrand. Mas este diário também acolhe factos pessoais de relevância: o casamento do escritor, o dia dos seus trinta anos e os momentos em que a doença assalta a alarmada consciência do autor de Aparição.
e
Há precisamente sessenta anos, no final de Junho de 1948, escrevia Vergílio Ferreira: “É a terceira ou quarta vez que tento o diário. Suponho que desistirei ainda. Tudo e a repugnância de ver o papel que me lê”. Este desafio de blogueador – próprio de quem começa e acaba com a facilidade de uma nuvem que se faz e refaz – é tão livre quanto a revelação que é depois levada a cabo para justificar a própria escrita: “A ironia, essa confissão irresponsável, é o único meio que tenho à mão de condescender em me observar”.
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Ou seja: o “papel” – sim, falamos de um tempo em que se escrevia à mão – parece querer observar o escritor do mesmo modo que o escritor se observa através de uma ironia deliberada. Num trecho de 30 de Junho de 1948, Vergílio Ferreira estabelecerá uma semelhança (panteísta) entre a luz que entra pela janela e a “irresponsabilidade” da confissão que antes designara através da palavra “ironia”:
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“Do alto da galeria da janela pende uma cortina de cassa em pregas fluidas. Com a aragem breve que vem lá de fora, as pregas ondulam abandonadas. A lâmpada apagada roda com o abajur em torno do fio suspenso do tecto. Caio no fundo do sofá e deixo, irresponsável, que a luz quebrada do céu de tarde desça sobre mim, me cubra de sossego.”
e
Estes sortilégios dir-se-á ‘rendilhados’ fazem – ou fizeram – o que era, à época, a sacralizada vida de um escritor: um destino ímpar. Veja-se: “Creio que não se fazem obras só com palavras mas também com a própria pessoa do escritor, a sua presença, a sua voz, até a sua gravata. Que são escritores descobertos depois de mortos senão isso mesmo?”. Um destino ímpar em que o escritor surgia em cena como o sacerdote da convulsão moderna. Era este o impasse que caberia a um Vergílio Ferreira de trinta anos quebrar. Um confronto que o existencialismo e a fúria da leitura completavam.
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Estamos tão longe deste “caldo de cultura” (como dizem os pregões televisivos franceses) como do dia em que Henrique VIII disse – “Mate-se!”. A literatura, hoje em dia, é uma natureza exótica e pouco praticada. Confunde-se com a miríade de livros que escala pelos escaparates como mulúsculos nos mercados de Xangai. A coisa que foi a literatura – uma revelação da sociedade e do humano como referência central de vida – encheu o século dezanove e boa parte de novecentos. E hoje olha para nós como uma “ironia” que quase radicalmente nos escapa.

terça-feira, 24 de junho de 2008

F & F

Na última aula de semiótica do ano, uma aluna chamou "função fálica" a uma função que o não era. Passou a ser.

sábado, 21 de junho de 2008

Ainda o Europeu

Há línguas em que "cansado" se diz ao longo de três poderosas sílabas. Há línguas mais pragmáticas que apenas emprestam duas sílabas a tal estado. Mas o Holandês apenas concede uma única: "Moe" (lê-se "Mu"). Não mais. Van Basten e Hiddink sabem do que trata esta miraculosa síntese.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Reportagem do Portugal - Alemanha (act.)

