O Luís e a Charlotte tinham toda a razão. E eu no fundo sabia disso, mas ia paparicando a mais doce e delicada das esperas. A verdade é que a realização tinha andado, afinal, a entreter os meus demorados sonos apenas para preparar terreno para o grande repto, ou melhor, para o rapto fortuito e violento que acabou por tomar conta do episódio de ontem. Entretanto, nos antípodas, Nate ficou a entrever incêndios solitários e Claire, beyond everything (excelente!), fez das suas incompreendidas imagens a tranquilidade que Rico podia um dia ter tido, se não fosse gentil cordeirinho de um deus realmente menor. De resto, a mãe de Brenda continuou mais uma vez a excitar os magalas de Conceptión, a caixeira do bairro ficou em transe com o almejado e prometido jantar e, por fim, o recém-pseudo-xerife da casa, em conformidade, lá abandonou a cozinha irado. Em fogo, mas de certeza fátuo. Se eu pudesse ter baptizado o episódio de ontem tinha-lhe chamado, muito camusianamente, A Queda.
terça-feira, 31 de maio de 2005
O Luís e a Charlotte tinham toda a razão. E eu no fundo sabia disso, mas ia paparicando a mais doce e delicada das esperas. A verdade é que a realização tinha andado, afinal, a entreter os meus demorados sonos apenas para preparar terreno para o grande repto, ou melhor, para o rapto fortuito e violento que acabou por tomar conta do episódio de ontem. Entretanto, nos antípodas, Nate ficou a entrever incêndios solitários e Claire, beyond everything (excelente!), fez das suas incompreendidas imagens a tranquilidade que Rico podia um dia ter tido, se não fosse gentil cordeirinho de um deus realmente menor. De resto, a mãe de Brenda continuou mais uma vez a excitar os magalas de Conceptión, a caixeira do bairro ficou em transe com o almejado e prometido jantar e, por fim, o recém-pseudo-xerife da casa, em conformidade, lá abandonou a cozinha irado. Em fogo, mas de certeza fátuo. Se eu pudesse ter baptizado o episódio de ontem tinha-lhe chamado, muito camusianamente, A Queda.
Folhetim em doze episódios
DÉCIMO SEGUNDO (E ÚLTIMO) EPISÓDIO
(A investida)
Era uma recta comprida e Maia acelerou. O lusco-fusco invadira o empedrado incerto, a vista das bermas e a névoa rasteira agora a espalhar-se para os lados do abismo. E foi a meio da recta que o vulto apareceu a correr, vindo da sebe escura e soturna. Veio a correr e parecia uma mancha desalinhada, em ziguezague, com um único olho gigante de cor vermelha e sanguínea, no meio do breu mais inconsolável. E diante do imenso animal, Maia teve que travar, travou, reduziu as mudanças, gritou e o embate foi terrível. Sob o lado esquerdo, o automóvel ficou encostado ao murete que dava para o precipício. Um pouco à frente, menino da sua serra, o animal jazia morto, de patas para o ar, uma verdadeira poça de sangue a escorrer sobre o traço contínuo do empedrado.
Com ímpeto invulgar, como se tivesse acordado da sonâmbula aventura, da imprevista escalada, da ilógica viagem, Maia saiu do carro a correr e foi verificar, quem sabe, se o javali morrera. Rui abriu a porta do carro, uns segundos depois, e ficou atordoado, adormecido, amparado no retrovisor direito. Foi nessa altura que o javali, num último fôlego, num derradeiro esgar, repôs a máscara da vida e investiu sobre Maia que estava ajoelhada por perto.
Rui nem teve tempo de reagir. O sangue, não se sabe se do Javali, de Maia, ou de que espantoso animal, gravou-se no vidro do carro. Um ruído seco e breve. O estilhaço da dor. Um instante, uma luz no meio da escuridão. Talvez a fotografia da iniciação. O esguicho terrível. E Rui, inerte e gelado, apeado de si. De tudo.
E o cheiro denso da balsamita a celebrar os ares da montanha. Um capricho inexplicável. E era como se o destino tivesse acordado com a viagem. E era como se o destino acordasse, de vez, para a única viagem.
segunda-feira, 30 de maio de 2005
Dire NON À soi même comme un autre.
Eu diria antes que a França já desapareceu há muito, sob a sua própria e recôndita lenda. Mas os franceses ainda não se deram bem conta do saque secreto que contra si praticaram. Como se fossem seres de outro mundo e ninguém já os compreendesse na sua altivez sem altura.
Folhetim em doze episódios
DÉCIMO PRIMEIRO EPISÓDIO
Até que surgiu a recta que tinha aproximadamente cinquenta metros. Faltaria menos de um quilómetro para atingir o mirante. O desejo.
(Tudo se passa entre a concórdia e a traição - pensou Rui, depois de tudo ter já acontecido).
(Apenas um dom. A romagem do espírito que chega calada até ao momento em que nos vimos frente a frente. Um carro para os dois. O absurdo. Nunca nos tínhamos visto. E estávamos ali como se tivéssemos acedido à imortalidade. Esperávamos um sinal. Qualquer coisa. Um automóvel é um bem, um luxo, mas nunca pensei que fosse um sinal providencial. Porque um carro atravessa o espaço da mesma maneira que um milagre se atravessa na imaginação. Continuamos face a face, os dois, diante do mesmo automóvel. Cada um com a sua chave. Chegámos ao parque, ao mesmo parque, à mesma hora. Tentámos entender que só nós, apenas nós, nos dirigíamos ao nosso próprio carro e que mais ninguém poderia, à mesma hora, dirigir-se àquele carro que é e era o nosso. Mas, naquele dia, aconteceu. E isso foi um dom. O dom. Rumámos, depois, a bordo de um silêncio e de uma confissão sem qualquer explicação. Éramos como que um episódio barroco que leva o movimento a despertar as realidades e não a realidade. Única. E entre elas, entre as várias realidades do mundo, algo acabou por despertar o que vivemos a dois por breves horas. E por isso, juro, viajámos em direcção ao ponto mais alto, à quimera de um degelo superior, onde Deus nos pudesse esperar. E nós com Ele, de braço dado, com uma imperial ou com um imenso charuto na mão, a partilharmos a mais inenarrável das brincadeiras. E vi-me a mim e a eles, a Rui e a Deus, de mão dada a corrermos sobre as nuvens do crepúsculo, nesse istmo em que as curvas da vida adivinham a derradeira recta e, com ela, o nevoeiro rasteiro, a amarga espera pelo miradouro do desejo proibido que nunca mais veria. Aquilo já era uma espécie de redenção a antecipar-se ao cume anunciado. Ainda o mundo e a vida eram a imagem da ignição de um mesmo veículo disputado por dois seres humanos que se amavam e traíam, sem saber. Eu, a inventora da vacina maravilha, da vacina mágica e ele um homem de leis que faria inveja ao seu colega de barbas que leu os mandamentos da lei de Deus. Vejo-o agora sentado na nuvem azulada do fundo, entre dois lampadários feitos de semente e caules de balsamita. Um verdadeiro dom, esse encontro, esse magno prazer de ter existido na escalada da grande montanha, da desmesurada falésia. Até que. Até que surgiu a recta que tinha aproximadamente cinquenta metros. Faltaria menos de um quilómetro para atingir o mirante. O desejo. - pensou Maia, milionésimos de segundo antes de tudo ter acontecido).
Próximo e último episódio: "E o cheiro denso da balsamita a celebrar os ares da montanha. Um capricho inexplicável."
domingo, 29 de maio de 2005
E o que dizer deste actualíssimo poema de Ibn Sâra de Santarém (m. 1123)?
Final de um panegírico, queixando-se dos impostos
Desde o momento em que passaste pela sua mente,
vejo que a nobreza, apaixonada,
te segue pelos vales do temor de Deus,
e vai ao teu encontro dizendo “Vem a mim !”,
como a jovem a quem o seu amigo faz sofrer.
Também eu, para me dirigir a ti,
passo ao largo entre as pessoas
sem visitar nobres ou plebeus.Venho queixar-me a ti
- e não é vergonha um enfermo
querer curar as suas dores e queixar-se:
os impostos levaram
a juventude da minha cabeça
que chora cada vez que luz
o sorriso dos cabelos brancos,
e os meses em que os juros
vencem os seus prazos
me deixam posto a nu por completo.
A lua já não brilha diante destes meus olhos
que, com os primeiros cabelos brancos,
ou com o peso dos dirames, se forjaram;
ao ter que pagar os impostos, pareço cintilar e por isso
maldigo o firmamento e as estrelas.
(tradução de Teresa Garulo, sendo minha a fixação da versão portuguesa; Proj. Práxis nº2/2. 1/CSH 7750 795)
As abstracções também me inquietam. Não apenas a "humanidade", mas por quase igual motivo a "natureza humana". Elas, e outras da ordem do divino ou do ideológico, podem sempre legitimar um imponderável aceno de intolerância.
sábado, 28 de maio de 2005
A braseira - VI
Quando partiram,
o violento siflar do vento frio
divertia-se com a chama, jovem
de rosto descoberto, hábil,
que, com sua fugitiva meditação,
procurava o destino da fonte
e as cores do pudor;
brilho dourado que, na obscuridade,
com o seu fogo sem fumo,
se assemelhava ao relâmpago
que golpeia a nuvem diluída em chuva.
