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Faz hoje precisamente quatro anos, ao início da tarde, escrevi o primeiro post do Miniscente.
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Sim: Um nome estranho. Mas eu explico-me, pois lembro-me muito bem da cilada semântica que fundou o nome antes ainda de haver coisa.
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Se a reminiscência apela a uma persistência do passado que escapa ao domínio de quem rememora, o "Miniscente", pensei eu, apelaria a uma densa persistência do presente que escaparia, também, ao domínio de quem pretende actualizar. Era esta a ideia. E a ideia confirmou-se em pleno: num blogue, o presente excede-se sempre a si próprio e põe permanentemente em causa o controlo de quem enuncia. E uma nova palavra apareceu assim, no berço desejadamente violável, da, para muitos, sacrossanta língua portuguesa.
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Deixo por baixo o texto que escrevi propositadamente para este dia, na sua versão integral e final. Nos últimos cinco dias, como os leitores saberão, publiquei-o em cinco pequenas partes.
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O meu blogue, o Miniscente, faz hoje quatro anos. Quando se é ou se aspira a trintão, quatro anos é muito tempo. Dá para fazer balanços de vida e para repensar um ciclo de projectos. Quando se é ou se aspira a quarentão, quatro anos é algum tempo. Dá para alterar o sentido das coisas e repor alguma ordem na casa. Quando o passo é o seguinte, na quinquagésima paragem, os mesmos quatro anos tanto se diluem numa imagem de vórtice, como se confrontam com a duração de uma Primeira Grande Guerra Mundial ou com o longo período de uma edição como a do ainda magnífico Le Rameau d´Or (1911-1915) de James George Frazer. Ou seja, o tempo comporta-se e debate-se, meio sonolento, pairando entre o abismo irremediável e o horizonte por resgatar.
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Mas quando o tema diz respeito a blogues, o tempo cheira subitamente a eternidade. Nada que se compare a um livro que tenha levado o dobro do tempo a escrever, o que já me aconteceu, nem nada que se compare a um desses planos faseados sob a forma de organigrama sem fim. Não, com os blogues a música é outra. De facto, o Miniscente mudou-me a vida, bem mais do que a literatura o havia feito há mais de um quarto de século. Se cada romance e se cada ensaio foram recortando a minha vida em episódios densos com princípio, meio e fim – uma espécie de descendência onírica que me foi carregando a memória –, já o Miniscente se intrometeu e inseminou no curso íntimo da minha vida, passando a calcorrear-lhe os ritmos, a mimar-lhe a respiração e, quando menos se esperaria, até a ditar-lhe as linhas e o tom das urgências diárias.
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Não existe quase nada, hoje em dia, que eu pretenda exprimir ou silenciar que não acabe por reflectir-se, de um modo ou de outro, na gotejante e compulsiva ordem da blogosfera. É como se a minha máscara se tivesse, a pouco e pouco, transformado em rosto, mas sem que a metamorfose fosse clara ou passível de prova. Uma pele renovada pelo zapping. Um blogger tende, na maior parte das vezes, a ser um réu e um jurado ao mesmo tempo, numa espécie de tribunal ausente – ou simulado – de que apenas sobra um veredicto permanente e irrevogável que modela o presente, relegando a jurisprudência, a memória e sobretudo o futuro para um plano completamente secundário.
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Um blogger é um “Já” (a iminência enquanto corpo) que passou a depender do compasso musical onde se insere: mera nota, mera peça e mera inscrição que julga decidir sobre o seu usufruto, isto é sobre a sua liberdade, tal como um escritor – no tempo em que a literatura se sobrepunha socialmente ao circo das imagens móveis – julgava a morosa maturação da sua escrita laboratorial. Não, nos blogues não há oficina, nem laboratório à moda dos velhos canônes, mas apenas e tão-só linha de montagem, desejo e constrangimento. Três termos num único e reluzente esplendor: linha de montagem como fôlego e actualização; desejo como existência, vínculo e afirmação em rede; e, por fim, constrangimento como imposição, glamour e voragem próprias.