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Dez minutos antes do jogo
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O futebol consegue colocar-se acima das irritações, das euforias e dos alheamentos de quem o detesta. E isso acontece porque o futebol vive justamente de irritações, de euforias e de tudo o mais com excepção para a indiferença. Um excêntrico do nosso tempo passeia-se num carrinho de choque com som de motorizada, veste-se de papagaio com um chapéu em forma de bacalhau e ostenta uma bandeira com haste de dez metros. Toda a 24 de Julho apita. Tudo e todos o contracenam. Há um arrepio que assola o asfalto. As pessoas acenam, conjecturam e rogam ditos e vaticínios nos cafés e nas pastelarias. Confessam coisas sobre os jogadores: que não têm pernas, que são gigantes, que não têm guelras, mas que são - de certeza - pequenos faustos ao sabor da maré alta. Há um uníssono a percorrer o país. Estranho e bárbaro uníssono. Estranho e belíssimo uníssono. Misterioso, no mínimo. Faltam dez minutos para o Portugal-Alemanha (eu penso mais em derrota...).
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Ao intervalo
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Ao intervalo, para já, confirmam-se os prognósticos. A Alemanha foi mais física, mais decidida, mais empenhada. Portugal entrou com passividade, mostrou algum engenho no lado direito (Simão e Bozíngua) e nada de golpe de génio. E depois acontece sempre a mesma coisa: por que é que o Nuno Gomes só faz disto na selecção e não no meu - e seu - clube?). Para a segunda parte, não acredito em grandes mudanças. Vê-se que Ronaldo está fora do seu aquário e que não é, na selecção, nem um Figo, nem muito menos um Eusébio. E sinto que, cada vez que a Alemanha ataca, tudo pode acontecer: muita corrida, boa troca de bola e rapidez concertada. No lado português, parece haver menos crença e o labirinto de passos e toques sugere que não há ousadia que chegue para dar a volta. Oxalá me engane.
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No final do jogo
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E, pronto, tal como previra, ganhou a melhor equipa em campo. Diga-se a verdade. O assombro final de Portugal não bastou para encobrir as fragilidades gerais. Mesmo tendo em conta o truque do terceiro golo alemão.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Volta ao Mundo - 22

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Foi há dez meses que a Clara Piçarra e o Miguel Sacramento partiram para uma volta ao mundo que o Miniscente tem acompanhado... passo a passo. Hoje, a crónica chega-nos da Tailândia. Mas fala - e de que forma - da tragédia da Birmânia:
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"A Norte. Tailândia"
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"Desfaço as minhas guerras com as mãos. Com a fragilidade de um pensamento, separo cada fio como se fosse a minha vida. Tenho cinco anos e estou sozinha. Tenho apenas nada e o mundo pela frente. Sem rumo e numa terra vazia, estou entre a tempestade. De pessoas que matam sem duvidar. Separo esse fio e cresço. Fujo de mim, do meu país. Deixo as memórias sem fronteira e o espaço sem ilusão. Tenho quinze anos e estou sozinha. Não tenho vozes que me dêem a mão. Separo o calor. O medo. E as minhas coisas simples. Deixo-os passar nos meus dedos com a suavidade de cada importância. E cresço. Para um lugar que me torne em futuro, em vontade. Separo o último fio. Estou aqui. Sozinha. E sem idade.
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As "Long Neck" são refugiadas Birmanesas numa Tailândia que as aceita de braços fechados. A cada gesto cresce-nos o dilema de uma vida. Se não as visitarmos, se não olharmos para os seus anéis de tradição fechada, são obrigadas a voltar ao mundo dos medos mais básicos. Regressam ao que fugiram, às suas guerras, ao país que as matou. Mas, quando as conhecemos, há outro lado. Sem desculpa, sem palavra: não é o retrato que aparece em cada fotografia que lhes tiramos. É a alma a diluir-se sem esperança.
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Com a fragilidade de um pensamento, pego nuns fios. E desfaço as minhas guerras."
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Texto e Fotografia Clara Faria Piçarra

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Bloomsday aziago

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Hoje, dia 16 de Junho, é o Bloomsday. E imagine-se que a cisão tomou conta de um dos mais habituais eventos do dia.

domingo, 15 de junho de 2008

Bluff & Bluff

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Na língua árabe, há uma série de palavras para designar falcão. É normal que uma língua reflicta o meio ambiente em que nasceu e se desenvolveu. Por exemplo, em Português, bluff diz-se de inúmeras formas, embora quase todas rimem com ‘Pomposo’. Veja-se o metro de Mirandela que toda a gente sabe que é o rebaptizar (caro) de linhas-férreas pré-existentes. Veja-se o aeroporto de Beja que toda a gente sabe que é o rebaptizar (caro) de uma base aérea da NATO. Veja-se o ‘património mundial’ que toda a gente sabe que é um rebaptizar cerimonial (e caro) das ‘cidades-museu’. Isto para já não falar do contentamento que dá às populações ver um edifício na terra onde apareça escrita a palavra “Universidade”, mesmo que lá dentro apenas se jogue bridge ou se façam reuniões para discutir o peso de um frango. Isto para já não falar dos clubes de futebol que, à custa dos contribuintes, inflamam a praça pública para mera satisfação tribal ou regional.
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Versão completa no Expresso Online (próxima quinta-feira)

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Eu também!