Quando sobre as chamas o zéfiro sopra,
o cavalo oscila como uma víbora,
ao sentir os freios na boca,
e parece guardá-los dentro do seu peito
quando o temor da separação
(se) aninha no meu.
sexta-feira, 27 de maio de 2005
Eis, hoje, o Fragmento nº 3 da "'Abduniyya" de Ibn 'Abdún de Évora (1050-1135):
Vão afligindo a noite sem dela se vestirem, por mais comprido que seja o seu manto perfumado de almíscar.
2
Levam consigo um ovo branco abrigado pelo covil que, por amor, como se fora ninho, seus corações esboçam.
3
Entre eles, os corvos das trevas sacodem as penas húmidas das asas e a penugem do peito.
4
Quando se afastam do ventre da noite e seguem para as espáduas do dia eleva-os forte rectidão
que é grande em verdade.
5
Se o medo os agitasse, levantariam as trevas como adaís, e levantariam os ventos como cavalos.
Parabéns aos sulistas, benfiquistas e liberais!
E... sempre gostei de Jaquinzinhos.
(Disse alguma coisa mal?)
Folhetim em doze episódios
DÉCIMO EPISÓDIO
(O mar de escuridão)
Rui e Maia estão ainda de pé, no parque de estacionamento, em frente ao automóvel fechado. Cada um com a sua chave na mão.
Quando Maia coloca o ramo de balsamitas sobre o tejadilho, o alarme dispara. Rui, de imediato, fecha e abre o carro com o controlo remoto, num gesto repentino, rápido, para que o alarido da sirene se silencie. Maia olha nos olhos de Rui, paralisada. E fez-se então luz. Sem palavras, Maia dá a volta à risca amarelada, em forma de rectângulo imperfeito, e entra no lugar do morto. Como que petrificado, Rui senta-se ao lado e põe o carro em movimento. Já saem da cidade em alta velocidade, rua após rua, como se o arrependimento pudesse, naquele momento ímpar, ser a larva mais desventurada que impedisse a inusitada aventura que já estava em marcha. E a serra surgiu como o destino viável, fiável, tendo-se a escolha, ou o livre e espontâneo curso do volante, antecipado ao arbítrio acordado, isto é, à decisão. Era como se o destino acordasse com a viagem, era como se o destino acordasse para a viagem.
Até à derradeira falésia.
São quase oito da noite, os últimos raios de sol a espalharem-se pela esfera líquida dos ares. A penumbra da via láctea a emergir do nada. Os uivos ao longe. Os raros ramos das últimas árvores estriados pelas audaciosas brisas. As curvas e contracurvas até ao augurado mirante proibido. As bermas de terra vermelha, sanguínea. As unhas de Maia como se estivessem espetadas no ramo de balsamitas, os dedos de Rui a apertarem-se cada vez mais sobre os joelhos. Os cintos de segurança como aros de um fim do mundo em movimento. E toda a história ainda por contar.
Que Maia havia sido, de facto, a verdadeira inventora da vacina contra a hepatite e contra a sida e que ninguém o sabia, nem podia saber. Que Rui era, afinal, um antigo advogado do conhecido professor Romeu e que, nem Maia, nem grande parte do planeta o sabiam, nem podiam sequer vir a saber. E, no entanto, persistia, entre ambos, entre Rui e Maia, aquela evidência íntima do olhar que deixava transparecer, na hora da verdade, uma espécie de pacto, ou de arrojada, imprevista e mútua confiança. E o motor a soluçar, a acusar o desgaste, a retemperar toda a fadiga de tanta e tanta subida. Faltam dois minutos para as oito da noite e, da penumbra, adveio um mar de escuridão, aqui e ali mais ou menos adensada, conforme a exposição ou o recolhimento das sucessivas encostas.
Próximo Episódio: “Vejo-o agora sentado na nuvem azulada do fundo, entre dois lampadários feitos de semente e caules de balsamita. Um verdadeiro dom, esse encontro, esse magno prazer de ter existido na escalada da grande montanha, da desmesurada falésia.”
quinta-feira, 26 de maio de 2005
Frits Bolkestein declara hoje no matutino de Amesterdão, De Volkskrant, que a vitória do "Não" em França e na Holanda não significará, por si só, a entrada da Europa "numa crise profunda", ou coisa parecida. Contra tal dramatização, Bolkestein conclui de modo frio e preciso: nesse caso, "continuaremos em frente, tal como estamos agora a trabalhar, nomeadamente de acordo com o estipulado no Tratado de Nice".
Ponto da situação: abstinência discreta, acompanhada de visionamento e leitura bastante atentos.
Oxalá venha a pagar 42% de IRS. É o meu primeiro desejo para 2006.
Oxalá cobre muitíssimo IVA e consiga deduzi-lo integralmente, trimestre a trimestre. É o meu segundo desejo para 2006.
O terceiro desejo reparte-se noutros três viçosos oxalás:
Oxalá continue sem fumar, o que já se passa desde 7/3/1997 (foi às 23 h. que fumei o último e estava iniciando uma gripe);
Oxalá não descubra imprevidentes poços de petróleo sob a novíssima laranjeira que cresce aqui no pátio;
Oxalá não me torne nunca num funcionário público lusitano (fumador fui, mas erva daninha com 65 anos de validade… isso jamais!);
Oxalá.
Folhetim em doze episódios
NONO EPISÓDIO
(Quase se fez luz)
Por cima da derradeira falésia, antes do último troço a percorrer que é coisa de dois sinuosos quilómetros, já é visível, a olho nu, o espectro da antena esbranquiçada que marca o lugar do mirante por todos desejado. Quem sabe se, por isso, o tenham, um dia, baptizado como proibido, inacessível, nefasto, aziago. Mas, no fundo, sempre desejado. Na terra da infância de Rui, havia uma ladeira chamada da Boa-morte e, na aldeia natal de Maia, existia um caminho antigo a que chamavam o Trago do homem morto. E, no entanto, jamais a boa lua deixara de alumiar esses lugares, em dias frios de equinócio ou solstício, em dias de mau presságio, ou em dias de auspício duvidoso. Para ambos, tudo, mas tudo havia sido terra benzida pelos deuses mais antigos e pelas lendas e fábulas que, em tempos de ouro, traduziam aos homens as boas acções, as dignas posturas e os bons exemplos da vida.
Rui e Maia não o terão confessado um ao outro, mas entenderam-no por um qualquer mistério que se entreabriu nesse lapso que o olhar deixou transparecer, na hora da verdade. Na hora em que o mistério aclarou a sua própria dúvida e a luz se fez. Na hora em que a compreensão se resumiu a umas quantas opções subitamente disponíveis e evidentes. E foi então, sem palavras, esquecendo mesmo encontros marcados e viagens agendadas, que Rui e Maia terão entendido que aquele pico, aquele cume da derradeira falésia não era senão o destino mais provável de uma coincidência e de uma remota cumplicidade que, apesar de - quem sabe ? - provocadas, reflectiam o fruto de um perturbador reconhecimento e de uma concórdia de espírito, no mínimo inexplicável. Fizera-se luz e a montanha, por dádiva singular, acompanhara-a.
Próximo Episódio: “A penumbra da via láctea a emergir do nada. Os uivos ao longe. Os raros ramos das últimas árvores estriados pelas audaciosas brisas. As curvas e contracurvas até ao augurado mirante proibido”
quarta-feira, 25 de maio de 2005
Folhetim em doze episódios
OITAVO EPISÓDIO
(Ainda o mistério do carro)
- Quanto às chaves, o que ele me disse é que só já tinha umas, o que também pode acontecer. Aliás, isso já me tinha acontecido uma vez. E mais... sugeriu-me que fosse à marca encomendar duas chaves novas... que ele até as pagaria. Mas isso também é coisa que demora algum tempo, informei-me por telefone, sabe, razão por que ainda nem me tinha posto a tratar disso. Como vê, por exclusão de partes, a chave supostamente perdida é precisamente a que ele lhe passou para as mãos.
- Mas por que teria ele feito isto ?
- Tenho um palpite.
- Qual ?
- Veja bem, se ele a conseguiu afastar do laboratório, se lhe retirou todo o poder que tinha sempre tido, se a chegou a ameaçar e até a pôs a trabalhar na prateleira, é normal que...
- O quê ?
- Que quisesse ir um pouco mais longe.
- Está a sugerir-me que ele queria...
- Sim, que ele queria ver-se livre de si... e, portanto, arranjar-lhe, para já, umas complicações. Isto é... perturbá-la, cercá-la, sei lá. Uma coisa dessas. Isto não foi distracção dele. Disso pode ter a certeza. É a intuição que mo diz.
- De facto, hoje, nem devia ter sido eu a levar as amostras de sangue. Não era o meu dia. E é raro não haver um carro do serviço à disposição. Por que me terá ele dado este carro, porquê ?
- Não há fumo sem fogo, diz a sabedoria popular.
- O que é que quer dizer com isso ?
- Que há aqui qualquer coisa que está ainda a falhar na engrenagem. Quer que volte a guiar ? É que se está a fazer noite. E começa mesmo a ver-se mal...
- Às oito paramos e, depois, logo se vê. Já falta pouco. Vou ver se ainda chego ao alto do mirante proibido.
- De acordo. De acordo.
Próximo Episódio: “Na hora em que o mistério aclarou a sua própria dúvida e a luz se fez. Na hora em que a compreensão se resumiu a umas quantas opções subitamente disponíveis e evidentes.”
terça-feira, 24 de maio de 2005
Diz-se no Volkskrant de hoje:"Hogescholen en universiteiten moeten ten minste 96 miljoen euro terugbetalen aan de overheid."; ou seja, em linguagem católica: "Escolas Superiores e universidades terão que devolver pelo menos 96 milhões de Euros ao estado".
