Gástricas
No Causa nossa conta-se a história algo bacoca de uma separação amorosa por causa dos leões do Jardim Zoológico. É uma ficção que não cabe nas expectativas e no tom ponderoso do dito blogue. Dá para pensar.
sexta-feira, 30 de abril de 2004
Alentejanas
Podia ter piada mas não tem patavina. É como contar na Terra uma anedota passada em Plutão. Às vezes, o silêncio fazia bem à música de fundo dos místicos. (só espero que não se ponham a imaginar que eu fiz uma leitura política. Ainda me iriam chamar cristalino).
Podia ter piada mas não tem patavina. É como contar na Terra uma anedota passada em Plutão. Às vezes, o silêncio fazia bem à música de fundo dos místicos. (só espero que não se ponham a imaginar que eu fiz uma leitura política. Ainda me iriam chamar cristalino).
Hediondo
Torturar não é apenas um crime. É um terrível atentado à humanidade. Não se espera que um exército de um país democrático possa sequer imaginar o acto de tortura. Estas imagens - não as publico - exigem um Watergate, um rápido Wargate. A CBS deu o primeiro passo. Na boa tradição, em Washington D.C., tudo pode acontecer. Oxalá.
Torturar não é apenas um crime. É um terrível atentado à humanidade. Não se espera que um exército de um país democrático possa sequer imaginar o acto de tortura. Estas imagens - não as publico - exigem um Watergate, um rápido Wargate. A CBS deu o primeiro passo. Na boa tradição, em Washington D.C., tudo pode acontecer. Oxalá.
Gris, gris, l´amour est gris...
Segundo Ana Alves, vivemos "tempos puritanos e alienados". O olhar faz a vista. O pretexto para a afirmação não é tanto Bergman, mas sobretudo o resultado de uma tradução. Já se sabe que traduzir não é uma mera operação linguística, longe disso; é, sim, em primeiro lugar, uma transposição de modelos mentais. E o que é que se transpõe, quando, à nossa volta, todos os sinais permitem deduzir que habitamos uma era puritana e alienada? Spleen, Voyance, paraíso de dandies. Eu adoro o meu tempo.
Segundo Ana Alves, vivemos "tempos puritanos e alienados". O olhar faz a vista. O pretexto para a afirmação não é tanto Bergman, mas sobretudo o resultado de uma tradução. Já se sabe que traduzir não é uma mera operação linguística, longe disso; é, sim, em primeiro lugar, uma transposição de modelos mentais. E o que é que se transpõe, quando, à nossa volta, todos os sinais permitem deduzir que habitamos uma era puritana e alienada? Spleen, Voyance, paraíso de dandies. Eu adoro o meu tempo.
Assédio
O João Morgado Fernandes fala de um dos panoramas visuais que mais sigilosamente me assedia em tempo de aulas: o orgulho delas no umbigo. Tudo bem! A episteme roça na tatuagem e faz tru tru. E eu, ali, caladinho como se nada fosse! Professor comporte-se! Mas há dias, como este, enfadonhos e pouco solares, em que um pequeno desabafo não faz mal a ninguém!
O João Morgado Fernandes fala de um dos panoramas visuais que mais sigilosamente me assedia em tempo de aulas: o orgulho delas no umbigo. Tudo bem! A episteme roça na tatuagem e faz tru tru. E eu, ali, caladinho como se nada fosse! Professor comporte-se! Mas há dias, como este, enfadonhos e pouco solares, em que um pequeno desabafo não faz mal a ninguém!
Categorias novecentistas
"Um amigo comentava que comer no chinês é de esquerda." (via Voz do Deserto)
"Um amigo comentava que comer no chinês é de esquerda." (via Voz do Deserto)
Anónimos e livros
O Tomara que Caia faz relatos deliciosos sobre visitas a livrarias. Tudo porque o ponto de vista do blogue é precisamente uma livraria. E, agora, inquiro eu com natural prudência: onde fica essa livraria?
O Tomara que Caia faz relatos deliciosos sobre visitas a livrarias. Tudo porque o ponto de vista do blogue é precisamente uma livraria. E, agora, inquiro eu com natural prudência: onde fica essa livraria?
quinta-feira, 29 de abril de 2004
Nudez
Uma vez fui a casa do Vergílio Ferreira e ele tinha acabado de pousar à sua frente uma prancheta coberta de folhas minusculamente desenhadas pelo seu escrupuloso alfabeto de lupa. Já não sei do que falávamos, mas lembro-me da suspensão súbita e da frase quase conclusiva: - No início vamos por todos os caminhos, pelo emaranhado, mas, depois, há uma selecção que vem ter connosco e que se impõe misteriosamente. Foram mais ou menos estas as suas palavras. Havia qualquer coisa de inviolável em Vergílio Ferreira. Uma frescura embevecida pela escolha que o encontrou, tantas vezes com humor, na pele de homem que ainda acreditava na literatura ao nível dos grandes marcos da espécie. Uma súbita e deslocada saudade. E assim se confessa, admirado consigo mesmo, um dos tempos da intimidade que se esvai, dia a dia, no esfumado e instantâneo tempo dos blogues.
Uma vez fui a casa do Vergílio Ferreira e ele tinha acabado de pousar à sua frente uma prancheta coberta de folhas minusculamente desenhadas pelo seu escrupuloso alfabeto de lupa. Já não sei do que falávamos, mas lembro-me da suspensão súbita e da frase quase conclusiva: - No início vamos por todos os caminhos, pelo emaranhado, mas, depois, há uma selecção que vem ter connosco e que se impõe misteriosamente. Foram mais ou menos estas as suas palavras. Havia qualquer coisa de inviolável em Vergílio Ferreira. Uma frescura embevecida pela escolha que o encontrou, tantas vezes com humor, na pele de homem que ainda acreditava na literatura ao nível dos grandes marcos da espécie. Uma súbita e deslocada saudade. E assim se confessa, admirado consigo mesmo, um dos tempos da intimidade que se esvai, dia a dia, no esfumado e instantâneo tempo dos blogues.
P.E.
Estou de acordo: a pastilha elástica de Portas faz parte do terceiro mundo que há em nós. Desprezível. Sem nível. Nada cível.
Estou de acordo: a pastilha elástica de Portas faz parte do terceiro mundo que há em nós. Desprezível. Sem nível. Nada cível.
quarta-feira, 28 de abril de 2004
Onofre
Eu posso entender muita coisa, Ricardo. Posso olhar para a boca de cena tentando não me sujeitar às regras que a perspectiva suscita. Posso ser levado a sobrevoar o que um dia ficou em vez da ausência do absoluto. Posso ser compreensivo até ao limite. Posso contemplar com compaixão e silenciar discórdias e gargalhadas reprimidas. Posso ainda tentar ir mais longe do que tudo isso. Mas o Onofre, ouvido já duas vezes à noite no rádio do meu carro, o Onofre é uma chatice, uma grande merda, uma sonoridade ressentida para a qual não consigo ter um milionésimo de fleuma. Mas isto é apenas a tempestade serena que veio ao ser no meu mínimo arquipélago. Lá fora, onde há mundo e palavras prontas a engalanar altares sem luz, lá fora, nesse local aberto onde hoje respiramos um ar que é o do presente - e não o da compulsão de futuros sempre adiados -, lá fora, num palco quase ilimitado, o Onofre do José Mário Branco pode tragar à vontade as suas trovoadas mitológicas. Nada a opor! Para que fique claro.
Eu posso entender muita coisa, Ricardo. Posso olhar para a boca de cena tentando não me sujeitar às regras que a perspectiva suscita. Posso ser levado a sobrevoar o que um dia ficou em vez da ausência do absoluto. Posso ser compreensivo até ao limite. Posso contemplar com compaixão e silenciar discórdias e gargalhadas reprimidas. Posso ainda tentar ir mais longe do que tudo isso. Mas o Onofre, ouvido já duas vezes à noite no rádio do meu carro, o Onofre é uma chatice, uma grande merda, uma sonoridade ressentida para a qual não consigo ter um milionésimo de fleuma. Mas isto é apenas a tempestade serena que veio ao ser no meu mínimo arquipélago. Lá fora, onde há mundo e palavras prontas a engalanar altares sem luz, lá fora, nesse local aberto onde hoje respiramos um ar que é o do presente - e não o da compulsão de futuros sempre adiados -, lá fora, num palco quase ilimitado, o Onofre do José Mário Branco pode tragar à vontade as suas trovoadas mitológicas. Nada a opor! Para que fique claro.
Terras Virgens
E há ainda um ser simpático que precisa de dizer que é "professor de história da arte e da história da fotografia" (é muita história!) para apenas condenar, com suma piedade, uma frase feita e fatídica (o belo "blá blá blá" estará em vez de "conotações escritas"?). Espero que estas imagens - as que acabo de escrever - não suplantem o território herege, invicto e impreenchível que não pode ser ocupado por nenhum dos mortais.
E há ainda um ser simpático que precisa de dizer que é "professor de história da arte e da história da fotografia" (é muita história!) para apenas condenar, com suma piedade, uma frase feita e fatídica (o belo "blá blá blá" estará em vez de "conotações escritas"?). Espero que estas imagens - as que acabo de escrever - não suplantem o território herege, invicto e impreenchível que não pode ser ocupado por nenhum dos mortais.
Obstáculos
Hobbes definia a liberdade em função da ausência de obstáculos. Era um modo mecânico, físico e concertado de a entender, no quadro do seu pensamento moldado pela complexa estrutura do Leviatã (máquina poderosa e híbrida, movendo-se entre o campo profético e o desígnio do campo político quase moderno).
Pergunto: qual é a forma dos obstáculos que deambulam hoje pela blogosfera? Eu sei que os há, eu sei que esta escrita não se move sem movente, eu sei que esta expressão é condicionada pela própria atmosfera.
E que bloqueios tem a blogosfera a oferecer a si própria? Quem me responde?
P.S. - Que tais elevadas perguntas me não obriguem, seja em que circuntâncias for, a ter que pronunciar ou escrever o verbo "obstaculizar"!
Hobbes definia a liberdade em função da ausência de obstáculos. Era um modo mecânico, físico e concertado de a entender, no quadro do seu pensamento moldado pela complexa estrutura do Leviatã (máquina poderosa e híbrida, movendo-se entre o campo profético e o desígnio do campo político quase moderno).
Pergunto: qual é a forma dos obstáculos que deambulam hoje pela blogosfera? Eu sei que os há, eu sei que esta escrita não se move sem movente, eu sei que esta expressão é condicionada pela própria atmosfera.
E que bloqueios tem a blogosfera a oferecer a si própria? Quem me responde?
P.S. - Que tais elevadas perguntas me não obriguem, seja em que circuntâncias for, a ter que pronunciar ou escrever o verbo "obstaculizar"!
Substâncias, formas, respeitos
O que teria eu escrito se não existisse este blogue? Eis como se desmonta o Miniscente em três tempos.
É por isso que aquilo que está no Miniscente deve remeter, não apenas para a imaginação que vingou (a que veio ao ser, a que se tornou em ente, a que se substancializou), mas também para a imaginação que nunca chegou a encorpar na vida dos seres em acto.
O que teria eu escrito se não existisse este blogue? Eis como se desmonta o Miniscente em três tempos.
É por isso que aquilo que está no Miniscente deve remeter, não apenas para a imaginação que vingou (a que veio ao ser, a que se tornou em ente, a que se substancializou), mas também para a imaginação que nunca chegou a encorpar na vida dos seres em acto.
Maias
É daquelas coisas, Nuno, com que concordo sem hesitações. O país dos doutores é o país dos alarves e do novo-riquismo sequestrado pela mediania das antigas elites incultas, negligentes e acacianas. Uma chatice até para quem se doutora (não é ironia!), pese embora o facto de que um doutor o é, pelo menos, para dentro das portas da sua academia. Até porque o reverso do país dos alarves consistiria - e consiste geralmente - em afirmar: "lá anda aquele armado em doutor". Verso e reverso, a mesma luta!
Um grande abraço amigo deste lado (não menos) louco do mundo.
É daquelas coisas, Nuno, com que concordo sem hesitações. O país dos doutores é o país dos alarves e do novo-riquismo sequestrado pela mediania das antigas elites incultas, negligentes e acacianas. Uma chatice até para quem se doutora (não é ironia!), pese embora o facto de que um doutor o é, pelo menos, para dentro das portas da sua academia. Até porque o reverso do país dos alarves consistiria - e consiste geralmente - em afirmar: "lá anda aquele armado em doutor". Verso e reverso, a mesma luta!
Um grande abraço amigo deste lado (não menos) louco do mundo.
Incitamentos
Há com cada aberração! Ora, leia-se:
Em Março de 1983, o jornal Libération incitou o ministro francês da Condição Feminina a pôr no seu Índex por “provocação pública por ódio sexista” as seguintes obras: Pantagruel; Judas, o Obscuro; os poemas de Baudelaire; o Kafka completo; As Neves de Kilimanjaro e Madame Bovary.» Sacrilégio! Como é que alguém se atreve a queixar-se do Libération?
Via Aviz (em O Papagaio de Flaubert de Julian Barnes)
Há com cada aberração! Ora, leia-se:
Em Março de 1983, o jornal Libération incitou o ministro francês da Condição Feminina a pôr no seu Índex por “provocação pública por ódio sexista” as seguintes obras: Pantagruel; Judas, o Obscuro; os poemas de Baudelaire; o Kafka completo; As Neves de Kilimanjaro e Madame Bovary.» Sacrilégio! Como é que alguém se atreve a queixar-se do Libération?
Via Aviz (em O Papagaio de Flaubert de Julian Barnes)
terça-feira, 27 de abril de 2004
Retiradas e visitas
Sou contra a retirada ah.doc da GNR do Iraque. Tanto mais que a difundida exigência é casuística e feita a reboque de uma contingência política e eleitoral que nos é alheia. Sou igualmente contra toda e qualquer retirada, até ao momento em que o caos e as hemorragias criados possam vir a ser planeada e concertadamente acautelados com a cooperação da comunidade internacional.
A presença de Zapatero em Lisboa deveria excluir o mais possível as momentâneas divergências iraquianas e, por essa razão, deveria sobretudo focalizar o plano da relação estado a estado, as consequências do alargamento iminente da CE, a mútua penetração económica e social e, naturalmente, as questões comuns que hoje se põem face às ameaças hiperterroristas.
Sou contra a retirada ah.doc da GNR do Iraque. Tanto mais que a difundida exigência é casuística e feita a reboque de uma contingência política e eleitoral que nos é alheia. Sou igualmente contra toda e qualquer retirada, até ao momento em que o caos e as hemorragias criados possam vir a ser planeada e concertadamente acautelados com a cooperação da comunidade internacional.
A presença de Zapatero em Lisboa deveria excluir o mais possível as momentâneas divergências iraquianas e, por essa razão, deveria sobretudo focalizar o plano da relação estado a estado, as consequências do alargamento iminente da CE, a mútua penetração económica e social e, naturalmente, as questões comuns que hoje se põem face às ameaças hiperterroristas.
Provocação ao cantinho do Hooligan
Veja-se o que estava escrito na porta de uma mercearia aqui ao pé de casa: desprovido é o oposto de provido, desqualificado é o oposto de qualificado, desfeito é o oposto de feito e desportista é o oposto de portista.
Veja-se o que estava escrito na porta de uma mercearia aqui ao pé de casa: desprovido é o oposto de provido, desqualificado é o oposto de qualificado, desfeito é o oposto de feito e desportista é o oposto de portista.
Via Janela Indiscreta
Na próxima revisão da Constituição sugiro que se registe o direito à sesta em dias de verão, sempre que eles ocorram, a chamada Lei de Winson McCay.
Na próxima revisão da Constituição sugiro que se registe o direito à sesta em dias de verão, sempre que eles ocorram, a chamada Lei de Winson McCay.
