e
Depois de ter analisado as regras prescritas por Alexandre Soares Silva e por José Pacheco Pereira, passo hoje a analisar e a comentar as “dez leis fundamentais” desenvolvidas por João Pereira Coutinho e publicadas no Semanário Expresso, a 23/08/2005. Não se trata desta vez de uma codificação que incida na blogosfera, embora a conivência profunda do autor com o universo dos blogues – aliás praticada através de uma ostensiva travessia de planos no seu próprio blogue – acabe por remeter esta breve mas estimulante enunciação de regras para o campo contemporâneo das coabitações que superam géneros delimitados. Poder-se-á dizer que se trata de uma compilação de regras que cruza diversos limiares da blogosfera (a tentação respira sempre à superfície) e que acaba por ter importância na prospecção expressiva (o “tom”) que se vem tecendo, há pelos menos três anos, neste novíssimo meio da rede.
Deixo em primeiro lugar o todo das regras e passo depois à análise, ponto por ponto, como aconteceu nos casos precedentes:
e
Deixo em primeiro lugar o todo das regras e passo depois à análise, ponto por ponto, como aconteceu nos casos precedentes:
e
e
“Recebo convite para escrever texto longo sobre «a crónica». A coisa destina-se a estudantes de jornalismo. Óptimo. Mas, por favor, não é preciso gastar tempo nem palavras. A arte resume-se em dez leis fundamentais. Primeiro: a crónica não é um género jornalistico; a crónica é um género literário. Segundo: a crónica pode partir da realidade mas, não raras vezes, a crónica cria a sua própria realidade. Terceiro: a crónica não é análise nem comentário; a crónica é confissão e hipérbole. Quarto: a crónica não pretende formar ou influenciar; a crónica deve entreter e, se possível, opinar. Quinto: a crónica não vive da especialização; a crónica vive da diversidade. Sexto: a crónica vale pelo estilo e pela substância; em caso de conflito, sacrifique-se a substância. Sétimo: a crónica não pondera opiniões contrárias à sua; a crónica pondera apenas uma opinião que seja contrária às outras. Oitavo: a crónica não está certa ou errada; a crónica, como diria Wilde, está apenas bem escrita ou mal escrita. Nono: a crónica é pessoal; a crónica é um prolongamento do ego. Décimo: a crónica deve ser tão fácil de ler como de esquecer.”
e
“Primeiro: a crónica não é um género jornalistico; a crónica é um género literário.”
A crónica começa por ser definida sem quaisquer hesitações, como parte de uma tradição reconhecível: a literária. A complementar e a idealizar o sentido de pertença surge a substância do “género”, essa gramática cromática à Mondrian que subitamente se esvaiu e esbateu no oceano dos blogues.
De facto, onde nas crónicas há ligações perigosas entre a gesta marítima e a miniatura do coral, alimentadas por aquele prazer lento que dá a ver o fundo das águas através das nuvens (“uma pessoa deixa de oferecer chocolates, flores e serenatas e é logo um fascista nos jornais”), há nos blogues uma errática migração de espécies que se confunde com os reflexos do mar tempestuoso.
“Recebo convite para escrever texto longo sobre «a crónica». A coisa destina-se a estudantes de jornalismo. Óptimo. Mas, por favor, não é preciso gastar tempo nem palavras. A arte resume-se em dez leis fundamentais. Primeiro: a crónica não é um género jornalistico; a crónica é um género literário. Segundo: a crónica pode partir da realidade mas, não raras vezes, a crónica cria a sua própria realidade. Terceiro: a crónica não é análise nem comentário; a crónica é confissão e hipérbole. Quarto: a crónica não pretende formar ou influenciar; a crónica deve entreter e, se possível, opinar. Quinto: a crónica não vive da especialização; a crónica vive da diversidade. Sexto: a crónica vale pelo estilo e pela substância; em caso de conflito, sacrifique-se a substância. Sétimo: a crónica não pondera opiniões contrárias à sua; a crónica pondera apenas uma opinião que seja contrária às outras. Oitavo: a crónica não está certa ou errada; a crónica, como diria Wilde, está apenas bem escrita ou mal escrita. Nono: a crónica é pessoal; a crónica é um prolongamento do ego. Décimo: a crónica deve ser tão fácil de ler como de esquecer.”
e
“Primeiro: a crónica não é um género jornalistico; a crónica é um género literário.”