A vitimização é uma peça indispensável nestes arraiais
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Eu também quero portagens mais baratas à noite. Eu também quero a majoração em 20 por cento dos custos com o gasóleo. Eu também tenho uma empresa. Eu também vivo no planeta onde houve subprime e onde o petróleo sobe como um balão incontrolado. Eu também gostava de ser um piquete com botas cardadas em todo o asfalto do país, de Norte a Sul. Eu também. E você? (não, eu nunca gostei de dizer "você"; salvo com amigos brasileiros).

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Morte

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A morte quando chega é sempre inesperada. Um mail, um nome, um. E depois segue a rememoração do que tinha acontecido 'antes'. A última vez que a vi. A última vez que com ela falei. A última vez que sorri para ela ou a última vez que me arreliei com ela. De repente, como numa cascata, tudo. Por dizer. Tão inadvertido como a mais elementar das nuvens que se eleva no céu, que ganha corpo e que, num abismado relance, já não é. Volta a não ser. E não há palavra que chegue a ter tempo para dizer que não entende. Nem tempo, nem sentido. Quando chega, já foi. Um sentimento não esboça o que poderia sentir: dilui-se logo na nuvem que o faz. E agora, daqui a uma hora, é a República Checa ou é a BP que é mais barata do que a Galp?

segunda-feira, 9 de junho de 2008

As pontes de Portugal

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Um dia de novo invadido pelo pranto que se esconde nos reversos do espanto solar. Ambiente generalizado de férias: é essa a aura da função muito pública que faz Portugal ser um país matreiro. Fintar no relvado e fintar na vida. Circular, conjecturar e conjurar com pequenos truques, breves devaneios. Também é assim na poesia: enredada e nem sempre clara, embora, quando parece sê-lo, se torne tão transparente quanto a trave da baliza nos antípodas luminosos dos pés de Cristiano.

domingo, 8 de junho de 2008

Curiosidades do Europeu - 1

BKC
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Até agora, as selecções mais toscas foram, curiosamente, as dos países mais organizados. Onde tudo já está feito: do canteiro à música no coração. Áustria e Suíça espelham esse desprazer de conviver com uma bola e de a ver brilhar. Já o caso alemão é bem diferente. Note-se que a Alemanha nunca espanta. O que fica é a imagem dum exército quase monótomo, duma abertura operática ou dum aforismo de Nietzsche onde o que bate certo é o alinhamento poderoso e a eficácia do ritmo. É o quanto basta. Talvez por isso, a Polónia - que nunca venceu o marciano vizinho e ocidental - tenha hoje preferido hibernar a jogar. Neste concerto dos deuses chamados nações, a Croácia apareceu em cena como a silhueta de um litoral cansado, exausto e saciado de tanto peso recente: a história de um país não é, de facto, a história de uma intermitência. E isso acaba por notar-se, mais cedo ou mais tarde. Cristalinamente. Por fim, a questão nacional. Seja como for, só se pode falar de Pessoa, Crsistiano, António Nobre, Nuno Gomes ou Garrett, se nos referirmos ao colapso Otomano. Já lá vai o tempo em que o lago mediterrânico, de Argel a Istambul, era o lago do grande Levante imperial. Em Genebra, os turcos não atacaram, nem fizeram eco da sua épica. Pareciam segredar que os deixassem em paz. O excelente labirinto do passe lusitano ajudou, e de que forma, a uma Lepanto serena, suave e sem sangue. Como se fosse pura predestinação. A diáspora portuguesa ajudou (Pepe, Deco, etc.) e soube encontrar no canto coral da crise a receita certa para um Verão tranquilo. Um samba de santos populares com campinos bamboleando entre silvas, canaviais e casas suíças com leões e aguiazinhas de latão. Um brinde tauromático e tão repentinamente descontraído que fez lembrar Vilarett à solta no encanto da sua Procissão.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Pobre humor