Estar aí, estar aqui
As alergias criam uma certa distância entre quem olha e o mundo que é olhado. É uma espessura onde se passa muita coisa. Mas tudo se resume a mal estar e a pirotecnia inventiva. De um lado, a imaginação bruxuleante; do outro lado, a inspiração das vias respiratórias como magma de um vulcão maior. Crescer para o mundo tem destas coisas, boas ou nem tanto, até porque o corpo está sempre lá, nesse sítio, nessa espessura, nessa distância onde invariavelmente somos. Dasein.
As alergias criam uma certa distância entre quem olha e o mundo que é olhado. É uma espessura onde se passa muita coisa. Mas tudo se resume a mal estar e a pirotecnia inventiva. De um lado, a imaginação bruxuleante; do outro lado, a inspiração das vias respiratórias como magma de um vulcão maior. Crescer para o mundo tem destas coisas, boas ou nem tanto, até porque o corpo está sempre lá, nesse sítio, nessa espessura, nessa distância onde invariavelmente somos. Dasein.
segunda-feira, 26 de abril de 2004
Abismadamente
Quando uma geração afirma que teve o privilégio único de ver a mudança de um mundo para outro está, à partida, a excluir outras de um evento tão ímpar. Ainda que alguma verdade a tal ajude, essa geração, ao afirmá-lo, está já a consagrar-se no cume da história. É o que resta da dissipada nuvem dos antigos heróis.
Todas as gerações modernas e actuais têm, no fundo, esse sonho de cariz apocalíptico: ter encarado o céu mais singular, ter tacteado a metamorfose mais exclusiva, ter experimentado o caminho mais excepcional. O ser humano, afinal, é um ser abismado.
Quando uma geração afirma que teve o privilégio único de ver a mudança de um mundo para outro está, à partida, a excluir outras de um evento tão ímpar. Ainda que alguma verdade a tal ajude, essa geração, ao afirmá-lo, está já a consagrar-se no cume da história. É o que resta da dissipada nuvem dos antigos heróis.
Todas as gerações modernas e actuais têm, no fundo, esse sonho de cariz apocalíptico: ter encarado o céu mais singular, ter tacteado a metamorfose mais exclusiva, ter experimentado o caminho mais excepcional. O ser humano, afinal, é um ser abismado.
O diabo-general fotografado
Será que, por trás de toda a legítima generosidade filantrópica (e de todo o humor que a acompanha), o Barnabé já entendeu, ou alguma vez entenderá, o real significado do hiperterrorismo no mundo?
Transformar um general americano em diabo - uma imagem vale mais do que mil conotações escritas - parece mais fácil, para a rapaziada do Barnabé, do que ostentar, de modo acusador, uma imagem do Bin Laden.
O critério chamado democracia - independentemente da não afeição política por Bush Jr. - também não parece ser muito familiar deste blogue.
Será que, por trás de toda a legítima generosidade filantrópica (e de todo o humor que a acompanha), o Barnabé já entendeu, ou alguma vez entenderá, o real significado do hiperterrorismo no mundo?
Transformar um general americano em diabo - uma imagem vale mais do que mil conotações escritas - parece mais fácil, para a rapaziada do Barnabé, do que ostentar, de modo acusador, uma imagem do Bin Laden.
O critério chamado democracia - independentemente da não afeição política por Bush Jr. - também não parece ser muito familiar deste blogue.
domingo, 25 de abril de 2004
Espécies
Estou numa esplanada com um amigo. Ele, físico e pianista, dois num só. Eu, uma amálgama desgraçada que nem vale a pena decompor. Falamos de memória, melhor, falamos do método ideal para decorar números de telemóveis. Conversas de gente inteligente. Eu a explicar o emparcelamento do número e a subsequente associação a datas históricas. Ele a cantar e a traduzir cada dígito em sua nota. Eu a ficcionalizar e ele a fazer da memória uma peça de música. Eu a ver navios no tempo imaginado onde reato factos desde o dia em que carreguei na mala o livro da primeira classe. Ele a ver o mundo sobrelunar tal como Aristóteles o imaginou.
Estou numa esplanada com um amigo. Ele, físico e pianista, dois num só. Eu, uma amálgama desgraçada que nem vale a pena decompor. Falamos de memória, melhor, falamos do método ideal para decorar números de telemóveis. Conversas de gente inteligente. Eu a explicar o emparcelamento do número e a subsequente associação a datas históricas. Ele a cantar e a traduzir cada dígito em sua nota. Eu a ficcionalizar e ele a fazer da memória uma peça de música. Eu a ver navios no tempo imaginado onde reato factos desde o dia em que carreguei na mala o livro da primeira classe. Ele a ver o mundo sobrelunar tal como Aristóteles o imaginou.
Avril au Portugal
O Courrier International traz, no seu número de 22 a 28/4, um suplemento sobre Portugal. Não é de grande qualidade. A pesca na imprensa portuguesa foi má ou então não houve muito por onde escolher. Vou mais por aí. Os nomes que assinam artigos são variados: Loureiro dos Santos, o cartoonista António, Sílvia Cunha, Cesar das Neves, Miguel Esteves Cardoso, Maria Luíza Rolim, Mário Soares, etc.
Entre este colorido Avril au Portugal (lembram-se dessa iniciativa dos sixties?), há um artigo assinado por Luísa Godinho e Cláudia Moura que me chamou a atenção. Nele pretende dar a conhecer-se aquilo que foram os cinco “momentos fortes” dos últimos trinta anos. Para tal, a escolha dos articulistas recai nas maiores manifestações públicas de rua que conhecemos nesse período: o 1º Maio de 1974 (a big manif), o 15 de Outubro de 1984 (CGTP e a tanga a sério), o 6 de Maio de 1994 (a manifestação da “geração rasca”), o 8 de Setembro de 1999 (Timor) e o 21 de março de 2003 (pretensa questão iraquiana).
Teria sido melhor uma escolha doutra natureza, i.e., mais atenta às grandes fases que escalonaram estas três décadas. Proponho estas: (1) de Abril de 1974 a Novembro de 1975 (fase revolucionária e da descolonização); (2) de 1980 a 1986 (fase depressiva: com mais 1/8 da população e na bancarrota, o país bate no fundo); (3) 1986: entrada na então CEE (euforia e fuga para a frente); (4) de 1985 a 1998 fase de reconversão (downzsizing nacional, novo-riquismo e aparecimento da tv privada) e (5) pós-Expo 98 (deslize apático entre confiança e várias crises emergentes).
O Courrier International traz, no seu número de 22 a 28/4, um suplemento sobre Portugal. Não é de grande qualidade. A pesca na imprensa portuguesa foi má ou então não houve muito por onde escolher. Vou mais por aí. Os nomes que assinam artigos são variados: Loureiro dos Santos, o cartoonista António, Sílvia Cunha, Cesar das Neves, Miguel Esteves Cardoso, Maria Luíza Rolim, Mário Soares, etc.
Entre este colorido Avril au Portugal (lembram-se dessa iniciativa dos sixties?), há um artigo assinado por Luísa Godinho e Cláudia Moura que me chamou a atenção. Nele pretende dar a conhecer-se aquilo que foram os cinco “momentos fortes” dos últimos trinta anos. Para tal, a escolha dos articulistas recai nas maiores manifestações públicas de rua que conhecemos nesse período: o 1º Maio de 1974 (a big manif), o 15 de Outubro de 1984 (CGTP e a tanga a sério), o 6 de Maio de 1994 (a manifestação da “geração rasca”), o 8 de Setembro de 1999 (Timor) e o 21 de março de 2003 (pretensa questão iraquiana).
Teria sido melhor uma escolha doutra natureza, i.e., mais atenta às grandes fases que escalonaram estas três décadas. Proponho estas: (1) de Abril de 1974 a Novembro de 1975 (fase revolucionária e da descolonização); (2) de 1980 a 1986 (fase depressiva: com mais 1/8 da população e na bancarrota, o país bate no fundo); (3) 1986: entrada na então CEE (euforia e fuga para a frente); (4) de 1985 a 1998 fase de reconversão (downzsizing nacional, novo-riquismo e aparecimento da tv privada) e (5) pós-Expo 98 (deslize apático entre confiança e várias crises emergentes).
Caprichos
Para o homem pré-moderno, o presente era uma nuvem longilínea assoprada por Deus que desaguaria um dia na eternidade. Para nós, ele é sobretudo um território frágil a habitar, a fruir, a inventar. O problema do antigo homem escatológico e ideológico foi o de ter escravizado o presente ao sabor de ficcionalidades caprichosas, ilusórias e, em última análise, de consequências impositivas e violentas.
Para o homem pré-moderno, o presente era uma nuvem longilínea assoprada por Deus que desaguaria um dia na eternidade. Para nós, ele é sobretudo um território frágil a habitar, a fruir, a inventar. O problema do antigo homem escatológico e ideológico foi o de ter escravizado o presente ao sabor de ficcionalidades caprichosas, ilusórias e, em última análise, de consequências impositivas e violentas.
A gaivota desasada do BdE
Diz Tchernignobyl do Blogue de esquerda:
“também me irrita um bocado uma certa "ideologia de abril" feita de saudosismo estéril e nostalgia pacóvia que roça o ranço das procissões a fátima e que me leva aos extremos do ataque de posoríase quando oiço a "gaivota voava voava".
Que tal esta peça vinda de onde vem?! O Portugal simbólico anda realmente a dançar a Rumba. E ainda bem. Sempre descongestiona os cristais mais arrumadinhos e os fígados ainda melindrados.
Diz Tchernignobyl do Blogue de esquerda:
“também me irrita um bocado uma certa "ideologia de abril" feita de saudosismo estéril e nostalgia pacóvia que roça o ranço das procissões a fátima e que me leva aos extremos do ataque de posoríase quando oiço a "gaivota voava voava".
Que tal esta peça vinda de onde vem?! O Portugal simbólico anda realmente a dançar a Rumba. E ainda bem. Sempre descongestiona os cristais mais arrumadinhos e os fígados ainda melindrados.
Abril – 7
O novo poder instalado em Portugal, depois de 25 de Novembro de 1975, definia a democracia parlamentar como futuro. Em Fevereiro do ano seguinte, o relatório oficial das ocorrências de 25/11 já recorria a uma nova retórica que visava sublimar a euforia e dar inequivocamente lugar à “nova via pluralista para a liberdade”. Era o futuro proposto:
“Este dispositivo legal trata dos seguintes crimes:
Atentados - à Constituição; à integridade territorial da República.
Incitamento à guerra civil.
Levantamento contra o Presidente da República e seu Governo, e
Impedimento de reunião e livre deliberação das Câmaras Legislativas.
Na verdade, após o 25 de Abril, vive-se em Portugal, um estado pré-democrático, sem embargo de estarem de estarem em vigor as regras constitucionais que têm regido a nossa sociedade.
Todavia, os princípios axiológicos que passaram a reinar levam-nos a interpretar a lei segundo o princípio actualista, ou seja, aquele que melhor corresponde aos anseios da sociedade que pretendemos construir.
Ora, a via pluralista em liberdade, rumo ao socialismo, foi o caminho que veio a ser consagrado após a criação de vários partidos políticos, que têm assim, pleno direito a ser ouvidos, após a sua legalização.”(...)
(...)“ resulta do art.º 179 do Código Penal que a sedição consiste apenas na revolta contra as autoridades administrativas e judiciais.
A conjuração ou conspiração teve carácter militar por a sua organização ter sido exercida por indivíduos sujeitos a foro militar”
Em Relatório Preliminar do 25 de Novembro, Destacável, 20-1-1976, A Capital, pp.12-13.
O novo poder instalado em Portugal, depois de 25 de Novembro de 1975, definia a democracia parlamentar como futuro. Em Fevereiro do ano seguinte, o relatório oficial das ocorrências de 25/11 já recorria a uma nova retórica que visava sublimar a euforia e dar inequivocamente lugar à “nova via pluralista para a liberdade”. Era o futuro proposto:
“Este dispositivo legal trata dos seguintes crimes:
Atentados - à Constituição; à integridade territorial da República.
Incitamento à guerra civil.
Levantamento contra o Presidente da República e seu Governo, e
Impedimento de reunião e livre deliberação das Câmaras Legislativas.
Na verdade, após o 25 de Abril, vive-se em Portugal, um estado pré-democrático, sem embargo de estarem de estarem em vigor as regras constitucionais que têm regido a nossa sociedade.
Todavia, os princípios axiológicos que passaram a reinar levam-nos a interpretar a lei segundo o princípio actualista, ou seja, aquele que melhor corresponde aos anseios da sociedade que pretendemos construir.
Ora, a via pluralista em liberdade, rumo ao socialismo, foi o caminho que veio a ser consagrado após a criação de vários partidos políticos, que têm assim, pleno direito a ser ouvidos, após a sua legalização.”(...)
(...)“ resulta do art.º 179 do Código Penal que a sedição consiste apenas na revolta contra as autoridades administrativas e judiciais.
A conjuração ou conspiração teve carácter militar por a sua organização ter sido exercida por indivíduos sujeitos a foro militar”
Em Relatório Preliminar do 25 de Novembro, Destacável, 20-1-1976, A Capital, pp.12-13.
Desculpas
Desde que o Miniscente mudou de face pela última vez que não consigo ler, no computador doméstico, os comentários aos posts. Por causa deste triste prodígio tecnológico, limito-me a ler os ditos comentários ailleurs e sem real poder de resposta. Mil perdões.
Desde que o Miniscente mudou de face pela última vez que não consigo ler, no computador doméstico, os comentários aos posts. Por causa deste triste prodígio tecnológico, limito-me a ler os ditos comentários ailleurs e sem real poder de resposta. Mil perdões.
sábado, 24 de abril de 2004
À brava!
Proposta: vamos agora passar do PREC (Programa de Reciclagem em boa altura Estatuído pela Charlotte) à revalidação dos antigos exames de admissão?
De acordo. E o primeiro aluno a entrar é o “Giro à brava”. O justificativo da admissão é um tanto lendário. Ou seja, não muito longe desta casa onde irei ainda residir durante uma breve quaresma, existe um chafariz chamado “das Bravas”. Diz a lenda que um geniceu ancestral terá dado o nome ao lugar por afastar a ferro e fogo, naquele tempo, a rústica cavalaria masculina da passagem. Esta versão amazónica da festa brava merece, de facto, que lhe acrescentemos o “giro” de teor bairrista e intimista. Por homenagem às imparáveis mulheres. E porque o que é bravo é bom. E giro. Admitido.
Proposta: vamos agora passar do PREC (Programa de Reciclagem em boa altura Estatuído pela Charlotte) à revalidação dos antigos exames de admissão?
De acordo. E o primeiro aluno a entrar é o “Giro à brava”. O justificativo da admissão é um tanto lendário. Ou seja, não muito longe desta casa onde irei ainda residir durante uma breve quaresma, existe um chafariz chamado “das Bravas”. Diz a lenda que um geniceu ancestral terá dado o nome ao lugar por afastar a ferro e fogo, naquele tempo, a rústica cavalaria masculina da passagem. Esta versão amazónica da festa brava merece, de facto, que lhe acrescentemos o “giro” de teor bairrista e intimista. Por homenagem às imparáveis mulheres. E porque o que é bravo é bom. E giro. Admitido.
A nova Constituição
Leia-se:
«As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático».
Sim, este fresquíssimo texto que reviu meteórica e silenciosamente a nossa constituição é, ele mesmo, uma nova constituição. A partir de agora, a futura armadura legal europeia passa a converter-se numa espécie de metatexto do nosso texto constitucional. Até nem estou em desacordo, já que os nossos nacionalismos pueris acabam sempre por conduzir a um misto daquilo que são as nossas maiores desgraças: cunhas, desleixos, negligências, egoísmos e incivilidades. Faz-nos, pois, bem uma moldura legal e vivencial transnacional. Estou certo disso e acho piada aos ares nobilitados, de direita ou de esquerda, dos que se inflamam ao assumirem um papel de protestatários ofendidos.
