domingo, 29 de fevereiro de 2004

Agarra que é alegado

“Alegadamente” é um advérbio de modo muito caro aos jornalistas. Mas não só. Tal como a forma cúmplice de natureza adjectiva “alegado/alegada”, significa tudo e nada, mas sobretudo suplanta a necessidade de pôr a nu as fontes do que se fala. Faz jeito. E tudo o que discutimos - não sei se já repararam nisso - é “alegado”. São os “alegados” candidatos ao P.E. ou a P.R., são os “alegados” terroristas, é o “alegado” défice, é a “alegada” vitória de Kerry, são as “alegadas” testemunhas do caso Y, é a “alegada” captura de Bin Laden, é o “alegado” autor do Pipi, é tudo “alegado”. Até - entre outros - o actual Ministro da Cultura é “alegado”, salvo seja.
Descrer/crer no milagre

“(…) porque Marimbanguengo antes de Ourique tinha dito o senhor de Lisboa, quer dizer não disse antes de Ourique, não referiu Ourique, desconhecia Ourique, disse que talvez/ talvez” (António Lobo Antunes, Boa tarde às coisas aqui em baixo, 2003, p. 504)
Blogoreceita

Aconselho os blogues apenas empenhados na carcaça ideológica, na bajulação à agenda noticiosa diária e nas tricas insossas a repetirem com Mário de Sá-Carneiro as palavras que aparecem no início do Eu-Próprio Outro: “Sou tão grande que só a mim posso dizer os meus segredos”.
Gibson e o logro anunciado - 2

O Next Book, um portal sobre cultura judaica, dá voz a vários autores sobre o muito falado filme de Gibson. É um fórum interessante.

sábado, 28 de fevereiro de 2004

Gibson e o logro anunciado

Andrew Sullivan afirma no seu blogue que o filme de Mel Gibson, The Passion of the Christ, é pornográfico. A ideia é retomada numa interessante carta ao editor do New York Times onde se adicionam epítetos bastante fortes à fita de Gibson, tais como “anti-semita”, “anti-católico” ou “anti-cristão”. Mas o aspecto mais estimulante dessa carta é a comparação estabelecida entre a teia da Paixão segundo Gibson e a catarse trágica do 11 de Setembro que o Oxblog desenvolve do seguinte modo:

“The comparison of the Passion to September 11th raises an interesting point. To what degree is an immediate inundation of the senses necessary to overcome the detachment that develops in time? Having lived through September 11th, we have no need to watch the planes crash again and again. But are there Christians who might be inspired by this sort of film, which goes beyond the violence of gospel? Or does a reliance on such fare suggest a spiritual failure on the part of the Church to inspire its members with the ideas that Christ stood for?”

Eu prefiro esperar para ver o filme. Embora não seja insensível à negatividade do pathos que adopta a materialidade e a exposição carnal do sofrimento para tão-só o evocar, denotar, ou transpor para outra putativa dimensão. Esperar para ver, numa palavra.
Equívocos & direitos de autor: o caso James Joyce

A União Europeia conferiu ao neto de James Joyce, Stephen, os direitos de autor até 2011. As consequências irão sentir-se já claramente no centésimo aniversário do Bloomsday que terá lugar no próximo dia 16 de Junho. O blogue australiano Crooked Timber reflecte sobre o assunto. E vale a pena ler.
Cinema independente

Vem aí o chamado “6th International Panorama of Independent Directors of Film and Video” que terá mais uma vez lugar em Salónica, no início do próximo mês de Outubro. Fica o rebusco para os interessados.
Manuela Magno candidata


via Terra Estranha

Hoje, na TSF (às 11 h da manhã), uma mulher portuguesa, maestrina e docente de música da Universidade de Évora, de seu nome Manuela Magno, anuncia a pré-candidatura à Presidência da República. Isto promete. Santana deverá estar atento. Mas não só, a avaliar pelas recentes sondagens.
Parabéns Benfica!

Um centenário é um centenário. E um palmarés inigualável é um palmarés inigualável.
Tusa

Telejornal das oito da noite. A jornalista (dantes dizia-se locutora) fala acerca dos camionistas que erram pela fria Vilar Formoso e exclama, a certa altura, de olhos muito abertos - “Está instalado o caos, não é assim?” - A correspondente da RTP afasta o cabelo da cara e dá vivas ao entusiasmado aceno com um enternecido e veemente - “Sim”. Os camionistas mantêm-se estóicos, barbudos, cansados e naturalmente impacientes. Deambulam pelo parque apinhado de TIRs junto à fronteira e as curtas entrevistas que lhe dão voz ilustram o gáudio das jornalistas: - Que bom, está instalado o caos! A malta gosta é de caos, de tragédias, de dramas pesadotes, de “gandas ntícias”! Tusa, pois então.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2004

A invisibilidade dos nossos exílios


Vermittlung von Kunstwerken, Lynn Chatwick

Francisco: comecei por escrever no meu post de ontem que não criticava o facto de o Aviz ter publicado um texto que os dois concordamos ser deplorável. Entendo perfeitamente o que significa guardar para si a dor do silêncio. A minha reserva prende-se sobretudo com a fluidez e a facilidade extremas com que, hoje em dia, o tipo de retórica utilizado pelo tal senhor R.M.P.P. (nome, aliás, cripticamente interessante) se está a expandir entre nós. É uma voragem para a qual não existem quaisquer barreiras sólidas: nem valores consolidados, nem lógicas mínimas de dever, nem um arreigado espírito de exigência e rigor, nada. Estamos a viver no caos do facilitismo e as apreciações mais condenáveis pululam por aí como se fossem enunciados plausíveis.
Lembro-me de quando se publicavam os discursos de Américo Tomás na cantina da antiga Faculdade de Ciências na Rua da Escola Politécnica. Vivíamos num ambiente de gorilas e as escolhas do mundo não nos proporcionavam, na altura, grandes retóricas. O mundo afinal acabava e iniciava-se ali mesmo à nossa frente. Hoje nem sempre é assim. Às facetas positivas da actualidade (multiplicidade, mundialização tecnológica e democraticidade do espaço público) acrescentam-se algumas facetas bastante problemáticas (certos fluxos massificados, a propagação de medianias liofilizadas, acriticismo galopante, etc.). Entre ambas as esferas, o que se joga, no dia a dia, é a liberdade, a tolerância, a compreensão e a salvaguarda da autonomia interpretativa do mundo.
E apesar do mundo de hoje oferecer o que não nos oferecia há umas três décadas, a verdade é que Portugal continua a ser um país que faz por desconhecer partes essenciais de si próprio e que, além disso, persiste em ignorar certas realidades (distantes) mais ou menos incómodas. Esta síndroma de avestruz (o isolacionismo salazarento que hoje se veste de nacionalismo periférico e bacoco) torna-se evidente com a questão judaica, na medida em que o nosso país profundo ignora insistentemente essa sua face constitutiva - como afirmou Yosef Hayim Yerushalmi, “a história judaico-portuguesa ainda não penetrou na consciência pública” - ao mesmo tempo que sempre tratou o Holocausto como algo lateral, longínquo e que não é da nossa conta (no meu caso, foi preciso ter vivido uma década fora do país para me aperceber, na realidade - e não apenas pelos livros - da sua efectiva, corrosiva e trágica escala).
A ilusão da finisterra portuguesa onde aparentemente “nada acontece”, como dizia o poeta Ruy Belo (que ontem faria 71 anos), tanto apela à brandura mitológica e à tristeza pessoana como à fuga para a frente mais extravagante, ostentatória ou delirante. Mas, pelo meio, oculta-se muito do que perturba esta identidade pseudo-esfíngica (as suas variadas “nações”) acabando apenas por exibir-se a fachada fadista e misantropa, ou, no reverso, o engalanado corcel dos grandes circos, euros e expos quase sempre descentrado face à real textura do país.
Ou seja, no tempo de Américo Tomás, blogar os seus risíveis textos não era tanto questão de conhecimento do abjecto, mas antes um puro exercício de paródia hilariante. Mas, hoje em dia, blogar textos de anti-semitas declarados é dar voz ao abjecto - e libertar fantasmas, é certo (compreendo-o) -, mas sem que qualquer efeito paródico positivo se crie com tal facto. Em tempo de fluxos massificados, a paródia dilui-se e esvai-se na aceleração e no sucessivo mise en abyme das imagens, dando origem a discursos correntes estereotipados e apoiados na retórica primária de palavras de ordem (as imagens-tipo do tal texto deplorável vivem deste torvelinhar básico à Le Pen).
E é isso que mais me preocupa. Mais que tudo. Mais do que a própria publicação do pobre texto do senhor R.M.P.P. (que provavelmente nem imaginará que, em vida do Padre António Vieira, como o próprio testemunhou, os atributos “português” e “judeu” chegaram a ser sinónimos em variadas parte da Europa).
Todos os portugueses são, em parte, uma parte importante de um desterro ainda por desvendar.
Murmúrio perdido


Vermittlung von Kunstwerken, Serge Charchoune

Lembro-me do eco das traineiras, do aguçado timbre das carroças, do pó que se elevava nos caminhos, das vozes isoladas ao longe, do silêncio subitamente moldado por um alarido que interrompia a cadência do tempo. Estou lá, nessa terra. Em lado nenhum, seja onde for, desde que o nome soe apenas a murmúrio.
Do que não me lembro é do meu exílio mais antigo, minha treva dissimulada, meu barco a remos sem rio.
Anti-semitismo: voltar à carga

