quarta-feira, 23 de novembro de 2005

O Trevo de Abel - Episódio 40
Terceira Parte: O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
e

e
Afinal o médico, obsequioso e afável, sempre acabou por regressar à tertúlia. É quase meio-dia e meia e Dona Olga, arranjadíssima com o seu vison habitual, sentou-se agora mesmo à mesa do Café Parque. Então a sua esposa hoje não vem? Sabe, está engripada, nada de importante. Olhe que pena que eu tenho! Estimo as melhoras. Muito obrigado, muito obrigado. Então e o jornal, hoje, não o traz? Veja lá, como fiz as palavras cruzadas no intervalo da manhã, acabei por deitá-lo fora. A propósito, li ao de leve a notícia do morto-vivo e a senhora... ouviu falar? Sim, sim, ontem na televisão, o chefe da polícia, ou lá o que era o senhor, falou muito bem. Mas sabe uma coisa, senhor doutor, estas coisas arrepiam-me. Deixam-me com um medo enorme. O que eu acho, o médico a puxar as mangas do casaco e chegando-se à frente, o que eu acho, sabe, é que meio mundo é louco. A gente ainda disfarça, porque temos cá a nossa educação, as nossas coisinhas, mas este mundo anda fora de si, acredite que é verdade. Ó senhor doutor, não me diga uma coisa dessas!
E quando o médico, taciturno e melancólico, disse o que disse com palavras a rolar de lentidão e algum ardor, desencadeando aquele movimento desencontrado de íris, sobrancelhas e pupilas, logo Dona Olga sentiu uma íntima esperança de que alguma coisa, um dia, pudesse ainda vir a acontecer. Mas... senhor doutor, agora só aqui entre nós, acha mesmo que eu e o senhor doutor, por exemplo, somos... maluquinhos que disfarçamos que não somos? Não é isso Dona Olga, não é nada isso, o médico a rir-se bastante alto e retirando de uma assentada os cotovelos de cima da mesa, - olhe lá Dona Olga, nós estamos bem, damo-nos bem e até nem temos motivos de queixa, mas fora aqui dos nossos hábitos e da nossa rotina, digo-lhe mesmo, esse mundo tornou-se numa coisa diabólica. Pois é, Dona Olga de olhos abertos a repetir, pois é, pois é. E hoje o raio da mulher da fruta nunca mais me aparece aqui! Se quiser, sr. Doutor, tenho tangerinas muito boas no meu quintal. Está bem, está bem. Depende de como as coisas se encaminhem em minha casa...está a ver... tenho que receitar umas pomadas, uns tratamentos à minha mulher e, depois, se ela estiver melhor, passo ainda pelo Centro de Saúde e, lá mais para ao fim da tarde, posso ir lá então colher umas tangerinazinhas. Dona Olga sentiu um calafrio, ao longo da coluna vertebral, dos quadris, das orelhas e tremeu como varas verdes, entre os artelhos e as finas rugas da testa, completamente pálida e sedenta de mão de homem. Há tanto ano! Dona Olga estava perdida, corada e afónica, no momento em que eu e a Leonor nos sentámos.
Então, senhora professora, como vão indo as suas aulinhas? Ah, senhor doutor, os meninos, hoje em dia, são todos uns malcriados. Olhe, olhe, estávamos agora mesmo aqui a falar nisso. Dona Olga, já a sorrir, bem rosada e perfumada de olhar, dizendo que sim com a cabeça. Pois é, pois é, naturalmente é preciso ter uma grande paciência; e como eu estimo, por isso mesmo, aqui a nossa Leonorzinha! Eu, sisudo, caladinho, já a mexer o meu chá de limão e a pensar nos templos do interior da Tailândia. E com os taxistas em Lisboa é o mesmo, continua Dona Olga. Andam sempre a correr, parecem uns malucos, como o sr. Doutor dizia, há pouco, meio mundo anda louco, mas louco mesmo a sério! Excepção feita aqui ao senhor Abel, claro está. E o médico levanta o sobrolho, olha-me de baixo para cima e pergunta com ar agoirento e aziago, então mas o meu amigo não teve um acidente, uma vez? Eu? Ah sim, e eu a tentar fixar de lado os olhos no rosto Leonor. Teria ela falado ali das minhas costuras atrás das orelhas, mas que gente esta! O raio do médico, se calhar, ainda está mas é remoído com aquela história do "festo". Eu? Acidente, Eu? Sim, sim, aqui a Leonor contou que passou muito mal, há uns anos, e que até teve que fazer umas plásticas. Ah, sim, sim, isso foi ali na auto-estrada, entre... Saragoça e Barcelona. Sabe, coisa de jovem, estava nos meus vinte e tal anos. Acontece a todos. Dona Olga repetiu, sim, sim acontece a todos, mas coitado, que coisa! E isso custou-lhe muito? Ó Dona Olga, nem imagine! E o médico com o sobrolho levantado, com cara de coronel frustrado, a querer tramar-me com outra pergunta ainda pior que esta.