É preciso dizer estas coisas bem alto e depois fazer o que há a fazer. Já se sabe que a humanidade não é uma súmula de coelhinhos brancos, mas o que dá vida à democracia é precisamente esta eufonia do discurso público que não tem receio de apontar para a ferida sem quaisquer ambiguidades (por que é que, por cá, temos o complexo de ser todos primos próximos uns dos outros?)
Já é um pouco provocador pesquisar no "Google" a partir da longa palavra-chave “La Commission générale de terminologie et de néologie”. Mas mais provocador ainda é o próprio programa que logo me responde em bom português: “Você quis dizer: La Commission générale de terminologie et de neurologia”. E eu acho que o "Google", possivelmente, tem alguma razão. Os franceses, na sua larga maioria, parecem querer entrar num comboio que já está celeremente em movimento. Sem o entenderem, sem o reconhecerem e sem sequer o quererem interpretar. Infelizmente é assim. Ó Deleuze, se fosses vivo, dirias a esta rapaziada que não é criando nomes por ratio difficilis que o mundo se faz?
Do número de The Spectator que ontem recebi, há duas coisas a destacar (para além do tema da capa que se prende com os “antis” que hoje se fabricam na Alemanha: Anti-semitismo, anti-americanismo, anti-capitalismo, etc.).
A primeira é a assunção registada no artigo de Peter Oborne (“The European constitution contains some good sense. That´s why the French dislike it”), segundo a qual aquilo que é o centro do movimento do “Não” no Reino Unido, o medo da excessiva centralização, é o oposto do argumento do “Non” francês, ou seja, o medo da perda de influência na actual centralidade. Eis, em poucas palavras, como uma tradição liberal interiorizada - a inglesa - pode equivaler, perversamente, a um desejo de estatuir vertical e orgânico (à française)!
A segunda é a crítica ao livro de Thomas Friedman (The World Is Flat: A Brief History Of The Globalized World In The Twenty-First Century, Allen Lane, pp.428). A obra traça com lucidez o impacto de diversas etapas tecnológicas pós-queda do muro de Berlim (a quebra das barreiras comunicacionais com o aparecimento dos PCs, a informação digitalizada, a fibra óptica, o Internet Explorer a meados dos anos 90, os 250% de incremento da pesquisa Google por dia - 150 milhões há três anos, hoje um bilião - , etc.).
Esse impacto tem conduzido o Ocidente à especialização de bens e serviços de qualidade, enquanto os países tradicionalmente pobres se têm especializado em bens de menor qualidade mas mais baratos. Contudo, e tendo em conta a meteórica tendência chinesa e indiana, entre outras, de investimento no saber e na tecnologia (por exemplo, um dos dois centros de investigação da Microsoft é precisamente em Pequim), Thomas Friedman conclui:
“Contrary to what the zero-sum economists of the anti-globalisation movement appear to believe, we are living through a time in which developing countries benefit from leveling of the playing field, through lowered barriers and technological innovation” ( o que o autor considera ser “The flat world”).
É evidente que este quadro interessante é depois relativado com o atraso da África e do Islão em geral. Basta dizer que apenas um país dito “árabe” - não gosto, tecnicamente, da expressão - está cotado no Nasdaq. Mais: cerca de 25% de todos os alunos de origem islâmica que se formaram nas duas últimas décadas fizeram-no no Ocidente (o que não significou, por si só, a adesão a uma dada abertura, pois como se sabe, foi esse precisamente um dos esteios da criação da al-Qaeda).
Concluindo: Friedman caracteriza um mundo turbulento, mas no caminho (a prazo) de um certo nivelamento dinâmico e estimulante. Quem se limita à “cultura anti” - a chamada autofagia ocidental que vive do privilégio da liberdade que parece subliminarmente combater - prefere a fuga para a frente para melhor fingir que não vê que este mundo já não é o que era há umas décadas.
Mas ele roda.
Folhetim em doze episódios
SÉTIMO EPISÓDIO
(O mistério das chaves)
Terra de cumes e raros abetos. Para baixo, terá ficado a floresta e o primeiro leque de grandes subidas, escaladas sem fim. Memórias antigas da calote polar, glaciares, picos de morte. E aqui, neste ermo quase topo do imenso desfiladeiro, só já sobra a imensa estrela da tarde que parece querer descer para tocar com fio de seda no solitário tecto do globo. Terra de alpinistas e de rajadas frias, de erva rara, de fugas longínquas e evasões perdidas no tempo. Maia agarrada ao volante, a tentar acompanhar os ângulos quase rasos que descrevem as curvas e as contracurvas. E a escuridão a apear-se na narração da viagem, o destino do misterioso itinerário a retrair-se ante a aridez e o desmedido abandono. No cabo do espanto, no momento em que Rui levantou os olhos para a ponta da cumeada, para o extremo aguçado dos granitos já em ebulição de noite, uma enorme ave de rapina apareceu a sobrevoar. E o raio verde estendeu-se, nesse momento, ao longo da crista da serra, da cordilheira, dobrou os céus de um lado ao outro e acabou por cruzar-se com o recato do Mobilin 2000 - blue midnight. E Maia a confessar:
- Isto dos papéis continua a intrigar-me. - Rui sorriu como se detivesse, quase por passo de mágica, a solução entre mãos:
- Repare, o título de propriedade e o livrete que eu entreguei na repartição eram já segundas vias, o que é normal. Agora o que tenho aqui são estes... talões. Há sempre um tempo de espera nisto da papelada. Por isso é que os seus são da primeira via... precisamente os que ele deve ter declarado, a certa altura, que teria perdido. Pura mentira.
- E as chaves ?
Próximo Episódio: “De facto, hoje, nem devia ter sido eu a levar as amostras de sangue. Não era o meu dia. E é raro não haver um carro do serviço à disposição. Por que me terá ele dado este carro, porquê ?”
segunda-feira, 23 de maio de 2005
António Lobo Antunes dizia ter visto “Artur Semedo, a servir atrás do bigode fino a sua ironia de Capitão Blood benfiquista”.
E eu lembro os deuses que o Artur evocava nestas alturas.
Estejas em que altura estiveres, sei que sabes que ontem me lembrei de ti. E não fui só eu. Sabes quantos.
Filho do ferro acerado com que nas chaminés
se mexem as brasas a brilhar como estrelas
em trevas da obscuridade,
diz-me e não mintas:
conheces a arte da alquimia ?
Por que funde o carvão em lâminas de ouro
embutidos de madeira e prata branca ?
Sempre que a brisa ateia o fogo,
a chama envolta na túnica vermelha agita-se
e, se à volta dela aparecesses, pensarias:
“São beberrões da tertúlia que passam
entre si copos de vinho dourado”.
E quando o anoitecer abandona o véu,
surge-nos do sol um vigário
que tem o seu ocaso em plena tarde.
(tradução de Teresa Garulo, sendo minha a fixação da versão portuguesa; Proj. Práxis nº2/2. 1/CSH 7750 795)
Folhetim em doze episódios
SEXTO EPISÓDIO
(A memória a aclarar-se)
Sete e meia da tarde e o sol a pôr-se nos píncaros mais altos. Sobre o empedrado antiquíssimo, o carro segue, calcorreia caminhos, sempre a manobrar entre bermas estreitas e a deslizar, quilómetro após quilómetro, ao longo da inclinação da colina, pela ladeira ascendente, pelas sucessivas curvas cheias de marcos e ciprestes que se elevam sobre o denso emaranhado de nuvens já a obstruírem e a taparem o fundo do vale e das várzeas, onde a vida saberá a água-férrea, a caules de salmanita e a minério profundo do tártaro. Aqui, nas alturas, próximos do céu cada vez mais azul escuro, verdadeiro vestíbulo para o descanso dos deuses, a vida sabe a ar fino, a rocha magmática, resistente, roliça e, sobretudo, a vida adquire o sabor e o saber que são próprios da maior ventura dos mortais: a imaginação. Talvez por isso, Maia não tenha ainda esquecido o início da conversa:
- Voltemos ao Professor Romeu. Quando é que, afinal, o conheceu ? - e Rui esboçou um calafrio, esqueceu involuntariamente o cotovelo no assento e pôs-se, depois, a pensar durante uma infinidade:
- Foi ele quem me vendeu o carro. Foi só nessa altura que o conheci.
- Mas como ?
- Sabe, ele era amigo de um colega meu de escritório. E esse amigo é que me disse que conhecia alguém que queria trocar de carro. Era mesmo o que eu queria, isto é, um carro bom, com poucos quilómetros, quase novo, e por um preço muito razoável. Portanto, só conheci esse senhor do sobretudo, quando tratei com ele da papelada.
- E quando é que foi isso ?
- Anteontem.
- A que horas ?
- Deixe ver, eram umas duas da tarde. Lembro-me até que tive que almoçar mais cedo.
- Só não percebo por que raio é que ele me passou as chaves do carro, do mesmíssimo carro, para as mãos !
Próximo Episódio: “No cabo do espanto, no momento em que Rui levantou os olhos para a ponta da cumeada, para o extremo aguçado dos granitos já em ebulição de noite, uma enorme ave de rapina apareceu a sobrevoar.”
sábado, 21 de maio de 2005
Gostei muito da reacção à divulgação dos poemas de Ibn Sâra. Ainda que tenha sido difícil até agora publicar estas maravilhas (também não me mexi muito), acho que é chegado o tempo de as retirar da gaveta. É interessante ler os poetas que habitaram o actual território português antes de existir Portugal, embora esta poesia seja retoricamente bastante codificada e não dê, nesse sentido, grande espaço à descrição local. O que pode ser uma virtude, já agora. Aqui vos deixo outro poema do escalabitano Ibn Sâra (m. 1123):
r
Tarde no rio
Contempla este local, onde estamos !