O Francisco decidiu publicar no seu Aviz uma carta de conteúdo deplorável. Não critico o facto, mas eu talvez não o tivesse feito. Estou com o Homem a dias. Aproveito para voltar à carga (sei que já existem concordâncias em franco movimento na blogosfera): no ano de 2006, não deveria o estado português homenagear as vítimas da Páscoa Negra de 1506? Eu creio que sim. E estou certo de que muitos outros irão aderir à causa de braços abertos. Com todo o vigor e remando contra a hipocrisia dominante. Esperemos por mais desenvolvimentos.
Olhar

Reentro na varanda e encaro a quase imobilidade do limoeiro. Ao fundo, o horizonte ressente-se do logro antigo, dos desejos transformados em matéria baça e talvez inacessível. E eu digo que o mais-que-perfeito é coisa que apenas existe na gramática. O que já não é mau.
Persuasão - 2

Desfazer o véu da inocência e poder, depois, reencontrá-lo no mais fecundo acto do dia. Seja ele qual for. Suspender a via da dúvida e saber olhar em frente, durante alguns segundos que seja. Nesse estado de quem está ailleurs, a inocência e a certeza entrelaçam-se momentaneamente. Respiro fundo e preparo-me para olhar em volta. E fico a saber que o tempo já não é de facto a grande persuasão nostálgica do universo.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2004

Infimidades

Estou naquele silêncio da noite que respira uma intemporalidade minúscula, ínfima, quase invisível. Nada irá sair daqui e tudo poderá ser subitamente pensado e pressentido. Em desordem total. Mas numa lucidez que me ultrapassa e comprime. Sempre foi assim.
Desregramentos

Antes de me deitar vou ainda à janela, vejo a humidade nos vidros, revejo a cadência múltipla dos dias e sei que existe uma hiato para a comoção. Olho e não há ninguém. Às vezes passa um carro solitário e o céu desenha-se quase a negro e sem regras. Árvores ao fundo. O pasmo adiado. O lancinante aceno da noite.
Explicações, hoje e aqui

E ao fim da tarde gosto de ver a luz amarelada dos candeeiros a vaguear entre as copas das árvores que há muito se fundiram com a opacidade da memória. E resta sempre um impulso que me leva a interrogar a natureza deste gosto, deste olhar, desta vista, deste gesto, disto tudo. Fico sem explicações (prefiro), sabendo, no entanto, que elas existem e que estão sempre ao nosso lado como se fossem uma praga inevitável, uma beleza desconcertante, um leviatã sem enredo, ou até uma bailarina sem corpo.
Lua que te quero perto

E há dias em que se fica despalavrado. Dois meses após o Natal, já as pontes e os feriados aparecem a esvaziar as cidades e a distribuir por estradas e restaurantes uma miríade de famílias em crise e em simultâneo investimento na gritaria, no gasto e no gesto ostensivo. Não sei do que gosto mais, se da “água do Luso”, se do “Português Suave”, se do que é “Nacional é bom”, se do carácter pindérico dos carnavais portugueses que passam nas televisões. Mas ele há dias em que a lua é quem mais ordena. Devia ser assim.
Ide ao Baliza

A cena passa-se no Baliza, ali à Bica. O senhor João - ouvi, a certa altura, o seu nome - tem um saco de pano preto de onde retira esferas de madeira com um número inscrito (de 0 a 9). Em cima da mesa tem o totoloto e é assim que vai cumprindo o exíguo ritual - como dizia um amigo meu - “sem depositar qualquer confiança na sorte”. Há pequenos brilhos que valem pelas névoas de Avalon e que dão a mão à maravilha.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2004

Crise

A crise na blogosfera é agora tema geral nestas ciberparagens. É um metatexto pouco criativo que surge apenas porque a maior parte dos blogueadores precisa de polémicas seguras, de agendas comuns, de argumentos proscritos, de valores binários, de fluxos de mensagens, de audiências colaterais, de sinaléticas permanentes, de intertextos precisos e de destinatártios fixos na própria blogosfera. Quando pouco escapa a este não-ter-que-dizer dominante o melhor é mesmo que muitos dos actuais blogues acabem. Muitos novos irão aparecer. E muitos actuais, felizmente bastantes, continuarão. Estou seguro disso. Foi Kerckhove quem disse, há já alguns anos, que a crise é um modo singular de interpretarmos o tempo corrente.
Confissão

Hoje vi um noevoeiro venezianamente irreal. Sobrevoava um minúsculo rio e não lhe cobria as margens. Acamava-lhe o corpo tal como um cálamo entrevê o seu próprio murmúrio. Era tempo de lusco-fusco e eu creio que os sátiros andariam por perto.

domingo, 22 de fevereiro de 2004

Villa-Lobos



Depois de tomar o café, guio lentamente sobre o asfalto luminoso, esmaecido e molhado. É uma via desimpedida, quase vazia e a música de fundo para este andamento destituído da história só podia ser uma das Árias (Cantilena, Adagio) das frondosas Bachianas Brasileiras. Ouço-as sem parar e lá fora chove. Há-de chover a noite toda.
Cultura antropomnívora

A nossa época continua a criar comprazimentos ainda muito parecidos com o apego romântico pelas ruínas. De onde vem esta atracção pelas fotografias já gastas, cinzentas e sem contraste? De onde vem este amor pelo vinil com riscos, envolto em grão, longínquo e monofónico? De onde vem este gosto pela arqueologia industrial, pelo tijolo corroído, pelos vidros foscos e pelo metal quase ferrugento? De onde vem esta veneração que revê o génio no sublime e o sublime no génio? De onde vem toda esta fúria avassaladora que vê no homem e nos seus vestígios o inultrapassável e indiscutível objecto de estudo e de paixão? Onde dantes havia Graça divina, há hoje graça humana (i.e. Cultura). Apenas isso? Os tomos que se têm escrito sobre o que afinal cabe nestas pobres, escassas e ingénuas linhas.
Persuasão

Chove diluviamente. Uma massa de água oblíqua a contrastar com o brusco pontilhado das beiras. E ao fundo da embaciada vista que me é dada pela janela, vejo um homem de fato de teino a correr sob o ímpeto das bátegas. Subitamente, as miragens e as imagens diluem-se e todo o horizonte parece converter-se num denso aquário sem mais confidências. Carnaval em casa é Páscoa na rua, dizia o bardo há muito, muito tempo. E nessa altura, ainda o tempo era a grande persuasão nostálgica do universo. E, hoje, o que é o tempo?

sábado, 21 de fevereiro de 2004

Avidez

E hoje dissipou-se o dia que era solar e nele se esvaiu a brancura que diante dos olhos derreteria a avidez do tempo. E em vez da ilusão, apareceu o vento a contar histórias de névoas antepassadas. Árvores altíssimas que não chegaram a ser, romarias intemporais, paixões diferidas e outras fábulas. Fico sempre sem palavras a observar estes breves sortilégios da natureza. E não é por ser carnaval, mas é, certamente, por ser de novo um tempo de avidez.
Femme de Avignon

A vizinha a tirar a roupa do estendal. Vejo-a ao longe, há anos. E sempre o mesmo gesto, os mesmos passos, os mesmos lençóis brancos e sem fim. Levanta agora os braços e passa as mãos, uma a uma, pelas peças de roupa. Tece-lhes a súplica, a textura e o carinho com que silencia a folhagem da nespereira. Vejo-a e revejo-a no quintal em câmara lenta, mas juro que nada sei sobre aquela minha vizinha tão longínqua. Nem nunca o saberei. Apenas concebo o modo como os seus braços muito muito muito distendidos quase tocam no céu.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2004

Pathos

E entre vozes que não se ouvem há um pathos distante que subitamente se acerca. Tão forte é o brilho que as pedras dele apenas conhecem a lua nova. Fica o rasto, o registo ínfimo, o traço que grava nessas pedras o nome de uma voz. E ela aproxima-se, quase fala, divaga entre o impenetrável rumor que ninguém ouve.
Intemporalidades

Ontem à noite, durante uma breve insónia, reparei subitamente que não havia energia eléctrica. Era outra vez a noite do mundo, como sempre terá sido. E melhor entendi a estética dos expressionistas, sobretudo dos cinematográficos como Murnau ou Lang, por terem herdado nas suas rupturas como nenhuma outra corrente do pós-Primeira Grande Guerra Mundial este profundo conjuro da grande noite de sempre. Mundo de sombras perpétuas e de áleas subterrâneas, mundo de palavras suspensas e de magias e objectos sem rosto.
Rompante

Acabei agora mesmo de mudar o nome do romance. Creio que cheguei ao fim, embora haja sempre a tentação de retocar e trabalhar indefinidamente. Vai ser o meu nono romance a ser publicado. Revelarei aqui o novo título a seu tempo.
Atmosferas

Continuo a ultimar o romance. Devo entregá-lo à editora depois do Carnaval. Há momentos em que já não distingo o que está escrito do que não está escrito. E faz tudo parte do mesmo livro (é essa a tragédia mais normal da vida). O problema é que o futuro leitor só viajará a partir do que lá vai estar escrito (ou não?).
Hipérboles

O Pedro Lomba decidiu pôr fim ao blogue Flor de Obsessão - é pena, embora infelizmente nunca tenhamos tido grande diálogo - e remata assim o seu epitáfio de blogueador ilustre (que é): “No final da semana, apagarei o blog. Guardarei o que escrevi para os netinhos e uma ou outra coisa para os jornais com os quais colaboro”. E eu pergunto: Por que não deixa na rede o que é também da rede e dos seus leitores e fruidores? Por que deseja deste modo forçado condicionar o futuro, portando-se como os namorados da era off-line e pré-sixties que rasgavam as cartas quando iam cada um à sua vida? (Há qualquer coisa nesta atitude hiper-apropriadora que me faz lembrar a confissão algo tenebrosa do José Pacheco Pereira de que queima os seus próprios livros).
Carne