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Grassa hoje em Portugal um humor que diz a si próprio que tem que ser humor. 'Ter que': eis o leitmotiv de uma arbitrariedade cega que leva a palavra a forçar, a impingir e a bater na parede como um autocarro sem travões. O que sobra da fuga para a frente é sobretudo piedade pelo esforço destes novos nómadas da expressão. Um vazio feito de imperativo é bem pior do que um vazio feito de inocência.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Uma partilha de quatro décadas

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(clicar em cima da imagem para aumentar)

Florbela Espanca e Amy Winehouse

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Upload, download, carregar imagem ou texto: eis uma linguagem tão ou mais corrente do que a água do dia-a-dia. Há uns tempos - tempos que cabem na minha memória -, a equivalência a estes termos encontrar-se-ia em palavras como albarda, carruagem ou telefonia.
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A diferença estabelece-se em dois aspectos: o primeiro evidencia o rústico (modo menos tosco de dizer "local") e faz-se contrastar com a repetição global; o segundo evidencia a ideia de processo (algo em curso num trajecto que se apresenta quase como instantâneo) e faz-se contrastar com a ideia de dispositivo fixo e adaptado a uma função determinada.
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Em termos expressivos, estas lógicas afastam-se de tal modo que as podíamos comparar à diferença entre o queixume adjectivado da Florbela Espanca e o fluxo suicidário de Amy Winehouse. Entre o beco sem saída do soneto e o encanto abismado e errante em 3D da televolúpia. Entre um torreão de Vila-Viçosa e uma mão cheia de bits que ilustram aquela carinha fantasmática (ali mais em cima).

sábado, 31 de maio de 2008

Pergunta de fim de Maio

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Tarde despovoada. A luz baça e imprópria para as vésperas de Junho. A rosa contra a alvenaria ruída: como se fosse um poema visual a rebentar entre a rudeza da pedra, a memória da cal e o submerso mastro da cor. Olho e escrevo. Sumariamente. E que diferença se entreabrirá nesta espessura que liga a tona da água à margem que a contém?

quinta-feira, 29 de maio de 2008

O grande alívio (act.)

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Às vezes, quando relembro uma sessão pública onde estive e falei, sou levado a utilizar (para mim ou para quem me ouve) a expressão: "Vi-me a dizer...". Ou seja, é como se, espontaneamente, desenterrasse, não a verdade, mas um fio indescortinável que me conduziria a revelar qualquer coisa. Assim mesmo, à moda da espeleologia.
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Ontem, num debate sobre escrita e literatura (foi esse o tema que acabou por desenvolver-se a partir de uma abordagem inicial sobre escrita criativa), "vi-me a dizer" que o mundo moderno ocidental foi atravessado por três vagas espessas de escrita literária: a romântica (uma interrogação livre, generalizada e por vezes mística sobre o homem), a realista (uma focagem da vida protagonizada pelo homem à luz das suas novas codificações com destaque para a, às vezes ilusória, noção do "progresso") e a monumental (a reacção em cascata à linearidade do moderno, concebida no pós-Primeira Grande Guerra Mundial, ainda, portanto, no universo e no tempo do livro: Joyce, Proust, Woolf, James, Kafka, Mann, etc.).
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Após estas três vagas, ter-se-iam seguido as desmontagens e as especificidades no próprio terreno da literatura (o feérico on the road ou o estigma do nouveau roman, por exemplo). Depois, a imagem - a mitologia televisiva, sobretudo - viria a ocupar, a pouco e pouco, a referencialidade do que antes havia sido a centralidade da expressão literária. Mais tarde, as imagens (já no plural e à moda de pixels), fundidas com a hipertecnologia e com o desmembramento das regras e ideários fixos - e dicotómicos -, acabaram por estruturar a nossa vida... relegando a literatura para um local de nicho (foi uma travessia rápida, esta última, entre o fim dos anos oitenta e o início do nosso século).
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Passaram, pois, milénios em décadas apenas. Ou seja: se para o homem medieval não havia sequer a distinção entre o 'literário' e o 'não literário' (tudo era afinal "Escritura"), para o homem actual deixou de haver um problema em torno da literatura. Que grande alívio, dir-se-á. Por outras palavras ainda: sempre que hoje leio uma ficção em livro, nunca sei se a literatura está a passar por ali, ou se aquilo é já um exemplo - mais um - de um território de onde se apearam, para sempre, fronteiras, géneros e expressões definidas (estou a lembrar-me da curiosíssima apresentação da obra de Gonçalo M. Tavares, tal como surge nos seus próprios livros).
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Eu gosto de um mundo assim, rasgado na tentação da permanente descoberta; e não baseado no assentimento prévio e dado. Atrai-me mais a multiplicidade e a interrogação e menos as sacralizações e todas as sublimações (ideológicas, literárias ou outras) que as sucederam. O mundo, tal como o entendemos hoje, já não é o mundo em que Aquilino, Torga ou Vergílio Ferreira eram ouvidos como dignos senadores do nosso imaginário. Um alívio para eles. E também para nós.
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p.s. - Em tempo de crise, há reflexões que servem para nos confirmar que (mesmo em campos exteriores à procura global do crude ou aos impactos do subprime) passámos realmente a viver num universo sem quaisquer receitas paternalistas. O alívio que tal pressupõe é, também, por outro lado, uma imensa importunidade. Nesta novíssima corrente de ar, joga-se essencialmente a liberdade. A capacidade de inventar. Um desafio que os românticos já haviam colocado na ordem do dia, por vezes com sadia ingenuidade.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