Agora o que eu acho é que o tema, pela sua importância, devia ter merecido uma discussão séria e longa. Não criar condições para uma discussão pública deste tipo - e foi esse o empenho da maioria PSD PP PS - é, no fundo, exemplificar aquilo que nos faz ser mais mesquinhos e propensos, vamos lá repetir..., à cunhas, aos desleixos, às negligências, aos egoísmos e às ditas incivilidades.
Não é?
Leia-se:
«As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático».
Sim, este fresquíssimo texto que reviu meteórica e silenciosamente a nossa constituição é, ele mesmo, uma nova constituição. A partir de agora, a futura armadura legal europeia passa a converter-se numa espécie de metatexto do nosso texto constitucional. Até nem estou em desacordo, já que os nossos nacionalismos pueris acabam sempre por conduzir a um misto daquilo que são as nossas maiores desgraças: cunhas, desleixos, negligências, egoísmos e incivilidades. Faz-nos, pois, bem uma moldura legal e vivencial transnacional. Estou certo disso e acho piada aos ares nobilitados, de direita ou de esquerda, dos que se inflamam ao assumirem um papel de protestatários ofendidos.
Agora o que eu acho é que o tema, pela sua importância, devia ter merecido uma discussão séria e longa. Não criar condições para uma discussão pública deste tipo - e foi esse o empenho da maioria PSD PP PS - é, no fundo, exemplificar aquilo que nos faz ser mais mesquinhos e propensos, vamos lá repetir..., à cunhas, aos desleixos, às negligências, aos egoísmos e às ditas incivilidades.
Não é?
sexta-feira, 23 de abril de 2004
Recortes Involuntários
Não sei porquê, mas, quando a editora Planeta de Agostini publicou uma edição do meu romance, A Falha, alguém decidiu seleccionar esta passagem para encher a contracapa:
“Sim, foi sempre assim. Durante a vida, fui vendo cair o que, em jovem, parecia estar de pedra e cal. Ou me diziam que estava firme como o aço.”
Quem o afirma, no romance, é um personagem - militar decadente dos idos da Guiné - que, no filme do João Mário Grilo, fez de mau da fita (João Lagarto). No texto, diga-se, não passava de um alarve esvaziado e sem grande futuro à sua espera. Confesso que só hoje, uns bons aninhos depois, é que reparei nessa contracapa.
É como não ver os filhos a crescer. Há grandes desatenções!
Não sei porquê, mas, quando a editora Planeta de Agostini publicou uma edição do meu romance, A Falha, alguém decidiu seleccionar esta passagem para encher a contracapa:
“Sim, foi sempre assim. Durante a vida, fui vendo cair o que, em jovem, parecia estar de pedra e cal. Ou me diziam que estava firme como o aço.”
Quem o afirma, no romance, é um personagem - militar decadente dos idos da Guiné - que, no filme do João Mário Grilo, fez de mau da fita (João Lagarto). No texto, diga-se, não passava de um alarve esvaziado e sem grande futuro à sua espera. Confesso que só hoje, uns bons aninhos depois, é que reparei nessa contracapa.
É como não ver os filhos a crescer. Há grandes desatenções!
Abril - 6
Na véspera da explosão dos emissores da Rádio Renascença, a 6/11/1975, os secretários-gerais do P.C.P. e do P.S. protagonizaram no preto e branco da TV o famoso debate do “Olhe que não, Olhe que não”. Foi um breve momento televisivo de quatro horas. O país seguiu a famosa e previsível retórica da denegação mútua. Vejamos o que diziam nas altura os jornais:
“...é mesmo indispensável que os três partidos maiores do País, que têm estado desde o início associados ao processo iniciado com o 25 de Abril, o P.S., o P.S.D. e o P.C.P., se mantenham ligados através de um projecto comum que vise a instauração da democracia em Portugal, democracia essa a caminho do socialismo.”
Em Soares e Cunhal frente a frente na TV/ Quatro horas sem resposta/ registo da partcipação de Mário Soares; A Capital,7-11-1995, p.2.
“No presente Governo há alguém que representa os interesses contra os quais é dirigida a revolução portuguesa, alguém que representa os interesses das classes privilegiadas, alguém que representa os interesses dos exploradores do nosso Povo”(...)”é o que está a suceder no VI Governo. Com a tentativa de uma viragem à direita, com a tentativa de pôr em causa as conquistas da revolução, com a política prática dos partidos que pertencem ao Governo contra a Reforma Agrária, contra as nacionalizações.”
Em Soares e Cunhal frente a frente na TV/ Quatro horas sem resposta/ registo da participação de Álvaro Cunhal; A Capital,7-11-1995. p.3.
As palavras são translações. Inundações erradicadas, irreais, auguradas. Nada as contém a não ser o tempo. Tudo as despovoa a não ser o tempo. Sempre o tempo, essa magna translação que o corpo não toca. Corpo territorial, animal ou social, eis a breve inundação que o trespassa: palavra ainda distante. Inacabada. Desfocada. Inexistente.
Na véspera da explosão dos emissores da Rádio Renascença, a 6/11/1975, os secretários-gerais do P.C.P. e do P.S. protagonizaram no preto e branco da TV o famoso debate do “Olhe que não, Olhe que não”. Foi um breve momento televisivo de quatro horas. O país seguiu a famosa e previsível retórica da denegação mútua. Vejamos o que diziam nas altura os jornais:
“...é mesmo indispensável que os três partidos maiores do País, que têm estado desde o início associados ao processo iniciado com o 25 de Abril, o P.S., o P.S.D. e o P.C.P., se mantenham ligados através de um projecto comum que vise a instauração da democracia em Portugal, democracia essa a caminho do socialismo.”
Em Soares e Cunhal frente a frente na TV/ Quatro horas sem resposta/ registo da partcipação de Mário Soares; A Capital,7-11-1995, p.2.
“No presente Governo há alguém que representa os interesses contra os quais é dirigida a revolução portuguesa, alguém que representa os interesses das classes privilegiadas, alguém que representa os interesses dos exploradores do nosso Povo”(...)”é o que está a suceder no VI Governo. Com a tentativa de uma viragem à direita, com a tentativa de pôr em causa as conquistas da revolução, com a política prática dos partidos que pertencem ao Governo contra a Reforma Agrária, contra as nacionalizações.”
Em Soares e Cunhal frente a frente na TV/ Quatro horas sem resposta/ registo da participação de Álvaro Cunhal; A Capital,7-11-1995. p.3.
As palavras são translações. Inundações erradicadas, irreais, auguradas. Nada as contém a não ser o tempo. Tudo as despovoa a não ser o tempo. Sempre o tempo, essa magna translação que o corpo não toca. Corpo territorial, animal ou social, eis a breve inundação que o trespassa: palavra ainda distante. Inacabada. Desfocada. Inexistente.
Agit trote (actualizado)
Pezinhos de Charlotte, alcinhas, repuxos de Neptuno, glosas de Campo de Ourique e livros de barbudo: anda mesmo agitado o serviço público do nosso (in)condicional Mexia (juro que o meu apelido é ainda mais mal tratado: dromedário doce sob a fúria de um beduíno radical de Camel entre dedos, pé ante pé a leste de Haifa, sobrevoando um nome que quer dizer em Hebraico "Videiras de Deus").
Irei ouvir os White Stripes: gosto das cores, embora agora a equipa se equipe à Stendhal, e, claro, gostei particularmente da descrição lúbrica, deleitosa e lasciva.
P.S. - Não fumo desde 7 de Março de 1997 (eram 23 horas e eu estava a começar uma gripe), mas não sou fundamentalista. Nem nisso, nem em nada.
Pezinhos de Charlotte, alcinhas, repuxos de Neptuno, glosas de Campo de Ourique e livros de barbudo: anda mesmo agitado o serviço público do nosso (in)condicional Mexia (juro que o meu apelido é ainda mais mal tratado: dromedário doce sob a fúria de um beduíno radical de Camel entre dedos, pé ante pé a leste de Haifa, sobrevoando um nome que quer dizer em Hebraico "Videiras de Deus").
Irei ouvir os White Stripes: gosto das cores, embora agora a equipa se equipe à Stendhal, e, claro, gostei particularmente da descrição lúbrica, deleitosa e lasciva.
P.S. - Não fumo desde 7 de Março de 1997 (eram 23 horas e eu estava a começar uma gripe), mas não sou fundamentalista. Nem nisso, nem em nada.
quinta-feira, 22 de abril de 2004
Brigadeiros
Isto agora é só brigadas: dos costumes, das minas e armadilhas e ainda... a brigada reumática do auto-elogio.
Isto agora é só brigadas: dos costumes, das minas e armadilhas e ainda... a brigada reumática do auto-elogio.
Abril - 5
Um dia antes do golpe de 25 de Novembro, a justiça popular aparecia elogiada no República:
“Na Penha de França, por insuficiente organização, moradores contestaram a decisão de concentração popular de ontem, reunida para levar à prática a sentença do Tribunal Popular da Boa-Hora. A lição é clara: só apoiada no povo a nova justiça de classe das massas poderá ser aplicada pois é ao povo que cabe executar as novas leis que a burguesia não aceita e tenta ainda, a todo o custo, reprimir.”
Em Justiça popular, As lições do Torrão e da Penha de França/Notícia; República, 24-11-1975, p.1.
Na mesma edição, o jornal República referia-se já às movimentações militares que definiam o local do crime anunciado. Talvez não fosse por acaso. Os pára-quedistas “desviados” e “reconsiderados” tinham-se agora tornado no instrumento derradeiro ao serviço do big turn:
“Ao aperceberem-se que isto é uma luta de classes, muitos dos pára-quedistas ontem ‘desviados’, ao regressarem de Angola no ‘Niassa’, para a base aérea da Ota, pelos oficiais reaccionários que vinham com eles no barco desde Luanda” (coronéis Ramos Gonçalves e Almendra) reconsideraram as suas posições. Estão a aparecer aqui na Base Escola de tropas Pára-quedistas em Tancos, vindos da Ota, alguns mesmo chegaram durante a noite.”
Em ‘Páras’ recém-chegados juntam-se aos camaradas de Tancos, Notícia, República, 24-11-1975, p.1.
Um dia antes do golpe de 25 de Novembro, a justiça popular aparecia elogiada no República:
“Na Penha de França, por insuficiente organização, moradores contestaram a decisão de concentração popular de ontem, reunida para levar à prática a sentença do Tribunal Popular da Boa-Hora. A lição é clara: só apoiada no povo a nova justiça de classe das massas poderá ser aplicada pois é ao povo que cabe executar as novas leis que a burguesia não aceita e tenta ainda, a todo o custo, reprimir.”
Em Justiça popular, As lições do Torrão e da Penha de França/Notícia; República, 24-11-1975, p.1.
Na mesma edição, o jornal República referia-se já às movimentações militares que definiam o local do crime anunciado. Talvez não fosse por acaso. Os pára-quedistas “desviados” e “reconsiderados” tinham-se agora tornado no instrumento derradeiro ao serviço do big turn:
“Ao aperceberem-se que isto é uma luta de classes, muitos dos pára-quedistas ontem ‘desviados’, ao regressarem de Angola no ‘Niassa’, para a base aérea da Ota, pelos oficiais reaccionários que vinham com eles no barco desde Luanda” (coronéis Ramos Gonçalves e Almendra) reconsideraram as suas posições. Estão a aparecer aqui na Base Escola de tropas Pára-quedistas em Tancos, vindos da Ota, alguns mesmo chegaram durante a noite.”
Em ‘Páras’ recém-chegados juntam-se aos camaradas de Tancos, Notícia, República, 24-11-1975, p.1.
Eu, ouvinte
Antena 1, 12.33 h: Declaração da Associação Nacional dos Adeptos de Futebol:
“Nós não podemos pagar onde foi um espectáculo de farsa, por isso queremos ser resssarcccidos do nosso dinheiro. É mais uma aiicha para a fogueira. Vai haber fogo mais forte porque os Sandinenses com o Gaondomar pode dar desacatos. Era bão que houvesse uma lufada de luva branca para mostrar que o timing deste processo (apito dourado) está completamente errado”
O dialecto dos arrabaldes continua a falar mais alto que o de Avignon.
Antena 1, 12.33 h: Declaração da Associação Nacional dos Adeptos de Futebol:
“Nós não podemos pagar onde foi um espectáculo de farsa, por isso queremos ser resssarcccidos do nosso dinheiro. É mais uma aiicha para a fogueira. Vai haber fogo mais forte porque os Sandinenses com o Gaondomar pode dar desacatos. Era bão que houvesse uma lufada de luva branca para mostrar que o timing deste processo (apito dourado) está completamente errado”
O dialecto dos arrabaldes continua a falar mais alto que o de Avignon.
A TV na fronteira flexível de Quinta-feira
Vi hoje pela primeira vez o Conselho de Estado que é um programa da 2 (canal público de televisão portuguesa). Tinha acabado de regressar de Lisboa. Dia de trabalho cheio, stressante, denso. Sentei-me no sofá à espera de milagres e eis que deparo com quatro convidados a falar sobre o 25 de Abril, ou sobre já não sei o quê que soube no mínimo a delírio. Dois deles eram blogueadores e eu nunca lhes tinha vislumbrado o rosto e a prosódica. Pedro Lomba da ex-Flor da Obsessão, muito bem comportado, contido e ostentando uma jovial vozinha de rouxinol e o parisiense José Mário Silva do Blogue de Esquerda, um tipo assim para o porreiraço, todo ele a curtir a cena da revolução vs. evolução. Foi giro. Mas o melhor veio da outra banda (digo banda, mais geracional do que talvez política); de um lado, um tal professor catedrático (aonde?), qual peça de museu que me fez lembrar aquelas esfinges ancestrais de l´Ancien Regime a falar da floresta à Junger como refúgio para as heresias da democracia. Uma peça de museu como não via há muito tempo. Giríssimo. Dou outro lado, o Carlos Antunes a dizer que o fascismo ainda hoje existe e, já no fim do programa, a concluir e a repetir que é “muito anarquista, graças a Deus”. Foi um programa giro à brava (Charlotte, tira esta última expressão e também o “professor catedrático”, a “evolução” e a “revolução” e ainda o próprio “Conselho de estado”, está bem?).
Vi hoje pela primeira vez o Conselho de Estado que é um programa da 2 (canal público de televisão portuguesa). Tinha acabado de regressar de Lisboa. Dia de trabalho cheio, stressante, denso. Sentei-me no sofá à espera de milagres e eis que deparo com quatro convidados a falar sobre o 25 de Abril, ou sobre já não sei o quê que soube no mínimo a delírio. Dois deles eram blogueadores e eu nunca lhes tinha vislumbrado o rosto e a prosódica. Pedro Lomba da ex-Flor da Obsessão, muito bem comportado, contido e ostentando uma jovial vozinha de rouxinol e o parisiense José Mário Silva do Blogue de Esquerda, um tipo assim para o porreiraço, todo ele a curtir a cena da revolução vs. evolução. Foi giro. Mas o melhor veio da outra banda (digo banda, mais geracional do que talvez política); de um lado, um tal professor catedrático (aonde?), qual peça de museu que me fez lembrar aquelas esfinges ancestrais de l´Ancien Regime a falar da floresta à Junger como refúgio para as heresias da democracia. Uma peça de museu como não via há muito tempo. Giríssimo. Dou outro lado, o Carlos Antunes a dizer que o fascismo ainda hoje existe e, já no fim do programa, a concluir e a repetir que é “muito anarquista, graças a Deus”. Foi um programa giro à brava (Charlotte, tira esta última expressão e também o “professor catedrático”, a “evolução” e a “revolução” e ainda o próprio “Conselho de estado”, está bem?).
quarta-feira, 21 de abril de 2004
Vidinha sem cenários
As utopias constituíram sempre uma idealidade que se opunha ao vivido. Era essa a sua natureza. Paraíso, ponto ómega, sociedade sem classes, todos eles cenários que funcionavam por contraste com o ici-bas. Outras ficcionalidades mais recentes aproximaram-se da esfera do vivido: Verne, Méliès, Lang ou Mercier. Era a máquina a pulsar, era a máquina investida em mito e transformada em cenário mais tangível. Hoje, caro JMF, o problema já não se põe. Regressámos ao presente, esse campo tradicionalmente flagelado, e desalojámos o futuro enquanto arena de promessas. As ficcionalidades misturaram-se definitivamente com a realidade. Não sou eu que o digo (também). Mas veja-se Sloterdijk, Kerckhove, Wiener, Baudrillard, Virilio. E Steiner, claro. Mais do que edificadora de juízos de valor, à moda iluminista, a lucidez da nossa época recai sobretudo na capacidade de pôr em causa categorias que escreveram milenarmente a escravatura por linhas tortas. Crer para ver. Ver para crer.
