sábado, 20 de maio de 2006

O "tom" dos blogues - 12

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Num livro que recente escrevi acerca da “novíssima poesia portuguesa” e da “expressão estética contemporânea”, um dos factos que salientei foi o de terem surgido, nos últimos vinte anos, muitos poetas de qualidade, embora sem que nenhum deles pudesse ser considerado de ‘referência’ (ao contrário do que tinha acontecido em décadas anteriores, quando nomes como Sofia, Herberto, Belo, Eugénio, Sena ou Pessoa constituíram marcos que geraram correntes, mapas de influências, vogas e modas). Subitamente, a poesia actual disseminava a sua linguagem e, ao mesmo tempo, acabava por desintegrar a própria ideia nodal de referência. Ainda que tal facto possa constituir sinal dos tempos – e eu creio mesmo que constitui -, a verdade é que no caso dos blogues a questão da ‘referência’ não se coloca do mesmo modo. Quer se queira quer não, existem blogues de referência e nem sempre, por sinal, serão os mais visitados (as excepções compadecer-se-ão com o cromatismo da paisagem).
Numa época de posicionamentos, as mensagens tendem sempre a criar posição na mente dos potenciais leitores/ interactores. Quando o senhor Y visita alguns blogues de manhã, é óbvio que há-de clicar em primeiro lugar naqueles que estão posicionados no seu próprio leque de escolhas. Um blogue é tanto mais posicionado quanto mais integrar o naipe de paradigmas a escolher pelo auditório potencial (tal como na poética, o sintagma perde aqui lugar face ao paradigma). Se o posicionamento de um blogue coincide com este tipo de território criado na mente de quem usa e significa as mensagens, já a marca de um blogue é a percepção que o auditório – o público em geral - tem desse mesmo blogue (tal percepção, geralmente intraduzível e inapropriável, é fluida e tem uma amplitude muito variada: óptima, péssima, agradável, indiferente, etc.). Pode, por outras palavras, afirmar-se que o posicionamento de um dado blogue estatui um espaço no cérebro do leitor/ interactor para que a marca de – misto de ‘core’ e património - aí se possa projectar, optimizar e ganhar corpo. Nesta linha de ideias, uma marca bem cotada equivale a um conjunto de imagens que num dado sistema – blogues generalistas ou dominantemente culturais, estéticos, eróticos, políticos, sociais, etc. - tornam um blogue num blogue de referência. No entanto, as coisas não são assim tão líquidas: um blogue muito bem posicionado, que o senhor Y visita todos os dias, pode não corresponder a uma marca bem cotada (mas, no entanto, o senhor Y visita-o sempre); por outro lado, um blogue pouco posicionado, que o senhor Y raramente visita, pode, por outro lado, corresponder a uma marca muito bem cotada. Isto é: nem sempre o posicionamento coincide com a marca, ou mais simplesmente, nem sempre a audiência coincide com a referência (basta, aliás, passar pelo Blogómetro para comprovar esta realidade).
Estes factos põem em causa a tremenda ingenuidade que identificaria a facilidade de criação e alimentação de um blogue com uma pretensa e chã ciberdemocracia blogosférica.
Em primeiro lugar, como vimos noutro post desta rubrica, porque a blogosfera vive do paradoxo do regresso da individuação num terreno que é fértil à "des-subjectivização" (daí que nomes posicionados em meios da ‘atmosfera’ se posicionem de modo geralmente eficaz na blogosfera, embora nem sempre com a agilidade expressiva – com o “tom” – a que o novo meio, dia a dia, obriga - o que, em certos casos, pode acabar por pesar).
Em segundo lugar, porque o sistema blogosférico de remissão (sobretudo o “link”) acaba sempre por valorizar o posicionamento e a audiência em desfavor da marca e da referência. O ‘main stream’ - ou o fluxo fundamental dos links - segue, de facto, na larga maior parte dos casos, a cartografia dos blogues mais desejados e visitados e não necessariamente o recôndito e, às vezes, vago horizonte dos mais cotados (existem excelentes blogues que quase não têm visitantes). É claro que ambas as funções coabitam em alguns – poucos - blogues que poderiam ser designados por ‘blogues de qualidade’ (ao aliarem, por mérito e trabalho próprios, a eficácia à referencialidade). A questão da qualidade deve ser perspectivada em construção – numa lógica de encadeamento - e não no consumar de um processo natural como aquele que liga as abelhas ao mel. Há, de facto, na questão da percepção da qualidade uma óbvia resistência ao reducionismo das categorias. É por isso que a qualidade acaba por refugiar-se, muitas vezes, na própria sobrevivência aos discursos, dando-se a ver, não do modo como o Iluminismo inaugurou o tema (“juízo do gosto”, “o génio”, etc.), mas, de um modo mais próximo, tal como António Ramos Rosa – poeticamente - sintetizou: “se a linguagem se salva é porque a linguagem poética se salva do próprio caos que suscita e enfrenta, constituindo a abertura em que o mundo surge na sua invisível materialidade”. Entenda-se “salvar”, no caso blogosférico, de modo algo prosaico. Isto é, como aquela persistência que fez e faz da linguagem dos posts a clara identificação de uma expressão, ou de um “tom”.
Em terceiro lugar, porque a ciberdemocracia é ainda apenas um (frágil) dado em função da livre possibilidade de enunciação e múltipla interacção e não tanto do escrutínio daquilo que é dito na e através das linguagens que são encenadas e processadas em rede. Daí que a blogosfera quase se exima, com toda a naturalidade e como já escrevi noutro post, à avaliação que é normal noutros meios (jurídicos, literários, económicos, académicos etc.). Isto significa que a blogosfera, tal como todo o design efémero que pode ter enorme impacto urbano, corresponde a uma base laboratorial muito pragmática em que o uso da linguagem e o seu sentido são água e leito do mesmo rio. Ao inscrever-se como anatomia desintegradora do corpo clássico e também moderno (de alguma maneira, ao jeito entrecortado de Nietzsche), a escrita dos blogues está hoje em dia a transpor o monolitismo dos géneros (e a procurar um “tom”) e é por isso mesmo que é composta por rasgões, fragmentos, enxertos, notas em movimento, interrogações súbitas, comentários parciais, palimpsestos instantâneos, esboços narrativos, escorços e relatos em radical ‘media res’ (mas não se reduz, por outro lado, e porventura devido à perenidade da sua auto-imagem - voltarei ao tema -, à mortificada elipse das figurações ‘sms’).