A crónica começa por ser definida sem quaisquer hesitações, como parte de uma tradição reconhecível: a literária. A complementar e a idealizar o sentido de pertença surge a substância do “género”, essa gramática cromática à Mondrian que subitamente se esvaiu e esbateu no oceano dos blogues.
De facto, onde nas crónicas há ligações perigosas entre a gesta marítima e a miniatura do coral, alimentadas por aquele prazer lento que dá a ver o fundo das águas através das nuvens (“uma pessoa deixa de oferecer chocolates, flores e serenatas e é logo um fascista nos jornais”), há nos blogues uma errática migração de espécies que se confunde com os reflexos do mar tempestuoso.
Onde nas crónicas há imagens de confissão que valem pelo fôlego encapelado da frase (“o meu sonho mais profundo, e mais inconfessado, e mais inconfessável, é ser um dia o Prof. Higgins em "My Fair Lady”), há nos blogues um vinhedo fértil mas selvagem à procura de uma imagem que se adeque ao espelho instantanista.
Onde nas crónicas há hiatos de verdade e algum espaço para sustentar arquitecturas sólidas e até frases feitas (“Eu gosto de clichês. Existe sempre na frase feita um fundo de verdade que deve ser escutado e respeitado.”), há nos blogues peregrinações incertas e cruzadas à procura de sentido, assim como clichês e mais clichês que não sabem sequer que se amam a si próprios.
Quer isto dizer que a crónica pode sonhar com o género, ou melhor, pode partilhar o sonho de ter casa própria com os juros que são próprios da transitoriedade (uma caravana e não tanto uma moradia, portanto). Já os blogues sobrevivem a toda essa longínqua genealogia e estão a reatar o nomadismo que parece um dia ter precedido a escrita (só que o fazem através, precisamente, da escrita e à procura de um novo sentido – de um tom – para esse gesto).
“Segundo: a crónica pode partir da realidade mas, não raras vezes, a crónica cria a sua própria realidade.”
Ora aqui está um princípio da poética: o que separa o texto instrumental e indexical do texto poético é a sua radical autonomia face à realidade. Menino crescido, ele, o texto poético, vale por si e pela realidade que cria. Por isso, o texto poético é - ao mesmo tempo - mensagem e objecto. Pela mesma razão, o texto poético contém em si os referentes que o fazem sorrir e que ditam emoção a quem nele deita a doçura do olhar. Ora, relendo a segunda regra, a crónica “pode” partir da realidade (não necessariamente, segundo JPC), embora acabe também, quase sempre, por criar a sua própria realidade. Quer isto dizer que a crónica se lê e relê, sem que o leitor precise sequer de procurar aves e remos no rio para a compreender. Os remos, as margens, as aves e até o pescador são já carne e brilho da própria crónica.
Nos blogues, não há lei alguma que consiga traduzir esta segunda de JPC (a tradução é um ofício de metabolismos e não uma súbita ilusão à Muybridge). A instrumentalidade, o horror ao vazio e o lúdico dominam as hostes na blogosfera, embora a rede não chegue a criar para o mise en scène dos posts aquele pano de fundo estável que é próprio do universo off-line (mesmo da crónica que, no papel, fragmento a fragmento, ainda vai criando os seus próprios e inomeados planetas).
“Terceiro: a crónica não é análise nem comentário; a crónica é confissão e hipérbole.”
Uma confissão vale pelo que retém de vacilação, de dramaturgia fantasmática, de surpreendente. Geralmente, há confissão quando se imagina que até a via láctea nos pode segredar alguma coisa. A confissão é coisa sincopada, incorpórea, rápida e aparece como um remate meio imprevisto: “Chega. Melhor ficar por aqui. Ou, então, simplesmente afirmar: "esquerda" ou "direita" perdem alguma da sua autoridade absoluta em confronto com a realidade da história”. A hipérbole, esse exagero que amarra o universo à curva da trepadeira do pátio, faz parte do fosso e do silêncio que sucedem à confissão. Está lá como antes estiveram os rochedos fantásticos e os mostrengos nas viagens marítimas, ou nos iluminados blogues de Montaigne. Está lá como antes estiveram as batalhas celestiais em textos medievais onde os lobos se transformavam em fontes de água doce. Está lá como antes Eisenstein terá imaginado o sangue da montagem inventado por Griffith.
