O Benfica é, em Portugal, muito mais do que um simples clube. E é-o, em muita medida também, fora de portas. Basta ter vivido uns anos fora do país para o compreender.
Sem que necessite de saudosismos ou de um ininterrupto apelo da história, a identidade do Benfica reactualiza-se no dia-a-dia de modo perene, mesmo durante os ciclos desportivamente menos rentáveis. Ao fim e ao cabo, o Benfica corresponde - como dirão os teóricos da publicidade e do "branding" - a um caso singularíssimo de marca, edificado entre o imaginário comunitário do "core" e a autenticidade do património. Um caso em que a marca e o mito confluem.
Creio que a especificidade deste factor dita um outro que acaba por marcar, de modo indelével, o desporto entre nós: em Portugal, existe o Benfica de um lado e, do outro lado, todos os outros clubes. Mesmo os outros grandes clubes. Esta é uma realidade muitas vezes metaforizada (ou parodiada) pela famosa galáxia dos "seis milhões". Mas as metáforas, até no campo dos provérbios e dos ditados populares, falam sempre verdade. Daí as fricções, os afectos, as emoções superlativas, as euforias e os muitos contrapontos que a marca e o mito Benfica inelutavelmente criam. No seu território e nos alheios.
Vejamos: o Sporting é um grande clube e o Porto um clube grande. O segundo mais circunscrito do que o primeiro. Sociologicamente, o SCP tem uma índole bem mais nacional do que o FCP, apesar de, nas últimas décadas, os sucessos desportivos terem sido mais azuis do que verdes.
Mas o que diferencia estes dois clubes do Benfica é que o Benfica, sendo um clube, não é, de facto, apenas um clube. Aliás o SCP e o FCP são - e foram sempre - os primeiros a confirmarem esse facto, mesmo durante os tempos em que o devir desportivo do Benfica não foi o melhor. E isso porque as identidades do SCP e do FCP, sobretudo deste último, se têm construído, ao longo dos anos, como referência ao Benfica. Uma referência essencialmente antinómica.
Pinto da Costa inventou, desde os anos setenta, esse registo que passa pela afirmação da identidade através de um discurso "Contra". Não uma afirmação genuína e positiva, mas antes a enunciação de um processo de crescimento feito a pensar no Benfica e nele obsessivamente referenciado. Também o SCP não tem conseguido, ao longo dos anos, dissociar-se do chamado princípio dos vasos comunicantes da Segunda Circular. Daí que as crises verde e brancas contenham sempre algo que poderíamos designar por 'imagem contrastante'. O discurso do cirurgião Eduardo Barroso é das melhores psicanálises a este respeito.
FCP e SCP sempre enfatizaram e valorizaram, a seu modo, o Benfica. E assim o fizeram e fazem, porque a realidade a tal os condiciona. Um pouco como a luta centenária da Pepsi contra a Coca.
O Benfica tem com o país um pacto profundo. Uma panóplia vastíssima de reconhecimento, uma dimensão - rara entre nós até pela escala - que une o pragmatismo da marca à transparência do mito. Para o melhor e para o pior assim é. Benfiquistas e não benfiquistas partilham esta espécie de "coração independente" a que apenas os artistas e os poetas - eventualmente - saberão dar forma.
(Hoje no Expresso)