VANITAS
51, AVENUE D´IÉNA
por Almeida Faria
51, AVENUE D´IÉNA
por Almeida Faria
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Calvo, de rosto redondo que o bigode e as densas sobrancelhas sombreavam, de carnudas orelhas e nariz direito, fixava-me semicerrando os olhos vivos e levantinos. O arquear da sobrancelha esquerda denotava um ar de superioridade e um hábito do mando não isento de ironia. Havia mesmo alguma delicadeza envergonhada no sorriso astuto e fino, nos lábios mais de gozador que de poderoso. Apesar de atarracado, de pescoço curto e tronco quadrado, afundado na cadeira, o seu porte dava-lhe certa imponência. Com um gesto do braço convidou-me a sentar. Balbuciei que um problema de coluna me dificultava o sentar e o levantar, e que por isso ficava de pé. Ele encolheu os ombros e, numa voz gutural, quase me ordenou que estivesse à vontade. Mais à vontade que isto é impossível, menti. Novo encolher de ombros, seguido das perguntas próprias de um anfitrião: se o meu quarto era confortável, se me agradava a montagem da minha exposição, se considerava os meus quadros bem expostos, se aceitava uma bebida fresca. Apesar da boca seca, disse que não tinha sede, que por enquanto não bebia nada. O cavalheiro iniciou então um longo monólogo, como se só com esse propósito me tivesse arrancado ao primeiro sono. Num francês de estrangeiro mas quase sem sotaque, contou que aquele salão fora uma das galerias de pintura do seu hotel particular - assim se referia ao palacete quando não o tratava, mais modestamente, apenas por casa - e que dantes as amplas janelas à minha direita iluminavam os quadros com uma luz ideal, por isso estiveram ali alguns dos seus preferidos.
"Por exemplo? Olhe, A Leitura do Fantin-Latour, uma daquelas telas que conheço de cor. Está agora em Lisboa, há uns anos contudo o senhor vê-la-ia nessa parede aí, entre as colunas e essa porta que dá acesso a um dos meus escritórios. Não me importaria de ter sempre por perto as duas irmãs nele retratadas: na sombra, em segundo plano, a leitora aponta com o indicador a linha onde ia ao reparar que a sua ouvinte, voltada para dentro e ausente em devaneios, não lhe prestava a atenção devida. Deduzo do vestido austero e do véu ou mantilha preta que a distraída sonhadora sofreu um desgosto recente. Mas o xaile vermelho no regaço - sobre que pousa as mãos abandonadas - e, no cabelo, a fita muito azul, deixam-me na dúvida. Uma era noiva do pintor, a outra ficou por casar. Adivinha qual é qual?"
Calvo, de rosto redondo que o bigode e as densas sobrancelhas sombreavam, de carnudas orelhas e nariz direito, fixava-me semicerrando os olhos vivos e levantinos. O arquear da sobrancelha esquerda denotava um ar de superioridade e um hábito do mando não isento de ironia. Havia mesmo alguma delicadeza envergonhada no sorriso astuto e fino, nos lábios mais de gozador que de poderoso. Apesar de atarracado, de pescoço curto e tronco quadrado, afundado na cadeira, o seu porte dava-lhe certa imponência. Com um gesto do braço convidou-me a sentar. Balbuciei que um problema de coluna me dificultava o sentar e o levantar, e que por isso ficava de pé. Ele encolheu os ombros e, numa voz gutural, quase me ordenou que estivesse à vontade. Mais à vontade que isto é impossível, menti. Novo encolher de ombros, seguido das perguntas próprias de um anfitrião: se o meu quarto era confortável, se me agradava a montagem da minha exposição, se considerava os meus quadros bem expostos, se aceitava uma bebida fresca. Apesar da boca seca, disse que não tinha sede, que por enquanto não bebia nada. O cavalheiro iniciou então um longo monólogo, como se só com esse propósito me tivesse arrancado ao primeiro sono. Num francês de estrangeiro mas quase sem sotaque, contou que aquele salão fora uma das galerias de pintura do seu hotel particular - assim se referia ao palacete quando não o tratava, mais modestamente, apenas por casa - e que dantes as amplas janelas à minha direita iluminavam os quadros com uma luz ideal, por isso estiveram ali alguns dos seus preferidos.
"Por exemplo? Olhe, A Leitura do Fantin-Latour, uma daquelas telas que conheço de cor. Está agora em Lisboa, há uns anos contudo o senhor vê-la-ia nessa parede aí, entre as colunas e essa porta que dá acesso a um dos meus escritórios. Não me importaria de ter sempre por perto as duas irmãs nele retratadas: na sombra, em segundo plano, a leitora aponta com o indicador a linha onde ia ao reparar que a sua ouvinte, voltada para dentro e ausente em devaneios, não lhe prestava a atenção devida. Deduzo do vestido austero e do véu ou mantilha preta que a distraída sonhadora sofreu um desgosto recente. Mas o xaile vermelho no regaço - sobre que pousa as mãos abandonadas - e, no cabelo, a fita muito azul, deixam-me na dúvida. Uma era noiva do pintor, a outra ficou por casar. Adivinha qual é qual?"
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(continua)
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Próximo episódio: “Fosse qual fosse a relação de Charlotte com o cunhado, a verdade é que Fantin me transmitiu o seu entusiasmo. As cenas de interior em que ela aparece são, juntamente com as naturezas-mortas, o melhor da sua obra.”