O ar põe a nu a sua face serena
ao cair da tarde,
e leva consigo uma grávida donzela
cuja túnica arrasta a suave aragem,
ao longo de um rio de águas doces,
cristalino como um espelho,
onde o céu se obscurece.
Mu`râda de Ibn Jafâya:
Ó, como é aprazível
o júbilo do vinho na taberna.
A tarde escurece e desenha no rio
um corcel negro
que cativa sob a gualdrapa uma aragem suave.
Quando as estrelas surgem,
flutuando na água,
parece-te que o céu sente despeito
pela terra.
(tradução de Teresa Garulo, sendo minha a fixação da versão portuguesa; Proj. Práxis nº2/2. 1/CSH 7750 795)
No Volkskrant de hoje, o meu diário de Amesterdão (lembro-me de o ouvir cair no chão do corredor e, depois, de o ver a ocupar o tampo da mesa do pequeno-almoço), a melopeia do défice aparece com cristalina e desinibida exposição calvinista. Estou certo de que, mais cedo ou mais tarde, as medidas serão apenas matéria de notícia breve, estrita e pragmática. Nós por cá preferimos falar, falar, falar. É o agradável barroco do sul, mas é também a necessidade de repetir até à exaustão uma metáfora (a do “défice”) que consiga traduzir o entendimento e a conformação da nossa própria “crise”.
Leiamos, pois, o título do matutino holandês:
“Os holandeses pagam anualmente entre 500 milhões e mil milhões de Euros a mais nas suas despesas de saúde. Pelo menos 500 milhões de Euros podem ser poupados”
sexta-feira, 20 de maio de 2005
Há meia dúzia de anos, trabalhei com Jose Mohedano (Barcelona) e Teresa Garulo (Madrid) num projecto de tradução dos poetas Ibn ´Abdún de Évora (1050-1135) e Ibn Sâra de Santarém (m. 1123), respectivamente.
A partir de hoje irei divulgar, aqui no Miniscente, alguns desses poemas ainda infelizmente inéditos entre nós.
As laranjas II (Ibn Sâra de Santarém)
São faíscas nos ramos,
que mais parecem viços
ou faces que afamam as formosas ?
Ramos que flectem ou ternos perfis,
por cujo amor me esforço ?
Mostra seus frutos de laranja
como chuva de lágrimas
que a paixão ardente tinge de vermelho;
gémeas cheias que, se se liquescessem,
seriam como um vinho
e as mãos que o servem braceletes;
botões de corníola em ramos de topázio
que nas mãos do zéfiro
se parecem aos maços do jogo da bola (jogo do polo).
beijamo-las umas e outras vezes
aspiramos o seu aroma,
ou faces e botões de perfume,
huríes cobertas de pulseiras,
que impedem que o amor escute a voz da prudência.
quinta-feira, 19 de maio de 2005
Folhetim em doze episódios
QUINTO EPISÓDIO
(A teimosia dos deuses)
(o folhetim voltará a ser publicado a partir de segunda-feira, dia 23/5)
Rui trocou a perna, sentiu os músculos a ronronar uma longínqua distensão, colocou a mão sob o queixo e reatou o já longo diálogo:
- Mas, como dizia, por que é que não partiu da cidade, durante esses dias que foram negros para si?
- Sabe, trabalhei no projecto, durante uns dez anos. E por mais que os obstáculos me batessem à porta, sempre disse para mim que um objectivo é sempre um objectivo a cumprir. E... como deve ter já entendido, eu sou muito teimosa. Posso ter muitos defeitos, mas sou perseverante.
- Nunca lhe passou pela cabeça abandonar o barco?
- Não.
- Nem mesmo, quando a tentaram acusar de mentir numa revista científica?
- Muito menos nessa altura. A verdade é que a vacina não interessava nada, mesmo nada, a muita gente bem instalada. Ia resolver muita coisa. Demasiadas coisas. E você nem imagina o que são os interesses instalados.
- Mas eles conseguiram o que queriam... não foi? Aproveitaram-se das suas descobertas e inventaram a nova vacina como se fosse a vacina criada por eles.
- Isto não vai acabar assim, pode crer. O mundo não acaba hoje, pode ter a certeza. E o último a rir é sempre o que ri melhor, asseguro-lhe. - E Maia a levantar os óculos escuros com a ponta do dedo, a unha comprida e em forma de quarto crescente, vermelha, sanguínea. Quase vítrea, a certeza, de tão inabalável.
Próximo Episódio: “Quando é que, afinal, o conheceu? - e Rui esboçou um calafrio, esqueceu involuntariamente o cotovelo no assento e pôs-se, depois, a pensar durante uma infinidade: - Foi ele quem me vendeu o carro. Foi só nessa altura que o conheci.”
A gente lê os livros desta menina e encontra coisas assim:
"Quer bocejar, boceje nos filmes de Godard, mas não nos meus ensaios."; "Mas eu me saía nocauteado também em outras situações, quando tudo corria bem (...)"; "Talvez uma orquestra só seja de facto coesa e orgânica no momento em que compartilha o ódio ao maestro." “Não se fazem mais ricos como antigamente, essa é a verdade. Antigamente os ricos saíam por aí caçando leões, acabando com as florestas e poluindo os mares. Hoje eles fazem coisas piores, mas estão cheios de culpa, filiam-se a ONGs e adoram usar palavras como excluídos, multiculturalismo, minorias e o escambau.”
Grande Patrícia Melo! (extractos de Valsa Negra)
Tenho um arquivo no Word que baptizei, já há uns anos, com o nome de "Treinos". Deveria ser um local onde eu ia registando esboços de ideias para ficções a escrever. Como tenho centenas e centenas de arquivos, divididos em pastas e mais pastas, quase me esqueci desse minúsculo banco de dados. Por mero acaso, passei hoje de manhã por lá e não é que encontro estas duas frases meio perdidas no meio de um verdadeiro e caótico canavial de caracteres: "Inventar um músico que aparece algures, num sítio remoto. Completamente amnésico, salta do anonimato para o fascínio mais inexplicável".
Pergunto eu: onde é que já se viu esta história?
Descobri hoje que o Público tem um opinion maker chamado "Luís Costa Pano para Mangas". A sério (assina como "jornalista"). E no texto de hoje revela-se como um terrível opositor a Rui Rio. Por que será? (ou futebol, ou política local, ou, como se enuncia no coração do texto, pura e desassombrada luta contra a demagogia).
É caso para perguntar se "ironia" se escreve, de facto, com dois "is".
Estou a reflectir, a decisão não me parece fácil - sou sincero. Há grande complexidade no que rodeia o texto, nas implicações do texto e no próprio texto. Estar-se dividido é sinal, não de prudência, mas de involuntária "sageza". Deixem-me persegui-la por uns tempos. Enquanto tiver tempo, darei tempo a esse tempo de busca. Até tomar partido. Um dia, hei-de acabar por fazê-lo. Por isso não corro entusiasmado em direcção ao bem intencionado Sítio do Não. Para os que estão como eu aconselho uma leitura atempada e lenta do texto. Aqui.
Contudo, eu creio, desde já, que o pós-09/11 nos recoloca na urgência do entendimento da Europa no seio das coordendas ocidentais e atlânticas e, ao mesmo tempo, no âmbito dos desafios globais que as novas realidades hipertecnológicas e do conhecimento obrigam. Estes dois eixos, um civilizacional e defensivo, o outro próprio das flexibilidades das redes mundializadas constituem pontos de partida para uma argumentação que irei tentar desenvolver.
Folhetim em doze episódios
QUARTO EPISÓDIO
(A enigmática viragem)
A partir desse momento, não foi possível escutar nem mais uma palavra que Rui e Maia tenham trocado entre si. Cada um com a sua chave, diante do Mobilin 2000 - blue midnight; os gestos a demorarem-se, em câmara-lenta; as expressões a desfigurar-se, a transfigurar-se em close-up; o tédio das explicações a esfumar-se. Em fondue. Tudo, agora, visto de muito ao longe. Panorâmica. E a tensão a urdir-se e, depois, a serenar. Mas porquê ?
Seis da tarde. Junto às Montanhas de Jade, no miradouro dos 1200 metros, Maia e Rui saem do carro. Sentam-se, lado a lado, no banco de pedra. Escutam o vento ao longe e tudo parece indiciar um quadro de Hopper, tal é a tonalidade da espera, da imobilidade e do quebranto que deveria, no mínimo, ser inexplicável. Depois, sem acusar qualquer estranheza, Maia virou-se na direcção da grande fonte, cheia de estranhas grinaldas e ramagens de trepadeira e disse em voz muito baixa: - É altura de mudarmos. A partir de agora, guio eu. - Rui concordou. E acenou com a cabeça como se fosse um iô-iô preso a elásticos de feira, ou uma simples marioneta ligada a varas, ou aos fios pendidos na cruzeta mágica de onde invisíveis actores parecem domar o cansaço, a tensão e a cândida postura de Rui a levantar-se devagar, a passar o lenço pela testa, a olhar agora de frente para Maia: - Vamos, vamos embora. Lá para o serão, quando a noite cair de vez, guio eu o carro outra vez.
