terça-feira, 23 de maio de 2006

O "tom" dos blogues - 14

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O sentido individual é hoje em dia particularmente marcado por fluxos, ou seja, por agenciamentos mais automatizados do que autonomizados que condicionam as escolhas (consumo, imagem e mobilidade são exemplos de práticas que excedem a necessidade: consumimos mais do que necessitamos, vemos mais imagens do que ponderamos, viajamos amiúde por viajar). Por outro lado, as referências do agir colectivo tornaram-se nas últimas décadas bastantes instáveis e flutuantes, muitas vezes delineadas por ‘main streams’ ou por meta-ocorrências que se propagam através dos média (no fundo, a narrativa que leva hoje a cabo a velha catarse dos mitos antigos).
Há de facto na actualidade uma miríade de escolhas que passou a corresponder a um efeito de fluxo ou compulsão. O princípio da rede – ‘É preciso estar lá’ – adequa-se a este tipo compulsivo que está a transformar os aparelhamentos hipertecnológicos numa espécie de templo onde o processamento instantâneo de possibilidades sugere visões, milagres e súbitas redenções (o vasto e encantatório palco da virtualização). Quer isto dizer que, ao contrário do sempre adiado ‘clímax’ da história moderna, que se via a si mesma como um edifício orgânico, continuista e progressivo, o verdadeiro “locus” da história está a ancorar, de dia para dia, apenas e tão-só no coração do presente.
A blogosfera também se insere nesta cartografia feita de fluxo, compulsão, pertença e presente imediatista. A conquista do sentido individual na blogosfera alia-se a uma intensa procura expressiva e tem demonstrado, por isso mesmo, uma clara tendência a sobrepor-se a qualquer horizonte de sentido mais geral, apesar das marcações políticas e das empatias diferenciadas (mesmo em momentos em que as ‘separações de águas’ mais se fizeram sentir nos discursos blogosféricos, caso da guerra do Iraque em 2003). No entanto, não deixam de se verificar na blogosfera automatismos e práticas interessantes de fluxo. Algumas isotopias e laços de empatia expressiva estão a tornar-se comuns. Sem me referir a exemplos de metabloguismo, dou de seguida alguns exemplos relevantes mas dispersos dessas partilhas:
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a) Registar um quotidiano absolutamente inesperado (neste caso, sinalizando o caos em que se deixa um quarto de hotel e fazendo eco do ponto de cruz como forma de esquecer os tristes caminhos de Portugal);
b) Reabrir ou descobrir polémicas e debates (neste exemplo, a partir do caso Handke vs. Jorge Silva Melo/Augusto Seabra com posteriores extensões a Rui Rio e à Relação do Porto);
c) Escrever com base em alegorias ambíguas e paródicas (o caso Carrilho - entre a fúria do “epitáfio” e a “missa do sétimo dia” - e as reformas de Sócrates);
d) Antever factos descomprometidamente (caso do destino de Marcelo Rebelo de Sousa ou do desfecho de uma guerra entre supermercados);
e) Registar territórios e ambientes (neste particular, a transformação de Cascais ou o cenário do Portugal rural “das couves”);
f) Analisar a narração televisiva diária (sobre um Prós e Contras que se anunciava fracturante);
g) Registar o que escapa à ordem mais previsível das coisas (neste caso, as “deliciosas gralhas” – “Opus Day” por “Opus Dei” numa crítica ao filme O Código Da Vinci – e a procura de palavras certas e “doutas”);
h) Aconselhar ou sugerir leituras (ofício quase diário e, neste caso concreto, visando uma entrevista e um artigo de jornal).
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A procura expressiva que pressupõe a adequação ao novo meio blogosférico (o "tom”) não se circunscreve a isotopias. É normal que haja mimetismos temáticos no vaivém que se desenha entre os fluxos (repetições quase inevitáveis) e a criação de um sentido individual que dita, dia a dia, a sua inscrição no pequeno rectângulo cor-de-laranja “Publish Post”.
Seja como for, a procura expressiva não se reduz às áreas temáticas e às abordagens que poderão ser dominantes, na medida em que uma coisa é o agenciamento do blogueador (o mundo que ele escolhe para e de que falar) e outra coisa é a adequação da linguagem utilizada. As duas coisas são autónomas. E são de tal modo autónomas que seria possível concluir que entre o agir humano (dos blogueadores, neste caso) e o agir das linguagens existe uma interacção maleável e aberta que se confunde com um sincretrismo quase sempre invisível.
É nessa invisibilidade que o “tom” se vai definindo.