As utopias constituíram sempre uma idealidade que se opunha ao vivido. Era essa a sua natureza. Paraíso, ponto ómega, sociedade sem classes, todos eles cenários que funcionavam por contraste com o ici-bas. Outras ficcionalidades mais recentes aproximaram-se da esfera do vivido: Verne, Méliès, Lang ou Mercier. Era a máquina a pulsar, era a máquina investida em mito e transformada em cenário mais tangível. Hoje, caro JMF, o problema já não se põe. Regressámos ao presente, esse campo tradicionalmente flagelado, e desalojámos o futuro enquanto arena de promessas. As ficcionalidades misturaram-se definitivamente com a realidade. Não sou eu que o digo (também). Mas veja-se Sloterdijk, Kerckhove, Wiener, Baudrillard, Virilio. E Steiner, claro. Mais do que edificadora de juízos de valor, à moda iluminista, a lucidez da nossa época recai sobretudo na capacidade de pôr em causa categorias que escreveram milenarmente a escravatura por linhas tortas. Crer para ver. Ver para crer.
Maquinações
Entre a mente e o permanente fluxo (de imagens, entre outros) omnipolitano, temos hoje à nossa disposição demasiados entrepostos que processam a avidez, a fé e a convicção, cada qual mais errante ou perdida nesse mar sem horizonte que se abre entre público e privado, entre realidade e ficção, entre o aqui e o divino império do agora. Manipulações?
Entre a mente e o permanente fluxo (de imagens, entre outros) omnipolitano, temos hoje à nossa disposição demasiados entrepostos que processam a avidez, a fé e a convicção, cada qual mais errante ou perdida nesse mar sem horizonte que se abre entre público e privado, entre realidade e ficção, entre o aqui e o divino império do agora. Manipulações?
Abandonados
Charlotte: é preciso não esquecer que "há ratinhos (as esposas idem idem) que falam por si". Além disso, sabe-se que, a unir escadarias, havia um patamar de ouro que separava os amantes de Verona (estarei a sonhar?). Já agora, junto ao "É assim", enterrava-se - por que será este verbo mais vernáculo do que "mergulhar"? - também o "digamos", o "alegado" e o "prontos". Tá bem? Por fim, é ainda preciso acrescentar que quem se "identifica" com alguma "vertente", ou é porque verte, ou é porque espera a conversão universal, ou é porque troca a tónica no presente do conjuntivo: espero que "consígamos" ganhar o Euro! Arrrggnnnn!
Charlotte: é preciso não esquecer que "há ratinhos (as esposas idem idem) que falam por si". Além disso, sabe-se que, a unir escadarias, havia um patamar de ouro que separava os amantes de Verona (estarei a sonhar?). Já agora, junto ao "É assim", enterrava-se - por que será este verbo mais vernáculo do que "mergulhar"? - também o "digamos", o "alegado" e o "prontos". Tá bem? Por fim, é ainda preciso acrescentar que quem se "identifica" com alguma "vertente", ou é porque verte, ou é porque espera a conversão universal, ou é porque troca a tónica no presente do conjuntivo: espero que "consígamos" ganhar o Euro! Arrrggnnnn!
Intemporalidades - 2
Caro JPP, o fascínio pelas circunstâncias da morte de Hitler é muito semelhante ao medo que o terror - sob a máscara da intemporalidade - nos inspira. A morte dos heróis e dos anti-heróis (neste caso) fica sempre suspensa nesse apego enigmático que pode vestir-se de fascínio ou de terror. Os mistérios da morte de Alexandre-o-Magno foram perpetuados em algumas das versões da Sibila Tiburtina, do mesmo modo que algumas edições forjadas da Profecia de Carlos Magno chegaram a dar nova vida ao super-homem carolíngio.
Caro JPP, o fascínio pelas circunstâncias da morte de Hitler é muito semelhante ao medo que o terror - sob a máscara da intemporalidade - nos inspira. A morte dos heróis e dos anti-heróis (neste caso) fica sempre suspensa nesse apego enigmático que pode vestir-se de fascínio ou de terror. Os mistérios da morte de Alexandre-o-Magno foram perpetuados em algumas das versões da Sibila Tiburtina, do mesmo modo que algumas edições forjadas da Profecia de Carlos Magno chegaram a dar nova vida ao super-homem carolíngio.
Intemporalidades - 1
Voltou a chuva. O rumor quase perdido ao longe a embaciar o tédio. Tempo de águas mil, nesta era em que os heróis deixaram de ter qualquer rosto. Ficou no ar aprenas o brilho que há muito terão criado. Vejo a chuva do outro lado da espessura do vidro e sei que nesta água habita uma nostalgia (ou uma perdição) que não caminha para lado nenhum, a não ser para o esquecimento. Talvez por isso a chuva tenha voltado a cair. Com amor.
Voltou a chuva. O rumor quase perdido ao longe a embaciar o tédio. Tempo de águas mil, nesta era em que os heróis deixaram de ter qualquer rosto. Ficou no ar aprenas o brilho que há muito terão criado. Vejo a chuva do outro lado da espessura do vidro e sei que nesta água habita uma nostalgia (ou uma perdição) que não caminha para lado nenhum, a não ser para o esquecimento. Talvez por isso a chuva tenha voltado a cair. Com amor.
Memórias Escritas - 2
Escrevia eu há uns três anos:
Hoje em dia, ao falarmos de comunidade já estamos sempre a falar de uma amálgama social que se está a transpor para o domínio da rede complexa que interage, de modo cruzado e quase sempre imprevisto, no local, no global, no regional, on ou off-line. O imaginário está a tornar-se numa inteligibilidade cada vez mais fragmentária e dispersa que é partilhada por crescentes homogeneidades (imagens de imagens) que tentam resistir às identidades fundamentalistas, às cascatas de representações locais, às áreas de fragmentação ou aos hibridismos regionais.
Neste processo de tensões diversificadas, muitas vezes mais célere do que a própria capacidade para produzir discursos que o explicassem, o imaginário torna-se porventura no interface que permite equilibrar a grande disjunção entre verdade e sentido que, para Fernando Gil, constitui o par essencial de metáforas da modernidade. Esta disjunção, segundo o autor de Mediações, é, ela mesma, a tensão "entre a eficácia dos formalismos produtores de conhecimento, que são o traço distintivo da modernidade, e a intimidade das pertenças naturais: a uma língua, a uma comunidade, a uma experiência transmitida" (2001, p. 287).
Por outras palavras, dir-se-ia que o conhecimento e os produtos e práticas tecnológicos a ele associados determinam, hoje em dia, homogeneidades que estão a desequilibrar e, portanto, a pressionar as chamadas "pertenças naturais". Neste abismo mundializado, dominado progressivamente pela "metacidade teleóptica" (Virilio), o papel do imaginário continuará a ser o de uma inteligibilidade, é certo, mas cada vez mais centrada na vertigem e no risco das expectativas e idealidades (que não reconstituem em pleno o ser-dito do mundo e o seu jogo de pressões desiguais) do que na produção de discursos propriamente dita.
Teria alguma razão?
Escrevia eu há uns três anos:
Hoje em dia, ao falarmos de comunidade já estamos sempre a falar de uma amálgama social que se está a transpor para o domínio da rede complexa que interage, de modo cruzado e quase sempre imprevisto, no local, no global, no regional, on ou off-line. O imaginário está a tornar-se numa inteligibilidade cada vez mais fragmentária e dispersa que é partilhada por crescentes homogeneidades (imagens de imagens) que tentam resistir às identidades fundamentalistas, às cascatas de representações locais, às áreas de fragmentação ou aos hibridismos regionais.
Neste processo de tensões diversificadas, muitas vezes mais célere do que a própria capacidade para produzir discursos que o explicassem, o imaginário torna-se porventura no interface que permite equilibrar a grande disjunção entre verdade e sentido que, para Fernando Gil, constitui o par essencial de metáforas da modernidade. Esta disjunção, segundo o autor de Mediações, é, ela mesma, a tensão "entre a eficácia dos formalismos produtores de conhecimento, que são o traço distintivo da modernidade, e a intimidade das pertenças naturais: a uma língua, a uma comunidade, a uma experiência transmitida" (2001, p. 287).
Por outras palavras, dir-se-ia que o conhecimento e os produtos e práticas tecnológicos a ele associados determinam, hoje em dia, homogeneidades que estão a desequilibrar e, portanto, a pressionar as chamadas "pertenças naturais". Neste abismo mundializado, dominado progressivamente pela "metacidade teleóptica" (Virilio), o papel do imaginário continuará a ser o de uma inteligibilidade, é certo, mas cada vez mais centrada na vertigem e no risco das expectativas e idealidades (que não reconstituem em pleno o ser-dito do mundo e o seu jogo de pressões desiguais) do que na produção de discursos propriamente dita.
Teria alguma razão?
terça-feira, 20 de abril de 2004
segunda-feira, 19 de abril de 2004
"Matança dos Judeus"
Acabo de ler no Semanário O Templário de Tomar uma reportagem sobre a chamada “Matança dos Judeus”, ritual que é anualmente praticado numa aldeia de nome Soldos. Leia-se a entrada da reportagem:
“Centenas de pessoas assistiram e participaram no passado domingo de Páscoa à Procissão de Aleluia, acontecimento de carácter treligioso, com características únicas no país. Isto porque no final da procissão jovens e crianças partem as cruzes na escadaria da capela, acto designado por “matança dos judeus” e que a igreja não aceita.”
Mais à frente, na reportagem, fica a saber-se que quem coordena a acção são “rapazes e raparigas que fazem 20 anos” no ano em que a festa tem lugar. O que quer dizer que esta singular procissão não é coisa apenas de “crianças”.
Não deixa de ser curioso verificar que as lutas contra os mouros constituem um lugar-comum festivo de norte a sul do país (evocação de guerras escatológicas antigas), sendo a sua contrapartida judaica quase sempre obliterada, esquecida e removida (o desviver histórico tem destas coisas). Ficará para a posteridade esta peculiar excepção de Soldos. Até na catástrofe o anti-semitismo reina subliminarmente.
Acabo de ler no Semanário O Templário de Tomar uma reportagem sobre a chamada “Matança dos Judeus”, ritual que é anualmente praticado numa aldeia de nome Soldos. Leia-se a entrada da reportagem:
“Centenas de pessoas assistiram e participaram no passado domingo de Páscoa à Procissão de Aleluia, acontecimento de carácter treligioso, com características únicas no país. Isto porque no final da procissão jovens e crianças partem as cruzes na escadaria da capela, acto designado por “matança dos judeus” e que a igreja não aceita.”
Mais à frente, na reportagem, fica a saber-se que quem coordena a acção são “rapazes e raparigas que fazem 20 anos” no ano em que a festa tem lugar. O que quer dizer que esta singular procissão não é coisa apenas de “crianças”.
Não deixa de ser curioso verificar que as lutas contra os mouros constituem um lugar-comum festivo de norte a sul do país (evocação de guerras escatológicas antigas), sendo a sua contrapartida judaica quase sempre obliterada, esquecida e removida (o desviver histórico tem destas coisas). Ficará para a posteridade esta peculiar excepção de Soldos. Até na catástrofe o anti-semitismo reina subliminarmente.
Abril - 4
Veja-se no post de hoje como funcionou a turbulência dos média em tempos revolucionários. Deixo aqui um leve sinal para a curta memória que nos liga a esses dias distantes. Já se sabe que as vias plurais são alérgicas às revoluções. Já se sabe que parece apenas existir uma única direcção com dois sentidos estritos em tudo o que acontece e se relata nessas alturas. Ponderados esses aspectos, desconhecidos na prática por malta mais novinha e muito liberal, deixo-vos agora dois comunicados que guardei durante trinta anos no meu arquivo pessoal (é curioso que, na altura, sobretudo a partir do Verão de 1974 - quando fiz 20 anos -, passei a conservar comunicados e recortes de jornal, talvez por ter entendido que o hiato que estávamos então a viver era incomum, singular e sobretudo irrepetível. Isto é, consegui antever em 1974 o horizonte de um futuro blogue que se iria intrometer no meu próprio destino nos idos de 2003) :
“Curiosamente, ou não, é em Outubro que se realiza a primeira R.G.T. para debater a linha ideológica do jornal, a pretexto de um artigo de autoria do senhor António Reis, dirigente do Partido Socialista”(...) Os trabalhadores da ‘República’ reafirmam o carácter apartidário da sua luta, pois apenas desejam participar no produto que fabricam, o que lhes é recusado pela actual Lei de imprensa, mas perfeitamente de acordo como momento revolucionário que o País atravessa.”
em Dos trabalhadores do Jornal Répública /ao Povo Português/s/d (final de Maio de 1975, pp. 1,2 - comunicado)
“Aquele que a si próprio se denomina de ‘Conselho da Revolução’ que afirma caminhar para o socialismo e lutar contra o fascismo, não hesitou em caminhar para o fascismo e lutar contra o socialismo para numa clara desmonstração de barbárie”(...)” calar uma voz ao serviço dos explorados e oprimidos...”
Em Bombas nos emissores da Rádio Renascença/Acção criminosa; 7 e Novembro de 1975, Lisboa (comunicado dos trabalhadores ocupantes da R.R.)
Veja-se no post de hoje como funcionou a turbulência dos média em tempos revolucionários. Deixo aqui um leve sinal para a curta memória que nos liga a esses dias distantes. Já se sabe que as vias plurais são alérgicas às revoluções. Já se sabe que parece apenas existir uma única direcção com dois sentidos estritos em tudo o que acontece e se relata nessas alturas. Ponderados esses aspectos, desconhecidos na prática por malta mais novinha e muito liberal, deixo-vos agora dois comunicados que guardei durante trinta anos no meu arquivo pessoal (é curioso que, na altura, sobretudo a partir do Verão de 1974 - quando fiz 20 anos -, passei a conservar comunicados e recortes de jornal, talvez por ter entendido que o hiato que estávamos então a viver era incomum, singular e sobretudo irrepetível. Isto é, consegui antever em 1974 o horizonte de um futuro blogue que se iria intrometer no meu próprio destino nos idos de 2003) :
“Curiosamente, ou não, é em Outubro que se realiza a primeira R.G.T. para debater a linha ideológica do jornal, a pretexto de um artigo de autoria do senhor António Reis, dirigente do Partido Socialista”(...) Os trabalhadores da ‘República’ reafirmam o carácter apartidário da sua luta, pois apenas desejam participar no produto que fabricam, o que lhes é recusado pela actual Lei de imprensa, mas perfeitamente de acordo como momento revolucionário que o País atravessa.”
em Dos trabalhadores do Jornal Répública /ao Povo Português/s/d (final de Maio de 1975, pp. 1,2 - comunicado)
“Aquele que a si próprio se denomina de ‘Conselho da Revolução’ que afirma caminhar para o socialismo e lutar contra o fascismo, não hesitou em caminhar para o fascismo e lutar contra o socialismo para numa clara desmonstração de barbárie”(...)” calar uma voz ao serviço dos explorados e oprimidos...”
Em Bombas nos emissores da Rádio Renascença/Acção criminosa; 7 e Novembro de 1975, Lisboa (comunicado dos trabalhadores ocupantes da R.R.)