Assim seja.
Maia arrancou pela montanha acima, curva após curva. A luz a declinar, as sombras a crescer, longilíneas e a aragem a entranhar-se nas copas densas do arvoredo. Por baixo, o declive, o abismo, entre muros e os imensos vales de onde brota água benta e a colossal nascente dos quatro rios que se misturam, dois a dois, na planície aluvial da grande cidade.
Próximo Episódio: “O mundo não acaba hoje, pode ter a certeza. E o último a rir é sempre o que ri melhor, asseguro-lhe. - E Maia a levantar os óculos escuros com a ponta do dedo, a unha comprida e em forma de quarto crescente, vermelha, sanguínea.”
quarta-feira, 18 de maio de 2005
Folhetim em doze episódios
TERCEIRO EPISÓDIO
(A inevitável colisão)
Perseguindo a mesma linha amarelada e viva gravada no chão, Rui e Maia vão como que irmanados num mesmo destino, num mesmo ímpeto, num mesmo acaso. Passo ante passo. Ouviu-se, nessa ventura de passos, uma música a espalhar-se nos ares. Aquilo era berreiro e brado que saía do microfone da cabina onde se pagam os talões. Aquilo era Ravel roufenho, ou era uma orquestra de Cádis, talvez de Argel ? Um piano, uma flauta, a percussão marcada, rapidíssima, cordas agitadas, sempre em suspensão. Aquilo parecia um circo, o asfalto a ondular e a ressoar, um deleite iminente; aquilo era como se fosse o palco da Broadway a emergir, a submergir para inusitado musical, misturado com a acrobacia viva de um meio-dia invulgar. Seria fome, seria pressa, seria coincidência, charada ou miragem ? E, de repente, Rui a enviesar, a virar à esquerda, a aproximar-se da porta do automóvel. E Maia a franzir o olhar pela primeira vez. Como é que era isto possível ? - repetia entre lábios. - O quê ! Não posso acreditar ! - pensava Maia em voz fina de grão-de-bico. Até que decidiu ultrapassar o homem, em breve corrida, e veio colar-se à porta que era, essa sim, a do seu automóvel.
E Rui e Maia, de repente, com chaves diferentes, quem sabe se iguais, a tentarem abrir a porta do mesmo automóvel. E um e o outro a dizer, a clamar, a jurar, com os pés juntos e fixos ao centro da terra; à gravidade da inesperada dança, do imprevisível gesto: - Mas... este é o meu carro ! - É o meu, quer ver ? E ambos a exibirem os mesmos documentos, os seguros idênticos, os nomes em conformidade com a matrícula. - Não é possível ! Olhe que eu sou uma pessoa de bem e detesto algazarras ! - Olhe, que eu não gosto de brincadeiras e muito menos a estas horas. Estou cansada e tenho muito que fazer ! - Não acha melhor chamarmos a polícia ?
Próximo Episódio: Por baixo, o declive, o abismo, entre muros e os imensos vales de onde brota água benta e a colossal nascente dos quatro rios que se misturam, dois a dois, na planície aluvial da grande cidade.
terça-feira, 17 de maio de 2005
Aproveita o "liberal assinante" este ensejo solar para enviar à malta Almocreve os parabéns. É, como sabeis, um blogue da minha profunda eleição, sintagma a sintagma sob luas e sempre à beira da mansidão das letras. Eco de livros, olhar podengo, caminhos de terra, lembranças aventurosas. Continuem. E é verdade, no próximo domingo, "subiremos todos os degraus!"
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Aproveito, também, para estender os meus parabéns à actividade do Crítico, um blogue de cordas que nos recoloca na visibilidade e na liquidez da música. E na delicada sombra dos haiku.
Ou de como, num blogue francês, as posições da viúva de Mitterrand, Danielle, e de um filho do ex-presidente, Gilbert, se opõem e porquê.
É verdade, Luís: A geologia, o chapéu de palha, o sofrido recato dos 1500 dólares, a expiação de Arthur, a entrevista da star “here and now”, a camisinha, a blusa azul de Claire, a esquadria melancólica de Brenda, o escanifrado “it´s ok” da dona dos lençóis do Ártico, o riso perpétuo da mortinha e aquela cor quase ínvia que liga o violeta ao azul celeste (estou daltónico) não me convenceram ontem ("Recovering from Madness, não é Charlotte?)". A ostentação dos rituais parece querer, à força, sustentar o que falta no resto (no último episódio o dilúvio de sangue deu ontem lugar a uma radicalizada contenda entre o gelo de Nate e o fogo purificador da penitência familiar). Oxalá me engane. Oxalá esteja mesmo enganado. Apesar de tudo, mantive sempre uma atenção de príncipe fascinado do princípio ao fim do episódio. Confesse-se a verdade!
Folhetim em doze episódios
SEGUNDO EPISÓDIO
(A salvação perpétua)
Do outro lado da praça, Maia parou diante do homem que tinha um ovo gigante sob a camisa desfraldada e ao vento. Arrepiou-se diante daquela boca aberta que parecia uma gruta rochosa, interrompida por uns três arpões de visível cárie. À volta, subido o pano naquele rosto de Breughel, esvoaçava um sorriso próprio dos santos. Desses que subiram ao céu e vestiram, há muito, o cetim esbranquiçado da salvação perpétua. A pele macerada, os lábios recortados em gôndola, os olhos talvez paralisados e a pausa, a imensa pausa entre sibilantes a complicar o insistente apelo: - "São só dois euros, minha senhora, são só dois euros. Compre este raminho de balsamita que é o maior tónico do mundo contra os soluços, contra o mal dos nervos, contra o mau olhado, contra tudo". E Maia, sem sequer saber por que é que havia parado naquela barraca sem tecto, naquele entreposto de vazios e, depois, a ver-se, sem mais, com a carteira na mão e com o raminho da hortelã-francesa a descer-lhe pela linha da vida, um pouco suada, desvanecida, talvez admirada.
E assim seguiu Maia, sobre saltos altos e finos, a ondular as ancas com prontidão e elegância, atenta às horas e ao olhar grave da mulher-polícia das sardas que não pára de sussurrar junto ao rádio portátil que traz consigo. Seguiu-se a passadeira, uma mancha de insectos e as nuvens em forma de cetáceos. A grande parada. E foi aí, nesse intervalo do mundo, que Maia se lembrou da viagem de amanhã. Às nove da manhã, partida para o aeroporto e... que bom que vai ser, dez dias em Nova Iorque sem fazer nada. Maia com os olhos pousados no reflexo de luz que a grande roda da feira popular embala. Luzes de Chagall a recurvar, a arquear, a rodopiar a claridade que mal deixa perceber o verde vago que, de novo, se entreabre.
E os passos outra vez a atropelarem-se num veemente caos, na súbita voragem, mal o semáforo se anunciou à humanidade. Param motos, autocarros, arcanjos de todos os tipos e sobretudo táxis. Tudo pára nesta minúscula hora de encantos urbanos e a cidade como que passa a cheirar a uma espécie de mistura de sândalo, alecrim e borracha queimada. É ver a astúcia de Maia a aspirar e saborear o ar e a abrir a mala com todo o cuidado e recato do planeta. Retira de dentro a chave do carro e caminha agora mais decididamente para a esquina, com o ramo de balsamitas preso entre unhas vermelhas, sanguíneas. É o ditame, a lei quotidiana. Entra depois no parque, paga na cabina a manhã inteira de estacionamento e dirige-se na direcção do automóvel.
E agora, como é que Maia vai explicar o que está a prestes a acontecer-lhe?
Próximo Episódio: (Olhe que eu sou uma pessoa de bem e detesto algazarras ! - Olhe, que eu não gosto de brincadeiras e muito menos a estas horas.)
Aqui está o artigo do Avante com os elogios ao ditador e sanguinário, José Estaline (dispenso-me de citar aqui no Miniscente um extractozito que seja). Assina-o Leandro Martins (‘O partido e o povo’, edição de 12/05). Ler a propósito o meu post da passada quarta-feira sobre o “tabu comunista”.
segunda-feira, 16 de maio de 2005
"My wife, who is from Russia, and I are about to celebrate our tenth anniversary. Maybe celebrate is too strong a word for what we are doing. Observe might be a better choice, given the circumstances. I sit alone in her apartment, a bottle of California champagne on ice. Yelena will be home late; I hear she goes out dancing on Friday nights. I can wait, after all, I waited until I was forty to get married. I am good at waiting. Plus, she has cable. It's weird how I can change the channels from my head using my brain implant. The implant doesn't work how it's supposed to, but it does change the channels. I think it's defective. That would explain a lot."
É domingo à tarde e eu estou no hall principal da Gulbenkian a fazer tempo para o início de um concerto. De repente, Jorge Sampaio desce as escadas acompanhado por vasta comitiva. Quando a televisão abre as luzes sobre a pequena multidão e os acompanhantes do presidente vivem com gáudio o brilho inodoro do ritual, uns fardados com fitinhas brancas às curvas, outros de fatinho apertado e auriculares à James Bond das Maldivas, eis que o meu olhar periférico distingue um vulto vetusto a correr sobre a alcatifa. Levanto a cabeça, abro os olhos e vejo o próprio Sampaio a correr em diagonal, estilo Jorge Coroado, com aquele destino que pertence invariavelmente aos mortais que sentem súbitos problemas hidráulicos. A segurança rodeou a zona das casas de banho por momentos e eu, fora de mão e do mundo (como acontece tantas vezes), lá fiquei a auscultar a imensa escultura de António Rosa.