Nos blogues, o comentário excede muitas vezes o requinte da confissão, do mesmo modo que a alma excede o corpo no desmesurado território da adolescência. Nos blogues, a hipérbole não tem tempo para amadurecer os ramos onde deveria crescer. Nos blogues, a sofreguidão tem outros prazeres mais perversos, menos delongados, mas mais luarentos: improvisa, despe-se em directo ou corta excessivamente a direito, antes ainda de se confessar (tal como no calvinismo militante).
“Segundo: a crónica pode partir da realidade mas, não raras vezes, a crónica cria a sua própria realidade.”
Ora aqui está um princípio da poética: o que separa o texto instrumental e indexical do texto poético é a sua radical autonomia face à realidade. Menino crescido, ele, o texto poético, vale por si e pela realidade que cria. Por isso, o texto poético é - ao mesmo tempo - mensagem e objecto. Pela mesma razão, o texto poético contém em si os referentes que o fazem sorrir e que ditam emoção a quem nele deita a doçura do olhar. Ora, relendo a segunda regra, a crónica “pode” partir da realidade (não necessariamente, segundo JPC), embora acabe também, quase sempre, por criar a sua própria realidade. Quer isto dizer que a crónica se lê e relê, sem que o leitor precise sequer de procurar aves e remos no rio para a compreender. Os remos, as margens, as aves e até o pescador são já carne e brilho da própria crónica.
Nos blogues, não há lei alguma que consiga traduzir esta segunda de JPC (a tradução é um ofício de metabolismos e não uma súbita ilusão à Muybridge). A instrumentalidade, o horror ao vazio e o lúdico dominam as hostes na blogosfera, embora a rede não chegue a criar para o mise en scène dos posts aquele pano de fundo estável que é próprio do universo off-line (mesmo da crónica que, no papel, fragmento a fragmento, ainda vai criando os seus próprios e inomeados planetas).
“Terceiro: a crónica não é análise nem comentário; a crónica é confissão e hipérbole.”
Uma confissão vale pelo que retém de vacilação, de dramaturgia fantasmática, de surpreendente. Geralmente, há confissão quando se imagina que até a via láctea nos pode segredar alguma coisa. A confissão é coisa sincopada, incorpórea, rápida e aparece como um remate meio imprevisto: “Chega. Melhor ficar por aqui. Ou, então, simplesmente afirmar: "esquerda" ou "direita" perdem alguma da sua autoridade absoluta em confronto com a realidade da história”. A hipérbole, esse exagero que amarra o universo à curva da trepadeira do pátio, faz parte do fosso e do silêncio que sucedem à confissão. Está lá como antes estiveram os rochedos fantásticos e os mostrengos nas viagens marítimas, ou nos iluminados blogues de Montaigne. Está lá como antes estiveram as batalhas celestiais em textos medievais onde os lobos se transformavam em fontes de água doce. Está lá como antes Eisenstein terá imaginado o sangue da montagem inventado por Griffith.
Nos blogues, o comentário excede muitas vezes o requinte da confissão, do mesmo modo que a alma excede o corpo no desmesurado território da adolescência. Nos blogues, a hipérbole não tem tempo para amadurecer os ramos onde deveria crescer. Nos blogues, a sofreguidão tem outros prazeres mais perversos, menos delongados, mas mais luarentos: improvisa, despe-se em directo ou corta excessivamente a direito, antes ainda de se confessar (tal como no calvinismo militante).
“Quarto: a crónica não pretende formar ou influenciar; a crónica deve entreter e, se possível, opinar.”
Felizmente, quer a regra, quer o procedimento blogosférico estão a milhas do paródico mito do “grande educador”. A cortina foi recolhida há muito e os rostos deíficos refluíram na direcção do palco, subitamente cheio – de par a par - com todo o tipo de pregões. É grande a confusão contemporânea e é por isso que as formas e os moldes se procuram e se oferecem como se a descoberta fosse um regresso ao idílio dos primórdios: “Parto finalmente do Termini e, duas horas depois, a noite cai em Nápoles. Não tenciono convencer ninguém da certeira sabedoria de Stendhal. Digo apenas que Nápoles, na sua pobreza, no seu caos, na sua tangível violência, é uma dádiva de Deus aos Homens para que estes não sintam saudades do Paraíso.”
