terça-feira, 21 de dezembro de 2010

A amizade é uma estética

A amizade é uma estética. Na morte de Carlos Pinto Coelho.




A amizade é um culto que se traduz através de uma crença que não tem nome. Um culto que se move e que está nos olhos de quem sabe protagonizar a amizade. Não há um centro na amizade, nem há um programa para a amizade. Ser-se amigo é dizer a intimidade sem filosofia e confidenciar o nome dos deuses sem qualquer deus por perto. Uma espécie de estética profunda, ainda que sem necessidade de arte.



Quando o dizer da amizade joga profundamente na vida, é verdade que se chega a tornar num dizer quase invisível. Tão transparente que mal se deslinda. Passa a ser um dizer oculto. Basta-nos o estar lá. O aparecer, ou tão-só o revelar-se de quando em quando. Mas quando o móbil da amizade desaparece – a morte, sim a morte! –, salta de imediato aos olhos esse dizer espesso de amigo e toda a sua relevância feita de matéria concreta.



O problema é já não poder entrar no escritório para dizer a quem já lá não está: “Mas por que raio é que morreste, meu grande sacana?”. Eu gosto dos verões a escaldar com o Carlos Pinto Coelho a chegar à minha casa de camisola branca e com uma garrafa de JB debaixo do braço. A Clara sorria e sabia perfeitamente que o mundo ali se reiniciava. Sim: como se a máquina do mundo tivesse bloqueado e fosse nossa tarefa, agora, reiniciar tudo de novo. É isso a amizade: um dom que existe para gerar outros dons.



O José M. Rodrigues fotografava os pequenos logros, os grandes acasos e os folhos do cortinado onde esvoaçavam palavras em forma de leque. O Carlos mostrava as suas paisagens de África como se fossem chão a respirar virgindade. A Fátima e a Isabel cantavam. O Alberto dizia o Régio que depois engrenava em uníssono. A Clara abria as papoilas como se o limoeiro do pátio estalasse à procura da sua sombra. E havia muitos outros nomes a fazer coisas que incendiavam o nada: esse planeta onde a poiesis da vida é coisa sagrada.



Era disso que eu gostava e é sobre isso que vale a pena escrever numa morte. Porque morrer é uma casa enorme sem geografia. Um aceno amputado. Um adeus que diz 'vem cá'. Ainda que a viagem literalmente continue: há-de ser verão e a linha de Mora, desalojada e erma, voltará um dia a ser fotografada. E há ainda o Harry´s Bar semeado entre xisto algarvio e umas oliveiras insanes que brotam da terra onde menos se espera. Como o maracujá da Madeira a bordo do gin tónico. Ou a minha trapista a bater o coração.



E pronto. Eu tinha que escrever em Évora por causa da morte de um amigo que ajudei a trazer para cá. Não que eu esteja em paz em Évora. Mas há deveres que são como a chuva. Estão muito para além da intriga menor e do juízo das narrativas de porcelana. Molham e fazem do corpo um mar que se revolta com a extrema mansidão das estatuetas. Eu hoje vou subir ao meu terraço e vou olhar para o fundo. No limiar do continente, vou voltar a segredar-lhe – sou muito chato! – que a amizade é um culto que se traduz através de uma crença que não tem nome.