Cruzes literárias
Trata-se, caros amigos, de uma forma extraordinária de inventar o registo para uma voz que subitamente se conhece a si mesma sem limites, sem contingências, sem compulsão. É o Id puro, como diriam os necrófilos. Tenho pena que essa ideia fulminante não me tivesse aparecido numa das minhas obsessivas viagens nocturnas, autoestrada fora. Parabéns Michael Ondaatje (diga-se que o nome do escritor é, ele mesmo, um diminutivo em língua holandesa. Ironia fina?).
Trata-se, caros amigos, de uma forma extraordinária de inventar o registo para uma voz que subitamente se conhece a si mesma sem limites, sem contingências, sem compulsão. É o Id puro, como diriam os necrófilos. Tenho pena que essa ideia fulminante não me tivesse aparecido numa das minhas obsessivas viagens nocturnas, autoestrada fora. Parabéns Michael Ondaatje (diga-se que o nome do escritor é, ele mesmo, um diminutivo em língua holandesa. Ironia fina?).
Diário de um jurado
Ser membro de um júri literário - e estou agora em dois distintos - é uma tarefa ingrata. O mais árduo de tudo é interiorizar um conjunto de critérios sólidos que permitam levar a cabo o crivo, a filtragem, a selecção. A essa racionalidade que se pretende contígua à difícil miragem da objectividade junta-se sempre a flexível, maleável e sinuosa matéria do gosto. Quer se queira quer não, é assim. Dias difíceis e livros por todo o lado.
Ser membro de um júri literário - e estou agora em dois distintos - é uma tarefa ingrata. O mais árduo de tudo é interiorizar um conjunto de critérios sólidos que permitam levar a cabo o crivo, a filtragem, a selecção. A essa racionalidade que se pretende contígua à difícil miragem da objectividade junta-se sempre a flexível, maleável e sinuosa matéria do gosto. Quer se queira quer não, é assim. Dias difíceis e livros por todo o lado.
Sem comentários
Vale a pena ler este extracto da entrevista a Omar Bakri Mohammed, “teórico da al-Qaeda”, publicada ontem no Público:
- Como sabemos que um atentado é realmente da AI-Qaeda?
- É fácil. Em primeiro lugar são sempre operações em grande escala. O texto divino é claro quanto à necessidade de provocar "o máximo dano possível". O operacional tem portanto de certificar-se de que mata o maior número de pessoas que pode matar. Se não o fizer, espera-o o fogo do Inferno. Em segundo lugar, a Al-Qaeda deixa sempre uma impressão digital: uma pista, como um carro com um Corão ou uma cassete, para ser encontrado pela Polícia. Terceiro, os ataques são feitos em dois ou três lugares ao mesmo tempo. Finalmente, a linguagem. Nos comunicados, basta ler uma frase para se reconhecer o seu rigor teórico: não há nenhum sinal de nacionalismo, não se dizem árabes, nem palestinianos, apenas muçulmanos. Falam sempre do martírio, da morte.
- O que pretende a Al-Qaeda?
- O terror. Estão empenhados numa jihad defensiva, contra os que atacaram o Islão. E a longo prazo querem restabelecer o estado islâmico, o califado. E converter o mundo inteiro.
Este mártir retórico vive pacificamente em Londres e goza das liberdades concedidas pela democracia.
E lá vai dizendo estas barbaridades.
Vale a pena ler este extracto da entrevista a Omar Bakri Mohammed, “teórico da al-Qaeda”, publicada ontem no Público:
- Como sabemos que um atentado é realmente da AI-Qaeda?
- É fácil. Em primeiro lugar são sempre operações em grande escala. O texto divino é claro quanto à necessidade de provocar "o máximo dano possível". O operacional tem portanto de certificar-se de que mata o maior número de pessoas que pode matar. Se não o fizer, espera-o o fogo do Inferno. Em segundo lugar, a Al-Qaeda deixa sempre uma impressão digital: uma pista, como um carro com um Corão ou uma cassete, para ser encontrado pela Polícia. Terceiro, os ataques são feitos em dois ou três lugares ao mesmo tempo. Finalmente, a linguagem. Nos comunicados, basta ler uma frase para se reconhecer o seu rigor teórico: não há nenhum sinal de nacionalismo, não se dizem árabes, nem palestinianos, apenas muçulmanos. Falam sempre do martírio, da morte.
- O que pretende a Al-Qaeda?
- O terror. Estão empenhados numa jihad defensiva, contra os que atacaram o Islão. E a longo prazo querem restabelecer o estado islâmico, o califado. E converter o mundo inteiro.
Este mártir retórico vive pacificamente em Londres e goza das liberdades concedidas pela democracia.
E lá vai dizendo estas barbaridades.
quinta-feira, 15 de abril de 2004
Abril - 3
Uma revolução alimenta-se de rumores, de boatos e do diz-se diz-se que é cúmplice do auto-cumprimento profético, embora sempre articulados com a ameaça, com a praga e com o suspense que tende para a iminência. A revolução é (foi) o estar-aqui-a-acontecer-já. Como se o futuro e o passado se contraíssem num único e esperado acontecimento. A revolução é (foi) o superlativo da corrente ideia de crise. Um ápice que se entendeu a si mesmo como a descontinuidade maior face a todas as narrativas. A revolução é o bramir da intemporalidade. Pura negatividade aliada à necessidade.
Leia-se, pois, A Capital de 6 de Julho de 1975. Tudo aí parece translúcido:
“A onda de boatos despontara com o dia de ontem, mais tímida durante a manhã, mais forte e atrevida à medida que o tempo foi passando. Que haveria antagonismos irreparáveis no seio do M.F.A. e do Conselho da Revolução; que, inclusivamente, já teria havido um golpe de estado; que tropas vindas daqui e de além marchavam sobre Lisboa; que o Primeiro-ministro se demitira; que o Ministério de Trabalho fora evacuado; que no decorrer da noite passada se desencadearia um golpe fascista. Enfim, Lisboa e o País em geral foram invadidos por uma vaga alterosa do ‘diz-se que’ dificilmente localizável”
Uma revolução alimenta-se de rumores, de boatos e do diz-se diz-se que é cúmplice do auto-cumprimento profético, embora sempre articulados com a ameaça, com a praga e com o suspense que tende para a iminência. A revolução é (foi) o estar-aqui-a-acontecer-já. Como se o futuro e o passado se contraíssem num único e esperado acontecimento. A revolução é (foi) o superlativo da corrente ideia de crise. Um ápice que se entendeu a si mesmo como a descontinuidade maior face a todas as narrativas. A revolução é o bramir da intemporalidade. Pura negatividade aliada à necessidade.
Leia-se, pois, A Capital de 6 de Julho de 1975. Tudo aí parece translúcido:
“A onda de boatos despontara com o dia de ontem, mais tímida durante a manhã, mais forte e atrevida à medida que o tempo foi passando. Que haveria antagonismos irreparáveis no seio do M.F.A. e do Conselho da Revolução; que, inclusivamente, já teria havido um golpe de estado; que tropas vindas daqui e de além marchavam sobre Lisboa; que o Primeiro-ministro se demitira; que o Ministério de Trabalho fora evacuado; que no decorrer da noite passada se desencadearia um golpe fascista. Enfim, Lisboa e o País em geral foram invadidos por uma vaga alterosa do ‘diz-se que’ dificilmente localizável”
Evolução vs. Revolução
Evoluir é melhorar no tempo. Revolucionar é mudar drasticamente. A primeira vive de uma crença e de uma visão de inevitável aperfeiçoamento. A segunda vive de um clímax sem direcção e de uma viragem onde a simulação do absoluto se confunde com o caos, tal como nos hakai. O que separa a evolução da revolução? O tempo e a miragem das palavras, mais nada.
Não acredito muito na primeira e vejo a segunda como uma pura negatividade. Mas ambas podem subitamente saltar da hibernação retórica - em que vivem nos cartazes de hoje em dia - para a objectividade mais imponderável. O que foi afinal o 9/11? Evolução inevitável ou revolução imprevisível? Eu creio que foi uma e outra. Subterraneamente, assim foi e é. Infelizmente.
Evoluir é melhorar no tempo. Revolucionar é mudar drasticamente. A primeira vive de uma crença e de uma visão de inevitável aperfeiçoamento. A segunda vive de um clímax sem direcção e de uma viragem onde a simulação do absoluto se confunde com o caos, tal como nos hakai. O que separa a evolução da revolução? O tempo e a miragem das palavras, mais nada.
Não acredito muito na primeira e vejo a segunda como uma pura negatividade. Mas ambas podem subitamente saltar da hibernação retórica - em que vivem nos cartazes de hoje em dia - para a objectividade mais imponderável. O que foi afinal o 9/11? Evolução inevitável ou revolução imprevisível? Eu creio que foi uma e outra. Subterraneamente, assim foi e é. Infelizmente.
Abril - 2
Deixo hoje, sem quaisquer comentários, este excerto de uma entrevista dada pelo secretário geral do PPD (hoje PSD), Emídio Guerreiro, retirado do Jornal Novo de 26 de Maio de 1975 (página 3):
“Se é verdade que o PS diz defender uma sociedade socialista sem passar pela etapa da ditadura do proletariado, considerada necessária na teoria marxista, então estamos de acordo. Simplesmente nunca o PS disse como é possível passar para essa sociedade socialista, sem passar pela tal fase da ditadura do proletariado. Enquanto que nós definimo-la de uma maneira muito clara. É necessário que seja nacionalizado o capital financeiro, o que já foi feito. Em segundo lugar, que seja nacionalizado o capital industrial, o que está ligado à nacionalização da banca, uma vez que a maior parte das indústrias estavam dependentes do capital financeiro. E, finalmente, que seja nacionalizado o capital agrário”
As revoluções contam grandes histórias!
Deixo hoje, sem quaisquer comentários, este excerto de uma entrevista dada pelo secretário geral do PPD (hoje PSD), Emídio Guerreiro, retirado do Jornal Novo de 26 de Maio de 1975 (página 3):
“Se é verdade que o PS diz defender uma sociedade socialista sem passar pela etapa da ditadura do proletariado, considerada necessária na teoria marxista, então estamos de acordo. Simplesmente nunca o PS disse como é possível passar para essa sociedade socialista, sem passar pela tal fase da ditadura do proletariado. Enquanto que nós definimo-la de uma maneira muito clara. É necessário que seja nacionalizado o capital financeiro, o que já foi feito. Em segundo lugar, que seja nacionalizado o capital industrial, o que está ligado à nacionalização da banca, uma vez que a maior parte das indústrias estavam dependentes do capital financeiro. E, finalmente, que seja nacionalizado o capital agrário”
As revoluções contam grandes histórias!
terça-feira, 13 de abril de 2004
Abril - 1
Um tempo com trinta anos é um tempo que já não vê o que antes existiu. Fica a baça bainha da memória, película escondida mas actual a que se chega mediante imagens suspensas, destaques súbitos e acenos involuntários. Relembrar é pôr em marcha um filme caótico, cuja montagem é um produto de agentes que superam a nossa capacidade presente de agenciar.
Lembro, logo ficcionalizo.
Isso acontece quando me ponho a discorrer sobre o que se passava em Portugal antes de 25/04/1974 e o conto a quem nunca viveu em tais cenários. O mesmo se passaria com os meus pais quando, há mais de três décadas, me relatavam factos marcantes do tempo da Segunda Grande Guerra Mundial. O mesmo se passa sempre que o homem tenta aproximar do outro o relato do vivido, o enunciado simulado e fragmentário do acontecido, o relatório embaciado e implacável do que antes foi e terá sido visto.
Só existirá uma lógica compreensiva e descomplexada para o 25 de Abril, se se entender o Leviatã (mais Hobbes e menos Auster) vivido até então. Ou seja:
Uma espécie de pacto com o pudor aqui e ali interrompido por vozes discordantes, um vazio e um fechamento radicais da arena pública, um medo generalizado em pronunciar certas palavras, o tabu e a mentira a governar as manchetes dos jornais, uma ruralidade dominante e entristecida, um desmesurado atropelo das liberdades mínimas, um imenso atraso face à Europa e o compassado e acinzentado discurso da brigada do reumático que dominava o país. Portugal era uma espécie de país feito de memória, sem ligação ao presente de então e sem qualquer futuro. Em Portugal havia uma desmedida violência comprimida. Na universidade, os estudantes impacientavam-se diante dos gorilas e os ícones do tempo deslizavam impávidos, pouco serenos e sempre a preto e branco: autocarros de dois andares da carris, brandy Macieira, Eusébio eufórico, Madalena Iglésias sofredora, Ramiro Valadão de fraque, O´Neill lendário, a Amália a embarcar pelas canções (a Mariquinhas), o Varatojo a divertir, o Zip a assustar, o Nemésio a brilhar, o Caetano a tentar falar pela tv e Angola ao longe e aqui tão perto. Tanta deserção, tanto refractário, tanta partida a salto. Havia em alguns um sonho sem limites e havia noutros uma tremenda inacção imobilista (a petição de princípio metaforiza bem o estado vivido). Tudo descentrado e prestes a romper. Em Portugal havia uma acumulada violência. Comprimida. Sem saída. Um beco. Mudo. A caminho de sítio nenhum. Mais: Portugal estava condenado por ambos os lados da Guerra-fria.
Era assim, sem mais nem menos. Eu estava lá, no segundo ano da universidade. Parece que foi há séculos. Na Primavera de 1973 passara pela Dinamarca e em Agosto desse ano tinha estado na Holanda e em França (tal como em 1972, então por muito mais tempo). Sabia-se que algo estava iminente. Era tarde demais para qualquer tipo de transição pacífica.
Um tempo com trinta anos é um tempo que já não vê o que antes existiu. Fica a baça bainha da memória, película escondida mas actual a que se chega mediante imagens suspensas, destaques súbitos e acenos involuntários. Relembrar é pôr em marcha um filme caótico, cuja montagem é um produto de agentes que superam a nossa capacidade presente de agenciar.
Lembro, logo ficcionalizo.
Isso acontece quando me ponho a discorrer sobre o que se passava em Portugal antes de 25/04/1974 e o conto a quem nunca viveu em tais cenários. O mesmo se passaria com os meus pais quando, há mais de três décadas, me relatavam factos marcantes do tempo da Segunda Grande Guerra Mundial. O mesmo se passa sempre que o homem tenta aproximar do outro o relato do vivido, o enunciado simulado e fragmentário do acontecido, o relatório embaciado e implacável do que antes foi e terá sido visto.
Só existirá uma lógica compreensiva e descomplexada para o 25 de Abril, se se entender o Leviatã (mais Hobbes e menos Auster) vivido até então. Ou seja:
Uma espécie de pacto com o pudor aqui e ali interrompido por vozes discordantes, um vazio e um fechamento radicais da arena pública, um medo generalizado em pronunciar certas palavras, o tabu e a mentira a governar as manchetes dos jornais, uma ruralidade dominante e entristecida, um desmesurado atropelo das liberdades mínimas, um imenso atraso face à Europa e o compassado e acinzentado discurso da brigada do reumático que dominava o país. Portugal era uma espécie de país feito de memória, sem ligação ao presente de então e sem qualquer futuro. Em Portugal havia uma desmedida violência comprimida. Na universidade, os estudantes impacientavam-se diante dos gorilas e os ícones do tempo deslizavam impávidos, pouco serenos e sempre a preto e branco: autocarros de dois andares da carris, brandy Macieira, Eusébio eufórico, Madalena Iglésias sofredora, Ramiro Valadão de fraque, O´Neill lendário, a Amália a embarcar pelas canções (a Mariquinhas), o Varatojo a divertir, o Zip a assustar, o Nemésio a brilhar, o Caetano a tentar falar pela tv e Angola ao longe e aqui tão perto. Tanta deserção, tanto refractário, tanta partida a salto. Havia em alguns um sonho sem limites e havia noutros uma tremenda inacção imobilista (a petição de princípio metaforiza bem o estado vivido). Tudo descentrado e prestes a romper. Em Portugal havia uma acumulada violência. Comprimida. Sem saída. Um beco. Mudo. A caminho de sítio nenhum. Mais: Portugal estava condenado por ambos os lados da Guerra-fria.