Felizmente, quer a regra, quer o procedimento blogosférico estão a milhas do paródico mito do “grande educador”. A cortina foi recolhida há muito e os rostos deíficos refluíram na direcção do palco, subitamente cheio – de par a par - com todo o tipo de pregões. É grande a confusão contemporânea e é por isso que as formas e os moldes se procuram e se oferecem como se a descoberta fosse um regresso ao idílio dos primórdios: “Parto finalmente do Termini e, duas horas depois, a noite cai em Nápoles. Não tenciono convencer ninguém da certeira sabedoria de Stendhal. Digo apenas que Nápoles, na sua pobreza, no seu caos, na sua tangível violência, é uma dádiva de Deus aos Homens para que estes não sintam saudades do Paraíso.”
Não podia haver melhor parábola: o caos da deriva transformado num pranto quase elegíaco. A quarta regra de JPC desdobra-se depois e clarifica o ‘que fazer’: “opinar” como possibilidade, “entreter” como condição. Eis um interessante princípio. O lúdico aparece assim com particular evidência, ele que é hoje a mascarilha veneziana do que antes foi o carregado céu do dever (face a todas as doxas).
Também a errância dos posts parece ter perdido de vista a graça dos deuses, as regras axiais, os valores e as instituições, para se dedicar a uma jardinagem sem limites. Este ócio sem amanhã luz igualmente na especiaria mais cuidada (e lenta) da crónica: “DAVID LODGE escreveu em tempos um pequeno conto onde narrava a história de um vagabundo que decidiu nunca mais sair da cama. Deixou-se simplesmente ficar. Perdeu emprego. Mulher. Filhos. Saúde. Só pelo prazer de estar. MEU DEUS. Eu sou esse vagabundo.”
Também a errância dos posts parece ter perdido de vista a graça dos deuses, as regras axiais, os valores e as instituições, para se dedicar a uma jardinagem sem limites. Este ócio sem amanhã luz igualmente na especiaria mais cuidada (e lenta) da crónica: “DAVID LODGE escreveu em tempos um pequeno conto onde narrava a história de um vagabundo que decidiu nunca mais sair da cama. Deixou-se simplesmente ficar. Perdeu emprego. Mulher. Filhos. Saúde. Só pelo prazer de estar. MEU DEUS. Eu sou esse vagabundo.”
Com efeito, na blogosfera também pouco se influencia e quase nada se forma. A contigência respira outros ares. E quando a blogosfera opina, há sempre sina matreira no ar: debate a meio, entrecortado, fugaz, tal como a miragem colada ao lapso da memória. Melhor ainda é o modo, por vezes obsessivo, como a blogosfera se entretém: tal como o anunciado “dever” da crónica, assim é o fruto de vários sabores – às vezes de raros saberes - dos blogues.
“Quinto: a crónica não vive da especialização; a crónica vive da diversidade.”
“Quinto: a crónica não vive da especialização; a crónica vive da diversidade.”
Mais uma respiração comum entre a regra da crónica e a alma dos blogues (o metatexto adpata-se ao texto por mimetismo – afectos, dir-se-á -, mas não deixa de ser metatexto).
A comunidade (“being-in-common”) é hoje em dia um conceito interessante e é definido pelo semiótico australiano Alec McHoul como: “course of activity recognizable for its directionality”. Não é o território ou a língua que une o que coopera no novo design do mundo: é a consecução de uma prática (surfar na net, bronzear-se nas praias, ser fã de uma série televisiva, partilhar a noite, viajar, etc.). O que une a crónica colorida, ecléctica e pouco pesada à miscelânia e diversidade que tipifica os blogues é o excurso, a prospecção, a caminhada que não teme a ausência de desenlaces ou conclusões: “(…) De lado. De pino. Podem ser lidas devagar. Depressa. Aos bochechos. Mas sem ordem. Porque as verdadeiras conversas não obedecem a nada, excepto à vontade - de quem as faz e de quem as ouve. Demos graças a Deus pela maravilhosa utilidade das coisas verdadeiramente inúteis”. Há um ‘media res’ que transpira na diversidade destas crónicas e nos cavaleiros andantes que se enunciam em blogues: num e noutro, os personagens são os do Quijote, porque não sabem de onde vêm nem para onde vão. Mas iluminam as suas galáxias comuns.