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Ao ler-se um texto de natureza confessional, como é este, vai pensar-se que o meu balanço de blogger é negativo. E sê-lo-á em parte. É até difícil imaginar o que eu teria feito, ao longo destes 48 meses, se não me tivesse devotado à actividade que o Miniscente mobiliza. Nem tenho a certeza se o Miniscente corresponde ao perfil de blogue que eu mais teria desejado fazer (o mesmo se aplica a outros blogues mais modestos por mim criados, o Minitempo ou o Minion). Nada é perfeito, já se vê. Grande parte da nossa vida é uma resposta ao curso irregular com que o inaudito nos acena, mas é também a partilha de uma terra de ninguém dominada pelo imponderável. Planear é querer domar o monstro que se esconde nos solavancos mais ínvios do tempo. É por isso que os blogues acabam por ser atractivos: justamente, porque não se arrogam a esse tipo de feitos deístas ou salvadores; daí que vivam às mil maravilhas ao lado de todo o tipo de imprevisto, de espanto, de ordinary life e do mais puro nexo circunstancial. e
No meu caso, o lado positivo da blogosfera passa por este tipo de convivência tão nova quanto incerta. Isto é: saber conviver com a pulsação turbulenta do mundo, numa errância encapelada que quase se apaga no momento em que surge; no reverso do dever (pesado) e das narrativas tradicionais em que o fundamental passou a ser como o olhar que nasce e morre ao mesmo tempo, por simples paixão pelo imediato, pelo instantâneo, ou pelo fiat deslumbrado e sem precedentes com que na rede se passou a perceber – e a iludir – o ‘Outro’. O “fingimento”, tal como foi caracterizado quando a poesia e a literatura ainda eram um Olimpo social, é hoje o alicerce sobre o qual o blogger cava (não digo constrói) a sua palavra fugidia. Entrámos, de vez, na idade do cavador de pérolas. O meu primo e tenor, Tomás Aquino Carmelo Alcaide, teria sorrido com grande desdém. Eu – pelo meu lado – gosto, mas sem a limpidez de outros gostos que já me marcaram a vida. O Vergílio Ferreira teria gozado. Como só ele sabia fazer. Quando não estava a escrever.
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Nestes quatro anos, é óbvio que conheci muita gente interessante. E criei novas cumplicidades. Por outro lado, desleixei o (que na minha Holanda de há vinte anos designava por) “culto dos interiores”, descobri na malha que me escreve um discurso menos analítico, refiz algumas ideias sobre a figura do leitor e do criador de textos e esqueci muita coisa fundamental. Apercebi-me da forma de fluxo com que os variados mainstreams actuam, raramente reagi à barbárie expressiva e houve momentos – não poucos – em que cheguei a cansar-me desta actividade e dos seus previsíveis comentadores. Sim, porque a blogosfera é uma actividade, ainda que, e bem, Al Ries e a sua filha Laura Ries separem cristalinamente as águas: negócio é uma coisa, comunicação é outra.
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Um dia, tal como começou, o Miniscente há-de acabar. Mas não lhe darei, por ora, o privilégio de acabar em data certa, apolínea e pitagórica. Como é esta. Deixei para trás, neste ciberespaço apetecível, algumas séries de textos que não deslustram e muitas outras que foram concebidas ao nível de uma pastilha elástica conservadora. Em ambos os casos, ponderei sempre a forma e nunca, infelizmente, soube filtrar o que ia enunciando ao sabor das grandes audiências (embora, com o tempo, tivesse deixado de consultar, com regularidade mais ou menos adolescente, o “Sitemeter”). Diga-se, em concordância com o hábito e à luz da inexplicável efígie do seu monge, que, hoje em dia, também visito menos blogues, também desenvolvo muito menos networking e também perdi alguma paciência para actualizar links. Sintomas, dir-se-á. Sintomas, talvez, de mudanças que urgem. Até porque não há blogger que, só por ser blogger, tenha interesse. É por isso que sou alérgico a um certo corporativismo tribal que abunda na blogosfera. E com o qual, rigorosamente, nada tenho que ver. Nem nunca terei.
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Sobretudo no último terço desta sua vida de quatro anos, o Miniscente não foi apenas voz como também deu a ouvir e a conhecer outras vozes. Isso aconteceu com as “Mini-entrevistas”, com as “Escavações Contemporâneas” (rubrica que pretende remar contra a amnésia das rotinas em rede) e com as “Pré-publicações” (existe hoje um “Clube” que conta com duas dezenas de editoras portuguesas que colaboram activamente nesta rubrica). Esta predisposição de simultânea expressão e interface de expressões tem moldado o Miniscente de um modo que seria inimaginável em Julho de 2003. Talvez esta nova dimensão (dir-se-á “cultural” – não gosto nada da palavra!) do meu blogue principal constitua uma compensação para o assumido défice de networking, de actualização de links e de visitas a outros blogues dos últimos tempos. Nada melhor do que a consciência deste tipo de (sigilosos) movimentos para ir repondo alguns equilíbrios.
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Contudo, o trabalho a bordo de um blogue, se bem que movido pela compulsão e por hábitos de permanente e actualizada inscrição, é sempre um trabalho que deverá concordar com o prazer. Com uma bitola mínima povoada pelo lúdico, pela liberdade de edição, pela manobra pouco calculista, pelo assombro da espontaneidade, pelo dislate irreparável, pela ostensão desnecessária, pela exposição pura e simples. Sem medos. Porque, como referi há mais de um ano, na sequência que ficou conhecida por “O Tom dos Blogues” (que vai aparecer, em breve, sob a forma de livro), com mais ou menos simplismo, embora com autenticidade, “os blogues somos nós mesmos”. É este, porventura, no meu caso pessoal, o móbil mais forte da persistência blogosférica: estar sempre prestes a comemorar um imenso nada que, de um momento para o outro, se pode miraculosamente transformar numa espécie de novo Rameau d´Or.