Não tenho feito nada nos últimos anos para engrossar a carne carnavalesca. Mas este ano parece que não há nada a fazer. Perfila-se já para o embuste uma longa barba à operário de Liverpool, um macaco azulado, um capacete laranja das obras e mais uns adornos a dar para o leninista e para o bakuninista. Há festa em casa de um amigo meu. Há tempo para tudo. Ainda faltam três dias, mas já se pressente o estrago.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2004

Do nada

Do nada sai o movimento, a água mais simples, ou a pura invenção que um nome respira a sós. Olho pela janela e do nada vejo aparecer um autocarro de vidros muito húmidos. São vultos rápidos e incertos a caminho da noite que chega tão auspiciosa como a cor argilosa do Atlas. Ei-la agora, densa e antiga, já a transfigurar o rectângulo ainda instável da janela por onde continuo a ver cúpulas de ouro esvaídas na memória de outras cidades e rostos e mais rostos sem lenda que perco no meio de tal vislumbramento.
Pelos segmentos

Gosto muito da inteligência de formulação e de muitas das análises bem fundadas do MacGuffin ainda que, às vezes, discorde salutarmente de um ou de outro ponto, ou exagero. Gosto menos quando o tom do seu belo blogue parece derivar da definição de uma família de blogues que estabeleceria um determinado perímetro de segurança e uma arena plena de identificação e empatia. Eu não tenho, nem necessitaria de famílias desse teor, i.e., fechadas e circunscritas a padrões e valores de concordância mútua e quase ilimitada. Na blogosfera, como no mundo off-line, encontro a minha família em segmentos, em casos concretos, variados, das mais diversas origens. Há posts que me são familiares e outros que não o são (independentemente da origem). A minha família e a minha zona de identificação está enraizada na transversalidade, na errância e não na delimitação.
Pela multipolaridade

A ideia de que a esquerda é um conjunto de militantes que não cessa de lutar pela conquista de um qualquer moinho iluminado (também há gente assim!) e de que a direita é um conjunto de violinos que segue o ritmo afinado, diáfano e sereno do universo (o que é comum a muita gente exterior aos afectos da direita) não é coisa com que eu concorde. Venha da esquerda ou venha da direita, discordo francamente da opinião que vê nestas duas áreas duas verdadeiras categorias (à moda de Kant, ou de Peirce). Isso é próprio de uma visão que ainda continua a entender a correlação direita - esquerda na herança bipolar dos sentidos pós-iluministas, num tempo - o nosso - que é de abertura e actualidade (ou, pelo menos, não já centrado em idealidades do futuro), de iniciativa cruzada e múltipla, de espaço público transnacional e de rede globalizada. É por estas e por outras que eu não sirvo de energia ao motor binário do Barnabé, nem entro em campos delimitados e herméticos, seja na UBL ou noutro qualquer (por mais respeito que me mereçam - e merecem justamente - os seus membros). A rede está a multipolarizar o mundo.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2004

Topic or Aboutness - 1

No rápido e ininterrupto diálogo entre blogues que ainda se conhecem mal escapa sempre qualquer coisa de terrivelmente telegráfico e que eu teria dificuldade em definir. Chamar-lhe-ei, não tanto apresentação (aquilo que a malta faz com apertos de mão e com outros rituais menos calvinistas), mas antes uma certa explicação de si próprio. Um ter que dizer “o quê” que “me faz ser assim como sou”. Como se um muro tivesse que explicar a forma que o faz ser muro. Tem acontecido imensas vezes nos últimos dias.
Topic or Aboutness - 2

Uma personagem jamais se dá a conhecer em meia dúzia de páginas. Há todo um livro para o fazer. Contudo, nos meus primeiros romances, nem sempre me preocupei em deslindar e explicar o topic dos meus personagens. Preferia vê-los meio hieráticos a deslizar através da sua voz, da sua verve e das suas posturas mais ou menos crípticas (sempre me opus a esta espécie de caracterização total e final, como se o código condicionasse os interlocutores literários a uma pretensa ideia de totalidade e a um idiota sentido de finalidade). Já há uns anos que abandonei esse meu radicalismo (decerto também com influências). A coisa também não era muito bem vista. Nessa altura, preferia fazer das cidades e das viagens verdadeiras personagens que realmente agiam e acabavam por compor muitos dos ambientes narrativos em presença. Mantenho hoje esse estranho bichinho, é claro, mas passei a aglutinar, de um modo mais afirmativo e empenhado, esta minha prática de desagregação a uma topografia mais denotativa própria dos quadros do quotidiano. Falhas.
Autoestrada

Partiram as névoas mais constrangedoras. Ficou um halo de respiração demorada. Na autoestrada, ontem à noite, havia faunos no ar. Juro que os vi. Não cheguei a partir e a chegar. Eu vivo na autoestrada. Talvez seja eu mesmo o fauno.
Fidelidades

Foram horas e horas, mas hoje acertei de vez o passo com o passo do romance. Pequenos hiatos por resolver. Cortes e alguma leveza a sobrevoar a escrita. Há mais de um ano que a dita convive comigo e só agora começa a levantar a cabeça. E ainda bem. Vejo letras sobre letras como no fundo da terra as raízes apenas vêem raízes fundidas com outras raízes, nessa estranha matiz de escuridão apenas aureolada por ínfimas clareiras desenhadas por fios de água e pelas caneladuras prontas a florir, rodeadas por formigas de asa e por toupeiras cegas de tanta leitura da vida. É assim o processo de incorporação romanesca: uma descida à escuridão mais radical onde a intimidade de cada letra se vai, a pouco e pouco, tornando numa luz a desembainhar no momento do grande duelo final: a entrega do material ao editor. Já faltou mais. E aí, no dia dessa entrega, acaba tudo. E abrem-se os olhos para o próximo romance, já que a fidelidade nestas coisas, e noutras, é rainha soberana. Deve sê-lo. Um de cada vez!
Fevereiro de escritas

Estou com alguma dificuldade em acabar de vez o romance. Quer dizer, o romance está pronto, o fim parece-me excelente, a trama funciona, o ritmo é crescente, os personagens respiram, mas, no início, há qualquer coisa de que não gosto. E embora tenha feito um pousio de seis meses sem ler qualquer página do romance, sei agora, a frio, que é preciso faca. E pareço inibido diante da operação. O título também não me sorri como é habitual. E tenho prazos para a editora. Os próximos dias serão decisivos. A gente confessa com cada coisa!
Revendo

Comecei hoje a dar aulas no novo mestrado. Apareceram alunos de licenciatura de há muitos anos atrás. O sorriso deles mantém-se e o que terá mudado é a minha voz quando se surpreende com as relações que subitamente estabelece. Que distância haverá entre o que se diz e a voz ao dizer o que diz?
Piada

Acho piada a quem escreve muito seguro de si. Palavra após palavra, ritmo sincopado, cascando facilmente em qualquer cascalho menor como quem vai para a fonte e vai ufano de tão teso quanto duro. Haverá humildade no fundo de um poço? Eu também sou ambicioso, bastante, mas só fiz de Marmota na récita de finalistas do meu antigo Liceu (foi no Avarento de Molière, mais concretamente).
Reinvenção do fogo

E há escritas de onde jorram cometas. Luminárias quase fundidas. Fogo sem fumo, causa sem efeito. Convicção sem marrafa no cabelo para ajeitar. Sabe-se que Salazar é fantasma de uma ópera que já não existe. E é evidente que, se tivesse netos, seriam meninos bacocos e parolos descendentes da urbanidade pacóvia de Santa Comba, ainda que povoados pela Lisboa selvagem e pelos blogues pós pós pós em guerra com a imbecilidade bloquista que exige concorrência virtual para dizer “I´m here, Dady!”

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2004

Lendas de hoje

O que desagua hoje neste dia em que a frescura das paredes quase já dissipou a nostalgia do grande Inverno? Um tímido lance a abraçar os detalhes de ouro que vão crescendo nos ramos do pessegueiro ? O muro branco subitamente inundado por uma luz que parece vir da carne? O desafogo com que o olhar, a pouco e pouco, se vai deixando aprisionar pela tentação da voracidade? Ou apenas um rio ainda breve a calcorrear no esquecimento das sombras?
Obras em curso



Nos próximos dias esperam-se mudanças no Miniscente. Pedimos desculpa pelas “depurações” entretanto exigidas pelo sistema, sempre que este blogue desilusionista se abre. Podemos, no entanto, assegurar que a coisa não tem importância (um tracinho a menos no template) e que, em breve, tudo estará resolvido.
Indexicalidades

Há blogues que funcionam com índices, ou seja, como simples sinais que se limitam a apontar em certas direcções. Como se fossem sinaléticas de um centro comercial. Convidam os leitores a ir ler algures isto e aquilo sem se preocuparem, pelo menos com a mesma intensidade, em dizer o que têm a dizer (se é que têm alguma coisa a dizer). Esta dependência face ao discurso dos outros, esta subserviência face às agendas (e aos artigos de jornal), esta vacuidade explícita como regra torna o agir bloguítico bastante inútil. Não acham?
(Nota: Diz Peirce, o autor deste conceito de “índice”, que o que faz o índice ser um signo é aquilo que ele denota e não tanto ele mesmo; e a verdade é que, se eu levar um sinal de “sentido obrigatório” para o meu quarto, ele passa a ser um objecto decorativo, ou parte de uma instalação estética, e deixa de ser, de facto, um índice. O que o fazia ser índice era, afinal de contas, a própria rua que ele denotava. Isso significa que um blogue que apenas tem como função apontar para algo - a tal função meramente indexical - deixa de ser um blogue no momento em que aquilo que denota desaparece de cena. E isso acontece todos os dias. Conclusão: um blogue que apenas serve para apontar é como um fantasma que, no fundo do palco mal iluminado, grita: “Eu existo!” - e ninguém já acredita, a não ser ele).
A verdade é que a malta gosta de autoestradas apenhadas de carros e cheias de ruído visual.
A verdade é que eu não estou a pensar em nenhum blogue em especial. Carapuças à parte.
Blá