E então onde é que se fez operar, em que hospital? Olhe, sr, Doutor nem eu já me lembro bem, foi há tanto tempo! Então não foi em Saragoça? Avançou Leonor, ingénua, adjuvando a doméstica intriga do médico. Sim, sim, claro, foi aí mesmo; é, foi em Saragoça, fica em Aragão, conhecem? Ai, conheço tão mal a Espanha, disse e suspirou Dona Olga na direcção do empregado que era, todo ele, uma bandeja arqueada de cafés, garrafas e uns brindes do dia. São caixinhas de marmelada que trago para os senhores, porque hoje é o vigésimo quinto aniversário da casa! Foi nessa altura que chegou a irmã da Dona Olga. Sentou-se, trocou a perna e disse logo na direcção do médico: Olhe, sr. Doutor, o jardineiro disse-me que a mulher da fruta está com papeira e que, portanto, não pode vir hoje. Papeira? Papeira, naquela idade? Há com cada uma! Olha que esta! Isto hoje mesmo é dia de coisas do Entroncamento! Só faltava mesmo é que o morto-vivo estivesse para aí escondido numas águas-furtadas de Belas. O quê? Águas-furtadas, o quê? Disse Leonor. Bom, bom, isso é maneira de dizer. Sabe, durante a guerra, os espiões escondiam-se, ou nos sótãos, ou nas caves. Dona Lola, com o seu ar vidrado, pedrado, ilimitadamente seco de voragens: Ai era? Era mesmo assim? É como lhe digo. E eu, a acabar o chá de limão, e o nervoso miudinho a subir-me pelas canelas até aos joelhos e daí à barriga, ao peito, entrando-me pela cabeça que parece já oca, sem conteúdos, vazia. Subitamente vazia.
Mas o senhor Abel, hoje, está muito pálido, continuou o médico. E de imediato Leonor ergueu a cabeça e virou-se para mim, aparentemente preocupada: Estás-te a sentir bem? E, sem mais, se pôs a contar que eu tinha tido dores no peito, outro dia, quando acabava de almoçar, trá la lá, trá la lá, trá la lá, sempre a falar, não é capaz de se calar e não há nada que lhe ocupe a cabeça que não lhe povoe logo, a correr, os lábios, os gestos, a fala, o raio que a parta. Salvo seja. Não, não, sinto-me mesmo bem, fino. E acho que está quase na minha hora; é que hoje o meu turno começa à uma hora da tarde, porque o senhor Domingos foi ao curandeiro. Então... o que é que o homem tem? Perguntou Dona Olga para a mesa. Ficou tudo a olhar para o vago, uns para os outros, ou para ninguém que fosse; fez-se silêncio, demora, delonga. A atrapalhação com nome próprio. E foi a irmã que acabou por tomar a palavra, com ar secreto, balbuciante, como se chamasse um gato do outro lado da rua. Chega-se à frente, toca com os túrgidos na mesa e avança em máximo sigilo: Ó mana, parece que tem um mal no sítio... dos homens. Dona Olga tapou a boca com a mão carregada de anéis, enquanto eu sorria e Leonor olhava para o chão. Quando me levantei, o médico ainda disparou para o ar: Ó senhor Abel tenha cuidado no serviço que isto hoje parece que está tudo assombrado. Dona Olga riu muito alto, a julgar que era piada. De costas para o médico, sem ligar à desdita, virei-me para Leonor, já atónita, e limitei-me a repetir - Às 6 h, querida, está bem? Então, até logo. Leonor despediu-se de mim com um sorriso leve, improvisado, talvez mesmo distante. E porquê?
Ao chegar ao táxi, abri o rádio e, nas notícias, falava-se já em exumação. Era isso que eu temia. O que iriam eles encontrar? A questão tinha saltado fronteiras e a polícia tinha agora já em seu poder um depoimento do mágico Muhammad Mubarak, para além de andar no encalce de fontes mais consistentes. Entretanto, desse ou não desse, a polícia ia distribuir por todo o país o rosto de Ulisses Caim dos Santos Trigo, meliante, assassino e perigoso elemento que, porventura, poderia ainda estar vivo e a monte, constituindo, portanto, uma verdadeira ameaça para a paz pública. No final das notícias, o chefe Madeira, entrevistado, repetia: a exumação de ambos os corpos é uma medida normal, quando há indícios de crime, ou quando se regista uma ausência de indícios e provas necessários à investigação de um crime.
A polícia começa agora a tratar o que era uma simples anedota num caso realmente sério. Nesse dia, viajei até Campolide. Esperei, ao longo de toda a tarde, a uns bons trinta metros da casa de Porfírio. Observei, tomei notas, esperei. Perto das 6 da tarde revi o gigante; ia um pouco coxo e mais enfatuado do que o normal; entrou rapidamente em casa sem me dar tempo fosse para o que fosse. Fiquei indeciso sobre o que fazer, nervoso, escondido atrás dos meus óculos escuros, com algum medo à mistura. Foi nessa altura que olhei para o relógio e dei comigo a gritar: Mas já são 6 horas e eu esqueci-me de ir buscar a Leonor! Corri para Belas e entrei em casa com os bofes na boca. Que tinha tido um serviço para Lisboa, que não tinha podido parar para telefonar. Mas que já não saía hoje, etc. etc.
Leonor olhou então para mim com um aparente desdém, sorriu depois e disse com voz serena, tranquila - Não há problema nenhum com isso! Percebi logo que devia ter sido uma coisa dessas. Pareces tão nervoso nos últimos dias! Eu sosseguei, mas logo estremeci quando Leonor me disse que a Luísa viria amanhã jantar cá a casa. Ah é? E porquê? Para retribuir? Mas o jantar que ela ia dar... ainda não aconteceu, pois não? Não, mas, no outro dia, foi ela quem me pagou o jantar. Mas o que é que tu tens? Fazes com cada pergunta mais estranha e absurda! Parece que não te conheço! Qual é agora o problema de convidar a Luísa, uma minha amiga, a vir cá comer a casa!? Começo a não gostar nada do ambiente que tu andas aqui a criar, sabes eu...