Era assim, sem mais nem menos. Eu estava lá, no segundo ano da universidade. Parece que foi há séculos. Na Primavera de 1973 passara pela Dinamarca e em Agosto desse ano tinha estado na Holanda e em França (tal como em 1972, então por muito mais tempo). Sabia-se que algo estava iminente. Era tarde demais para qualquer tipo de transição pacífica.
Máquinas propulsoras
Escreveu Paul Auster, em Experiências com a Verdade, que o seu primeiro romance foi “inspirado por um número errado” (ver capítulo 13). No meu caso - que escrevi onze romances nos últimos 22 anos (decidi não publicar apenas dois até agora) -, devo dizer que a primeiríssima inspiração que velejou até ao limiar dos meus sentidos foi uma poderosa constipação nos idos de 1982.
No Outono desse ano, percebi que a transgressão das narrativas é quase sempre um problema de mal estar (nasal, gutural, vocal,velar, etc.). Aspira-se a muito e inspira-se muito pouco. Ousa-se muito e expira-se ainda menos. Há sempre um desacerto entre o que se vislumbra (e se vê) e aquilo que se respira (e se sente).
Uma constipação pode ser, de certo modo, um número errado. Há palcos e palcos para números que não batem certo. Uma narrativa que transgride as narrativas correntes da vida é uma ficção onde o desacerto respira um ambiente distante e vislumbra um mal estar demasiado próximo. Daí que a catarse seja sempre um atributo próprio das existências que não têm sentido, incluindo as que batem à porta de pitagóricos e hipocráticos.
Uns e outros preocupados com o mesmo desvio à norma: ou número fora do sítio, ou sintoma corporal fora do sítio. Por outras palavras ainda: dígito vs constipação; eis a questão.
Escreveu Paul Auster, em Experiências com a Verdade, que o seu primeiro romance foi “inspirado por um número errado” (ver capítulo 13). No meu caso - que escrevi onze romances nos últimos 22 anos (decidi não publicar apenas dois até agora) -, devo dizer que a primeiríssima inspiração que velejou até ao limiar dos meus sentidos foi uma poderosa constipação nos idos de 1982.
No Outono desse ano, percebi que a transgressão das narrativas é quase sempre um problema de mal estar (nasal, gutural, vocal,velar, etc.). Aspira-se a muito e inspira-se muito pouco. Ousa-se muito e expira-se ainda menos. Há sempre um desacerto entre o que se vislumbra (e se vê) e aquilo que se respira (e se sente).
Uma constipação pode ser, de certo modo, um número errado. Há palcos e palcos para números que não batem certo. Uma narrativa que transgride as narrativas correntes da vida é uma ficção onde o desacerto respira um ambiente distante e vislumbra um mal estar demasiado próximo. Daí que a catarse seja sempre um atributo próprio das existências que não têm sentido, incluindo as que batem à porta de pitagóricos e hipocráticos.
Uns e outros preocupados com o mesmo desvio à norma: ou número fora do sítio, ou sintoma corporal fora do sítio. Por outras palavras ainda: dígito vs constipação; eis a questão.
John Kekes e a educação
Sobre a resposta de MacGuffin à minha glosa pré-Pascal a um texto de Kekes devo esclarecer o seguinte:
1 - Um filósofo, tal como o ocidente secularmente o imaginou, é um actor que recoloca a realidade perante a avidez que é ser, dever ser, conhecer, interpretar e agir. Não revi tais atributos no discurso parcial de Kekes que pude interiorizar. Salvaguardo, no entanto, a minha radical ignorância sobre os eixos fundamentais da sua escrita e pensamento (fica a motivação para lê-lo), transposta, aliás, na paródia em tom de glosa bem disposta que na altura escrevi.
2- Pedi, na altura, desculpa ao meu amigo MacGuffin apenas porque senti existir um plano de identificação entre ele e Kekes. A desculpa é um dom retórico convocado pelo desejo de aproximação e partilha entre interlocutores diferentes.
3- Por fim, quanto ao óbvio na educação, devo acrescentar que o meu cepticismo de fundo (face às representações sociais de futuros possíveis), aliado ao meu optimismo pragmático (perante o labirinto da vida no dia a dia), já não apascenta uma grande vontade de interferir nos resultados de uma massificação tardia e com razoáveis perdas de sentido - na minha perspectiva geracional - que transformaram a educação numa espécie de oficina corporativa dos tempos livres, do mau gosto, da ignorância e do exercício de palavras ordens não exigentes. Olho para esse espectáculo com estoicismo, mas sinto-me alheio a ele. Tenho esse direito que é mais uma opção crítica no espaço público do que uma desistência (tento, nos mestrados em que lecciono, encontrar uma posição de nicho utópico e resistente. É talvez o que me restará, como vestígio, das voragens militantes). E nessa medida o que Kekes afirma parece-me justamente inocente, obviamente retrospectivado e generosamente redundante. Como se eu apontasse para um muro para concluir que há um muro a ser apontado. Como se eu afirmasse que devia estar de pé para caminhar numa certa direcção de modo decidido. Como se eu me risse para inferir que há coisas na vida que me permitem ter acessos de riso.
Sobre a resposta de MacGuffin à minha glosa pré-Pascal a um texto de Kekes devo esclarecer o seguinte:
1 - Um filósofo, tal como o ocidente secularmente o imaginou, é um actor que recoloca a realidade perante a avidez que é ser, dever ser, conhecer, interpretar e agir. Não revi tais atributos no discurso parcial de Kekes que pude interiorizar. Salvaguardo, no entanto, a minha radical ignorância sobre os eixos fundamentais da sua escrita e pensamento (fica a motivação para lê-lo), transposta, aliás, na paródia em tom de glosa bem disposta que na altura escrevi.
2- Pedi, na altura, desculpa ao meu amigo MacGuffin apenas porque senti existir um plano de identificação entre ele e Kekes. A desculpa é um dom retórico convocado pelo desejo de aproximação e partilha entre interlocutores diferentes.
3- Por fim, quanto ao óbvio na educação, devo acrescentar que o meu cepticismo de fundo (face às representações sociais de futuros possíveis), aliado ao meu optimismo pragmático (perante o labirinto da vida no dia a dia), já não apascenta uma grande vontade de interferir nos resultados de uma massificação tardia e com razoáveis perdas de sentido - na minha perspectiva geracional - que transformaram a educação numa espécie de oficina corporativa dos tempos livres, do mau gosto, da ignorância e do exercício de palavras ordens não exigentes. Olho para esse espectáculo com estoicismo, mas sinto-me alheio a ele. Tenho esse direito que é mais uma opção crítica no espaço público do que uma desistência (tento, nos mestrados em que lecciono, encontrar uma posição de nicho utópico e resistente. É talvez o que me restará, como vestígio, das voragens militantes). E nessa medida o que Kekes afirma parece-me justamente inocente, obviamente retrospectivado e generosamente redundante. Como se eu apontasse para um muro para concluir que há um muro a ser apontado. Como se eu afirmasse que devia estar de pé para caminhar numa certa direcção de modo decidido. Como se eu me risse para inferir que há coisas na vida que me permitem ter acessos de riso.
Memórias escritas - 1
Escrevia eu há cinco Páscoas:
Por outras palavras, talvez soçobre em tudo isto um certo paralelismo acutilante, mas sempre silencioso, ou seja, - o globário em que vivemos é tão potente e está de tal forma em expansão que apenas o sentimos na razão directa da sua própria invisibilidade. Como o Deus do ano 1000, também o globário do ano 2000 é invisível e omnipresente. O que nos faltará, para além da crença e da dúvida metódica ou hiperbólica, é, porventura, distinguir os limites e as configurações exteriores deste nosso globário, do mesmo modo que o protagonista do recente filme, The Truman Show - A vida em directo de Peter Weir (1998), o desvendou, depois de muita e persistente pesquisa.
Teria razão?
Escrevia eu há cinco Páscoas:
Por outras palavras, talvez soçobre em tudo isto um certo paralelismo acutilante, mas sempre silencioso, ou seja, - o globário em que vivemos é tão potente e está de tal forma em expansão que apenas o sentimos na razão directa da sua própria invisibilidade. Como o Deus do ano 1000, também o globário do ano 2000 é invisível e omnipresente. O que nos faltará, para além da crença e da dúvida metódica ou hiperbólica, é, porventura, distinguir os limites e as configurações exteriores deste nosso globário, do mesmo modo que o protagonista do recente filme, The Truman Show - A vida em directo de Peter Weir (1998), o desvendou, depois de muita e persistente pesquisa.
Teria razão?
quinta-feira, 8 de abril de 2004
Já venho!
Saio de casa com destino incerto. Para leste de Coimbra, algures na montanha. Serra do Açor, cabritos e outros desideratos da ordem pagã. Há mais Miniscente a partir de Segunda-Feira. Boa Páscoa para todos!
Saio de casa com destino incerto. Para leste de Coimbra, algures na montanha. Serra do Açor, cabritos e outros desideratos da ordem pagã. Há mais Miniscente a partir de Segunda-Feira. Boa Páscoa para todos!
E pronto,
agora é tempo para ouvir o último Recitativo (com coro) da Paixão Segundo S. Mateus (Munchener Bach-Orchester e Munchener Bach-Chor sob a direcção de Karl Richter). Não tem nada a ver com a mitologia cristã, mas tão-só com o hábito que tinha em Amesterdão de ir ouvir ao vivo ao saudoso Concert Gebouw as quatro horas da Paixão. Era bom, sabia bem, desafiava o leque dos meus gostos e punha-me a pensar de forma mais cristalina e satírica sempre que passeava solitariamente ao longo dos canais do meu bairro. Ainda lá estou.
agora é tempo para ouvir o último Recitativo (com coro) da Paixão Segundo S. Mateus (Munchener Bach-Orchester e Munchener Bach-Chor sob a direcção de Karl Richter). Não tem nada a ver com a mitologia cristã, mas tão-só com o hábito que tinha em Amesterdão de ir ouvir ao vivo ao saudoso Concert Gebouw as quatro horas da Paixão. Era bom, sabia bem, desafiava o leque dos meus gostos e punha-me a pensar de forma mais cristalina e satírica sempre que passeava solitariamente ao longo dos canais do meu bairro. Ainda lá estou.
quarta-feira, 7 de abril de 2004
Glosa sobre Kekes e um risinho de Parascese
O meu ciberamigo MacGuffin convidou-nos a clicar numa passagem de um post seu para que melhor conhecêssemos “um dos mais lúcidos e importantes filósofos da actualidade”, de seu nome John Kekes.
Cliquei, li e não me impressionei. Algum constrangimento chegou mesmo a invadir-me a alma, por achar que um grande filósofo fará tudo menos proceder ao inventário do que se sabe ser óbvio. Deixo por baixo o clímax da sua reflexão e uma glosa que me entreti a redigir para melhor denotar o espírito obviamente correcto.
Não leves a mal MacGuffin! It´s not personal or ideological or whatever!
Segue-se parte de conferência de John Kekes proferida no North American Philosophy of Education Society Meeting que decorreu em Toronto, no mês passado:
“Higher education is the process of increasing the fund of truths and transmitting it from one generation to the next. These activities are possible only if professors concentrate on their professional obligation of teaching and research; have and are recognized to have substantially more knowledge and experience in some subject-matter than their students; accept and use responsibly their authority in order to maintain standards; and universities and colleges reflect this authority by their hierarchical structure. Higher education can be effective, therefore, only if it safeguards these conditions.”
E, agora, algo completamente diferente (i.e., uma glosa homológica, ao correr da pena, sobre tais indesmentíveis verdades):
“Um ovo resulta de um processo de engendramento e de transmissão genética que assegura a passagem de gerações. O ovo só é possível se galos e galinhas se concentrarem na suas obrigações funcionais de procriar e sobretudo de procurar fazê-lo com o maior empenho e adequado sentido de pesquisa de poleiro; se galos e galinhas demonstrarem perante os seres emergentes do ovo mais experiência e conhecimento visando naturalmente a preservação de standards; e se capoeiras e quintais abertos (não tanto os aviários) reflectirem esta autoridade através da repectiva estrutura hierárquica. A boa produção de ovos pode e deve, portanto, ser efectiva, mas apenas se estas condições forem salvaguardadas.”
Não consegui conter-me. Não faz mal a ninguém brincar (até com coisas sérias). No fundo, no fundo, sempre é tempo de Parascese!
O meu ciberamigo MacGuffin convidou-nos a clicar numa passagem de um post seu para que melhor conhecêssemos “um dos mais lúcidos e importantes filósofos da actualidade”, de seu nome John Kekes.
Cliquei, li e não me impressionei. Algum constrangimento chegou mesmo a invadir-me a alma, por achar que um grande filósofo fará tudo menos proceder ao inventário do que se sabe ser óbvio. Deixo por baixo o clímax da sua reflexão e uma glosa que me entreti a redigir para melhor denotar o espírito obviamente correcto.
Não leves a mal MacGuffin! It´s not personal or ideological or whatever!
Segue-se parte de conferência de John Kekes proferida no North American Philosophy of Education Society Meeting que decorreu em Toronto, no mês passado:
“Higher education is the process of increasing the fund of truths and transmitting it from one generation to the next. These activities are possible only if professors concentrate on their professional obligation of teaching and research; have and are recognized to have substantially more knowledge and experience in some subject-matter than their students; accept and use responsibly their authority in order to maintain standards; and universities and colleges reflect this authority by their hierarchical structure. Higher education can be effective, therefore, only if it safeguards these conditions.”
E, agora, algo completamente diferente (i.e., uma glosa homológica, ao correr da pena, sobre tais indesmentíveis verdades):
“Um ovo resulta de um processo de engendramento e de transmissão genética que assegura a passagem de gerações. O ovo só é possível se galos e galinhas se concentrarem na suas obrigações funcionais de procriar e sobretudo de procurar fazê-lo com o maior empenho e adequado sentido de pesquisa de poleiro; se galos e galinhas demonstrarem perante os seres emergentes do ovo mais experiência e conhecimento visando naturalmente a preservação de standards; e se capoeiras e quintais abertos (não tanto os aviários) reflectirem esta autoridade através da repectiva estrutura hierárquica. A boa produção de ovos pode e deve, portanto, ser efectiva, mas apenas se estas condições forem salvaguardadas.”
Não consegui conter-me. Não faz mal a ninguém brincar (até com coisas sérias). No fundo, no fundo, sempre é tempo de Parascese!
terça-feira, 6 de abril de 2004
Muitos mares
Tenho estado concentrado numa personagem. Se tiver tempo livre nos próximos dias, irei continuar a desenhá-la independentemente do enredo onde possa vir a comparecer. Aliás, o escorço que a fez vir ao ser já foi publicado em conto (se não me engano, num DN-A de 2001). Mas agora voltei a ter vontade de expandir essa minha personagem e de a fazer capilarmente desaguar em muitos mares. Há coisas assim, sem qualquer explicação. A única vez que uma personagem minha saltou de um romance para outro foi uma personagem secundária que aparece, quer em A Falha (1998), quer em As Saudades do Mundo (1999). Chama-se Dália e ainda a estou a ver com grande nitidez (muito pouca gente terá notado esta sequência, embora haja excepções - até cinematográficas).
Esta personagem que agora me tem interrompido a quietude pascal está nos antípodas de Dália. Não é jovem, não é compassiva, não é irradiante, não é bonita, não é serena e sobretudo não é doce. Em 2001, era assim que um jovem personagem observava este - apenas aparente - ser diabólico (aqui designado por XXX):
Olhava para os joelhos brancos e redondos, para as coxas a vaguearem de penumbra e formas espantosas, ou para os dedos que desciam sob a secretária a tentarem pôr ordem nos tecidos da saia, no suor, na vista desarmada e pura. E mais tarde, já na cantina, a professora dirigiu-se-me e perguntou se eu tinha lido bem o Principezinho do Saint-Exupéry. Li-o nessa noite e foi o que, no outro dia, saiu no exame. Além do mais, lembro-me que ela sorria durante a prova, que ela mexia os lábios como se voasse sobre relâmpagos que rasgavam o céu, que ela levantava a mão no ar com moleza e vagar, antes de cada 'très bien', 'très bien'. Depois... foram os encontros por acaso ou as coincidências forçadas, na pastelaria, junto ao cais das canoas, no parque e até à porta da discoteca da ponte, junto ao descampado; era já Julho e eu andava de calções a correr como um animal atrás da bicicleta ou de uma bola preta e branca, atrás dos abismos do jogo, atrás de uma iniciática dança de gritos, saltos e adulações que são próprias da idade, dizem. Era um narcisismo caprichoso e involuntário, mas que, ao longe, dentro do Taunus esverdeado, era atenciosamente seguido por XXX com as tranças já atadas no alto da cabeça.