O Benfica - Porto em duas palavras: águia azarenta.
Então? (ACTUALIZADO)

Hoje, o Bloguítica">bloguítica vai publicar o meu post. males de rede. Fica feito o reparo

Talvez o MyDoom de Fevereiro desculpe o facto, mas a verdade é que o Miniscente respondeu (dia 4/2/2004 às 19.24) ao inquérito do Bloguítica e o seu (talvez desconcertante) depoimento não foi publicado. Juro que não me passa pela cabeça que haja censura na costa. Mas que não está lá entre os demais, não está.
Blá Blá

O chamado Congresso do Alentejo em duas palavras: filantropia comicieira (disse-o na Antena 1 e digo-o aqui para que os espíritos escandalizados confirmem que fui eu mesmo o apóstata).

domingo, 15 de fevereiro de 2004

A sério e a brincar

Há momentos na vida - e cada vez são mais - que tenho a tendência para não levar nada a sério. Vejo-me então como espectador de um conjunto de cenários a que muitos acorrem à procura de si mesmos. Nessa metropolis do quotidiano, a fé - chamemos-lhe assim - mais não é do que um derivado do narcisismo massificado. O centro comercial, a igreja, a disputa política, a dissensão artística, o fluxo comunicacional (incluindo a blogosfera) aparecem-me aí, todos, por igual. E há momentos em que acabo por levar a sério aquilo que sei perfeitamente que não é para levar a sério, mas faço-o animado por um evidente agir paródico, ou por uma espécie de prazer dionisíaco e tão carnal quanto ancestral. O futebol, a poesia, a pedra no ar para o cão agarrar, a paisagem a deslocar-se para trás enquanto guio, um ou outro pensamento sem sentido e, ainda, uma ideia maluca para dar na aula ou para escarrapachar num livro fazem parte deste lote. Enfim, entre o sério e o não sério há um prado verdejante que nunca mais acaba. É lá que estou agora a olhar de frente para este crepúsculo que já vaticina o equinócio.
Special Nothing



Fui ontem ver Special Nothing de João Garcia Miguel, interpretado por Anton Skrzypiciel. É a sexta produção da temporada de dança que tem lugar em Évora, comissariada por Rui Horta (a decorrer entre o Teatro Garcia de Resende e o Palácio de D. Manuel). Tem sido uma série de espectáculos de imensa qualidade e com muito público.
Neste Special Nothing, um actor persegue a paradoxal saga de Andy Warhol (diga-se que o leitmotiv assenta na obra homónima, The philosophy of Andy Warhol, from A to B and Back Again). Sob um fortíssima pressão da estrutura visual, sempre desconjuntada mas omnipresente, o discurso falado - às vezes roçando a paródia do entertainment – sobrepõe-se ao movimento e atravessa uma vasta cartografia: a vacuidade das ideias, os nexos televisivos, os itinerários do nada, as deambulações do sexo, a desnudação do riso e até as fotografias dos próprios espectadores projectadas nos cubos brancos que delimitam o espaço cenográfico.
O poderoso monólogo ajusta-se - na sua a-narratividade - à euforia do corpo, alvo de paródia sempre que a exaltação dos limites é pressentida. Aliás é assim que a peça se inicia, no corte abrupto com o tempo da não ficcionalidade: subitamente as luzes abrem-se e o corpo do actor rola para fora de uma cama, enquanto um grito marca as fronteiras do espectáculo. O público pasma e a alternância de tons (irónico, desconstrutor, manifestatário) inicia o seu jogo.
No final, uma sequência imagética e cromática evoca claramente os artifícios retóricos e nostálgicos da Pop Art e volta a espaçar, ante um crescendo rítmico e musical, o terreno antes entrecortado e fissurado pela saga de Warhol.
Jardim da Celeste

Quando uma ministra precisa de dizer que tem toda a confiança do primeiro ministro é porque não a tem. Caso contrário, por que o diria? O silêncio não é apenas um dom da poesia e da nossa imaginação. É também uma arma do poder (que se tem, ou não se tem).
Silêncios e teatro de sombras da blogosfera

O maradona - deixo a minúscula por respeito ao próprio - falava ontem daquela leve angústia (muito portuguesa?) que se traduz pela ideia de “dar o dia por perdido” e cita, depois, uma bela frase da Charlotte que lhe terá frutificado e colorido o Domingo: "Às vezes, acordo humilde mas nem assim discreta." Este diálogo concede-nos, em três breves toques, aquilo que há de melhor na blogosfera: uma alameda graciosa onde o que acontece na aparente imobilidade do texto se confunde, muitas vezes, com os tons que vão pairando na vida. Mas entendamos aqui “vida”, menos por tudo aquilo que ressoa no dia a dia, e mais por tudo aquilo que imaginamos a partilhar-nos, blogueadores, nesse horizonte abstracto que resulta da leitura múltipla e cruzada dos silêncios das nossas escritas. É que ambas as frases, a do maradona e a da Charlotte, foram emanações desses silêncios. Há, de facto, momentos em que a escrita é invadida por personagens de carne e osso que dançam em silêncio e que falam aos nossos ouvidos como faz, todos os dias, o limoeiro do meu quintal.

Moda

Em breve haverá novidades no template do Miniscente. A moda Outono-Inverno está a esgotar-se e a solaridade que prediz a toada Primavera-Verão começa já a exigir outros eflúvios. Esperemos para ver.
Pico


Vermittlung von Kunstwerken, Gottfried Graf

Mau seria, se o limite da vida nos passasse à frente e o resto tudo - viajar, ler, escrever, olhar em frente, comer Dame Blanche, dar aulas, ir à bola, blogar, ver belezas, ouvir Sibelius e tratar por tu a árvore do quintal - tudo, tudo isso, entrasse em banho maria, em stand by, em ponto morto, em lugar antípoda da deriva e da paixão mais radical. E então juro que teria saudades, umas saudades terríveis por não ter feito isto ou aquilo. Então, sonharia com a loucura que nunca chegou a ser. E então veria, com uma nitidez espantosa, o limite possível e jamais tacteado; o desejo augurado e jamais ancorado. E então, quem sabe, voltaria aqui para escrever talvez o mesmo.
Transbordante

Viriato Soromenho Marques, meu amigo, escreve hoje uma frase lapidar que inicia o seu depoimento sobre Kant no Mil Folhas: “Um grande pensamento é aquele que transborda de sentido.”
Mas não procuraremos nós todos, ainda que não seja sob a forma de pensamento, as formas que consigam transbordar o sentido? O sentido é um recorte que operamos sobre um conjunto de possíveis desencadeados à nossa volta. Ao recortarmos, conferimos ao vivido um dada legitimidade e razão de ser. Mas quando o recorte se torna impossível à primeira vista, pelo facto de a matéria à nossa volta jorrar com um magma vulcânico, então pode dizer-se que o sentido transbordou (e que o código se fragilizou extremamente). Isso não acontece apenas com o pensamento de Kant (face ao qual são requeridas certas competências), mas também com muita da fruição dos objectos estéticos, ou com a mais elementar contemplação (desinteressada) da natureza ou dos objectos culturais. O mar, a corda estendida no quintal, as nuvens densíssimas do fim da tarde, a noite inquieta, o atalho selvagem perdido entre as ervas, o rosto espontâneo de quem agora me lê. Tudo, tudo o que advenha da preguiça para que tende para um determinado alheamento que nos transborda. E que felizmente nos contamina.
O tema do fim-de-semana em BD

E quando Santana ganhar, se ganhar, eu serei um abstencionista. Na o-posição, claro. A minha. Mas achando graça ao figurão. Não é para isso que servem os figurões?

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2004

Cibersuspiro (ou a versão blogueadora do dia dos namorados)



Sempre que posso, leio e acompanho um determinado número de blogues. Alguns são certos, fidelizados, outros nem tanto. Mas há uma constante nessas visitas que se traduz pela intimidade com que o meu olhar reconhece o olhar de quem está do outro lado. Ainda que involuntariamente, cada vez me sinto mais a ler o “quem” do que “o quê” dos blogues, o que não acontece, por exemplo, nos livros (onde o enunciado se sobrepõe com mais força, pelo menos aparentemente, à enunciação). E isto embora o “quem” dos blogues seja fantasioso e não rigorosamente pessoal. Seja como for, a verdade é que, quando entro num desses blogues que mais visito, parece que já conheço tudo: o fluxo singular da escrita, os silêncios prolongados, o que fica por dizer, os humores em suspenso, o sorriso do texto, as fixações, o entusiasmo escondido, a palavra certa, o recorte da sintaxe, as pequenas raivas, as esperas melancólicas, o desejo secreto, uma ou outra tara, os desaires, as paixões, tudo. E ao voltar a ler, no dia a dia, esses mesmos blogues mais visitados, sejam eles quais forem, parece que o meu olhar já está de tal modo fundido com o olhar do outro lado da rede que chego a sentir uma empatia que disputa a imaterialidade de qualquer cibersuspiro. Há certas pulsões humanas que se colam ao imediatismo rizomático da rede de um modo que escapa totalmente às páginas de papel dos livros (embora nestes existam auras de confidência doutra natureza que também dialogam connosco). Não vos acontece isso?
Eu hoje vou, E assim acontece, Foz Côa e outras bandeiras

