quinta-feira, 25 de março de 2004

O Ressentimento



O ressentimento age de modo deliberadamente unilateral. Muitas vezes sem que o próprio dê por isso. O ressentimento funda-se na frustração da alma, na impossibilidade de respirar perspectivas antes sonhadas, no desencanto que não se aceita. O ressentimento recusa o outro, recusa a colegialidade de opiniões, recusa o contraditório ou até a sanidade da crítica. O ressentimento luta e vive com fantasmas, luta e vive com figuras imaginárias que preenchem quixotescamente o vazio deixado pelo desaire. O ressentimento já nem sequer habita neste mundo, tal como os místicos que o encaram como mero trânsito e portanto apenas aspiram aos deuses ou ao além. O ressentimento é violento e tende a recusar a democracia. Não a aceita, no fundo, nem como uma espécie de mal menor. O ressentimento tende a encontrar no seio da democracia aquilo que é próprio da monstruosidade, do abjecto e do terrorismo. Faz-lhe jeito que assim seja. O ressentimento adora trocar os termos e concede imunidade e compreensão aos cultos da morte que brotaram com visibilidade no mundo do pós-11 de Setembro. O ressentimento prefere apontar para o terrorismo e para a barbárie, ao apontar para a democracia (onde vive com liberdade suficiente para o poder fazer). O ressentimento é o autismo do século. O ressentimento é a aridez retórica que mais notícias cria no dia a dia. O ressentimento é uma praga. O ressentimento é uma cegueira. E sendo isto tudo, imagine-se que o ressentimento pode ser nobel, deputado, lente, cronista e o mais que se quiser. O ressentimento anda por aí, muito activo e praguejador. O ressentimento alia o reverso do clã sebástico ao velho do Restelo sem rio para olhar. O ressentimento é um Peter Pan sem causas que inventa o que for preciso para fingir que defende causas. O ressentimento é um fingidor que detesta a poesia. O ressentimento é um dos maiores opositores da democracia. O ressentimento é realmente um grande sacana, cheira a mofo e odeia definitivamente a Primavera.