Folhetim em doze episódios
PRIMEIRO EPISÓDIO
(Uma verdadeira anunciação)
Talvez por pronunciar as palavras com dificuldade, o velho parecia dizer em surdina o outro nome daquela planta que eu há muito tinha esquecido. E repetia em voz alta, as sobrancelhas vincadas, a camisa feita num fole ao vento, os três dentes em forma de alfinete, um olho aberto e o outro fechado: - "São balsamitas, grande tónico... é para fazer chá contra os soluços", "Comprem o grande tónico, é contra os soluços, contra os maus augúrios!". E eu já a pensar em espasmos, em monstros, em mamas de silicone e com a mão direita dentro do bolso das calças a prender entre os dedos, com inusitada força, as chaves do carro. Passo ante passo, assim fui a bambolear sobre o passeio, qual salsa ou merengue a antever-me o ritmo, a passada, o destino, até que a passadeira me obrigou a parar.
Voltei a olhar para trás com alguma preguiça, avistei a mulher-polícia de sardas e, mais ao fundo, o homem emproado, continuava de balsamita na mão que é um pequeno caule com folhas raquíticas a culminar em três ou quatro rebentos minúsculos. Só mais tarde é que vim a saber, por mistérios do acaso, que aquilo era mesmo hortelã-francesa ou hortelã-romana-de-laguna. Tudo entre tracinhos para que não haja enganos. E o semáforo verde abriu finalmente para os peões, passei os dedos pela brilhantina, pus os óculos e avancei entre a multidão. Com passos mais vagarosos, de delonga, abri então o jornal para ver as grandes do dia. Eram mortes na Macedónia, seis gémeos nascidos em Valparaíso, ovnis em Basileia, quedas nas bolsas asiáticas e era, em primeiro lugar, a notícia do dia: a vacina maravilha. A invenção da vacina mágica. Feita a partir de sangue de javali. Que estranho, mas como era possível uma coisa daquelas?
Para trás, quais tambores napoleónicos, já muito ao longe, perdidos entre sirenes de ambulância e o estranho vendaval das obras, ainda escutei, pela última vez, os pregões ao bálsamo de balsamita. Um encanto com sabor aos prodígios de Bosch. Dobrei a esquina, dirigi-me de vez ao parque e só nessa altura me voltei a lembrar do encontro das seis com a Hellen, à porta do teatro. Por cima, o sol navegava no zénite entre nuvens baixas, a feira popular serpenteava roldanas gigantes e baforadas de óleo queimado que iam escalando a estratosfera. Rezava assim a harmoniosa história do planeta, quando, como acontece todos os dias, dei entrada no parque. Paguei o estacionamento pelo envidraçado da cabina pré-fabricada e pus-me finalmente a andar na direcção do carro. Era meio-dia em ponto. E o mais estranho estava prestes a acontecer.
domingo, 15 de maio de 2005
Ao contrário - rigorosamente - do que acontece na vida real, na blogosfera eu chego sempre atrasado. Mas isso não significa menor apreço e sobretudo menos calor nos parabéns que quero agora dar ao No Quinto dos Impérios.
sexta-feira, 13 de maio de 2005
O Blogue de Esquerda II deu realce a um artigo de André Morin publicado recentemente no Le Monde. Leiamos, pois, este extracto:
“C'est alors qu'il apparaît nettement aujourd'hui que l'Europe économique n'est qu'un nain, voire qu'un fœtus politique, et cela en un temps où de plus en plus le besoin pacificateur et novateur de l'Europe se fait sentir dans un contexte planétaire lui-même de plus en plus cahoté et chaotique et en un temps où la conscience d'une communauté de destin devrait s'imposer face aux puissances continentales comme les Etats-Unis, la Chine, l'Inde, l'Amérique latine : non tant pour s'opposer à eux, mais pour imposer sa propre existence d'entité européenne”.
Para certos autores, a “política” é ainda (como se vê) uma espécie de abstracção superior, apenas subsumida à "Ideia" platónica, que aspiraria, no seu “pathos”, a uma quase exclusividade Pan-Europeia (é esse o cerne da altivez “gaulliste”). Como se o Ocidente se fechasse na “aventura” do velho continente e não fosse, ele mesmo, uma “aventura” muito maior que se confunde sobretudo com a grandeza da liberdade e da democracia num fértil terreno em expansão que súbita e felizmente se globalizou. Onde andará a França, meu caro André Morin?
quinta-feira, 12 de maio de 2005
Na próxima segunda-feira, dia 16 de Maio, iniciar-se-á aqui no Miniscente a publicação do folhetim em 12 episódios, O Olho do Javali.
Imagine-se um parlamentar (para o caso, o género e o número pouco contam). Imagine-se que é eleito pelo distrito Y onde, naturalmente, tem casa. Imagine-se que, apesar disso, decide fixar residência oficial em Lisboa. Imagine-se que o truque permite ganhar mais umas massas. Escuso de dizer que este parlamentar figurado (para o caso o género e o número não contam) leu aprofundadamente o mestre: “na medida em que a imaginação é espontaneidade, também por vezes lhe chamo imaginação produtiva e assim (a) distingo da imaginação reprodutiva, cuja síntese está submetida a leis meramente empíricas...” (1781-1787, Crítica da Razão Pura - B151-B152).
Dei hoje uma aula ao ar livre na Praça de D. Luís. Sem que nada o fizesse prever, começa a chover a cântaros e, de repente, somos já dez pessoas a pedir protecção à copa de uma árvore frondosa. Mas a água não cessa de modo nenhum, pelo que atravessamos a rua a correr até ao Mercado da Ribeira, com a anuência de um segurança estilo primo afastado do Professor Girassol. É nesse recolhimento de olhares densos e cúmplices, entre caixotes de cerejas e algumas meloas perfumadas, que finalmente nos despedimos até à próxima e penúltima semana de aulas.
quarta-feira, 11 de maio de 2005
Na próxima segunda-feira, dia 16 de Maio, iniciar-se-á aqui no Miniscente a publicação do folhetim em 12 episódios, O Olho do Javali.
Jorge Sampaio quer avaliações externas nas universidades. Muito bem. Algumas até já existem e muitas vezes são verdadeiramente ludibriadas por encenações paroquiais (sei do que falo). Uma medida corajosa (mas impossível, eu sei) por parte do estado era passar todas as universidades e todos os politécnicos a “escolas (públicas ou privadas) de formação contínua”, com excepção de cinco ou seis que merecessem, de facto, ser universidade (acredito que, por puro vaticínio intuitivo, ficariam umas quatro em Lisboa, umas duas no Porto, uma em Coimbra, outra em Braga e mais uma em Aveiro, provavelmente). Já aqui escrevi, há uns meses que, durante o Estado Novo, qualquer cidade portuguesa se orgulhava de ter um bom Palácio de Justiça, um Liceu, uma Escola Industrial e um arruinado Teatro Municipal belle époque, ou outro. Nos últimos anos, essas categorias modificaram-se. Agora, qualquer cidade só fica contente se tiver um ou dois hipermercados, um parque urbano à “Polis” e uma casa muito grande localizada no centro onde uma placa ostente a palavra “Universidade” (mesmo que aí apenas se pratique fitness, se jogue monopólio ou se ouçam CDs de manhã à noite).
As recentes comemorações da vitória sobre o nazismo levantaram véus há algum tempo suspensos sobre silhuetas incómodas. Durante a parada militar da Praça Vermelha, o que ainda sobra dos comunistas e dos cabeças rapadas de extrema-direita manifestou-se solidariamente e em local contíguo. Neste cenário de partilhas aparentemente bizarras, Estaline aparece como tirano e assassino de milhões e milhões de seres humanos, tantas e tantas vezes ilibado pelas democracias do ocidente, sobretudo devido ao terrível e inimaginável fantasma do nazismo. A queda do totalitarismo comunista, a partir de 1989, não conseguiu depurar esta herança pesada e muitas vezes tabu onde o sentido é sempre um percurso estranhamente delicado. Poucas vezes, o ocidente comemorativo, colegial e democrático teve a coragem de dizer, olhos nos olhos, que o comunismo foi e é um ardil monstruoso, ditatorial e inimigo da liberdade.
Em Portugal, a categoria da “esquerda” ainda é hoje utilizada na linguagem dos comunistas para se referir a um espaço “social” que nada, mas absolutamente nada tem em comum com outros pares. A única coisa que poderá unir os comunistas a outros sectores democráticos por eles incluídos numa imaginária “esquerda” é alguma história comum - e sempre bastante conjuntural, sectária e expurgatória -, vivida até há 31 anos no nosso país. O mais grave, em minha opinião, é o apelo pragmático a essa categoria (que apenas existe, tal como existe, na linguagem dos comunistas) por parte de figuras e instâncias da esquerda democrática. Mas isso é outra história. Um dia voltarei a ela.
terça-feira, 10 de maio de 2005
Na próxima segunda-feira, dia 16 de Maio, iniciar-se-á aqui no Miniscente a publicação do folhetim em 12 episódios, O Olho do Javali.
Charlotte e Luís, desculpem lá, mas eu também sou apaixonado pela causa.
Pergunto eu: não corresponderão os noventa dias que passaram em algumas horas para Brenda e Joe à súbita procura de sentido que move os restantes personagens?
A série parece perseguir agora um desígnio que oscila entre o ainda-não e o ainda-nunca (Penélope e Godot), numa espécie de tempo que se dilata sem nunca atingir o seu limite.