Durante muitos anos, irei sentir muitas saudades da frase “Eu hoje vou”. Antes e depois do “Eu hoje vou”, eis o que me ponho a congeminar sempre que cogito com a história recente e ela, sem preconceitos e em minúsculas, se põe a declamar belos e longuíssimos poemas sobre a verdadeira e a mitológica nascente do rio Nilo. Agora a sério, é curiosíssimo como certas marcas apenas simbólicas criam fissuras e assinalam quadros de referência sempre pontos a dividir o universo em dois. Dicotomias próprias dos nossos hemisférios cerebrais?
Quando o governo de Guterres tomou posse, a grande marca simbólica que funcionou como especificidade e bandeira teve o nome de gravuras de Foz Côa. Quando o Governo de Durão Barroso tomou posse, a grande marca simbólica que funcionou como correlativa especialidade centrou-se no eixo televisivo “Acontece” versus “Magazine”. Vistas as coisas com um certo distanciamento, ambas as coisas valem o que valem. O que é hoje Foz Côa? O que nos dirá, daqui a dez anos, um estudo comparativo entre ambos os programas de televisão? Diferenças haverá, claro. Mas as fundamentais que hoje se nutrem (muitas vezes com tons emotivos) não se centram tão-pouco na comparação entre os produtos, eles mesmos, mas sim entre as alegorias e os afectos que cada um implica, desbrava e suscita.
O Púnico

Quando vejo Vasco Gonçalves na televisão a falar de contra-revolucionários e de fascismo para cá e fascismo para lá, tenho a sensação de que estamos nas vésperas das Guerras Liberais. Ou será das Guerras Púnicas?
Local vs. cultural: as dificuldades

Pede-me a Marta do Corpo Veloz que escreva acerca do estado da cultura numa região como o Alentejo. E eu tenho sinceramente muita dificuldade em fazê-lo, porque sou anti-regionalista - na medida em que não consigo dissociar o local do global e a mobilidade do sedentarismo. Seja como for, e para corresponder minimamente à reiterada solicitação - apesar do meu cepticismo de raiz -, deixo em aberto algumas pistas para discussão. Mais concretamente dez (cinco de cada cor):
Positivas:
A-Mobilidade e reinvenção de públicos. Dada a sua localização e presença de factores de mobilidade, certos eixos do Alentejo têm capacidade para dinamizar uma procura cultural que pode exceder a interna, propriamente dita, desde que criem ofertas de muita qualidade (sobretudo o eixo longitudinal Lisboa-Évora).
B-Espaços adequados à rentabilização de circuitos. As cidades do Alentejo, como todas as outras, podem e devem planear os seus espaços culturais, tendo em vista o aproveitamento de circuitos de qualidade a nível nacional, e não só (o projecto ‘Percursos’ que, a partir do CCB, liga Coimbra, Viseu e Évora, entre 2002 e 2004, é disso um óptimo exemplo).
C-Tradição e investimentos em curso. A cultura tradicional do Alentejo é rica e adequa-se a um vasto leque de potencialidades que advêm dos grandes investimentos (de incidência turística, ambiental e rural) que se estão, neste preciso momento, a fixar no Alentejo. Este é um ponto positivo e que tem futuro económico, no curto e no médio prazo.
D- Iniciativa e permutas com Espanha. Os projectos transfronteiriços com a Estremadura espanhola continuarão no próximo quadro comunitário, embora agora com uma vocação muito mais virada para a sociedade da informação. É uma oportunidade a estudar, desde já, por parte das indústrias culturais.
E-Potenciar situações extraordinárias. Há no Alentejo alguns pólos culturais relevantes que podem e devem potenciar a sua acção em áreas alargadas de influência. Exemplos: A Fundação Eugénio de Almeida (Évora), algumas bibliotecas Municipais (com a de Beja), o Centro Coreográfico de Rui Horta (Montemor), A Universidade de Évora (nomeadamente os cursos de artes) e ainda algumas livrarias de iniciativa (como a ‘Vemos, Ouvimos e Lemos’ de Serpa, a ‘Fonte das Letras’ de Montemor, etc).
Negativas:
A-Sem públicos da cultura não há cultura. É normal que, numa área tão vasta e (na sua maioria) tão pouco urbana, seja complicado imaginar a oferta e a procura de manifestações culturais a partir de exigências contemporâneas. Daí que a criação de públicos (variados) deva ser das primeiras tarefas de quem está no terreno (sobretudo de quem se ocupa das programações);
B-A conjugação dos recursos culturais existentes parece longe de ser sequer desejada. No dia em que diferentes concelhos cooperem os seus orçamentos na programação cultural e saibam colaborar com instituições privadas, com a Universidade, com os Politécnicos e com a própria Delegação Regional do Ministério da Cultura, então a situação poderá melhorar significativamente.
C-Os patrocinadores locais. Com excepção de alguns da área dos vinhos e do caso emblemático do café, os patrocinadores da região reflectem o mercado e são em número muito reduzido.
D-A iniciativa. O Alentejo é uma região que prima, infelizmente, por uma baixíssima capacidade de iniciativa. Essa é uma das razões, entre outras, pelas quais as Câmaras acabam por ser as maiores - e às vezes as únicas - produtoras de eventos culturais.
E-As politiquices. Nas últimas três décadas, em muitos concelhos do Alentejo, a cultura foi amiúde utilizada como forma de afirmar determinados agires de natureza política. Em alguns casos, através de práticas desproporcionadas e de fachada, sem grande controlo de custos, esquecendo mesmo o investimento em equipamentos (exemplo: o ex-Viva a Rua de Évora).
Creio que esta dezena de factores explica o que explica. Ou, pelo menos, suaviza as expectativas dos mais insatisfeitos, ou seja, daqueles que não devem lembrar-se do Portugal rural de há quarenta anos, onde colocar uma questão como esta era o mesmo que supor uma tangerina transformada em melancia numa noite de Inverno.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2004

Letras - 2


Grande Templo de Petra

O canadiano Derrick de Kerckhove afirmou em Lisboa no ano da Expo: “Os gregos inventaram o teatro para recuperar a identidade que tinha sido estilhaçada pelo alfabeto”. Nem sei como é que, no Ocidente, o teatro e as formas que dele derivaram não se sacralizaram mais, desde então, excepção feita ao culto da arte e da estética que apenas acontece com vigor a partir do fim de setecentos.
Letras - 1



No final do seu breve relato - Como se faz uma novela - Miguel de Unamuno escrevia: “E tu, leitor, que chegaste até aqui, acaso vives?”
Estávamos em 1926, na cidade de Paris.
Esta é a pergunta sacramental que deveria ser feita e repetida todos os dias. Até porque viver significa aqui dar o salto para além daquilo que se lê. E o que se lê não é apenas matéria de livros, esse nobre fetiche ocidental sacralizado, mas sobretudo a vasta matéria do mundo.
Brasão (actualizado)

Em liguagem maçónica, dir-se-ia que os dois rostos que encabeçam o deplorável brasão do futebol português, Pinto da Costa e Valentim Loureiro, constituem a verdadeira glória do sumo merceeiro do universo.
Não sou sportinguista, mas dou o meu aplauso ao presidente do Sporting por ter ontem, na RTP 1, chamado as coisas pelos seus nomes. Maria José Morgado tinha razão: se há suspeita, pois investigue-se! Qual é o problema?
Descobri

A Pop Star que dá nome ao livro da Margarida Rebelo Pinto é o Ministro da Administração Interna.
Menu em expansão (ACTUALIZADO)

Acabei de lincar mais sete dezenas de blogues portugueses. Seria fastidioso referi-los um a um, mas os próprios darão por isso certamente. Trata-se de uma actualização que andava a adiar há já uns bons três meses. Fica o registo. UM PROBLEMA DE NECESSÁRIA SUBSTITUIÇÃO DO TEMPLATE AFECTOU AS ALTERAÇÕES HOJE INTRODUZIDAS. O MINISCENTE ESTÁ A RESOLVER O PROBLEMA.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2004

A escrever



O pior, o pior de tudo é voltar a escrever o que já estava escrito. Voltar a inscrever um novo ritmo sobre a natureza de vários outros ritmos já adormecidos, há muito, em torno das suas próprias memórias profundas. Ao contrário do que diz a maior parte dos escritores, trabalhar um texto não é um prazer, nem um vislumbre de ouro. É sobretudo amputar os rios mais antigos que nesse texto já se haviam desenhado. Porém, que importa isso quando o que conta é o resultado e o lustro final? Para que serviria, afinal, aos leitores ler as diversas etapas que terão dado origem a um dado texto (os muitos possíveis que nele estão escondidos), no momento em que o dito aparece impresso? O que encaminha, de facto, o Ocidente e os seus textos e a sua cultura é esta ideia de fim, de finalidade, ou de escháton. Sobre isso já escrevi muitas centenas de páginas (um doutoramento incluído em tal discorrer). Mas não me canso de o dizer: quando estou a ultimar um livro, neste caso um romance, o pior e, ao mesmo tempo, o necessário é este acto críptico de sucessiva depuração e de destemida finalidade. Mata-se e vive-se para dar ao texto a sua visibilidade desejada (e final). Nesta guerra nietzscheana, qualquer coisa arde e muita coisa sofre. Daí este lamento, daí esta íntima e descalabrada elegia. E é por causa disto tudo que eu não gosto nada da literatura apenas lustrada. Refiro-me a toda aquela literatura - light ou heavy - que se assemelha ao soalho flutuante acabado de inaugurar: bonita por fora, envernizada quanto baste, alinhadinha como os soldados de chumbo na parada e muito pensada para dar com a cor da parede, com os móveis e com as vénias do momento.
Planear um mundo onde tudo bate certinho