É esta “professora” que anda agora no encalço ficcional da bela repetição. Tal como aconteceu com Dália, mas em voos mais altos. Juro.
Tenho estado concentrado numa personagem. Se tiver tempo livre nos próximos dias, irei continuar a desenhá-la independentemente do enredo onde possa vir a comparecer. Aliás, o escorço que a fez vir ao ser já foi publicado em conto (se não me engano, num DN-A de 2001). Mas agora voltei a ter vontade de expandir essa minha personagem e de a fazer capilarmente desaguar em muitos mares. Há coisas assim, sem qualquer explicação. A única vez que uma personagem minha saltou de um romance para outro foi uma personagem secundária que aparece, quer em A Falha (1998), quer em As Saudades do Mundo (1999). Chama-se Dália e ainda a estou a ver com grande nitidez (muito pouca gente terá notado esta sequência, embora haja excepções - até cinematográficas).
Esta personagem que agora me tem interrompido a quietude pascal está nos antípodas de Dália. Não é jovem, não é compassiva, não é irradiante, não é bonita, não é serena e sobretudo não é doce. Em 2001, era assim que um jovem personagem observava este - apenas aparente - ser diabólico (aqui designado por XXX):
Olhava para os joelhos brancos e redondos, para as coxas a vaguearem de penumbra e formas espantosas, ou para os dedos que desciam sob a secretária a tentarem pôr ordem nos tecidos da saia, no suor, na vista desarmada e pura. E mais tarde, já na cantina, a professora dirigiu-se-me e perguntou se eu tinha lido bem o Principezinho do Saint-Exupéry. Li-o nessa noite e foi o que, no outro dia, saiu no exame. Além do mais, lembro-me que ela sorria durante a prova, que ela mexia os lábios como se voasse sobre relâmpagos que rasgavam o céu, que ela levantava a mão no ar com moleza e vagar, antes de cada 'très bien', 'très bien'. Depois... foram os encontros por acaso ou as coincidências forçadas, na pastelaria, junto ao cais das canoas, no parque e até à porta da discoteca da ponte, junto ao descampado; era já Julho e eu andava de calções a correr como um animal atrás da bicicleta ou de uma bola preta e branca, atrás dos abismos do jogo, atrás de uma iniciática dança de gritos, saltos e adulações que são próprias da idade, dizem. Era um narcisismo caprichoso e involuntário, mas que, ao longe, dentro do Taunus esverdeado, era atenciosamente seguido por XXX com as tranças já atadas no alto da cabeça.
É esta “professora” que anda agora no encalço ficcional da bela repetição. Tal como aconteceu com Dália, mas em voos mais altos. Juro.
Hiatos
Quando não se escreve sistematicamente no blogue, pressente-se que a escrita neste tipo de vaivém não é da ordem do prazer nem do desprazer. É antes um fluxo de actualizações, disperso e inorgânico por natureza, que pode conduzir ao mais imprevisível. É nesse horizonte denso e despovoado que agora estou. De frente para o despertar do pessegueiro.
Quando não se escreve sistematicamente no blogue, pressente-se que a escrita neste tipo de vaivém não é da ordem do prazer nem do desprazer. É antes um fluxo de actualizações, disperso e inorgânico por natureza, que pode conduzir ao mais imprevisível. É nesse horizonte denso e despovoado que agora estou. De frente para o despertar do pessegueiro.
domingo, 4 de abril de 2004
Questões incómodas a enfrentar
Portugal começa agora a desestruturar a intelligentsia acumulada nos últimos 30 anos. Não se trata de pôr em causa o que, em linguagem revolucionária, se denominou por “conquistas”, mas sim de realinhavar no tempo de hoje aquilo que se foi tornando, ano após ano, em dogma inamovível, em peso morto, ou em hábito anquilosado. Recorrendo a uma parábola da natureza, dir-se-ia que o que está em curso é uma lenta operação que consiste em podar a árvore para melhor reencontrar a fertilidade dos rebentos.
Uma das constantes mais emblemáticas destas últimas três décadas tem sido o propósito e a relevância atribuídos ao “poder local”, ao “regionalismo” e ao “interior”, três preciosas metáforas sistémicas com que a face do país trocou a sua imagem pelo espelho de princípios que constitucional e vivencialmente abençoou.
No programa Directo ao Assunto (TSF) de 4 de Abril, Saldanha Sanches confirmou, sem peias nem receios, esta escalada desestruturante. Ouçamo-lo a ele e não só (as citações não são decalcadas): “a actual descentralização é sinistra”. “Defendo a centralização, pois claro. Até porque o que se quer é um estado a funcionar bem e com muito poucos funcionários”. “O Portugal litoral, que é o que funciona, deverá inevitavelmente conduzir o país”. “Ainda que seja óptimo registar, em certas cidades médias do interior, a existência de uma boa qualidade de vida”. António Barreto, no mesmo programa, segue as pisadas de Sanches: “Tenho simpatia pelas afirmações de Saldanha Sanches. Sempre que ouço os partidos, nas pré-campanhas eleitorais a falarem da fixação de populações no interior, estremeço”. “Criar estruturas no interior sim, mas não ter em conta a liberdade das pessoas, isso é tremendo” e violentamente demagógico - acrescentaria eu. Dizia ainda Barreto, e bem, que há locais, no mundo e mesmo no país, quase sem população que são "extraordinários".
É verdade que, no fundo, o exercício radicalmente aberto da democracia apenas existe em pleno nos locais onde se verifica alguma escala e não, necessariamente, em todos os pequenos meios. A proximidade das respirações inibe a espontaneidade expressiva e sobretudo estimula a reprodução social de palavras de ordem, a compulsão e o agir dos caciquismos unívocos e poderosos. Dar exemplos, já se sabe, é sempre uma tarefa delicada. Mas é certo que esse tipo de défices está muito impregnado no mutismo do nosso país (e não apenas no interior). Esta é uma das facetas que mais suscita o problema e a reflexão de Saldanha Sanches e de António Barreto (às vezes o problema parece uma provocação, mas não nos iludamos com o teor da máscara). Mas há outras facetas. Continuemos.
Diga-se que, em muito do autarcismo mais acaciano - esse liliputiano mundo de funcionários amiúde à procura de um holofote -, só parece existir interesse “pelas minhas coisinhas, pela minha terrinha e pela minha micro-escala”. Foi o arquitecto Graça Dias quem afirmou, há não muito tempo, que “ser-se regionalista pode implicar ser-se reaccionário”. “Tão reaccionário como ser-se racista”. A denegação do outro, regional ou étnica, quando assumida corrosivamente na base do autarcismo acaciano, pode de facto ser terrível e conduzir ao alheamento mútuo das partes que deviam interagir na malha democrática. Não há fumo sem fogo. Esta é, pois, a outra faceta, levada talvez ao limite, por outro autor desestruturador.
É bem possível que Graça Dias e Saldanha Sanches exagerem. Estão no seu papel e esse é democraticamente legítimo, acrescentemos. Talvez António Barreto, mais comedido, se sinta confortável nesta desestruturação do que é pesado e porventura viciante e vicioso, nas últimas três décadas por nós vividas em Portugal.
Seja como for, nas suas variadas facetas, o problema está a pôr-se e não deve merecer, sobretudo por parte das esquerdas (mas não só), aquele tipo de tratamento que é próprio das avestruzes. Fazer de conta que o problema não existe. Iludir-se com a modorra da continuidade. Redimir-se apenas com o espírito comemorativo. Repetir e ritualizar meros jargões convenientes. Conservar e ilidir mundos possíveis. Silenciar a discussão. Banir o diálogo. Esquecer o presente.
O autismo não é uma emoção.
Portugal começa agora a desestruturar a intelligentsia acumulada nos últimos 30 anos. Não se trata de pôr em causa o que, em linguagem revolucionária, se denominou por “conquistas”, mas sim de realinhavar no tempo de hoje aquilo que se foi tornando, ano após ano, em dogma inamovível, em peso morto, ou em hábito anquilosado. Recorrendo a uma parábola da natureza, dir-se-ia que o que está em curso é uma lenta operação que consiste em podar a árvore para melhor reencontrar a fertilidade dos rebentos.
Uma das constantes mais emblemáticas destas últimas três décadas tem sido o propósito e a relevância atribuídos ao “poder local”, ao “regionalismo” e ao “interior”, três preciosas metáforas sistémicas com que a face do país trocou a sua imagem pelo espelho de princípios que constitucional e vivencialmente abençoou.
No programa Directo ao Assunto (TSF) de 4 de Abril, Saldanha Sanches confirmou, sem peias nem receios, esta escalada desestruturante. Ouçamo-lo a ele e não só (as citações não são decalcadas): “a actual descentralização é sinistra”. “Defendo a centralização, pois claro. Até porque o que se quer é um estado a funcionar bem e com muito poucos funcionários”. “O Portugal litoral, que é o que funciona, deverá inevitavelmente conduzir o país”. “Ainda que seja óptimo registar, em certas cidades médias do interior, a existência de uma boa qualidade de vida”. António Barreto, no mesmo programa, segue as pisadas de Sanches: “Tenho simpatia pelas afirmações de Saldanha Sanches. Sempre que ouço os partidos, nas pré-campanhas eleitorais a falarem da fixação de populações no interior, estremeço”. “Criar estruturas no interior sim, mas não ter em conta a liberdade das pessoas, isso é tremendo” e violentamente demagógico - acrescentaria eu. Dizia ainda Barreto, e bem, que há locais, no mundo e mesmo no país, quase sem população que são "extraordinários".
É verdade que, no fundo, o exercício radicalmente aberto da democracia apenas existe em pleno nos locais onde se verifica alguma escala e não, necessariamente, em todos os pequenos meios. A proximidade das respirações inibe a espontaneidade expressiva e sobretudo estimula a reprodução social de palavras de ordem, a compulsão e o agir dos caciquismos unívocos e poderosos. Dar exemplos, já se sabe, é sempre uma tarefa delicada. Mas é certo que esse tipo de défices está muito impregnado no mutismo do nosso país (e não apenas no interior). Esta é uma das facetas que mais suscita o problema e a reflexão de Saldanha Sanches e de António Barreto (às vezes o problema parece uma provocação, mas não nos iludamos com o teor da máscara). Mas há outras facetas. Continuemos.
Diga-se que, em muito do autarcismo mais acaciano - esse liliputiano mundo de funcionários amiúde à procura de um holofote -, só parece existir interesse “pelas minhas coisinhas, pela minha terrinha e pela minha micro-escala”. Foi o arquitecto Graça Dias quem afirmou, há não muito tempo, que “ser-se regionalista pode implicar ser-se reaccionário”. “Tão reaccionário como ser-se racista”. A denegação do outro, regional ou étnica, quando assumida corrosivamente na base do autarcismo acaciano, pode de facto ser terrível e conduzir ao alheamento mútuo das partes que deviam interagir na malha democrática. Não há fumo sem fogo. Esta é, pois, a outra faceta, levada talvez ao limite, por outro autor desestruturador.
É bem possível que Graça Dias e Saldanha Sanches exagerem. Estão no seu papel e esse é democraticamente legítimo, acrescentemos. Talvez António Barreto, mais comedido, se sinta confortável nesta desestruturação do que é pesado e porventura viciante e vicioso, nas últimas três décadas por nós vividas em Portugal.
Seja como for, nas suas variadas facetas, o problema está a pôr-se e não deve merecer, sobretudo por parte das esquerdas (mas não só), aquele tipo de tratamento que é próprio das avestruzes. Fazer de conta que o problema não existe. Iludir-se com a modorra da continuidade. Redimir-se apenas com o espírito comemorativo. Repetir e ritualizar meros jargões convenientes. Conservar e ilidir mundos possíveis. Silenciar a discussão. Banir o diálogo. Esquecer o presente.
O autismo não é uma emoção.
sábado, 3 de abril de 2004
Ameaça e ilusão, dois aliados de estimação
O ocidente está a começar a habituar-se a viver sob ameaça.
Até hoje, a experiência democrática do ocidente foi integrando nas malhas do sistema - e nos espaços maleáveis que o disputam - todo o tipo de contraditório, todo o tipo de intimação, todo o tipo de menor auto-estima colectiva, todo o tipo de crise e de turbulência social. A democracia tem sido um vastíssimo esteio de auto-aprendizagem, sobretudo nas fases mais diversas que se sucederam, nas últimas seis décadas, após a Segunda Grande Guerra Mundial.
O que nunca aconteceu durante esse longo período foi o todo do ocidente - apelidado de mescla de “infiéis” - ter-se tornado periodicamente alvo de mensagens ameaçadoras e primárias de cariz teo-político. Sobretudo quando a retórica quasi-medieval utilizada não é inocente, nem está dissociada da prática de um hiperterrorismo que não olha a meios e a valores, e que só pretende chacinar e alvejar de forma massificada.
Esta cenografia da morte que está a cercar o ocidente já não é um produto da ficção como foi, por exemplo, a imensa saga dos marcianos durante a década de cinquenta do século passado. Esta nova cenografia da morte também já não corresponde, de modo nenhum, àquele discurso concertado e baseado na notificação mútua que alimentou durante quarenta anos a guerra-fria. A actual cenografia mistura o tecnológico, o estratégico, o global e o alheamento a causas nobres (ou a outras) com a violência mais cega, mais brutal, mais sensacional e mediática. Com um pé nas miragens medievais e outro na contemporaneidade, a actual vaga hiperterrorista não tem face, não tem centro, nem dispõe de directórios certos. Funciona numa topografia em rede e atravessa todos os sistemas que a tecnologia ocidental pôs em marcha nos últimos vinte anos.
Para além da hiperviolência irrespondível e visível - caso do 11/09/2001 e do 11/3/2004 -, o hiperterrorismo passou também a jogar com a ameaça quase diária, utilizando as rádios, os jornais ou os vídeos enviados para televisões. O que nestas mensagens se visa já não é apenas a democracia e o ocidente, nem tão-pouco os líderes moderados do Médio-Oriente ou de outras paragens onde se pense de modo menos ortodoxo. O que nestas mensagens se visa é essencialmente a ameaça de aniquilamento. Aniquilar o outro e reduzir a nada a vida do outro e o pensar e o ser do outro (na Palestina há infelizmente, hoje em dia, quem pense deste modo em relação a Israel). A al-Qaeda tem como princípio basilar dizimar o outro. Esquartejar o que designa monossemicamente por “ausência de fé”. Matar e ameaçar matar indiscriminadamente sob o signo do tempo real em que vivemos.
É por isso que a ameaça, sob a forma de palavra, se tornou num dos eventos mais agudos do nosso quotidiano. Curiosamente, a ameaça processa-se com alguma invisibilidade - ainda ontem mais uma chegou à TV pública alemã - sobretudo porque a encaramos como uma simples peça do jogo ficcional televisivo. O problema é que essas mensagens não são simples peças de um jogo telecrático global. Também o são. Mas, em primeiro lugar, são partes de uma ofensiva real e geral que tende a criar desgaste, neurose colectiva, insegurança, medo, apelo à desistência e à imobilidade no ocidente. A estratégia do hiperterrorismo passa também por fazer confundir as dissenções normais no seio da democracia com uma disputa que conduza à mais radical perda de sentido. Este propósito que tende a fragilizar a consistência do sentido democrático não é decerto imune à prática e à retórica terroristas.