A angústia silenciosa

e
Um Maio que devia ter vergonha de ter existido: cinzento, frio e chuvoso, limitou-se a relembrar outros Maios e a fazer subir, sem fim, o preço dos combustíveis. Quando a Primavera chegar, talvez escreva um post sobre a imprevisibilidade da angústia: é disso que trata o que tratamos por tu, quando dizemos a palavra "crise". É que a palavra, agora, entrou realmente em cena e deixou no estado do tempo o bode expiatório.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Volta ao Mundo - 21

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Há cerca de nove meses, a Clara Piçarra e o Miguel Sacramento partiram para uma volta ao mundo que o Miniscente tem acompanhado... passo a passo. Hoje, a crónica chegou do Laos:
se
"Laos"
sse
Há.
Tanto.
Para.
Contar.
Escolho pequenos pedaços. Histórias que já existem e só esperam transcrição. Em cima da mesa estão elefantes e um rio; a selva e uma aldeia castanha; monges descalços e uma terra sem luz. Mas está também outro pedacinho. Muito pequeno. Quase um segredo. É esse que escolho.
Agarra o filho pela mão e corre. Ignora o som que cai do céu. Concentra-se no caminho. A floresta, as árvores, as folhas abrem-se. Desviam-se num sacrifício quase humano. Para o deixar passar. A correr. Com o filho pela mão. Sabe que está perto. Cheira a segurança. Acelera o passo para avançar o tempo… e chega. A escuridão cega-o. São as mãos que o orientam. Um frio rochoso atravessa-lhe os dedos, os braços, congela o medo durante segundos. Pressente que não estão sós. Senta-se. Espera. É no instante que alguém acende um fogo que desaba. A gruta é gigantesca, gelada, feita de sombras, de silêncios… e de olhos. Centenas. Assustados, velhos, cansados. Reconhece cada um. São os olhos da sua aldeia.
Pousa o cigarro na mesa e olha para o final da rua de terra. Vê o seu filho a agarrar a mão do filho. Caminham devagar, sem pressa, sem fuga. Não consegue evitar a recordação. Do dia. Daquele dia. Porque foi o primeiro. Nas vezes seguintes, quando fugiam do céu que caía, já sabia para onde ir, já conhecia o sabor dos insectos, das aranhas, da fome. Já sabia que seriam menos os olhos que veria. Sabia. Hoje o perigo vem do chão. Gostava de saber voar.
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(o Laos foi o País mais bombardeado do mundo. Prevêem-se cem anos para que se torne seguro. Foi o lugar mais puro onde já estive)"
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segunda-feira, 26 de maio de 2008