Vermittlung von Kunstwerken, Ernst Barlach

Em certos meios, está na moda afirmar num tom algo futebolístico que a vida política se circunscreve e reduz a esquerda e direita. É um acordo codificado com sangue na guelra retórica que atravessa algumas franjas jovens de um lado e doutro do ringue político-cronista-bloguítico lusitano. Muito do discurso emanado por esta moda pós-pós-pós visa basicamente corresponder a este mesmo catalogar sumário, ou a esta súmula de expectativas estriadas dos que só assim estariam dispostos a perceber o mundo à sua volta. Como em todas as modas.
Se a abordagem, por mero acaso, não se molda a essa apressada e revivalista divisão esquemática - e a ultrapassa com toda a normalidade - muitos espíritos ficam tão decepcionados e espantados como os puritanos quando trocam o jargão pela metáfora. Muitos deixariam de blogar, ou de cronicar, no dia em que entrevissem o pequeno jogo em que estão metidos e que ajudam a criar no dia a dia. Mal vão as esquerdas, se só se imaginam esquerdas em debate de meio campo com estas direitas; mal vão as direitas, se só se imaginam direitas em debate de meio campo com estas esquerdas. Esquemáticas, simétricas e homólogas no sistema centrípeto que ambas, esquerdas e direitas, nutrem. E onde afinal se equiparam, sem quaisquer diferenças de fundo. É assim o paradoxal universo pós-pós-pós onde tudo bate certo, certinho. Modas revivalistas, é o que é.
Tormentas

Um membro do governo, de seu nome Mariana Cascais, já disse coisas extraordinárias e fabulosas durante a sua brevíssima existência política. Há uns tempos, dizia doutamente que a religião oficial portuguesa era o catolicismo e, há uns dias, entre outras frases que registou para a posteridade, afirmava: "Se eu quisesse, não havia educação sexual". Sem comentários (embora eu me sinta tormentosa e tribalmente envergonhado pelo facto de a dita senhora ter nascido na minha cidade).
Anátemas

Há com cada descoberta!

terça-feira, 10 de fevereiro de 2004

Pouca paciência assumida



Há um programa do novo canal dois a que fujo a sete pés. Chama-se Parlamento. O que se encena numa discussão deste tipo entre deputados é um exercício de paupérrima simulação (Ora simula lá tu, enquanto eu espreito para a cor garrida da gravata). Diz-se o óbvio, o correcto, ou ainda o que é susceptível de enquadrar o mais puro bom senso. Não se diz o nome da fissura, o encandeamento das diferenças, ou o ruído impiedoso das tácticas. Diz-se o sorriso, diz-se a face afável, diz-se a concordância em género e número. Não se diz o tremor, não se diz o inevitável, não se diz a impaciência. E quando é preciso pôr em cima da mesa algumas fracturas (para que o fantasma da democracia se confunda com a própria encenação), então recorre-se a um naipe verosímil de contrastes (geralmente entre partidos) que cabe num quadro de expectativas já conhecido e testado. Passa-se deste modo a um contraditório totalmente adquirido e digerido e fica tudo contente no fim a comer farinheira e a sugar um valente molho de brócolos. É por isso que as audiências preferem bons comentadores.
Voando sobre um ninho de angústias

Há dias em que entro numa livraria, olho para as novidades e não tenho vontade de comprar, nem de ler. São livros referenciados, são obras de que li críticas, são nomes que conheço, são ficções que me poderiam atrair profundamente. Mas não me apetece comprar, nem ler. Há um momento em que saio da livraria e vou em frente como se a miríade de ralos que canta em Atenas, de manhã à noite, jamais me saísse da cabeça. Olho para o fundo da rua, encaro o estranho alinhamento dos choupos e observo as frontarias das casas que quase ousam tocar no céu. É esse outro livro que então me convoca. Um livro de vistas onde a errância do olhar cria a sua própria felicidade alfabética. Entendo o sortilégio e sorrio. Afinal, não é preciso ler todas as páginas que nos rodeiam. Essa angústia já a superei há muito, muito tempo.
Preto no branco para o amigo Avatar

A lógica do Big Brother é assegurar notoriedade a alguém só por lá estar. Essa notoriedade traduz-se por uma visibilidade mais ou menos produzida que acaba por ter um prazo de validade curtíssimo, apesar dos efeitos colaterias que se arrastam em revistas, em spots idiotas, na publicidade e noutras coisas dessas.
A lógica dos blogues é permitir a uma voz exprimir-se na rede, assegurando-lhe alguma, muito pouca, notoriedade apenas por poder imaginar certos tipos de convívio e alguns diálogos de facto com vips (ou seja, com caras conhecidas). Essa ilusão de proto-notoriedade traduz-se por uma recorrência mais intertextualizada do que singularizada na rede que acaba por ter um prazo de resistência (e de vitalidade) bastante limitado, apesar de alguns efeitos colaterais nas listas de linques, nos processadores de busca e nas estatísticas (de visitas e de inbound links) que é possível, de algum modo, forjar.
Eu diria que para pobre diabo, pobre diabo e meio.
Mas também é sobretudo verdade que a rede (e a sua quota-parte blogosférica) excede em muito, nas suas possibilidades, este limitadíssímo pas de deux entre figurões candidatos a uma notoriedade patológica que nem o meu cão - que se chama Ulisses -, na sua bonomia infinita, desejará. Estou certo disso.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2004

Monteverdi



Ouço Monteverdi (Vespro della Beata Vergine). Gosto da ondulação sem fim. Da irregularidade pressentida. Da repetição que visa o rodopiar dos sentidos imanentes (como se o divino surfasse numa rede homóloga à que o canto dispõe em jogo). É uma ficcionalidade de um outro tempo. Tão desconcertante e bela quanto os discursos que analisam as impossibilidades e as dúvidas que se põem ao mundo de hoje. Mas a paixão que sempre me invadiu, neste seiscentismo já observador das metáforas empíricas, advém sobretudo do seu vivo halo de intemporalidade. É aí que ausculto a perpétua novidade desta música.
Desconcerto?



Estou, neste momento, em pleno desconcerto de escritas. Electricidade estética? Desacertos? Calafrios criativos? Abismos sem luz? Mas quem não partilhará esta mesma sensação, ou este mesmo desnorte, ainda que sob outras formas, várias vezes por dia? Quando se escreve, é essa a rota mais experimentada. Nela, há espaço de descanso, há trilhos de errância, há bermas de preguiça, há alentos imediatos e maravilhados, há vistas súbitas cheias de neve, e há céus a girarem por sob o horizonte como se uma vertigem imensa tomasse conta do ser e o transformasse em música pura, longe de qualquer narratividade. E do nexo das coisas muito definidas. E do juízo das coisas apenas calculadas. E dos mil sentidos das coisas já acabadas. E do senso comum das coisas sempre pisadas e reditas.
Ângulo raso ou apenas um único ponto?

Há dias em que o futuro se transforma num episódio menor. Não sei o que é que cresce mais neste tipo de dias, se é o vagar que conduz o tempo a abrir-se como um leque vastíssimo diante dos nossos olhos, se é a redução de toda a experiência a um único ponto de onde se torna possível avistar qualquer coisa real e indefinidamente tranquilizante. Fica a dúvida.

domingo, 8 de fevereiro de 2004

A bordo

Nevoeiro denso e sem fim. Luzes diluídas como se crepitassem há muito no fundo do poço. É a grande espessura da voz. São as alvenarias e os salgueiros a disputarem a imobilidade da fachada de vidro. É o véu embaciado que traz água ao segredo mais ínfimo da vista. São traves de madeira adormecidas, parapeitos sem lua. É a verdadeira letargia do visível. Cortinas em vez da via láctea. É a consistência do corpo, afinal. Ou a mais esquecida navegação que atravessa de lés a lés o Inverno. Como se fosse uma cigarra no fim do cais.
Asa Branca

Passei numa feira de discos e deixei-me ir. Em certo tipo de consumo somos invadidos por uma sacralização que apenas aspira à sincera devoração. Não se é capaz de parar. E os resultados são diversos. Para já, foi uma manhã cheia de música. E a MPB dos sixties, pura, ingénua e saudosa, a dominar claramente. A tecer a sua leveza e o seu nome ainda tão distante do hipermundo. É a arqueologia dos sentimentos. É um esboço de felicidade. E é a Asa Branca pela boca de Caetano Veloso numa versão que desconhecia: "Por falta de água perdi meu gado, morreu de sede meu alazão". "Adeus Rosinha, leva contigo meu coração". "E espero a chuva cair de novo para voltar ao meu sertão". "Quando o verde dos teus olhos olhar para a plantação, eu te asseguro chore não que eu voltarei meu coração".

sábado, 7 de fevereiro de 2004

A blogosfera daqui a um ano

Por apelo do Bloguítica, deixo aqui a minha resposta à questão: “Como será a blogosfera daqui a um ano?”:
Vaticinar é esmerar a esperança e atenuar a desesperança. Entre ambas as esferas, uma coisa é certa: a rede não parará de se expandir nos tempos de fluxo em que vamos vivendo.
Neste caso, portanto, a pergunta parece ser: mas onde é que ela, a rede, se cruzará com a blogosfera?
Não se esqueça que o pressuposto presença / ausência, na sua descontinuidade permanente, recobre a própria noção de rede, incluindo a blogosférica, que, em grande movimento de tipo acentrado, está, neste momento, a enfatizar a ausência e o silenciamento progressivo de alguns blogues conhecidos (eu diria canónicos), enquanto a presença (e a nascença) parece mais contaminadora na área de alguns blogues, hoje tenros noviços, mas, daqui a um ano, se calhar, epicamente referenciais.
A questão não me angustia, tal como parece acontecer a outros.
Creio, no entanto, que o saldo final - ainda que não haja teleologias e finalidades nestas coisas - vai ser o de uma continuidade incerta, mas, inevitavelmente, continuidade. Ainda que, por abismada projecção, de um desejo que é o meu.
Lá estaremos para ver. Espero!
Hoje vou