É verdade que o ocidente se está a habituar, a pouco e pouco, a viver sob este novo pano de fundo da ameaça. É verdade que o ocidente se está habituar, a pouco e pouco, a compreender que não há diálogo possível com quem se imagina num pelotão de morte a assassinar-nos a todos. Esta ameaça é de tipo novo. Faz lembrar a manipulação de pragas que eram habituais no auto-cumprimento profético a que se recorria nas guerras medievais entre cristãos e o islão. Mas a verdade é que estamos, ou devíamos estar, tão longe disso como das figuras Foz Côa.
Vencer esta ameaça é algo que começa nas nossas casas; é algo que se vence resistindo ao facilitismo e ao virar as costas aos problemas. Imaginar um mundo que não é este em que vivemos não é solução.
O pior inimigo do ocidente não é o hiperterrorismo, mas sim a ilusão de que ele não está aí. Diante de nós. Na nossa consciência, ofuscando o nosso rosto e imobilizando a nossa resistência. Porventura, o diabo sempre terá existido, mesmo quando imaginamos que ele não passa de uma simulação lúdica que se atravessou por capricho no curso fugaz da nossa vida.
O ocidente está a começar a habituar-se a viver sob ameaça.
Até hoje, a experiência democrática do ocidente foi integrando nas malhas do sistema - e nos espaços maleáveis que o disputam - todo o tipo de contraditório, todo o tipo de intimação, todo o tipo de menor auto-estima colectiva, todo o tipo de crise e de turbulência social. A democracia tem sido um vastíssimo esteio de auto-aprendizagem, sobretudo nas fases mais diversas que se sucederam, nas últimas seis décadas, após a Segunda Grande Guerra Mundial.
O que nunca aconteceu durante esse longo período foi o todo do ocidente - apelidado de mescla de “infiéis” - ter-se tornado periodicamente alvo de mensagens ameaçadoras e primárias de cariz teo-político. Sobretudo quando a retórica quasi-medieval utilizada não é inocente, nem está dissociada da prática de um hiperterrorismo que não olha a meios e a valores, e que só pretende chacinar e alvejar de forma massificada.
Esta cenografia da morte que está a cercar o ocidente já não é um produto da ficção como foi, por exemplo, a imensa saga dos marcianos durante a década de cinquenta do século passado. Esta nova cenografia da morte também já não corresponde, de modo nenhum, àquele discurso concertado e baseado na notificação mútua que alimentou durante quarenta anos a guerra-fria. A actual cenografia mistura o tecnológico, o estratégico, o global e o alheamento a causas nobres (ou a outras) com a violência mais cega, mais brutal, mais sensacional e mediática. Com um pé nas miragens medievais e outro na contemporaneidade, a actual vaga hiperterrorista não tem face, não tem centro, nem dispõe de directórios certos. Funciona numa topografia em rede e atravessa todos os sistemas que a tecnologia ocidental pôs em marcha nos últimos vinte anos.
Para além da hiperviolência irrespondível e visível - caso do 11/09/2001 e do 11/3/2004 -, o hiperterrorismo passou também a jogar com a ameaça quase diária, utilizando as rádios, os jornais ou os vídeos enviados para televisões. O que nestas mensagens se visa já não é apenas a democracia e o ocidente, nem tão-pouco os líderes moderados do Médio-Oriente ou de outras paragens onde se pense de modo menos ortodoxo. O que nestas mensagens se visa é essencialmente a ameaça de aniquilamento. Aniquilar o outro e reduzir a nada a vida do outro e o pensar e o ser do outro (na Palestina há infelizmente, hoje em dia, quem pense deste modo em relação a Israel). A al-Qaeda tem como princípio basilar dizimar o outro. Esquartejar o que designa monossemicamente por “ausência de fé”. Matar e ameaçar matar indiscriminadamente sob o signo do tempo real em que vivemos.
É por isso que a ameaça, sob a forma de palavra, se tornou num dos eventos mais agudos do nosso quotidiano. Curiosamente, a ameaça processa-se com alguma invisibilidade - ainda ontem mais uma chegou à TV pública alemã - sobretudo porque a encaramos como uma simples peça do jogo ficcional televisivo. O problema é que essas mensagens não são simples peças de um jogo telecrático global. Também o são. Mas, em primeiro lugar, são partes de uma ofensiva real e geral que tende a criar desgaste, neurose colectiva, insegurança, medo, apelo à desistência e à imobilidade no ocidente. A estratégia do hiperterrorismo passa também por fazer confundir as dissenções normais no seio da democracia com uma disputa que conduza à mais radical perda de sentido. Este propósito que tende a fragilizar a consistência do sentido democrático não é decerto imune à prática e à retórica terroristas.
É verdade que o ocidente se está a habituar, a pouco e pouco, a viver sob este novo pano de fundo da ameaça. É verdade que o ocidente se está habituar, a pouco e pouco, a compreender que não há diálogo possível com quem se imagina num pelotão de morte a assassinar-nos a todos. Esta ameaça é de tipo novo. Faz lembrar a manipulação de pragas que eram habituais no auto-cumprimento profético a que se recorria nas guerras medievais entre cristãos e o islão. Mas a verdade é que estamos, ou devíamos estar, tão longe disso como das figuras Foz Côa.
Vencer esta ameaça é algo que começa nas nossas casas; é algo que se vence resistindo ao facilitismo e ao virar as costas aos problemas. Imaginar um mundo que não é este em que vivemos não é solução.
O pior inimigo do ocidente não é o hiperterrorismo, mas sim a ilusão de que ele não está aí. Diante de nós. Na nossa consciência, ofuscando o nosso rosto e imobilizando a nossa resistência. Porventura, o diabo sempre terá existido, mesmo quando imaginamos que ele não passa de uma simulação lúdica que se atravessou por capricho no curso fugaz da nossa vida.
sexta-feira, 2 de abril de 2004
Capelas Imperfeitas
Gosto de percorrer e viver a escrita em blogue porque ela é sobretudo uma aventura da imperfeição. Gosto desta agilidade do gesto e do grafo da escrita que tanto cria ondulações de mestre como redunda no tosco e no viandante sem futuro. Gosto deste desilusionismo sem rede a que muitos escapam como faúlha diabólica diante de face angélica. Gosto desta adulação do eros, deste surgir por via da incerteza, desta onda que se levanta e rebenta sem que a forma nela se moldasse. Juro que gosto.
Gosto de percorrer e viver a escrita em blogue porque ela é sobretudo uma aventura da imperfeição. Gosto desta agilidade do gesto e do grafo da escrita que tanto cria ondulações de mestre como redunda no tosco e no viandante sem futuro. Gosto deste desilusionismo sem rede a que muitos escapam como faúlha diabólica diante de face angélica. Gosto desta adulação do eros, deste surgir por via da incerteza, desta onda que se levanta e rebenta sem que a forma nela se moldasse. Juro que gosto.
La Vision du Lapin
Acabei de ver há pouco a peça La Vision du Lapin dançada pela companhia franco-suíça, 7273 (ontem em Évora, hoje no CCB). Particularmente interessante é o facto de as várias danças serem performadas em duplicado para que o público se possa “aperceber da duração”. A voz de cada bailarino anuncia o propósito e as legendas enquadram na tela o tom anunciado. Tal acontece três vezes a solo e duas vezes em dueto. É evidente que a sequência repetida gera inevitavelmente paródia, contraste e assimetria. Um fervor que parece nascer do gelo.
Não menos interessante é o registo de metatexto. Entre as peças fala-se acerca do que se passa em cena através de imagens móveis previamente gravadas. A explicação é quase inocente e explícita, ou então é alegoricamente narrativa. Entre o que se diz e os panos de fundo imaginados e sugeridos pouco ou nada se referencia. Nem podia ser de outra forma. O humor quase invisível e silencioso há-de continuar a preencher esse vazio intencional e denso. É evidente que o desnível entre a cena e o seu metatexto gera paródia, estranheza e abertura.
Por fim, e será o terceiro nível de interesse, é curioso sublinhar a forma como La Vision du Lapin brinca com as sucessivas brincadeiras, todas elas muito culturalizadas, que se pressupõem existir em qualquer espectáculo entre público e não público. Acontece um pouco de tudo neste âmbito: entre pedir ao público que reaja até filmar em tempo real o que o público teria dito se tivesse reagido; entre a provocação fática do silêncio e da mudez até à denúncia dos fantasmas de que a provocação é feita; entre a simulação do impasse e da denegação do ritmo até ao sorriso com que se partilha e esvai o medo inicial dessa pretensa simulação. De tudo isto a ironia da companhia franco-suíça é feita.
Vale a pena ir hoje ao CCB para espreitar estes coelhos, bailarinos estóicos e brincalhões. Desconstrutores a sério e sem jargão. Corpos extraordinários, estes 7273 desenhados pelos coreógrafos Laurence Yadi e Nicolas Cantillon.
Acabei de ver há pouco a peça La Vision du Lapin dançada pela companhia franco-suíça, 7273 (ontem em Évora, hoje no CCB). Particularmente interessante é o facto de as várias danças serem performadas em duplicado para que o público se possa “aperceber da duração”. A voz de cada bailarino anuncia o propósito e as legendas enquadram na tela o tom anunciado. Tal acontece três vezes a solo e duas vezes em dueto. É evidente que a sequência repetida gera inevitavelmente paródia, contraste e assimetria. Um fervor que parece nascer do gelo.
Não menos interessante é o registo de metatexto. Entre as peças fala-se acerca do que se passa em cena através de imagens móveis previamente gravadas. A explicação é quase inocente e explícita, ou então é alegoricamente narrativa. Entre o que se diz e os panos de fundo imaginados e sugeridos pouco ou nada se referencia. Nem podia ser de outra forma. O humor quase invisível e silencioso há-de continuar a preencher esse vazio intencional e denso. É evidente que o desnível entre a cena e o seu metatexto gera paródia, estranheza e abertura.
Por fim, e será o terceiro nível de interesse, é curioso sublinhar a forma como La Vision du Lapin brinca com as sucessivas brincadeiras, todas elas muito culturalizadas, que se pressupõem existir em qualquer espectáculo entre público e não público. Acontece um pouco de tudo neste âmbito: entre pedir ao público que reaja até filmar em tempo real o que o público teria dito se tivesse reagido; entre a provocação fática do silêncio e da mudez até à denúncia dos fantasmas de que a provocação é feita; entre a simulação do impasse e da denegação do ritmo até ao sorriso com que se partilha e esvai o medo inicial dessa pretensa simulação. De tudo isto a ironia da companhia franco-suíça é feita.
Vale a pena ir hoje ao CCB para espreitar estes coelhos, bailarinos estóicos e brincalhões. Desconstrutores a sério e sem jargão. Corpos extraordinários, estes 7273 desenhados pelos coreógrafos Laurence Yadi e Nicolas Cantillon.
Parabéns!
Parabéns Charlotte pelo ano de vida! Na blogosfera conhecem-se pessoas adoráveis. Hoje prefiro ver o lado mais apolíneo do labirinto e da penumbra que costumam fechar o horizonte com densas penas de abutre. Do lado de cá, onde há luz e afectos de empatia, muitas têm sido as pessoas e as vozes e os silêncios de que tenho aprendido a gostar, a apreciar e a ler com devotado reconhecimento. Já o tenho dito a certos blogueadores que conhecia mal, ou que não conhecia de todo. A Charlotte e a sua preciosa Bomba foi uma delas: não a conhecia. Mas hoje é leitura obrigatória e atenta. Ela é uma rara mistura de quotidiano subtil e humor voraz com profundidade consistente e sátira afectuosa. Parabéns Charlotte!
Parabéns Charlotte pelo ano de vida! Na blogosfera conhecem-se pessoas adoráveis. Hoje prefiro ver o lado mais apolíneo do labirinto e da penumbra que costumam fechar o horizonte com densas penas de abutre. Do lado de cá, onde há luz e afectos de empatia, muitas têm sido as pessoas e as vozes e os silêncios de que tenho aprendido a gostar, a apreciar e a ler com devotado reconhecimento. Já o tenho dito a certos blogueadores que conhecia mal, ou que não conhecia de todo. A Charlotte e a sua preciosa Bomba foi uma delas: não a conhecia. Mas hoje é leitura obrigatória e atenta. Ela é uma rara mistura de quotidiano subtil e humor voraz com profundidade consistente e sátira afectuosa. Parabéns Charlotte!
quinta-feira, 1 de abril de 2004
Retomas
É uma daquelas palavras que desceu do céu e logo fez moda. Compreendo que determinadas profissões mais tecnicistas conduzam os seus a repetir até à exaustão certos jargões técnicos “incontornáveis”. Mas, no tempo volátil que corre, esses jargões massificam-se facilmente e inundam a boca da vastíssima plebe. E, de repente, é “retoma” para aqui e “retoma” para ali. É tudo e todos a discutir a retoma. Às vezes, eu pronuncio oitocentas e vinte e cinco vezes por dia este precioso jargão. E ainda por cima o pendor nasal e motorizado do palavrão (Vrrrumm) dá a súbita impressão de uma máquina a deslizar a todo o vapor tecnológico de um lado ao outro da testa. Retoma. Retoma forever. Sempre a crescer e a voar. I love retoma.
Agora veja-se: num único trimestre, o preço dos combustíveis subiu tanto quanto a inflação oficialmente prevista para o ano inteiro. Sem qualquer regulação que estipule preços máximos, não vislumbro onde é que os proféticos escorços de uma real retoma se irão arrolar. E esta? Retoma escondida com rabo de fora? Bichano. Carro (Vrrrumm) parado em posto da Galp de Badajoz a abastecer-se doutras retomas? (Bocadillo). Perpétua e desejada moda de crise? (Paixão). Ah! Como era bom poder dizer: I love retoma. A voar, a voar…
É uma daquelas palavras que desceu do céu e logo fez moda. Compreendo que determinadas profissões mais tecnicistas conduzam os seus a repetir até à exaustão certos jargões técnicos “incontornáveis”. Mas, no tempo volátil que corre, esses jargões massificam-se facilmente e inundam a boca da vastíssima plebe. E, de repente, é “retoma” para aqui e “retoma” para ali. É tudo e todos a discutir a retoma. Às vezes, eu pronuncio oitocentas e vinte e cinco vezes por dia este precioso jargão. E ainda por cima o pendor nasal e motorizado do palavrão (Vrrrumm) dá a súbita impressão de uma máquina a deslizar a todo o vapor tecnológico de um lado ao outro da testa. Retoma. Retoma forever. Sempre a crescer e a voar. I love retoma.
Agora veja-se: num único trimestre, o preço dos combustíveis subiu tanto quanto a inflação oficialmente prevista para o ano inteiro. Sem qualquer regulação que estipule preços máximos, não vislumbro onde é que os proféticos escorços de uma real retoma se irão arrolar. E esta? Retoma escondida com rabo de fora? Bichano. Carro (Vrrrumm) parado em posto da Galp de Badajoz a abastecer-se doutras retomas? (Bocadillo). Perpétua e desejada moda de crise? (Paixão). Ah! Como era bom poder dizer: I love retoma. A voar, a voar…
Hertzianas a cores
No afã epicizante de apresentar a nova RTP aos portugueses, ouvi ontem na reportagem da noite o seguinte verso, exclamado em tom patético-dramático estilo Dona Amélia Reycolaço e ilustrado pela suma harmonia das estrelas cadentes: “somos léxicos de cenários”. Gostei. Agora a sério - não se vá pensar que gracejava com ligeireza -, fiquei impressionado com o tempo em que a coisa se fez! Parabéns.
No afã epicizante de apresentar a nova RTP aos portugueses, ouvi ontem na reportagem da noite o seguinte verso, exclamado em tom patético-dramático estilo Dona Amélia Reycolaço e ilustrado pela suma harmonia das estrelas cadentes: “somos léxicos de cenários”. Gostei. Agora a sério - não se vá pensar que gracejava com ligeireza -, fiquei impressionado com o tempo em que a coisa se fez! Parabéns.
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