Episódios e Meteoros - 85

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Mann, Viconti e o caso Casa Pia
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(crónica publicada desde quinta-feira no Expresso Online
ver também no meu Blogue de crónicas)
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Há uma dúzia de anos, Eduardo Prado Coelho foi convidado a escrever um dos textos mais marcantes do projecto de Leonel Moura, “Portugal Século XX - 50 rostos para uma identidade” (patrocinado pelo Público). A personalidade acolhida pelo ensaísta foi Herman José a quem então foi atribuída a rara capacidade de “teatralizar o quotidiano”, o “estupendo sentido de metamorfose” e a “desenvoltura irreverente” sempre “capaz do golpe de génio e da invenção mais improvável”. Prado Coelho concluía referindo que Herman José se tinha tornado “numa personalidade central da vida portuguesa, talvez a mais famosa” (entre as que tinham uma dimensão nacional).
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O mais curioso é que entre os dois grandes actos falhados do milénio português, ou seja, a saída de Guterres (por causa de um pântano sem fim) e a saída de Durão Barroso (por causa de uma luz sem fim que ardia na Grand Place) tudo mudou. Não foi apenas Herman ou Carlos Cruz que, de modos diversos, viriam a cair em desgraça, mas toda uma engrenagem até hoje pouco desvelada. E quando escrevo a palavra “engrenagem” não me refiro apenas a fait divers sujeitos à exaustão mais pérfida.
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Não me estou, por exemplo, a referir à fusão a frio entre Ferro Rodrigues, a “teoria da cabala” e a suma recompensa no altar da Unesco. Não me estou, por exemplo, a referir à saída de Paulo Pedroso da prisão e ao êxtase vivido no Parlamento, naquilo que terá sido o momento mais abjecto da Casa da Democracia, após o cerco de finais de 1975. Nem me estou seguramente a referir aos momentos mais negros da blogosfera (o blogue “Muito Mentiroso”), ou às tricas (por vezes paródicas) entre Santana e Sampaio que acabariam em clímax cinco dias após o início do julgamento do caso Casa Pia, no Tribunal da Boa-Hora (25/11/04).
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Quando soletro muito devagar a palavra “engrenagem”, estou sobretudo a tomar consciência de que muito mais mudou. E de modo particularmente vincado. Tive a plena consciência desse facto, quando, no sábado passado, revi o clássico Morte em Veneza de Visconti (1971), baseado na obra homónima de Thomas Mann (1912). Devo dizer que este filme se cruzou intensamente com a minha vida, nas décadas de setenta e oitenta, e que um dos meus primeiros romances (o terceiro: No Príncípio era Veneza – 1990), escrito em boa parte no local da cena, imaginava, entre outras coisas, uma segunda rodagem do filme. E declaro, desde já, para os devidos efeitos, que a intensidade da obra de Visconti tinha, à época, a sua origens em vínculos estéticos puros e em nada mais.
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Com efeito, o sublime e o arrojo estético de Visconti bastavam para absorver e emocionar quem, há uns anos, mergulhasse nesse filme. E jamais as atracções platónicas entre um homem mais velho e um menino pré-adolescente se traduziram no modo permissivo (ou ‘não permissivo’) de encarar o que passou a topoi no pós-caso Casa Pia: a pedofilia. Quer isto dizer que a engrenagem cultural mais profunda trouxe para o mainstream o que antes se ofuscava radicalmente, dando novo significado ao que até aí era arte pura. É por isso que o Morte em Veneza de sábado passado deixou de ser o que era. Confesso que não fui capaz – pela primeira vez – de ver o filme como antes o via. Ninguém, de facto, resiste aos julgamentos do seu tempo. Nem Herman, nem Prado Coelho, nem eu, nem ninguém.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Um tumulto sereno

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Mais um dia chuvoso quase no final de Maio. Presságio inquieto. Lembro-me, no entanto, que o dia de abertura da Expo 98 foi tempestuoso. Muito vento e chuva, tal como aconteceu ao longo desta noite. Nem sempre a memória guarda o que menos interessa, mas, à mínima necessidade de socorro, eis que logo aparece, cintilante, à moda de uma borboleta oriental. E operática. Nestes dias em que a existência parece estar de viés - um niilismo embaciado e sem rosto - adoro descer a Calçada da Estrela. É o que vou fazer já a seguir. Presságio perfeito: irrequieto, sem resposta. E tão pessoano.

