Vidinha sem cenários
As utopias constituíram sempre uma idealidade que se opunha ao vivido. Era essa a sua natureza. Paraíso, ponto ómega, sociedade sem classes, todos eles cenários que funcionavam por contraste com o ici-bas. Outras ficcionalidades mais recentes aproximaram-se da esfera do vivido: Verne, Méliès, Lang ou Mercier. Era a máquina a pulsar, era a máquina investida em mito e transformada em cenário mais tangível. Hoje, caro JMF, o problema já não se põe. Regressámos ao presente, esse campo tradicionalmente flagelado, e desalojámos o futuro enquanto arena de promessas. As ficcionalidades misturaram-se definitivamente com a realidade. Não sou eu que o digo (também). Mas veja-se Sloterdijk, Kerckhove, Wiener, Baudrillard, Virilio. E Steiner, claro. Mais do que edificadora de juízos de valor, à moda iluminista, a lucidez da nossa época recai sobretudo na capacidade de pôr em causa categorias que escreveram milenarmente a escravatura por linhas tortas. Crer para ver. Ver para crer.