“Sexto: a crónica vale pelo estilo e pela substância; em caso de conflito, sacrifique-se a substância.”
Creio que, nesta regra, a linguagem é mais de conotação platónica do que aristotélica. Temos aqui mais a ‘essência da coisa’ e não, como escreveu Hjelmslev no século passado, uma “estruturação específica do sentido” através de formas sempre actuais, tal como acontece na metáfora da nuvem observada a partir dos olhos de Hamlet. Seja como for, interessa mais à sexta regra de JPC o modo singular, vincado e desejadamente exclusivo da escrita do que aquilo que, na ciência dos vinhos, é o espectro encorpado. É preferível o vitral à cena que se repete. É preferível o nome à moda que se reduplica. É preferível a aura à matriz removida (Benjamin sorriria com o aceno). Nos blogues, por seu lado, mais do que estilo há procura expressiva, mais do que substância há culto do diverso (e do fragmento de sentidos), mais do que singularidade tácita há sobretudo tentativa de adequação da linguagem ao novo meio (a tão falada pesquisa do “tom”).
O território do estilo terá que ser estável, chão, tradicional, como se fosse um autódromo há muito conhecido e onde é, portanto, possível conhecer e reconhecer o motor, fixar as curvas e adequar a longevidade da expressão ao asfalto. Nos blogues não há esquadria, nem perímetro, nem autódromo. O asfalto da blogosfera é o éter da rede. Por isso, o estilo é coisa para amanhã, para um amanhã ainda distante (mas coisa pouco utópica, já agora).
“Sétimo: a crónica não pondera opiniões contrárias à sua; a crónica pondera apenas uma opinião que seja contrária às outras.”
A crónica parte de uma única via, parte de uma única portagem e pode pagar o preço do múltiplo desígnio e do múltiplo confronto que suscita. Mas desengane-se o contendor filosófico: a crónica voa com argumentos sumários, aforismos elegantes e imagens de iminência e não com aporias infindas, súmulas epistemológicos ou apologias ínvias. O tempo iluminista da crítica redentora é, na crónica de JPC, a simples janela de Vermeer por onde entra a luz de viés.
Nos blogues, a ventania cósmica é bem maior e o Iluminismo, para o bem e para o mal, já é parte da amnésia generalizada. Tal como vimos no post de anteontem anteontem (“O ‘tom’ dos blogues – 16), o tema do debate na blogosfera não tem fim, mas basta-se muitas vezes a alinhamentos fáceis, a previsibilidades elementares e a ponderações mínimas. Debater na blogosfera é muitas vezes navegar entre um spam opinativo e um oásis que pode assemelhar-se ao ‘core’ desta sétima regra. Mas em vez de ‘targets’ certos, temos quase sempre espelhos paralelos, imagens esquivas e enxertos endiabrados. Sign of times.
“Oitavo: a crónica não está certa ou errada; a crónica, como diria Wilde, está apenas bem escrita ou mal escrita.”
Creio que, nesta regra, a linguagem é mais de conotação platónica do que aristotélica. Temos aqui mais a ‘essência da coisa’ e não, como escreveu Hjelmslev no século passado, uma “estruturação específica do sentido” através de formas sempre actuais, tal como acontece na metáfora da nuvem observada a partir dos olhos de Hamlet. Seja como for, interessa mais à sexta regra de JPC o modo singular, vincado e desejadamente exclusivo da escrita do que aquilo que, na ciência dos vinhos, é o espectro encorpado. É preferível o vitral à cena que se repete. É preferível o nome à moda que se reduplica. É preferível a aura à matriz removida (Benjamin sorriria com o aceno). Nos blogues, por seu lado, mais do que estilo há procura expressiva, mais do que substância há culto do diverso (e do fragmento de sentidos), mais do que singularidade tácita há sobretudo tentativa de adequação da linguagem ao novo meio (a tão falada pesquisa do “tom”).
O território do estilo terá que ser estável, chão, tradicional, como se fosse um autódromo há muito conhecido e onde é, portanto, possível conhecer e reconhecer o motor, fixar as curvas e adequar a longevidade da expressão ao asfalto. Nos blogues não há esquadria, nem perímetro, nem autódromo. O asfalto da blogosfera é o éter da rede. Por isso, o estilo é coisa para amanhã, para um amanhã ainda distante (mas coisa pouco utópica, já agora).