INT. BRENDA´S APARTMENT – LIVING ROOM CONTINUOUS (NIGHT 3)
Brenda
Did anyone see you?
Joe
I hope so.
Lembro-me de estar no escritório do Vergílio Ferreira, na Av. dos Estados Unidos da América, e de o ver a levantar-se sem nunca largar a prancheta onde normalmente escrevia. E foi já de pé que parodiou, de modo bastante teatral, as pirâmides que há não muito tempo visitara nos arredores do Cairo.
O campo de trabalho de Shandong (Zibo) está localizado junto a uma grande indústria transformadora de carvão. Todos os prisioneiros são obrigados a trabalhar. E esta é apenas uma entre trezentas prisões especiais que existem na China (em proporção, em Portugal, bastar-nos-iam umas três destas).
Ora aqui está um caso interessantíssimo que se posiciona numa espécie de terra de ninguém entre os fantasmas da guerra fria contra o comunismo e as silhuetas da guerra global contemporânea contra o hiperterrorismo.
Uma vez, numa embaixada de Washington D.C., uma senhora bastante elegante disse-me que trabalhava no State Department. E depois, já nem sei porquê, fomos os dois para a casa de banho ao mesmo tempo. Por instinto. Chegados ao local, era a das senhoras, ela ofereceu-me uma minúscula esferográfica cor-de-rosa, apertou-me a mão e foi pregar para outra freguesia. Teria sido espionagem?
segunda-feira, 9 de maio de 2005
Devia ter-se chamado "A viragem profética contemporânea". Mas a revisão de provas não vingou. Não se trata agora da queda de um anjo, mas a de um simples adjectivo (simples?).
Seja como for, este "agregado" já deve andar aí pelas livrarias (entre os outros 197 títulos que o Mil Folhas do passado sábado anunciou para este mês).
A propósito, o que haverá de comum entre:
A desproporção arquitectónica intencional visando realçar situações ou simulações de poder (caso do Empire State Building para Walter Chrysler e John Jakob Raskob e do Coliseu Romano para Vespasianus, Titus e de Domitianus);
Os textos proféticos anónimos, forjados e imputados a autores ímpares (S. Isidoro de Sevilha ou Carlos Magno);
A letra pragmática e furiosa de Sade (sobretudo em Les 120 journées de Sodomeou - L'École du Libertinage, 1785);
A ideia de beleza apolínea recusada por Nietzsche como pura ilusão formal e o consequente apelo ao dionisíaco;
A figura do escritor maldito da era moderna (Jean Genet, Bukowski, Rimbaud, Dickinson, Luís Pacheco, Artaud, etc.);
O sublime e o génio de Kant (ou o talento imaginado “para produzir aquilo para o qual não se pode fornecer nenhuma regra determinada”);
As narrativas alegóricas dos irmãos Limbourg, de Giovanni da Modena (séc. XV) e de Hieronymus Bosch (séc. XVI);
O cavalo na frente dos olhos admirados de Montezuma;
O inferno estético de Rosenkranz;
A crise interpretativa suscitada pelo ornitorrinco no início do século XIX (tão bem descrita por U. Eco em Kant e l´Ornitorinco - 1997 - como o "ornithorhynchus paradoxus" ou a “coisa incategorizável”);
O papel metafórico do demónio nos diversos “Livros” e tradições do mundo judaico, cristão e islâmico;
As denúncias da racionalidade da Sturm und Drang;
A irredutibilidade das vanguardas artísticas da era moderna (expressionismos vs. formalismos, realismos vs. tendências oníricas, conceptualismos vs. construtivismos, informalismos vs. concretismos, etc.);
A droga como estigma moderno por excelência (“droga, loucura, morte”: um cartaz publicitário como representação do fenómeno, em Portugal, no início dos anos setenta);
A afirmação do terrível e do mal na política moderna (nazismo, social-fascismo, fascismos), ou seja, o extermínio e a aniquilação como ênfase máxima de um programa;
A ideia de caos em J´accuse de Abel Gance e a sua catarse na denúncia da morte sem causa na Primeira Grande Guerra Mundial;
Os fantasmas que surgiram através da imaterialidade da photogenie fotográfica e dos espectros dos precursores cinematográficos (em Méliès e na chamada Escola de Brighton);
A imagem da sida em meados dos anos oitenta do século XX e a substituição da interpretação pela “interpretose”neste e noutros tipos de casos limite;
O caos descrito por Bruegel em A queda dos anjos rebeldes (1562).
Eu direi que é a presença do "segno", ou seja, da tradicional constatação de que existe sempre algo que escapa à ordem "natural" ou, num registo mais próximo de nós, "normal" das coisas. Mas quando este antiquíssimo conceito se esvai numa nova ordenação do mundo, o que sobrará sobre tal (terrível e ameaçadora) invisibilidade?
É esse o problema aflorado no livro, pelo menos na sua primeira parte.
Tendo andado por outras galáxias, só agora posso felicitar o Mar Salgado pelo seu segundo aniversário.
Lembro-me de Rui Knophly (esse grande poeta “acocorado” e ainda meu primo afastado) ir jantar à minha casa no início da década passada. Já estava doente, mas não cedia de modo nenhum no humor, no uísque e na espantosa verve. E tal como eu gosto, não foi da sarna deifidicadora e literária que se falou. A situação era demasiado rica e festiva para isso. Foi a última vez que o vi. E o mais curioso é que Knophly passou foi a maior parte do tempo a recordar os puros anos da adolescência, quando os amores o arrastaram para as tranças de uma bela irmã do meu pai. Terá sido noutra vida. Mas o que sobra sempre, de um lado ao outro da via láctea, são as paixões, o coração de almirante em águas turbulentas, talvez a ilha de ouro inatingida.
Tal como a crise é um artifício criado para entender e explicar o mundo à nossa volta, como um dia escreveu F. Kermode, também a geração é um mecanismo que serve para legitimar o mimetismo involuntário que, por vezes, atravessa um dado leque de actividades. Até porque uma coisa é a geração, ou a sincronia de afectos e disposições, mas outra bem diferente é a geração entendida como um mero expediente para validar orientações ou construções de sentido.
sábado, 7 de maio de 2005
Uma vez a televisão holandesa telefonou para a minha casa já bastante tarde e fez com que eu, no dia seguinte, me levantasse às 5 da manhã para voar até Paris. A minha súbita função, nesse dia solar de 1988, imagine-se, era a de tradutor. E quem era o imprevisto entrevistado?
Nem mais nem menos do que o chefe da polícia de S. Paulo que, na altura, fazia trânsito no Charles De Gaulle a caminho da Alemanha onde ia sujeitar os presumíveis ossos do nazi Josef Mengele a testes de DNA.
Lembro-me como ao calvinismo exigente e austero do jornalista holandês correspondia um humor desbragado e sobretudo intraduzível por parte do brasileiro. Embora a circunstância fosse considerada histórica pela AVRO (era esse o canal holandês), eu contive-me extremamente para que a tragédia cómica não se sobrepusesse à indagação tida como objectiva.
Para os antropólogos indefectíveis, o homem gera cultura tal como as macieiras geram maçãs. Para a teoria da cultura, a cultura não obedece a esses dons naturais, a essa biologia algo religiosa. É ela mesma um objecto de estudo, ou um jogo que se vê da bancada, ou ainda um equívoco mergulhado no caos das mil travessias que hoje percorrem (e são) o mundo.
sexta-feira, 6 de maio de 2005
Uma pessoa muito próxima, nem sei mesmo se não terei sido eu, decidiu arrendar um pequeno estúdio em Lisboa. Para selar o contrato de arrendamento nas finanças e fechar contratos com o gás, com a electricidade, água e tv cabo foram apenas precisos cento e dez minutos. Registe-se o facto que considero excelente (até porque deparei quase sempre com funcionários prestáveis, humorados e simpáticos). E esta?
Uma vez visitei o Eugénio Lisboa em Londres, em meados dos anos oitenta (morava eu então na Holanda), e ele disse-me uma coisa, óbvia afinal, mas que nunca mais esquecerei: “foi em autores que residiram longo tempo fora das fronteiras do país que a língua literária portuguesa mais floresceu”. Deu como exemplo Camões, António Vieira, Eça e Pessoa (podia ter dado outros como o seu próprio, Pessanha, Sá-Carneiro, Miguéis, Sena, Knophly, Macedo, etc…). E lembro-me que Eugénio Lisboa o disse, apesar do seu profundo e congénito amor por Régio.
Este tipo de verdades irrita o português terráqueo, imerso e castiço ainda que, hoje em dia, involuntariamente preso pelo modismo emergente que liga os passeios do S. Luís às dining ideas for all appetites and budgets in the Big Apple! (e que eu, pelo lado que me toca, adoro).
Lembro-me de, há vinte anos, o mesmíssimo pavonear roçar o Frágil, há trinta anos a Opinião, há quarenta anos o Monte Carlo e há cinquenta anos, tinha eu ainda só uns meses de vida, a Brasileira.
quinta-feira, 5 de maio de 2005
"(...) o Abrupto é o “jornal” que, desde que me conheço, gostaria de ter tido, parte da minha voz. Não a minha voz, mas parte da minha voz. Feita do ruído do mundo, do meu ruído, da fala incessante, dos quadros, dos versos, da música, das palavras, que nos faz o que somos. O Abrupto é sobre isso, o Abrupto é isso."