Hoje vou ver o mar. Vou correr ao longo das ondas. Vou atravessar o vazio e reconhecer o inquieto ronronar do tempo.
Ossos e Oceanos



Acabei de ver a criação homónima do Rui Horta. A disputa dos fragmentos. Um jogo contínuo entre o homem e o cão como modo de superar as previsibilidades da comunicação entre pares. Um oceano que se descobre "out there", no momento em que o protagonista ultrapassa o delimitado espaço antes proposto para a cena. Um emaranhado discorrer acerca do fogo que pode arder através da liquidez (ou o modo como um pico de rosa arde na pele de um homem que, ao jeito de Rilke, entrevê na liquidez do sangue um modelo de narração envenenado). Ou ainda, o movimento assente numa ironia poética que vê na brusquidão uma força motriz. Mas uma força motriz sobretudo habitada pela avidez do gesto e pela súbita moldagem do corpo a uma urgência inapelável. Gosto deste discurso que não teme a arte do tosco e que sabe cruzar-se com a elegância e com um certo sarcasmo. Gosto de sentir que há algum mal estar na assistência e, ao mesmo tempo, um arrepio de beleza que não tem figura possível para se exprimir.
Questão semanal

Uma pergunta para este fim-de-semana: será o nome, de facto, um património?
Por exemplo, ao construir-se uma nova biblioteca, numa cidade, o que é mais importante?
A nova coisa, ou a preservação do nome da biblioteca anterior?

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2004

USA Horserace

Diz o conhecido blogue americano Instapundit: “You can donate to Presidential candidates, not just bloggers, via Amazon now. You can see how much each has raised, too.” Aqui está uma bolsa interessante a seguir (e a clicar) nos próximos meses.
MyDoom

Caros amigos: estou com dificuldades em enviar mensagens electrónicas. Penso que as envio e depois verifico que não chegam aos seus destinos. Vou hoje tentar enviar mensagens pendentes - apenas enviar, repito! - a partir de um mail que acabei de registar:

miniscente.alternativo@clix.pt

Tendo em conta a vaga perturbadora do MyDoom, venho, pois, alertar para o facto de que o dito mail não é mais uma ficção criada pelo vírus. Obrigado.
Sobre a razão das guerras. Uma resposta.



A razão morre no primeiro momento de uma guerra. Não a racionalidade, pois essa move-se no reino das possibilidades, mas antes aquilo que justamente conduz à própria guerra. Com efeito, quando o decurso de uma guerra se torna imparável e é, ele mesmo, já uma concatenação de actos em processo, essa razão original (que apenas se pode imaginar no quadro de uma multiplicidade), ou melhor, então, a conjugada e cumulativa panóplia de razões antes evocadas, torna-se agora num leque de novas vias com outras direcções e outros sentidos.
No fundo, a dissenção na órbita do político que se sentia no pré-guerra abre-se subitamente, expande-se através de manobras imprevisíveis e acaba por projectar na realidade o que antes era apenas um contraditório ao nível dos argumentos (e sobretudo das conjecturas). A razão, ou mais correctamente, a amálgama de razões que se ancora transitoriamente ao início das hostilidades deixa, na prática e nesta linha de ideias, de constituir um elemento da própria guerra. Ela passa a ser, a posteriori, um mero eco longínquo e, a uma certa distância, pode mesmo converter-se num corpo disseminado e dificilmente detectável. C. Schmitt chegou a dizer que a radicalização de uma guerra pode mesmo apagar o que a gerou, na medida em que o confronto deixa de ser o prolongamento de um contraditório para passar a ser a estratégia de uma extinção. Daí a ansiedade generalizada dos metadiscursos nos pós-guerras (ver post “Pés na Terra” de ontem).
O que está a acontecer hoje em dia, nos diversos desafios retóricos que cercam a ida guerra do Iraque, mais não é do que uma busca da memória (algo perdida) daquilo que antecedeu a própria guerra (com fins paradoxalmente judicativos). E tudo agora se sonda: o que terão dito os serviços secretos? O que terá proferido, no seu silêncio, Bush? O que terão congeminado os diplomatas D ou E, algures no Cairo, em Janeiro do ano passado? Onde se terá escondido a prova B ou C? O que é que precipitou a data de Março em vez da de meados de Fevereiro? Quem conseguiu ligar a organização terrorista Y com os elementos-chave do partido Baas a sul do Curdistão iraquiano, em Dezembro de 2002? (etc., etc., etc.).
A certa altura, a perda de razão confunde-se com a própria impossibilidade de representar e de reconstituir um quadro complexo que terá ligado a motivação e a acção no início da guerra. Como se tudo tivesse ficado em aberto, no momento em que o atrito do agir deixou de ser um vaticínio para passar a fundir-se com a pluralidade emaranhada (e já pouco controlável) do real.
Não, Charlotte, não me parece que haja uma determinada razão para uma determinada guerra. Diria antes que o que está em jogo nessa pergunta é uma espécie de repto acerca do controlo do tempo e dos factos que nele se processam, em várias direcções e ao mesmo tempo. Ou ainda, em termos cinematográficos, o que estará em jogo é sobretudo o modo como o contracampo se torna num fascinante produto para a nossa capacidade de nos imaginarmos como deuses.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2004

Edgar Allan Poe e o Estado Português



Outro dia, um trabalhador bem vivo e recomendado (do metropolitano de Lisboa) era dado como morto pelo Centro Nacional de Pensões. Hoje, ficou a saber-se que a ADSE emite cartões de beneficiário a utentes já comprovadamente falecidos. Entre a morte e a vida, o estado português parece fascinado por uma via intermédia e goticamente indecisa. Eu diria que Poe anda a ser lido nos meios da função pública. E porquê? Bom,
Poe navegou, como nenhum outro poeta ou escritor, nesse verdadeiro claro-escuro que se espraia entre a vida e a morte, e fez com que os seus continuadores de renome o acabassem por transformar num sinal dos tempos, nomeadamente o indefectível Baudelaire, Mallarmé e o próprio Pessoa que traduziu, mantendo até as rimas originais, o famoso poema do autor, O Corvo, que agora dedicamos ao estado português, ele também, um estranho sinal dos tempos presentes. Aqui vai: “ (...) A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,/ Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais./ Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,/ E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -/ Eu o disse, o nome dela, e o eco disse os meus ais,/ Isto só e nada mais. (...)”. Para que conste.
Leitura Súbita

O artigo de Jefferson Morley, Investigating the Weapons That Weren’t, publicado hoje no Washington Post, dá conta do estado da opinião mundial acerca da questão da legitimidade da guerra iraquiana de 2003. É uma volta ao mundo mais barata do que qualquer programa cultural da TV (pública ou privada, confesse-se).

Pés na terra

Há meio mundo a discutir a legitimidade e a necessidade de uma guerra. De um lado, a deslocada síndroma de Nuremberga; do outro, a afirmação em fuga para a frente da síndroma pós-11/09. Dois universos de ressentimentos. Dois mundos, duas reflexões que se podem prolongar até ao infinito sem jamais se encontrarem. Duas perspectivas que o tempo, grande juiz, mais cedo ou mais tarde, irá relativar. Na verdade, o fim da guerra fria e a entrada em cena de novos actores nos últimos anos parecem ainda deficientemente alicerçados no entendimento de muitos. Seja como for, a guerra - no sentido clássico - já aconteceu. Por que não tentar agora discutir a complexidade do presente, visando concertar um ou vários futuros possíveis para o Iraque? Era uma polémica bem mais interesante. Era uma outra perspectiva. E, em todo o sentido, urgente. Ou mesmo necessária.
Kafka Mineiro

Querem saber como é que um escritor, no Parque Municipal de Belo Horizonte, ensina a ler os seus livros?
Nada melhor do que viajar, agora, até lá.
Novembro como alvo

A nove meses das eleições americanas, Philip Gourevitch traça, no The New Yorker de hoje, um condensado panorama da gestação anunciada. Desde a fotogenia do pressentido candidato democrata (“John Kerry’s long, angular face has something of the abstraction of a tribal mask”) até às indecisões e imprecisões da estratégia republicana (“the President’s premature focus on Dean as his challenger may be part of a greater strategic miscalculation”), está lá de tudo um pouco. Vale a pena clicar e ler.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2004

Circuitos

O Barnabé fala hoje do silêncio de muitos blogues. Mas a verdade é que a rede é feita por quem está e por quem não está. Há um princípio de descontinuidade que liga quem lê e quem não lê, quem escreve e quem não escreve. Todos nos referimos a todos, ausentes ou presentes. Reduzir a hipótese de diálogo - e de remissão - à polémica (contínua) e às elementares marcações da dança clássica rive gauche/ rive droite é tango a menos para o meu gosto. A escrita diz de si que é, ela mesma, afirmação. Ou terá a dita que esperar, em certos meios - tão diferentes dos outros -, por uma muletazinha diáfana?
Banhada?