“Sétimo: a crónica não pondera opiniões contrárias à sua; a crónica pondera apenas uma opinião que seja contrária às outras.”
A crónica parte de uma única via, parte de uma única portagem e pode pagar o preço do múltiplo desígnio e do múltiplo confronto que suscita. Mas desengane-se o contendor filosófico: a crónica voa com argumentos sumários, aforismos elegantes e imagens de iminência e não com aporias infindas, súmulas epistemológicos ou apologias ínvias. O tempo iluminista da crítica redentora é, na crónica de JPC, a simples janela de Vermeer por onde entra a luz de viés.
Nos blogues, a ventania cósmica é bem maior e o Iluminismo, para o bem e para o mal, já é parte da amnésia generalizada. Tal como vimos no post de anteontem anteontem (“O ‘tom’ dos blogues – 16), o tema do debate na blogosfera não tem fim, mas basta-se muitas vezes a alinhamentos fáceis, a previsibilidades elementares e a ponderações mínimas. Debater na blogosfera é muitas vezes navegar entre um spam opinativo e um oásis que pode assemelhar-se ao ‘core’ desta sétima regra. Mas em vez de ‘targets’ certos, temos quase sempre espelhos paralelos, imagens esquivas e enxertos endiabrados. Sign of times.
“Oitavo: a crónica não está certa ou errada; a crónica, como diria Wilde, está apenas bem escrita ou mal escrita.”
Para além de todas as condições de verdade e aberta qb. ao limbo dos sentidos, esta oitava regra é coroada pelo mais axiomático, esquecido e intuitivo de todos os princípios: o bem e o mal. Escrever bem? Leia-se: A MINHA língua devia mirrar e apodrecer. Transformar-se em chama, ser consumida em breves minutos na mais atroz agonia - e cair para o lado, um pedaço de carvão a sinalizar a minha irremediável e tão humana fraqueza. Passei a vida a vergastar o cultura do ginásio. Hoje, frequento um por conselho médico e evidência física. Em três meses, engordei 12 quilos. Tudo bem, pensei, sou um sábio gordo e feliz, sentado num travesseiro de penas, a debitar sentenças sobre a vida, enquanto duas modelos nórdicas vão preparando bebidas no canto da sala. Coisa zen(…)”. É tudo.
“Nono: a crónica é pessoal; a crónica é um prolongamento do ego.”
Claro, de novo o paradoxo da individuação (ver “ O ‘tom’ dos blogues – 8). Todos os ‘ismos’ do século passado foram apagando o sujeito: formalismos, estruturalismos, descontruccionismos e outras desestruturações estilo “pós pós pós”. Bons tempos em que o biografismo fazia jus a um texto, a partir da verve umbiguista do autor: ele que comia favas, ele que logo se demorava nas descrições da culinária; ele que pescava de norte a sul, ele que logo se entretinha a escrever ‘Os Pescadores’; ele que fugia da sua ilha, ele que logo nos alardeava a falar de um tipo errante e perdido - de manhã à noite - numa cidade de nóbeis. De um momento para o outro, também a rede passou a ser encarada como um palimpsesto síncrono de vozes “des-subjectivadas”, segundo a expressão dos cientistas comunicacionais.
Mas eis que, não menos de repente, tal como meteoros, os blogues surgiam para reatar a tradição e introduzir no esquema já viciado o paradoxo da individuação. No meio da morte do autor, vários autores, milhares de autores, miríades deles fizeram-se ouvir. Assim é também a insistência heróica da nona regra de JPC: “pessoal”, “ego”, pois então. E em plena conformidade, tal é a travessia de terrenos do autor, ele que se pôs a descobrir (infamemente) a blogosfera e, ao mesmo tempo, a explorar o arquipélago da crónica. Não se podia esperar outra coisa. Provas? Leia-se aqui a intensidade da primeira pessoa: “NÃO ME LIXEM. Os livros da vida não devem ser ditos em público com tamanho optimismo e insuportável facúndia. Por uma questão de pudor. De vergonha. Na cara. Seria bom. Seria bom dizer: os livros da minha vida são as tragédias de Shakespeare. Depois delas, tudo mudou. Sou um ser humano capaz de compreender a crueldade e a mentira, capaz de amar os homens e de perdoar a infâmia. Mas as coisas não são assim. Os livros da vida não existem para melhorar a vida. Au contraire: existem para a piorar. Irremediavelmente. São a projecção do que existe, para melhor ou pior. Mas em grande: ecrã panorâmico, dolby sorround, 16 por 9.”