Tenho reflectido, às vezes, acerca da pluralidade de motivos que leva muito boa gente a alimentar desconfianças face ao Abrupto. Alinhá-los-ia do seguinte modo:
1-JPP escreve declaradamente para atmosfera e não para a blogosfera. E faz JPP muito bem. Uma das piores tendências da blogosfera é a forma latente de corporação que se evidencia aqui e ali. Há sintomas claros desse facto e, há poucos dias, alertei nesse sentido no meu post O que é entronizado é bom (“Como se a blogosfera fosse uma tertúlia de amigos e não um conjunto de dispositivos onde se processam expressões. Como se ter e escrever num blogue implicasse uma inevitável rede de afectos e de ternas familiaridades. De que se falará, por exemplo, num encontro de blogues?”). Esta tendência corporativa está codificada de modo bastante fluido, mas, apesar disso, pressupõe comportamentos colegiais que são partilhados por muitíssimos blogues. Essa auto-imagem corporativa do que deve ser a blogosfera contém algumas premissas que vêem em JPP algo de incómodo. Nomeadamente: o facto de ser figura pública do mundo político e de ter “descido” à blogosfera ocupando um lugar algo “indevido”. O facto de não pertencer a um mesmo nível etário que é dominante (i.e., os vintes e trintas, o que implica, na blogsofera, pactos de linguagem, perlocuções mais ou menos comuns, fantasmagorias dialogadas, ficcionalidades e até esquemas argumentativos - à esquerda ou à direita - previsíveis e extremamente partilhados). E, por fim, o facto de JPP ter aparecido quando uma dada tradição da blogosfera já estava em marcha há mais tempo (nesta visão de pequena intolerância, age-se como se os fenómenos tivessem uma única origem e um estatuir fundacional irremissível), a qual se situaria na área a montante do famoso Pastilhas.
2 - JPP não encaixa na expressão contra-cultural que domina certa inteligência VIP da blogosfera que, como se sabe, vive subliminar ou explicitamente da crítica - eu diria bastante necessária - ao pesado e às vezes “almofadado” edifício criado e acumulado em Portugal no espaço das duas últimas gerações. A essa contra-cultura falta amiúde retaguarda, lucidez e algum horizonte. Essa contra-cultura não consegue, muitas vezes, distinguir o plano a que se chegou de outros anteriores e até contemporâneos, para além de viver do (involuntário) modismo geracional que, como todos, é alimentado de estigmas tutelados e dicotómicos “pró e contra” (que acabam por aflorar na análise política e estética, por exemplo). JPP é um relativador não seguidista e sempre se posicionou fora das “massas” e das “manchas” razoavelmente delimitadas.
3 - Existe alguma objectiva sobranceria de JPP ao não lincar de modo fixo, pelo menos, os blogues que lê semanal ou mensalmente. Não se trata de uma obrigação, mas de um dever-ser “ético-político” (para utilizar palavras do próprio JPP, ontem, na Quadratura do Círculo, atribuindo-se aqui ao termo “político” uma respiração mais próxima do seu real étimo). Esse facto suscita mal-estar na maioria da blogosfera activa que entende, com razão, o “dever ser” como um óbvio “contrato mínimo” entre pares do mesmo ciber-espaço.
4 - Há grande “dor de cotovelo” em alguma (diria mesmo em bastantes sectores da) blogosfera face à decisiva afirmação do Abrupto. Este factor é claro, notório e exala alguma ingenuidade no modo como se manifesta. Esta tendência - espécie de narcisismo invertido -, entende, no fundo, o Abrupto como o “modelo” daquilo que se quereria e desejaria ser: ter muitos leitores, ter rubricas fixas e consistentes, ter imensa contribuição temática e ter sobretudo uma desmedida expansão na rede. É evidente que blogues como o Oxblog, o Eschaton ou o Instapundit, a nível do globo, também são “vítimas” dessa pobre invídia agressiva.
Para mim, o Abrupto não é um deus, mas é um óptimo blogue de visita diária. Nem sempre gosto do que lá vejo. Refiro-me a algumas escolhas estéticas, a reiterados objectos de estudo e a uma certa aridez rítmica que uma ou duas secções inspiram. Mas, por outro lado, o Abrupto é um blogue situado fora do que o senso comum designa por “politicamente correcto” e reflecte o ímpeto independente e livre que, nos tempos que correm, é raro entre nós. Em Portugal há muita gente “liberta”, mas pouca gente realmente livre e afirmativa como é o caso de JPP. Este é um tema pouco abordado na expressão quotidiana (crónicas, posts, ensaios), mas que reputo de fundamental. Por fim, o Abrupto funciona ainda como um barómetro interessante da “coisa política” lusa, porque alia a intuição ao recorte dos sintomas visíveis de um modo estimulante. Para além de ser um blogue muito bem escrito, ecléctico e informado, o que é de longe o mais importante.
Parabéns JPP!
Estou numa esplanada e peço um pastel de nata com canela e um quarto de leite Vigor (faço questão, neste caso, de explicitar a marca). O empregado deita o leite no copo e eu bebo-o lentamente. Adoro leite gelado em tarde quente de Maio. Só depois de ter lido o jornal é que reparei que a garrafa (de vidro) estava totalmente rachada de alto a baixo, em várias direcções, quer por dentro, quer por fora. A fragilidade do vasilhame era tal que, na minha mão, quase se desfez. Entro no café com a garrafa na mão (e a dizer das boas) e o empregado fica de imediato alarmado. - Mas… bebeu tudo? - E eu respondo que sim. Moral da história: pedi que guardassem a garrafa, não fosse preciso alguém pagar a cirurgia. Até agora não houve sinal de coisa maligna ou funesta. Devo é ser um belo faquir.
Sigo pelo passeio e ouço um rumor agudo ou um estrugir demorado (como se fosse vela de veleiro a roçar com pressão sobre asfalto). Olho e vejo subitamente um enorme guarda-sol a cruzar a rua arrastado pelo vento. Dou um salto e evito o choque. Bons reflexos. Logo a seguir, o empregado do café atravessa também a rua e vem fechar o dito guarda-sol que mais parecia um animal enfurecido. Só depois, os dois táxis que haviam travado na altura certa puderam avançar.
Escreve hoje Maria Filomena Mónica no Público:
"Um amigo meu, médico no Algarve, contou-me, há três anos, um episódio revelador. Tendo analisado clinicamente uma miúda, violada pelo pai, interrogou-o sobre como lhe fora possível fazer tal coisa. A resposta veio, lesta: "Olhe lá, sr. dr., eu não estava a engordá-la para que outros a viessem comer, pois não?" O processo da Casa Pia mudou tudo. Hoje não se fala de outra coisa."
Sem comentários.
quarta-feira, 4 de maio de 2005
Estou a tremer, professor Boaventura!
Quando venho de casa para o escritório, atravesso um passadiço esverdeado que é uma espécie de agregado de juntas metálicas e por isso mesmo treme, faz-se ouvir, trina, ribomba e leva-me a imaginar que estou a andar sobre aquelas águas tumultuosas que apartam dois navios muito paralelos em alto mar, porque presos um ao outro à distância por cabos de aço.
terça-feira, 3 de maio de 2005
O nível dos comentadores é tal que apenas consigo ver o jogo do Chelsea retirando totalmente o som à televisão. Para além da incompetência e dos dislates generalizados, há naquelas vozes o eco de géneros alimentares misturado com dentes de elefante e com as famosas "lixívias de balneário". Chega.
Belo post do Pedro Mexia sobre o mito do "Benfica levado ao colo". Vale a pena ler.
Agora desatou tudo a responder ao mesmo questionário sobre livros (é aquela coisa que começa pelo “Fahrenheit 451”). Intriga-me esta tendência que convoca o feérico desejo de massificar e repetir os registos. E a verdade é que dezenas de blogues tentam inventar originalidades em forma de beco invisível. Como se a blogosfera fosse uma tertúlia de amigos e não um conjunto de dispositivos onde se processam expressões. Como se ter e escrever num blogue implicasse uma inevitável rede de afectos e de ternas familiaridades (de que se falará, por exemplo, num encontro de blogues?).
Juro que, qualquer dia, ainda espalho pela blogosfera uma pergunta do género: “O que faz nos tempos livres?” (a minha resposta é, aviso já: "Jogo ao monopólio").
Uma impressora que não funciona, a carta que não se imprime, o honorário que se atrasa. O cão que ladra no quintal, a bebé a sorrir como se fosse pétala e o NYT a dizer que o último romance de Philip Caputo é devastador. Uma coisa é certa: não volto hoje a comer outra vez uma sopa de tomate como a de ontem. Demasiados enchidos fazem mal, excepto talvez o toucinho frito e estaladiço acompanhado pelo pão do Escoural. Por outras palavras: será que o Nuno Gomes recupera a tempo? (se não acontecer, também não deverá fazer grande falta)
Encontro no café um amigo que tem uma empresa de design gráfico e arquitectura de interiores há já vinte anos. Sempre pagou a horas de maneira rigorosa todo o tipo de impostos e, agora, pela primeira vez somou uma pequena dívida de três mil euros. Segundo a objectividade marciana e cega do fisco, o meu amigo vai ter que pagar sete por cento de juros sobre essa quantia. Um disparate total. Sabendo que o estado paga sempre com atrasos inexplicáveis e numa situação de ilimitada impunidade, eu pergunto: não mereceriam os empresários e os cidadãos em geral a existência de uma cadastro fiscal? Por que é que quem prevarica regularmente deve ter um tratamento igual aos que o fazem apenas muito excepcionalmente (neste caso, uma vez em vinte anos)?