O OLHO DO JAVALI
Folhetim em doze episódios
SEGUNDO EPISÓDIO
(A salvação perpétua)
Folhetim em doze episódios
SEGUNDO EPISÓDIO
(A salvação perpétua)
Do outro lado da praça, Maia parou diante do homem que tinha um ovo gigante sob a camisa desfraldada e ao vento. Arrepiou-se diante daquela boca aberta que parecia uma gruta rochosa, interrompida por uns três arpões de visível cárie. À volta, subido o pano naquele rosto de Breughel, esvoaçava um sorriso próprio dos santos. Desses que subiram ao céu e vestiram, há muito, o cetim esbranquiçado da salvação perpétua. A pele macerada, os lábios recortados em gôndola, os olhos talvez paralisados e a pausa, a imensa pausa entre sibilantes a complicar o insistente apelo: - "São só dois euros, minha senhora, são só dois euros. Compre este raminho de balsamita que é o maior tónico do mundo contra os soluços, contra o mal dos nervos, contra o mau olhado, contra tudo". E Maia, sem sequer saber por que é que havia parado naquela barraca sem tecto, naquele entreposto de vazios e, depois, a ver-se, sem mais, com a carteira na mão e com o raminho da hortelã-francesa a descer-lhe pela linha da vida, um pouco suada, desvanecida, talvez admirada.
E assim seguiu Maia, sobre saltos altos e finos, a ondular as ancas com prontidão e elegância, atenta às horas e ao olhar grave da mulher-polícia das sardas que não pára de sussurrar junto ao rádio portátil que traz consigo. Seguiu-se a passadeira, uma mancha de insectos e as nuvens em forma de cetáceos. A grande parada. E foi aí, nesse intervalo do mundo, que Maia se lembrou da viagem de amanhã. Às nove da manhã, partida para o aeroporto e... que bom que vai ser, dez dias em Nova Iorque sem fazer nada. Maia com os olhos pousados no reflexo de luz que a grande roda da feira popular embala. Luzes de Chagall a recurvar, a arquear, a rodopiar a claridade que mal deixa perceber o verde vago que, de novo, se entreabre.
E os passos outra vez a atropelarem-se num veemente caos, na súbita voragem, mal o semáforo se anunciou à humanidade. Param motos, autocarros, arcanjos de todos os tipos e sobretudo táxis. Tudo pára nesta minúscula hora de encantos urbanos e a cidade como que passa a cheirar a uma espécie de mistura de sândalo, alecrim e borracha queimada. É ver a astúcia de Maia a aspirar e saborear o ar e a abrir a mala com todo o cuidado e recato do planeta. Retira de dentro a chave do carro e caminha agora mais decididamente para a esquina, com o ramo de balsamitas preso entre unhas vermelhas, sanguíneas. É o ditame, a lei quotidiana. Entra depois no parque, paga na cabina a manhã inteira de estacionamento e dirige-se na direcção do automóvel.
E agora, como é que Maia vai explicar o que está a prestes a acontecer-lhe?
Próximo Episódio: (Olhe que eu sou uma pessoa de bem e detesto algazarras ! - Olhe, que eu não gosto de brincadeiras e muito menos a estas horas.)