Design

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Já se pode ler a minha entrevista ao Reactor onde digo tudo aquilo que penso acerca do design. Enfim, "tudo" significa o que está aquém do imponderável. Já não é mau.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Estranho Maio

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Feriado. Sento-me no pátio e leio o jornal como não fazia há muito tempo. Ritual na primeira pessoa dito em segredo neste espaço. Como era diferente o Miniscente há cerca de cinco anos, quando começou! Olho para as rosas e conto-as. São muitas dezenas, talvez mesmo centenas. Suspendem-se do passadiço, prendem-se nos arames entre varandas, escalam pelos ramos das heras, circundam o poço, abraçam o corrimão da escada em caracol, atam-se às folhas largas dos jarros, ruminam entre azulejos magrebinos e silenciam sem piedade a cor onde respiram: muito vermelhas, quase luminosas, ou, tão-só, de modo ameno, fundindo-se na cor que lhes dá o nome. Rosa, rosa puro. É assim o meu pátio: uma assunção fecunda e excessiva de roseiras amalgamadas entre a já conhecida ameixoeira e a novíssima nespereira que, em apenas um ano, nos deu uma óptima criação: sumarenta, doce e farta. A relva revolta e sem estar cortada, como deve acontecer nos recantos mais hilariantes do paraíso; a pequena laranjeira siderada, entre ramos de alecrim, como deve acontecer nas margens mais desejadas do Mediterrâneo; e o cão Ulisses, gordo e da cor do caril mais escuro, deixando voar o olhar entre esta teia prolixa de verdura e cor. Como se a Primavera, neste ano tímido, já tivesse chegado, solar, contagiosa e excessiva. Agora, bem agora... vou trabalhar.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

O ciberpatriotismo nas directas lusitanas

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Leio a última crónica do Paulo Querido no Expresso Online e não consigo deixar de sorrir com as revelações sobre o domínio “pt”. Repare-se: “…o domínio pedrosantanalopes.pt está virgem e disponível pela módica quantia de 26 euro”. Segundo registo: “…O domínio manuelaferreiraleite.pt foi registado no dia 22 de Abril de 2008 em nome de Manuela Ferreira Leite por uma empresa de advogados. Óptimo. Está inactivo, o que não é problema”. Terceiro registo: “O mais curioso é que os domínios pedropassoscoelho.pt, passoscoelho.pt e passoscoelho.com continuam livres à hora de edição deste artigo”. Dados que falam por si.

domingo, 18 de maio de 2008

Kant, Benfica e a interacção

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Hoje... vi-me a escrever um comentário, em processo de @Learning, que rezava o seguinte: "Referir ou citar blogues com os quais se traçam laços afectivos tem sempre todo o sentido. Sobretudo porque a individuação se releva logo de outro modo. As empatias são formas de contágio muito activas na rede, local de respirações onde, como se sabe, se vive de interacção e não da contemplação passiva e desinteressada (tal como Kant defendia na Crítica da Faculdade do Juízo)". Fiquei a pensar nesta longa viagem de 218 anos entre o desinteresse e o interesse, entre a dicção sublime e os frutos mais banais da interacção, ou entre a vontade de certeza e a sadia dessarumação da casa. Coisas de domingo à tarde, já se vê. Para mais num dia em que nem sequer há futebol. Para mim... só há bola, quando há águias em jogo. O que é que querem? É o resto da minha alma iluminista.

