sábado, 28 de abril de 2007

Folhetim - 3

VANITAS
51, AVENUE D´IÉNA

por Almeida Faria
(a ler, também, no novíssimo blogue: Folhetins e Novelas)
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Sem esperar pela resposta, prosseguiu: "A leitora é a noiva, Victoria; a loura e futura cunhada é Charlotte. Eu teria escolhido a preterida; Fantin, pelo contrário, casou com a outra, pintora amadora, frequentadora do Louvre, amiga de artistas e recém-retratada por Degas, apesar de, quanto a mim, ele adorar Charlotte, como o prova a quantidade de vezes que a retratou. Talvez o sentimento fosse recíproco, embora seja dificil decidir pela altivez e o olhar da bela solitária. Procurei outros retratos dela: a sanguínea estilo setecentista no museu de Lille; o pastel – técnica que Degas retomara do período rococó – no Rijksmuseum de Otterlo; e aquele que veio do Jeu de Paume para o Museu d´Orsay e que o senhor viu ontem. Como sei? Também lá estive, o Fantin leva-me a frequentar esse novo museu. De caminho visito o apartamento que foi meu, no número vinte e sete do quai d´Orsay, e que mantive mesmo depois de inaugurada esta casa. Fosse qual fosse a relação de Charlotte com o cunhado, a verdade é que Fantin me transmitiu o seu entusiasmo. As cenas de interior em que ela aparece são, juntamente com as naturezas-mortas, o melhor da sua obra. Não sei se reparou que A Leitura de Lisboa, com a sua jarra de flores, alia ambos os géneros na mesma tela: a natureza-morta e o intimismo do retrato em família. Não gosto de chamar natureza-morta às representações de flores ou vitualhas, talheres, livros, papéis, objectos domésticos ou musicais. Seria mais correcto chamar-lhes still-life ou Stilleben, mas a língua francesa a isso me obriga. Um amigo meu dizia, por malícia, que eu era mais pelas naturezas vivas. Acontece que, para mim, as naturezas-mortas são naturezas vivas. As do Fantin mais que nenhumas, e dele tive várias. Doei ao Museu das Janelas Verdes umas Rosas da fase final, e fiz a asneira de oferecer outra – um cesto com maçãs e peras, uma jarra, uma faca – ao senhor Cayrol, director de uma companhia de petróleos com quem arquitectei bons negócios. Por sorte, a que ofereci ao senhor Cayrol foi parar ao Metropolitan Museum de New York. Conhece? Pois, a gente jovem viaja tanto que não sei como ocupará o tempo quando passar ao meu estado. Aliás, isto de morte e vida é muito relativo. A vida é um vento breve, mas a morte não o é menos para quem quiser continuar a cadeia de morrer e nascer. Eu não quero, nevermore. Vivi bem, e as alegrias da arte tornam a minha situação mais que suportável.»
Calou-se por momentos, como se receasse ter falado de mais. O mutismo da minha parte tê-lo-á irritado. Para rompê-lo perguntou-me se, no museu de Lyon, vira a natureza-morta do Fantin a que Claudel chamou carré de silence. Não, faltava-me a de Lyon e muitas outras. A minha ignorância acalmou-o e, animado, recomeçou:
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(continua)
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Próximo episódio: “O senhor sabe que, num dia só, foram massacrados muitos milhares de arménios, tentaram decapitar de vez a nossa espécie?”