Claro, de novo o paradoxo da individuação (ver “ O ‘tom’ dos blogues – 8). Todos os ‘ismos’ do século passado foram apagando o sujeito: formalismos, estruturalismos, descontruccionismos e outras desestruturações estilo “pós pós pós”. Bons tempos em que o biografismo fazia jus a um texto, a partir da verve umbiguista do autor: ele que comia favas, ele que logo se demorava nas descrições da culinária; ele que pescava de norte a sul, ele que logo se entretinha a escrever ‘Os Pescadores’; ele que fugia da sua ilha, ele que logo nos alardeava a falar de um tipo errante e perdido - de manhã à noite - numa cidade de nóbeis. De um momento para o outro, também a rede passou a ser encarada como um palimpsesto síncrono de vozes “des-subjectivadas”, segundo a expressão dos cientistas comunicacionais.
Mas eis que, não menos de repente, tal como meteoros, os blogues surgiam para reatar a tradição e introduzir no esquema já viciado o paradoxo da individuação. No meio da morte do autor, vários autores, milhares de autores, miríades deles fizeram-se ouvir. Assim é também a insistência heróica da nona regra de JPC: “pessoal”, “ego”, pois então. E em plena conformidade, tal é a travessia de terrenos do autor, ele que se pôs a descobrir (infamemente) a blogosfera e, ao mesmo tempo, a explorar o arquipélago da crónica. Não se podia esperar outra coisa. Provas? Leia-se aqui a intensidade da primeira pessoa: “NÃO ME LIXEM. Os livros da vida não devem ser ditos em público com tamanho optimismo e insuportável facúndia. Por uma questão de pudor. De vergonha. Na cara. Seria bom. Seria bom dizer: os livros da minha vida são as tragédias de Shakespeare. Depois delas, tudo mudou. Sou um ser humano capaz de compreender a crueldade e a mentira, capaz de amar os homens e de perdoar a infâmia. Mas as coisas não são assim. Os livros da vida não existem para melhorar a vida. Au contraire: existem para a piorar. Irremediavelmente. São a projecção do que existe, para melhor ou pior. Mas em grande: ecrã panorâmico, dolby sorround, 16 por 9.”
“Décimo: a crónica deve ser tão fácil de ler como de esquecer.”
É a regra mais parecida com essa figuração de rosto chamada post, não haja a mais pequena dúvida: a regra da pastilha elástica na boca do herói.
Deverá ser nessa suposição que ainda sobrevivem, entre nós, alguns dos últimos deuses e verdadeiros protagonistas da história, i.e., através do ídolo da permanente ‘actualização’.
Há, de facto, nas regras de JPC muita empatia com o que podiam ser esparsas regras de uma blogosfera ainda em crise expressiva (três anos e pouco de história é já tempo para ter aprendido a andar). As duas últimas regras são realmente contíguas, denotam a mesma atmosfera e o mesmo desprendimento. A defesa de uma facilidade que não é facilista, de uma clareza que não é afectação e de uma sinceridade que não se confunde com a parvoíce correcta que dá pelo nome de ‘transparência’.
É a regra mais parecida com essa figuração de rosto chamada post, não haja a mais pequena dúvida: a regra da pastilha elástica na boca do herói.
Deverá ser nessa suposição que ainda sobrevivem, entre nós, alguns dos últimos deuses e verdadeiros protagonistas da história, i.e., através do ídolo da permanente ‘actualização’.
Há, de facto, nas regras de JPC muita empatia com o que podiam ser esparsas regras de uma blogosfera ainda em crise expressiva (três anos e pouco de história é já tempo para ter aprendido a andar). As duas últimas regras são realmente contíguas, denotam a mesma atmosfera e o mesmo desprendimento. A defesa de uma facilidade que não é facilista, de uma clareza que não é afectação e de uma sinceridade que não se confunde com a parvoíce correcta que dá pelo nome de ‘transparência’.