sábado, 17 de maio de 2008

Episódios e Meteoros - 84

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Saramago e Pinto da Costa: o mesmo mito
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(crónica publicada no Expresso Online desde quinta-feira;
ver também no meu Blogue de Crónicas)
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Os mitos não são coisas do passado. Tal como as nuvens, os mitos estão sempre a reaparecer e a transformar-se. E nem sempre são encarnados por personalidades previsíveis. Por outras palavras: a mitologia passeia-se melhor em protagonistas vincados, polémicos e que dividem rebanhos como quem pega fogo a metade do mundo. O mito nada tem que ver com a razão, nem tem um rosto fixo que possa ser descrito de alto a baixo. No entanto, as pessoas precisam de mitos como o mar precisa das suas espécies. E eis como o que aparenta ser distante e mesmo irreconciliável se torna, na arena dos mitos, como algo que se aproxima quase intimamente. É por isso que Saramago e Pinto da Costa são, de algum modo, pilotos da mesma nave. Vejamos porquê:
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Fantasias históricas
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Toda a performance de Pinto da Costa é atravessada por uma pretensa questão fundacional: como se a “História” fosse uma régua rigorosamente linear, o Norte impor-se-ia ao Sul mouro e as virtudes originais de um contrastariam com as corruptelas da arraia menor (conquistada) do outro. Uma rivalidade fantasiosa que só é vista e entendida no lado de quem a imagina. No caso Saramago, a questão postulada é a ibérica. Não a Norte-Sul e fundacional, mas a que perpassa a sobrevivência do país ao longo de séculos. Para os patrioteiros e para os continuadores doentios do tempo dos “Vencidos da Vida”, a fractura voltou a expor-se. Quer Saramago, quer Pinto da Costa adoram expor as fracturas. Com grande ostensão. Diria mesmo: com algum exibicionismo.
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Apego tribal
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À ideia seminal de região, no caso de Pinto da Costa, corresponde, em Saramago, um outro tipo de região: a ideológica. Uma e outra são esquemáticas, razoavelmente a ‘preto e branco’ e tendencialmente viradas para a criação de exclusões naturais. Há sempre os “de fora” e os “de dentro” do campo que é apregoado. Um tal maniqueísmo entre os que estão “contra” e os que estão “a favor” é o alicerce, para não dizer a essência, de ambas as mitologias.
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Ressentimentos vários
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No caso Saramago, foi a idiotice de um governo de Cavaco que lhe deu o pretexto para a queixa sem fim. Precisa dela como água no deserto. Questão de marketing, como se diz em certos meios. No caso Pinto da Costa, a questão é mais endémica: o modo de afirmação do dirigente portista tem como base a necessidade de demonstrar que consegue superar uma perseguição também sem fim. E o objecto perseguidor pode variar, embora tenha que ser omnipresente e todo-poderoso: os media, Lisboa, a justiça, etc.
E
Domínio dos meios
E
‘Não olhar a meios’: eis um lema muito repetido. No caso do mundo futebolístico, a procissão está sempre no adro e a disputa passa por todo o lado e não apenas pelo relvado. Tudo e todos, incluindo a inércia dos tribunais, legitimam este perene estado de coisas. Em Saramago o lóbi é mais sereno… até porque a literatura se vê a si própria – agora já vai acontecendo menos, felizmente – como algo quase sagrado. Um nobel só é nobel por denotar inevitáveis qualidades e, também, por se inserir num imenso mar de influências. Nem sempre essa influência coincide com a arbitragem certa, mas avizinhar-se-á dela. Resumindo: quer Pinto da Costa, quer Saramago são hábeis nos tabuleiros dos respectivos jogos. Habilidades que transcendem (e de que modo) a natureza dos próprios jogos jogados.
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Mitos do amor
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O clímax destes vários paralelismos, caro leitor, está, de facto, na tradição mais fecunda da espécie. Repare-se: se Saramago herda o mito do amor eterno, cortês e nobre (o tabu de Inês de Castro vs. Pilar – ambas ‘não portuguesas’ – é evidente), já os folhetins de Pinto da Costa, que incendeiam o país com um fogo mais visceral e menos subtil, reflectem a tradição medieval de uma cidade onde a nobreza não podia entrar (salvo com autorização especial): o Porto. De um lado, o amor proibido e imposto como destino; do outro lado, o amor errante e popular… imposto como forma de inconformismo e de irascibilidade.
EDR
Enfim: dois Portugais, mas os mesmíssimos mitos. A mesma respiração transfigurada.