Tanta gente a dizer mal do príncipe da Noruega por ele ter dito que Portugal era banhado pelo Mediterrâneo. Eu não acho que seja grande banhada, até porque, como dizia outro dia um amigo meu, entre o Bétis de Sevilha e o Porto, (ele) optaria sempre pelos verde e brancos de Triana. Era a esse nacionalismo mediterrânico que o informado príncipe norueguês, pela certa, se referia.
Fair

O que ontem mais gostei de ver no jogo (pela televisão) foi um cartaz onde se lia "Fehér-play".

terça-feira, 3 de fevereiro de 2004

Luminosidades


Botticelli

Há mais luz neste Fevereiro ainda pródigo. Ver agora a claridade a expandir-se é como vislumbrar a obscuridade do solstício por dentro: estrela granítica, lava cintilante, nuvem subtérrea, cometa profundo a rodopiar sob os nossos passos e sob o deslumbre sem nome que cresce paulatinamente no ar. Daqui a dias, os rebentos minúsculos que já se desenham nos plátanos vão dar origem a folhagens ainda íntimas, quase invisíveis. É então que a obscuridade interior deste tempo se irá transformar na verdadeira claridade. E, nessa altura, o prodígio de Fevereiro mais não será do que episódica saudade. Por ora, que nos bastem os rostos que convocam a pressentida aura da Primavera.
Tão longe

Como eu gostava que pudéssemos beneficiar, em Portugal, de 10% da coragem e sobretudo da abertura da governação de Blair. Hoje, foi anunciado mais um inquérito independente, mas, por cá, não teria qualquer sentido já que o dito visa perscrutar os serviços secretos.
Angel



Eu já tinha lido impropérios de “ódio” sobre o “saco”, ou “calhamaço” chamado Expresso. Mas agora Vital Moreira foi ainda mais longe. Ai, Balsemão, Balsemão, se estivesses na cidade santa da Arábia, ainda te confundiam com aquela clareira onde se apedreja o anjo diabólico (no Islão, o diabo começou por ser, de facto, um anjo).

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2004

A melhor

notícia do dia (de ontem) foi a que relatou a iniciativa de dois operários da ex-Clark de Entre-os-Rios. Sem mais nem menos, decidiram pôr mãos à obra, compraram antigas máquinas e lançaram-se no fabrico de sapatos, tendo já dado emprego a dez pessoas. Belo exemplo. Nesta novíssima empresa, ninguém ficou a gritar pelo Estado, ou a dar aos burocratas oitocentistas de alguns sindicatos a hipótese do alarde.
Res Pública Vimaranense

Se D. Afonso Henriques soubesse o que se passa naquela sua terra sempre que há jogo, já há muito que teria cortado o mal pela raiz. E diga-se que - no caso em apreço - bastante falta cá fazia. Ele há coisas cuja responsabilidade não cabe apenas a inimputáveis! Também os há que não são, que diabo!
Analepse

Depois de Abril de 2002, muitas foram as vozes que denunciaram um “massacre” que o exército israelita teria cometido em Jenin. Contudo, o Relatório da ONU de fins de Julho do mesmo ano desfez todas as dúvidas. Afinal, o dito “massacre” havia sido um mero embuste. Por essa época, o ataque bárbaro do Hamas à Universidade Hebraica mereceu o silêncio de muitas das organizações geralmente defensoras dos direitos humanos. Pesos e medidas diferentes como as que agora quase voltaram a silenciar a tragédia de Jerusalém, verificada na semana passada. Como a memória é curta. Uma coisa é certa: as autoridades palestinianas só poderão vir a ser ouvidas com crédito, quando, um dia, contribuírem decisivamente para dominar e isolar o monstro do terrorismo.
Cavaco pessimista



Ver os Gregos passarem por nós e ficar grego com o presente. Só daqui a dois anos, vaticina o céptico candidato a Belém, é que haverá de novo fumo branco em terras lusas. Penso que, neste caso, Alberto João Jardim tem alguma razão: Cavaco vê o mundo através de uma teia que foi há muito montada pela deusa da contabilidade e pelo anjo azul das finanças.
Inimputabilidades

O Centro Nacional de Pensões deu como morto um senhor que ainda trabalha no metropolitano de Lisboa e que apareceu na televisão tão vivo como eu. As inimputabilidades estão na moda.
Writing: dia um

Quando empresto a mim mesmo um plano de trabalho, neste caso alguns dias só para escrever, tudo, de início, começa mal. Para simular que assim não é, dou um nome ao mal que me invade. Chamo-lhe ritmo, i.e., a falta dele. A vida estranha fazer apenas uma coisa, quando a possibilidade corresponde ao desejo e, sem mais, se torna possível realizá-la. Amanhã vai tudo correr melhor. Sei que é assim. Fiquemos hoje pelas leituras, bravuras e conjecturas. Afinal, corrigir e reescrever (onde for preciso) umas duas centenas de páginas não é o mesmo que começar do zero. Gostava mais dessa fase, a lockiana. A partir do nada e a apontar baterias para o tremendamente incerto. Ainda por cima com a benção do sol a inundar a quase exiguidade deste escritório (em Abril, ou Maio, mudarei de casa; é o que vale).
Dom Pinto de Roupinho

De facto, li na Bomba o que lá estava ("casaco de cabedal preto até aos pés") - confirmei-o agora - e não é que escrevi "gabardina negra"! O Pinto da Costa é tão versátil no seu negrume de cabedal que o meu lapso o tornou impermeável a tudo. Até à chuva, imagine-se!
Conservem-se!

Acho (também) piada à malta novinha que anda de comboio, ou de carroça, a tentar descobrir uma fórmula para se chamarem a si próprios conservadores. Eu diria: assumam-no. That´s it. Ao fim e ao cabo, nos antípodas da pirâmide demográfica, partilham a mesma indigestão dos comunistas. Há sempre um chocolatezinho para equilibrar os padecimentos e as vertigens.
Silent Night

O que acho piada em Manuel de Oliveira são as vozes das personagens que raramente se coadunam com o registo esperado. Uma mãe fala para uma filha como se falasse para uma assembleia de heróis intemporais. E fá-lo com um ar quase divino, enquanto a criança diz que sim (como se se limitasse a pedir mais um chupa-chupa ). A muitos arrelia, mas a mim faz-me sorrir. E é um sorriso que não compensa absolutamente nada, mas também não desperdiça seja o que for. É um sorriso cúmplice com (um certo pasmo que habita) o inesperado. Está na moda dizer mal do Manuel de Oliveira, mas há outras dores de corno piores. É por isso que meio mundo passou tempo e tempo a dizer mal de Blair e agora, subitamente, achou por bem dedicar-se ao silêncio mais sepulcral.
Deambulares

É verdade que o drama no texto não é o drama na vida. E quando o drama nos bate à porta da vida, então entendemos que a vida é um património riquíssimo e que o texto, mesmo se estético e de grande qualidade, é apenas um deambular como tantos outros.
Quantas vezes hoje

Nuvens baixas, a rua vazia e o cão em diagonal a desenhar a invisível saga da manhã com passos desacertados e o focinho encostado à raiz do asfalto. Bons augúrios. Como se fossem pegadas no meio de um deserto onde a areia vermelha se confundisse com o céu em chamas. Vestígios do presente, apenas isso.
Por outras palavras ainda

Estou cansado de escritores angustiados (mas não da escrita que saiba e consiga tratar a angústia com uma estética elevada e, em primeiro lugar, com aquele sabor a limão que mergulha no aveludado de um abacate bem maduro. Isto para não recorrer à insaciada metáfora das ostras).
Escribas mal dispostos: Nee.

Estou farto dos escritores que só falam de literatura, da cabra mal assada, dos erros ortográficos, das andanças do demónio americano e das chibatadas dos capitalistas de chapéu de coco. Eu gosto mais das nuvens em noite de Inverno, das auroras boreais e do post da Charlotte sobre a gabardina negra do Pinto da Costa. Mais: eu quero lá saber das obsessões que fazem da escrita uma dor dos diabos e um inchaço na parte ventrícola da fala que não se cansa de ralhar, de forma paternalista, com o Zé povinho por ele gostar do que não devia gostar. Deixem-me à vontade a dizer disparates, a comer sopa de pedra, a inventar a cor do limoeiro do meu quintal e, sobretudo, a poder esquecer aquilo de que rigorosamente não tenho sequer paciência para ler o título.

domingo, 1 de fevereiro de 2004

Festas


Vermittlung von Kunstwerken, Rolf Cavael

E é na incubação admirada da terra que já cresce o demorado apetite pela carne e pela festa. Ei-la, aqui, predita por Cavael. Antes da Primavera, é sempre preciso dar conta da regra da imensa metamorfose e, depois, há que transgredi-la e pô-la em causa. Parodiar a regra, admirar o seu produto. O seu espanto. O seu ínfimo deslumbramento.
Domingos

Amanhã começa o período de escritas. Fevereiro, belo Fevereiro (há anos e anos que é assim)! Hoje, adivinhando ciclos renovados, as árvores serenaram e a terra voltou a sentir de modo pródigo o que a faz em gestação. Um descanso maravilhado. Os Domingos são estes eternos intervalos em que se prefiguram tempos e auscultam respirações profundas, distantes do quotidiano, deambulantes, matéria ofuscada mas tão íntima como a memória. A propósito, ontem voltei a ver a peça White, coreografada pelo Paulo Ribeiro. Ver um espectáculo destes pela segunda vez não é boa sina; o que restava do fascínio tende agora a banalizar-se e o argumento (a esquematização) passa a ocupar, a pouco e pouco, o lugar da pura paixão. Nem sempre é assim, mas ontem voltou a ser. Domingo: era de suspensões.